Língua morta, língua viva

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A língua é um dos nossos principais meios de interação com a realidade. Por meio dela, aprendemos, ensinamos e compartilhamos significados diversos que construímos no cotidiano. Além disso, a língua (e seus usos) está estreitamente ligada à identidade cultural. Suas variações nos permitem perceber especificidades culturais, tendo em vista os usos e os costumes linguísticos adotados em um dado contexto.

Na contramão dos estudos que identificam e delimitam usos linguísticos específicos, uma matéria veiculada em 2013 no portal O Globo levanta a possibilidade de existência de “uma ancestral comum de cerca de 700 idiomas atuais”.

A fim de esclarecer a alegação de uma base comum de idiomas e demais questões relacionadas às línguas, especialmente à portuguesa, procuramos as pesquisadoras Heliana Mello e Maria do Carmo Viegas. Ambas atuam na área de Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da UFMG.

Antes de entrar no mérito do estudo citado na notícia, foi necessário realizar uma distinção preliminar entre  língua e linguagem. A professora Heliana Mello explica, no áudio abaixo, a diferença entre os termos e esclarece a possível causa de sua confusão. Confira.

Voltando à notícia exposta anteriormente, vemos que os pesquisadores ali citados  concluíram  que centenas de línguas têm uma ascendência comum. Ou seja, trata-se de línguas com origens comuns, razão pela qual alguns sons ainda estariam preservados nos dias atuais entre essas línguas. Isto é possível? Foi a indagação que levamos para a professora Heliana, que pondera sobre os registros geográficos e históricos das línguas, os milhares de anos decorridos entre a suposta ancestral em estudo e os dias atuais e o desenvolvimento tecnológico atual. Saiba mais no áudio abaixo.

Paradoxalmente à conjectura de uma matriz comum e de sons conservados, aponta-se para a visão de “mudança permanente” das línguas, uma atualização verificada especialmente em sua modalidade oral. Seria este um movimento próprio à manutenção dos idiomas, uma vez que alguns deles se adaptam e sobrevivem aos anos? Ou este tipo de mudança, levada ao extremo, poderia ocasionar o próprio desaparecimento da língua? A professora Maria do Carmo Viegas responde: “A preservação de uma língua depende de vários aspectos, um deles é se determinada comunidade de fala é constituída por uma rede fechada. Então, quanto mais aquela comunidade de fala é fechada, mais sua língua é preservada, quanto mais aberta é a rede… Tem a ver com contato linguístico, tem a ver com contato com outras comunidades, tem a ver com mobilidade de seus falantes. Aí, quanto mais aberta a rede, menos ela tende a ser preservada”.

Em contraponto à visão da professora Maria do Carmo, a professora Heliana Mello também responde, ao indicar a concomitância das mudanças orais com o estabelecimento do idioma, aplicando ao contexto da língua inglesa. Ouça.

Diante do panorama exposto acima, percebe-se que há discordâncias sobre o papel das mudanças linguísticas na sobrevivência dos idiomas. Assim, o que explicaria o fato de determinadas línguas serem preservadas em detrimento das inúmeras línguas que desapareceram no decorrer dos anos?

A professora Heliana associa a língua ao poder. Entenda a relação no áudio abaixo.

A professora Maria do Carmo Viegas concorda: “Isso [a relação da língua com o poder] ocorre mesmo, isso ocorre nas diversas sociedades. Língua e poder estão muito relacionados” e acrescenta, “a língua está relacionada com o poder… na medida em que a variante de prestígio é muitas vezes determinada por grupos de prestígio.”.

A professora Maria do Carmo prossegue sua explanação valendo-se do conceito de “variante de prestígio” e cita dois exemplos emblemáticos da língua portuguesa:

“O ‘erre’ retroflexo, por exemplo, ‘porrta’, como se fala no sul de Minas. Por exemplo, não é uma variante de prestígio; não é porque os sociais que falam dessa maneira, que falam essa variante, não tiveram, muitas vezes, o poder pra decidir qual é a variante de prestígio (ou não optaram por). Então, essas pessoas provavelmente não estavam no grupo que decidiu qual seria a variante padrão falada no Jornal Nacional, por exemplo. Mas isso pode mudar, esse erre pode passar a ser a variante de prestígio, a variante padrão. Isso é possível mudar.

“Vejamos o caso de ‘Ambos os dois’ já foi padrão, hoje não é mais, é considerado pleonástico. ‘Ambos os dois’ já foi padrão, já foi de prestígio, já foi valorizado.”.

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Balanço crítico

Ao contrário do que muitos imaginam, o estudo da língua suscita interesse em vários campos, extrapolando o campo da Linguística. Este é o caso do pesquisador Mark Pagel, o líder do estudo da notícia analisada, que concebe a língua como fruto de um processo de evolução. Esta visão, entretanto, não é consensual, da mesma forma como não o são os princípios teóricos do próprio campo da Linguística.

As divergências percebidas entre as professoras Heliana Mello e Maria do Carmo Viegas também são exemplos das perspectivas divergentes do seu campo de conhecimento. As atualizações e transformações que os idiomas sofrem são um mecanismo de sobrevivência ou, pelo contrário, ameaçam a integridade dos mesmos?

Esta é uma questão que não pôde ser respondida no âmbito desta publicação, mas que, certamente, motivará ainda muitos debates de campo.

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Entrevistadas: Heliana Ribeiro de Mello (Lattes) e Maria do Carmo Viegas (Lattes), professoras da área de Linguística na Faculdade Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

Entrevista e texto: Deize Paiva

Edição: Juliana Botelho

Ilustração: Luiza Carvalho

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