Chá de sumiço - Primeiro capítulo

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Ma r i a n Keye s yyy

MELANCIA

FÉRIAS!

SUSHI Casório?! É Agora... ou Nunca Los Angeles Um Bestseller pra Chamar de Meu

Tem Alguém Aí? Cheio de Charme A Estrela Mais Brilhante do Céu

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Marian Keyes CH Á D E SUMIÇO

Tradução Renato Motta

Rio de Janeiro | 2013

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Olha só que ironia... Talvez eu seja a única pessoa que conheço que não acha nem um pouco maravilhosa a perspectiva de ir para “um lugar” a fim de “descansar”. Vocês precisam ouvir minha irmã Claire tagarelando a respeito disso, como se acordar certa manhã e descobrir que você está num hospital para doentes mentais fosse a experiência mais deliciosa do mundo. — Tenho uma ideia ótima! — declarou ela para sua amiga Judy. — Vamos surtar ao mesmo tempo. — Genial! — disse Judy. — Ficaremos num quarto duplo. Será fantástico. — Descreva a cena para mim. — Beeeeem... Pessoas gentis... Mãos macias, acolhedoras... Vozes sussurrantes... Roupa de cama branca, sofás brancos, orquídeas brancas, tudo branco... — Como no céu — maravilhou-se Judy. — Exatamente como no céu! — confirmou Claire. Não exatamente como no céu! Abri a boca para protestar, mas não havia jeito de fazer com que parassem. — ... o som de água tilintando... — ... o cheiro de jasmim... — ... um relógio tiquetaqueando em algum lugar distante... — ... o nostálgico repicar de um sino... — ... e nós duas deitadas na cama, com as cabeças desligadas pelo Xanax... — ... olhando, sonhadoras, para grãos de poeira no ar... — ... ou lendo a revista Grazia...

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— ... ou comprando picolés Magnum Gold do homem que passa lentamente, de enfermaria em enfermaria, vendendo sorvetes... Mas é claro que não haveria ninguém vendendo picolés. Nem qualquer das outras coisas legais. — Uma voz sábia dirá — Judy fez uma pausa, para causar mais impacto: — “Livre-se de todos os seus fardos, Judy.” — E alguma adorável enfermeira que parece flutuar enquanto caminha cancelará os nossos compromissos — completou Claire. — Dirá a todos que nos deixem em paz. Avisará aos canalhas mal-agradecidos que estamos com esgotamento nervoso por culpa deles, e todos terão de ser muito mais simpáticos conosco, se algum dia conseguirmos sair de lá. Tanto Claire quanto Judy tinham vidas loucamente agitadas — crianças, cachorros, maridos, empregos e uma dedicação demorada e caríssima à missão de parecerem dez anos mais novas do que de fato eram. Zuniam perpetuamente de um lado para outro em automóveis, levando os filhos para treinarem rúgbi, pegando as filhas no dentista, correndo pela cidade para irem a alguma reunião urgente. Ser multitarefa era uma forma de arte para elas; usavam os segundos inúteis nos sinais de trânsito fechados para esfregar nas pernas paninhos com bronzeador artificial, respondiam aos e-mails sentadas nas poltronas dos cinemas e cozinhavam cupcakes Veludo Vermelho à meia-noite, enquanto eram alvo da zombaria das filhas adolescentes, que as chamavam de “patéticas vacas velhas e gordas”. Nem um único momento sequer era desperdiçado. — Eles nos darão Xanax. — Claire voltara ao devaneio. — Ah, que maraviiiilha! — Tanto quanto quisermos. No instante em que a felicidade começar a desaparecer, tocaremos uma sineta e uma enfermeira surgirá para nos dar uma dose extra.

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— Nunca precisaremos nos vestir sozinhas. Todas as manhãs nos trarão pijamas de algodão novinhos em folha, tirados do pacote. E dormiremos dezesseis horas por dia. — Ah, dormir... — Será como estar embrulhada num grande casulo de marshmallow; nos sentiremos flutuantes, felizes e sonhadoras... Era hora de apontar uma grande e desagradável falha naquela visão deliciosa delas. — Vocês estarão num hospital psiquiátrico! — lembrei-lhes. Tanto Claire como Judy pareceram imensamente alarmadas. Depois de algum tempo, Claire disse: — Não estou falando de um hospital psiquiátrico. Apenas de um lugar para ir... repousar. — Esse lugar para onde as pessoas vão a fim de “repousar” é um hospital psiquiátrico. Ambas ficaram em silêncio. Judy mordeu o lábio inferior. Estavam, obviamente, refletindo sobre tudo aquilo. — O que você achou que poderia ser? — perguntei. — Bem... Tipo assim, uma espécie de spa — afirmou Claire. — Com... Sabe como é... Remédios interessantes. — Eles têm pacientes loucos lá dentro — expliquei. — Pessoas malucas de verdade. Gente doente. Veio mais um longo silêncio; por fim, Claire ergueu os olhos para mim, com o rosto vermelho-vivo. — Pelo amor de Deus, Helen! — exclamou. — Você é mesmo uma tremenda vaca insensível, sabia? Por que nunca consegue deixar alguém curtir um lance agradável?

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Quinta-feira

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Capítulo Um

Eu estava pensando em comida. Quando estou presa num engarrafamento, é isso que faço. Aliás, é o que qualquer pessoa normal faz; por outro lado, analisando melhor, eu não tinha comido nada desde as sete da manhã, e isso já fazia dez horas. Uma canção da banda Laddz tocou no rádio pela segunda vez só naquele dia — era ou não uma tremenda falta de sorte? Enquanto os acordes piegas e açucarados tomavam conta do carro, tive uma vontade forte e súbita de bater de frente com um poste. Havia um posto de gasolina logo adiante, à esquerda, onde um letreiro vermelho e tentador anunciava refrigerantes. Eu podia me libertar daquele nó no trânsito, entrar ali e comprar um donut. Mas os donuts vendidos nesses lugares eram tão sem gosto quanto as esponjas que repousam no fundo do mar; acho que daria até para me esfregar no banho com um deles. Além disso, um bando de abutres negros imensos voava em círculos sobre as bombas de gasolina, e isso me demoveu da ideia de parar. Não, decidi... Eu seguiria adiante até... Espere um minuto! Abutres? Numa cidade? Sobre um posto de gasolina? Dei uma segunda olhada e vi que não eram abutres. Apenas gaivotas. Gaivotas comuns. Então pensei: Ah, não, outra vez, não!

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• • • Quinze minutos depois, estacionei o carro diante da casa dos meus pais, esperei um momento para me recompor e comecei a futucar na bolsa em busca da chave para poder entrar. Eles haviam tentado fazer com que eu devolvesse minha chave quando fui embora daquela casa, três anos antes. Porém — raciocinando de forma estratégica —, eu me agarrara a ela. Mamãe ameaçara trocar as fechaduras, mas eu sabia que se ela e papai haviam demorado oito anos para decidir comprar um simples balde amarelo, quais as chances de conseguirem lidar com uma tarefa tão complicada como mandar trocar as fechaduras? Encontrei os dois na cozinha, sentados à mesa, bebendo chá e comendo bolo. Pessoas velhas. Que vida ótima elas têm. Mesmo as que não fazem tai chi chuan (falaremos sobre isso depois). Eles ergueram os olhos e me olharam fixamente, com um ressentimento maldisfarçado. — Tenho uma notícia para vocês — informei. Mamãe pareceu recuperar a voz. — O que está fazendo aqui? — perguntou ela. — Eu moro aqui. — Não mora mais! Nós nos livramos de você. Pintamos seu quarto. Nunca fomos tão felizes. — Eu disse que tenho uma notícia. Minha notícia é essa: moro aqui. O medo começou a surgir aos poucos no rosto de mamãe. — Você tem sua própria casa. — Ela vociferava, mas parecia ter perdido a convicção. Já devia esperar por isso, afinal. — Não mais. Desde hoje de manhã. Não tenho nenhum outro lugar para ir.

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— Foi o pessoal da hipoteca? — Ela estava cinzenta (por baixo da base laranja usada tradicionalmente pelas mães irlandesas.) — O que está acontecendo? — Papai era surdo. E também confuso na maioria das vezes. Era sempre difícil saber qual das duas deficiências estava no comando. — Ela não pagou a PRESTAÇÃO — disse mamãe, no ouvido bom dele. — O apartamento dela foi RETOMADO! — Eu não consegui pagar a prestação — protestei. — A senhora fala como se fosse culpa minha. De qualquer modo, a coisa toda é muito mais complicada que isso. — Você tem um namorado — disse mamãe, com ar esperançoso. — Não pode ir morar com ele? — Onde está o seu discurso de católica radical, mamãe? — Precisamos acompanhar os tempos modernos. Balancei a cabeça negativamente. — Não posso ir morar com Artie. Os filhos dele não permitiriam. — Não era exatamente assim. Somente Bruno iria se opor. Ele me odiava profundamente. Iona, porém, era bastante agradável e Bella me adorava de paixão. — Vocês são meus pais. Amor incondicional. Preciso lembrá-los disso? Minhas coisas estão no carro. — O quê?! Todas as suas coisas? — Não. Eu passara o dia com dois sujeitos que só aceitam dinheiro vivo. O que restava da minha mobília estava agora armazenado num gigantesco guarda-móveis que ficava muito depois do aeroporto, esperando a volta dos bons tempos. — Só trouxe minhas roupas e algumas coisas de trabalho — continuei. — Na verdade, tinha levado uma porção de coisas de trabalho, já que eu tinha sido obrigada a devolver meu escritório também, havia um ano. Ah, e um monte de roupas, embora eu tivesse jogado fora toneladas e mais toneladas, enquanto fazia as malas.

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— Mas quando isso vai ter fim? — perguntou mamãe, com ar de lamúria. — Quando teremos nossos anos dourados, afinal de contas? — Nunca! — Papai falou com repentina confiança. — Isso é uma síndrome da vida moderna. A Geração Bumerangue. Filhos adultos voltando para morar na casa dos pais. Li a respeito disso na Grazia. Não havia como discordar da Grazia. — Você pode ficar conosco por alguns dias — concedeu mamãe. — Mas vou logo avisando: pode ser que nós resolvamos vender a casa e partir num cruzeiro pelo Caribe. Os preços dos imóveis na Irlanda haviam despencado tanto que a venda daquela casa não renderia grana suficiente nem para um passeio às ilhas Aran. Mas eu não disse nada. Fui até o carro, arrastei minhas caixas de tralhas e decidi não mencionar o fato. Afinal, eles iam me oferecer um teto.

— A que horas é o jantar? — Eu não estava com fome, mas queria me informar sobre os horários da casa. — Jantar? Não havia nenhum jantar. — Não ligamos mais para essas coisas — confessou mamãe. — Agora que somos só nós dois... Puxa, essa era uma notícia péssima! Eu já me sentia muito mal, mesmo sem meus pais subitamente se comportarem como se estivessem na antessala da morte. — Mas... O que vocês comem? Eles olharam um para o outro, surpresos, e depois para o bolo na mesa. — Ora essa... Bolo, é claro! No passado, isso teria sido perfeito. Nos meus tempos de menina, minhas quatro irmãs e eu considerávamos uma atividade de alto

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risco comer qualquer coisa que minha mãe tivesse cozinhado. Mas eu não estava em meu estado normal. — Então... A que horas é o bolo? — A qualquer hora que você tiver fome. Isso não servia. — Preciso de um horário específico. — Às sete, então. — Está bem. Ouçam... Avistei um bando de abutres sobrevoando o posto de gasolina. Mamãe apertou os lábios. — Não temos abutres na Irlanda — informou papai. — São Patrício os expulsou de vez. — Ele tem razão — disse mamãe, com determinação. — Você não viu nenhum abutre. — Mas... — Parei de falar. De que adiantaria? Abri a boca e tentei inspirar um pouco de oxigênio. — O que está fazendo? — Mamãe me pareceu alarmada. — Estou... — O que eu estava fazendo mesmo? — Estou tentando respirar. Meu peito está todo emperrado. Não há espaço suficiente para o ar entrar. — Claro que há espaço. Respirar é a coisa mais natural do mundo. — Acho que minhas costelas diminuíram de tamanho. Sabe como é... do jeito que os ossos encolhem, quando a pessoa está velha. — Você tem apenas trinta e três anos. Espere até chegar à minha idade e vai descobrir tudo sobre ossos encolhidos. Embora eu não soubesse qual era a idade exata de mamãe — ela mentia sobre isso o tempo todo, e de forma elaborada, algumas vezes fazendo referência ao papel vital que desempenhara na Revolta de 1916 (“ajudei a datilografar a Declaração de Independência para o jovem Padraig ler nos degraus da sede dos Correios”); outras vezes

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tornava-se lírica ao falar dos anos de sua adolescência, que passara dançando ao som de “The Hucklebuck”, quando Elvis visitou a Irlanda (Elvis nunca fora à Irlanda e nunca cantara “The Hucklebuck”, mas, quando alguém dizia isso mamãe piorava, insistindo que Elvis fizera uma visita secreta, sim, a caminho da Alemanha, e que cantara “The Hucklebuck” a pedido dela, especificamente). — Nessas horas, ela parecia maior e mais robusta do que nunca. — Recupere o fôlego! Vamos, vamos, qualquer pessoa consegue fazer isso — insistiu. — Até uma criancinha! Então, o que pretende fazer esta noite? Depois de comer bolo? Vamos ver TV? Temos gravados vinte e nove episódios de Come Dine With Me. — Ahn... — Eu não queria assistir a Come Dine With Me. Normal­ mente, eu assistia a pelo menos dois programas por dia. De repente, porém, me senti enjoada de tudo aquilo. Tinha um convite em aberto para visitar Artie. Mas os filhos dele estariam lá naquela noite, e eu não tinha certeza se conseguiria ter força suficiente para bater papo com eles; além do mais, sua presença interferiria nos meus planos de livre acesso sexual ao pai deles. Mas Artie estivera trabalhando em Belfast a semana inteira e... Sim, bote pra fora, Helen, admita de uma vez por todas para si mesma... Eu tinha sentido saudades dele. — Provavelmente vou dar uma passadinha na casa de Artie — comuniquei. Mamãe se empolgou toda. — Posso ir também? — Claro que não! Já lhe avisei! Mamãe era louca pela casa de Artie. Vocês provavelmente conhecem esse tipo de casa, se curtem revistas de decoração. Por fora, parece um chalé típico da classe operária — agachado sobre a calçada, com o boné arriado, sabendo seu lugar. O telhado de ardósia é torto e a porta da frente tão baixa que as únicas criaturas capazes

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de atravessá-la com plena certeza de que não vão rachar o crânio são os anões. Quando a pessoa entra no ambiente, porém, descobre que alguém colocou abaixo a parede dos fundos da casa e a substituiu por uma maravilhosa terra mágica, vítrea e futurista, com escadas flutuantes, quartos de dormir suspensos como ninhos de pássaros e claraboias distantes. Mamãe estivera lá apenas uma vez, por acaso — eu avisei para não sair do carro, mas ela me desobedeceu na maior cara de pau —, e ficou tão impressionada que me causou enorme constrangimento. Eu não permitiria que isso acontecesse novamente. — Está bem, então eu não vou — disse ela. — Mas tenho um favor para lhe pedir. — Qual? — Você vai comigo ao show de reencontro da banda Laddz? — Eu, hein? Ficou maluca? — Maluca, eu? Olhe quem está falando... Uma pessoa que enxerga abutres!

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Capítulo Dois

Chalés nanicos que parecem pertencer à classe operária são interessantes e ótimos, só que não costumam oferecer estacionamentos subterrâneos convenientes para visitantes. Demorei mais para encontrar uma vaga do que o tempo que gastei dirigindo os três quilômetros até a casa de Artie. Finalmente enfiei meu Fiat 500 (preto com interior revestido também em preto) entre duas gigantescas picapes, e só então me permiti adentrar o celestial universocasulo de acrílico transparente. Tinha minha própria chave — fazia só seis semanas desde que Artie e eu tínhamos feito aquela troca cerimoniosa. Ele me dera uma chave da sua casa; eu lhe dera a chave do meu apartamento. Porque, na ocasião, eu ainda tinha um. Ofuscada pela luz do sol das noites de junho, segui cegamente o som de vozes através da casa, descendo pelos degraus mágicos que flutuavam soltos até chegar ao deque onde um grupo de pessoas de boa aparência e cabelos louros estava reunido montando — imaginem só o quê? — um quebra-cabeça. Artie, meu lindo viking! Iona, Bruno e Bella, seus lindos filhos. E Vonnie, sua linda ex-esposa. Sentada no banco comprido ao lado de Artie, ali estava ela, com seu ombro magro e moreno encostadinho no do ex-marido, que era grande e largo. Eu não esperara vê-la, mas Vonnie morava perto e, muitas vezes, aparecia casualmente, em geral com Steffan, seu parceiro, a reboque. Ela foi a primeira a me notar.

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— Helen! — exclamou, num tom muito caloroso. Um coro de saudações e sorrisos que pareciam flashes se estenderam para mim, e fui arrastada para um mar de braços acolhedores, a fim de ser beijada por todos. Uma família cordial, os Devlin. Só Bruno se manteve recuado, e ele não precisava achar que eu não notara isso; eu mantinha um registro mental das muitas e muitas vezes em que ele me tratara sem consideração. Nada me escapava. Todos nós temos dons específicos. Bella, vestida em cor-de-rosa da cabeça aos pés e cheirando a chiclete de cereja, ficou muito emocionada com minha chegada. — Helen, Helen! — Ela se atirou em cima de mim. — Papai não avisou que você vinha. Posso arrumar seus cabelos? — Bella, dê um tempo para Helen — disse Artie. Com nove anos e uma personalidade muito amorosa, Bella era a mais jovem, a mais frágil e fraca de todo o grupo. Apesar disso, seria imprudente deixá-la de lado. Antes disso, porém, eu precisava cuidar de um assunto importante. Olhei para a região onde a parte de cima do braço de Vonnie se encontrava com o de Artie. — Afaste-se! — ordenei. — Você está perto demais dele. — Ela é a esposa dele. — As maçãs do rosto exageradas como as de um travesti, típicas de Bruno, pareceram acender de indignação. Será que ele estava usando blush? — Ex-esposa — lembrei a ele. — Sou sua namorada. Ele agora é meu. — Depressa e sem sinceridade, acrescentei: — Rá-rá-rá! (porque, assim, se alguém me acusasse algum dia de egoísmo e imaturidade e dissesse: “pobrezinho do Bruno”, eu poderia responder: “Pelo amor de Deus, foi só uma piada. Ele tem de aprender a aceitar zoação.”) — Na verdade, era o Artie que estava apoiado em mim — disse Vonnie. — Não estava não! — Naquela noite, eu estava sem paciência para aquele joguinho constante com Vonnie. Mal consegui escolher

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as palavras para continuar a farsa. — Você está sempre dando em cima dele. Desista de uma vez, Vonnie. Ele é louco por mim. — Tá legal, você tem razão. Com muito bom humor, Vonnie mudou de posição e arrastou o corpo para o lado sobre o banco, colocando espaço enorme entre ela e Artie. Geralmente eu não era assim, mas confesso que não conseguia deixar de gostar dela.

E quanto a Artie, no meio dessa cena? Demonstrava o maior interesse e parecia profundamente concentrado no canto inferior esquerdo do quebra-cabeça. Muitas vezes ele exibia um jeito caladão e misterioso, mas sempre que Vonnie e eu começávamos com nossas agressivas brincadeiras mútuas de mulheres-alfa, ele aprendera — seguindo instruções minhas — a se ausentar por completo. No começo, tentara me proteger dela, mas eu me sentira mortalmente ofendida. — É como se você estivesse insinuando que ela é mais assustadora do que eu! — desabafei. Na verdade, era Bruno, de treze anos, o verdadeiro problema. O pivete era mais abusado que a mais vingativa das garotas e, sim, eu sabia que tinha bons motivos para isso; seus pais se separaram quando ele estava na tenra idade de nove anos. Agora, ele se tornara um adolescente dominado pelos hormônios da raiva, que expressava o tempo todo vestindo-se num gênero “fascista chique”: camisas pretas justas, calças pretas estreitas enfiadas para dentro de reluzentes botas pretas que iam até os joelhos e cabelos muito, muito louros, cortados bem curtos, a não ser por uma franja majestosa, típica dos anos 1980. Também usava sombra nos olhos e, pelo visto, começara a passar blush.

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— E então?... — Sorri, um pouco tensa, para os rostos reunidos. Artie ergueu os olhos do quebra-cabeça e me deu uma encarada intensa com seus olhos azuis. Meu Deus. Engoli em seco, com força. Na mesma hora, desejei que Vonnie fosse para casa e as crianças para a cama, para eu poder curtir algum tempo sozinha com Artie. Será que seria descortês pedir a eles para darem o fora? — Quer beber alguma coisa? — perguntou ele, sustentando o olhar. Fiz um sinal afirmativo com a cabeça, em silêncio. Torci para ele se levantar, para eu poder segui-lo até a cozinha e dar uma cheirinho nele, mesmo que rápido e furtivo. — Podem deixar que eu pego as bebidas — ofereceu Iona, com ar sonhador. Engolindo um uivo de frustração, espiei-a descer adejando pelos degraus flutuantes até a cozinha, onde a bebida morava. Aquela menina tinha quinze anos! Eu achava espantoso ela ser capaz de carregar um vinho de um cômodo para outro sem beber tudo pelo caminho. Quando eu tinha quinze anos, bebia qualquer coisa que não estivesse presa na mesa com pregos. Isso era simplesmente o que todos os adolescentes normais faziam, certo? Todo mundo era assim. Talvez fosse falta de um dinheirinho extra no bolso, não sei explicar; só sei que eu não entendia Iona e sua confiabilidade, muito menos suas tendências abstêmias. — Quer algo para comer, Helen? — perguntou Vonnie. — Há uma salada com erva-doce e queijo vacherin na geladeira. Meu estômago se apertou com força: não havia jeito de ele deixar nada entrar. — Eu já comi. — Na verdade, não tinha comido. Não tinha conseguido empurrar para dentro do estômago nem uma fatia de bolo da hora do jantar de mamãe e papai.

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— Tem certeza? — Vonnie me lançou um olhar de cima a baixo. — Você me parece meio magrinha. Não ouse ficar mais magra do que eu! — Não precisa ter medo disso. — Mas talvez houvesse razão para eu parecer abatida. Não fazia uma refeição adequada desde... Bem, já tinha algum tempo. Na verdade, nem conseguia lembrar quando... Uma semana. Talvez mais. Meu corpo parecia ter parado de notificar minha mente de que precisava de comida. Ou então minha mente estava tão cheia de preocupações que não con­seguia lidar direito com as informações. Quando a mensagem finalmente chegava ao destino, eu já não era mais capaz de fazer qualquer coisa remotamente complicada para aplacar a fome, como despejar leite em cima de cereais, por exemplo. Até comer pipoca, como eu havia tentado na noite anterior, me parecera a coisa mais esquisita do mundo — por que alguém comeria aquelas bolinhas crespas de isopor, que cortam o interior da nossa boca e ainda espalham sal nas feridas? — Helen! — disse Bella. — É hora de brincar! — Ela me exibiu um pente cor-de-rosa e um tupperware também cor-de-rosa cheio de grampos de cabelos cor-de-rosa e elásticos para cabelos revestidos de pano. Tudo cor-de-rosa! — Sente-se aqui... Ah, meu Deus. Brincar de cabeleireira. Pelo menos aquele não era dia de “atendente de registros de placas de veículos”. Esse era, de longe, o pior dos nossos jogos. Eu tinha de ficar em pé, como se estivesse numa fila, e ela se mantinha impassível atrás de um guichê de vidro imaginário. Eu vivia sugerindo para brincarmos disso online, mas ela protestava e argumentava que assim não seria um jogo. — Veja, chegou sua bebida! — exclamou Bella, e sussurrou para Iona: — Anda, entregue logo o copo, não vê que ela está estressada? Iona me apresentou uma taça de vinho tinto e um copo alto, gelado, tilintando com cubos de gelo.

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— Vinho shiraz ou então chá gelado de valeriana, feito em casa. Eu não sabia o que você iria preferir, então trouxe os dois. Fiquei por um segundo contemplando o vinho, mas logo decidi dispensá-lo. Tinha medo de, se começasse a beber, não conseguir mais parar. Não poderia suportar o horror de uma ressaca. — Vinho não, obrigada. Fortaleci-me para o espanto exagerado que em geral se seguia a esse tipo de declaração: “O quê? Vinho não?!... Ela disse ‘Vinho, não’? Pirou de vez?” Esperei que os Devlin se levantassem todos juntos e lutassem comigo até eu ficar imobilizada numa chave de braço, de modo que o shiraz pudesse ser despejado dentro de mim através de um funil plástico, como um carneiro sendo entubado, mas minha declaração passou em branco, sem comentários. Eu tinha me esquecido, por um momento, de que não estava com minha família de origem. — Prefere Coca zero? — perguntou Iona. Meu Deus, os Devlin eram os perfeitos anfitriões, até mesmo uma figura excêntrica e etérea como Iona. Eles sempre tinham Coca-Cola zero na geladeira especialmente para mim, pois nenhum deles bebia. — Não, obrigada, apenas chá está ótimo. Tomei um pequeno gole do chá de valeriana — não era ruim, embora também não fosse bom — e depois me sentei num maciço almofadão de chão. Bella ajoelhou-se ao meu lado e começou a acariciar meu couro cabeludo. — Você tem cabelos maravilhosos — murmurou a menina. — Muito obrigada. Detalhe: ela achava que eu tinha tudo bonito; não era exatamente uma testemunha confiável. Seus dedinhos pentearam e separaram mechas, e os músculos dos meus ombros começaram a relaxar pela primeira vez em cerca

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de dez dias; tive o alívio de uma respiração adequada, em que meus pulmões se encheram plenamente de ar e depois o soltaram. — Puxa, isso é tão relaxante!... — Teve um dia ruim? — perguntou ela, solidária e simpática. — Você nem faz ideia, minha amiguinha cor-de-rosa. — Pode desabafar comigo. Eu já estava pronta para jogar um monte de coisas terríveis em cima da menina quando lembrei que Bella tinha apenas nove anos. — Bem... — disse eu, esforçando-me muito para dar às coisas um toque alegre. — É que eu não consegui pagar minhas contas e tive de me mudar do meu apartamento... — O quê? — Artie pareceu espantado. — Quando foi isso? — Hoje. Mas tudo bem. — Eu falava mais para Bella do que para ele. — Mas... Por que você não me contou? — insistiu ele. Por que eu não tinha contado? Quando lhe dera a chave do apartamento, seis semanas antes, eu lhe avisara de que isso era uma possibilidade, mas fizera a coisa soar como se fosse brincadeira; afinal, o país inteiro estava com prestações imobiliárias em atraso, todos enterrados até o pescoço em dívidas. Mas ele ficara com as crianças no fim de semana anterior, tinha estado ausente durante toda a semana, e eu achava difícil ter esse tipo de conversa séria pelo telefone. Além do mais, para falar a verdade, não havia contado a ninguém o que estava acontecendo. Na véspera daquele dia, de manhã, percebi que tinha chegado ao fim da estrada — o fim da estrada, na verdade, fora alcançado algum tempo antes, mas eu negava o fato, esperando que os operários do Departamento de Obras aparecessem com asfalto, algumas linhas brancas para dividir as pistas, e construíssem alguns quilômetros a mais para mim —, então simplesmente marquei com os dois sujeitos que faziam mudanças. Vergonha, provavelmente, foi

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o que me mantivera calada. Ou terá sido a tristeza? Ou o choque? Difícil saber ao certo. — O que você vai fazer agora? — A voz de Bella soou preocupada. — Voltei a morar com minha mãe e meu pai por algum tempo. Eles estão passando por dificuldades, no momento, e não há muita comida, mas dá para ir levando... — Por que não se muda para cá? — perguntou Bella. Na mesma hora, o lindo rostinho aveludado de Bruno se acendeu de fúria. Em geral ele vivia tão zangado que era de esperar que seu rosto fosse todo coberto de espinhas. Uma manifestação externa, por assim dizer, da sua bile interior. Na verdade, porém, ele exibia uma pele muito macia, suave e delicada. — Porque seu pai e eu estamos saindo juntos há muito pouco tempo, e... — Cinco meses, três semanas e seis dias — relatou Bella. — São quase seis meses. Metade de um ano! Um pouco ansiosa, olhei para seu rostinho ardente. — E vocês se dão muito bem um com o outro — afirmou ela, com entusiasmo. — É o que mamãe diz. Não é, mamãe? — Digo sim, com certeza — falou Vonnie, com um sorriso torto. — Mas eu não posso me mudar para cá — tentei com muito esforço falar de maneira alegre — ... porque Bruno me esfaquearia no meio da noite. — E depois roubaria minha maquiagem. Bella ficou horrorizada. — Ele não faria uma coisa dessas. — Faria, sim — garantiu o menino. — Bruno! — Artie gritou para ele. — Desculpe, Helen. — Bruno conhecia as regras. Virou-se de lado, mas deu para vê-lo formar palavras que não expressou em voz alta: “Vá se foder, sua cara de xereca.”

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Precisei de todo autocontrole para não fazer com a boca, em resposta: “Vá se foder você, menino fascista.” Mas eu já tinha quase trinta e quatro anos, lembrei a mim mesma. E Artie poderia perceber essa reação. Minha atenção foi desviada por uma luz que piscava no meu celular. Um novo e-mail tinha acabado de chegar. O título curioso era: “Imenso pedido de desculpas”. Então, vi quem era o remetente: Jay Parker. Quase deixei o aparelho cair no chão. Queridíssima Helen, minha deliciosa rabugentazinha. Em­ bora me mate reconhecer o fato, preciso muito da sua ajuda. Que tal deixar para trás as coisas passadas e entrar em contato comigo?

Aquilo merecia uma resposta curta, apenas uma palavra. Demorei menos de um segundo para digitar: Não.

Deixei Bella brincar com meus cabelos, bebi meu chá de valeriana e espiei os Devlin montando o quebra-cabeça, desejando que todos — menos Artie, é claro — dessem o fora dali. Será que não po­díamos, pelo menos, ir lá para dentro e ligar a TV? Na casa onde eu fui criada, tratávamos o que estava “do lado de fora” da casa com muitas suspeitas. Mesmo no auge do verão, nunca entendíamos exatamente o porquê da existência de jardins, especialmente porque o fio da TV não se estendia até o lado de fora da casa. E o aparelho de televisão sempre fora muito importante para os Walsh; nada, absolutamente nada tinha acontecido em nossas vidas — nascimentos, mortes, casamentos — sem a participação da televisão como pano de fundo da ação, de preferência transmitindo alguma novela em que

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os personagens se expressavam aos gritos. Como será que os Devlin conseguiam aguentar toda aquela conversa tranquila? Talvez o problema não fosse com eles, percebi. Talvez o problema fosse eu mesma. Minha habilidade para conversar com outras pessoas parecia estar se esvaindo de mim, como o ar escapando de um balão velho. Eu estava pior agora do que uma hora antes. Os dedos suaves de Bella puxavam meu couro cabeludo, e ela emitia sons agudos que certamente eram estalos de admiração com a língua; depois se alvoroçava, até finalmente chegar a algum tipo de resolução com a qual estava feliz. — Perfeito! Agora você parece uma princesa maia. Veja só! Colocou um espelho de mão diante do meu rosto. Captei uma rápida visão dos meus cabelos em duas tranças compridas e algum tipo de coisa tecida à mão amarrada através da minha franja. — Olhem para Helen! — convocou a menina, olhando em torno. — Ela não está linda? — Linda! — exclamou Vonnie, num tom de profunda sinceridade. — Parece uma princesa maia — enfatizou Bella. — É verdade que foram os maias que inventaram o sorvete Magnum? — perguntei. Houve um breve silêncio atônito e depois a conversa recomeçou, como se eu não tivesse dito nada. Eu estava totalmente fora de sintonia, ali. — Ela está igualzinha a uma princesa maia — confirmou Vonnie. — A não ser pelo fato de que os olhos de Helen são verdes, e os de uma princesa maia seriam provavelmente castanhos. Mas os cabelos estão perfeitos. Muito bem, Bella! Mais chá, Helen? Para minha surpresa, eu me senti farta dos Devlin, pelo menos naquele momento. Estava cheia daquela família, revoltada com sua aparência impecável, sua graça, suas maneiras finas, seus jogos de

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tabuleiro, suas pausas amistosas e as pequenas taças de vinho ao jantar, para as crianças. Na verdade, eu queria ficar sozinha com Artie, mas isto não iria acontecer, e eu não consegui reunir nem mesmo a energia para me sentir chateada com a situação; aquilo não era culpa dele. Artie tinha três filhos e um emprego que tomava muito do seu tempo. Ele não fazia ideia do dia que eu tinha enfrentado. Ou da semana, na verdade. — Não, não quero mais chá, obrigada, Vonnie. É melhor eu ir embora. — Levantei-me. — Você já vai embora? — Artie parecia preocupado. — Virei aqui para ver você no fim de semana. — Ou quando for a vez de Vonnie ficar com as crianças. Eu me perdera quanto às escalas deles, que eram muito complicadas. A premissa básica era de que as três crianças passassem quantidades de tempo escrupulosamente iguais nas casas dos dois pais, mas os dias em que isto acontecia variavam de uma semana para outra, dependendo de fatores do tipo Artie ou Vonnie (sobretudo Vonnie, se querem saber) terem miniférias, cerimônias de casamento de amigos comuns no campo etc. — Você está bem? — Artie começava a parecer preocupado. — Estou ótima. — Eu não podia tratar do assunto naquele momento. Ele me agarrou pelo pulso. — Não quer ficar mais um pouco? — Com a voz muito baixa, propôs: — Posso pedir a Vonnie para ir embora. E as crianças terão de ir para a cama, em algum momento. Mas isso ainda poderia demorar várias horas para acontecer. Artie e eu nunca íamos para a cama antes das crianças. É claro que muitas vezes eu estava lá de manhã, de modo que era óbvio que eu tinha passado a noite ali, mas nós — todos nós — costumávamos recorrer à farsa de que eu dormira em alguma cama extra imaginária, e que Artie passara a noite sozinho. Embora eu fosse o caso

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amoroso de Artie, todos costumavam me tratar apenas como uma amiga da família em visita. — Preciso ir. — Eu não aguentaria nem mais um minuto sentada ali no deque, esperando pegar Artie sozinho, louca para ter a chance de tirar as roupas do seu belo corpo. Eu explodiria. Antes, porém, ainda havia as manifestações de adeus. Demoraram cerca de vinte minutos. Eu não estava acostumada com despedidas muito compridas; se a escolha fosse minha, preferia resmungar alguma coisa sobre ter de ir ao banheiro, sair de forma furtiva e já estar a meio caminho de casa antes que qualquer pessoa percebesse que eu me ausentara dali. Em minha opinião, dizer “até logo” é uma coisa insuportavelmente chata. Puxa, mentalmente eu já tinha dado o fora dali! Tipo... Fui! A mim, parecia uma perda total de tempo aqueles “tudo de bom”, “até a próxima”, “cuide-se bem, viu?”, os sorrisos generosos e coisas do gênero. Algumas vezes sinto vontade de arrancar as mãos das pessoas dos meus ombros, afastá-las com um empurrão e simplesmente me arremessar para a liberdade. Mas transformar o ritual de despedidas numa grande produção era o jeito de ser dos Devlin: abraços e beijos dos dois lados do rosto — mesmo da parte de Bruno, que, claramente, ainda não tinha conseguido romper inteiramente com seu condicionamento de classe média. Da parte de Bella, beijos quádruplos (nas duas faces, na testa e no queixo), acompanhados de sugestões de que, muito em breve, poderíamos tirar um bom cochilo no quarto dela. — Eu lhe emprestarei meu pijama estampado da Moranguinho — prometeu ela. — Você só tem nove anos — disse Bruno, ridicularizando a irmã de forma implacável. — Helen é, digamos assim... Velha. Como acha que seu pijama vai caber nela?

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— Somos do mesmo tamanho — garantiu Bella. Engraçado é que praticamente éramos, mesmo. Eu era baixa para minha idade e Bella era alta para a sua. Eles eram todos altos, os Devlin; tinham puxado a Artie. — Tem certeza de que deve ficar sozinha? — perguntou Artie, quando me acompanhou até a porta da frente. — Vejo que você teve um dia muito ruim. — Que nada, estou ótima. Ele pegou minha mão e esfregou a palma contra sua camiseta, por cima dos seus músculos peitorais, e depois desceu lentamente na direção da sua barriga de tanquinho. — Pare! — afastei-me dele. — Não adianta começar uma coisa que não poderemos terminar. — Hummm... Tá bem. Mas vamos pelo menos tirar esse troço dos seus cabelos, antes de você ir embora. — Artie, eu já disse que... Com muita ternura, ele desamarrou a faixa maia que Bella colocara em mim, exibiu-a para mim com um floreio e depois a deixou cair no chão. — Ah... — murmurei. E depois “ahn...”, quando ele deslizou suas mãos debaixo do contorno dos meus cabelos e por cima do meu pobre e atormentado couro cabeludo, começando a desfazer as duas tranças. Fechei os olhos por um momento, deixando suas mãos abrirem caminho através dos meus fios. Ele girou os polegares, fazendo lentos círculos em torno das minhas orelhas, seguiu para minha testa, sobre as linhas franzidas entre as sobrancelhas, e parou no ponto tenso onde meu pescoço se encontrava com meu couro cabeludo. Meu rosto começou a se suavizar e senti meu maxilar paralisado relaxando aos poucos; quando finalmente parou, eu estava em tamanho transe, que uma mulher menos enérgica teria desabado.

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Mas consegui me manter ereta. — Babei em você? — Eu quis saber. — Dessa vez, não. — OK, vou nessa! Ele curvou a cabeça e me beijou, um beijo mais contido do que eu preferiria, mas era melhor não iniciar nenhum incêndio. Deslizei minha mão para cima, até a parte de trás da sua cabeça. Gostava de emaranhar meus dedos entre os cabelos da sua nuca e puxá-los, mas não com força suficiente para machucar. Quer dizer, mais ou menos. Quando nos afastamos, eu disse: — Gosto dos seus cabelos. — Vonnie diz que preciso cortá-los. — Eu discordo. E quem decide sou eu. — OK — disse ele. — Durma um pouco. Telefonarei para você mais tarde. Tínhamos entrado numa rotina — bem, acho que era uma rotina — nas últimas semanas, e sempre conversávamos rapidamente pouco antes de dormir. — E quanto à sua pergunta — disse ele —, a resposta é sim. — Que pergunta? — Foram os maias que inventaram os sorvetes Magnum? — Ah... Sim, é claro que os maias tinham inventado os sorvetes Magnum.

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