domingo, 27 de dezembro de 2015

Comentando Vitamin, de Suenobu Keiko


Ontem terminei de ler a edição de Vitamin (ビタミン) da JBC.  Assim como na época que eu lia Life  (ライフ) na versão americana, foi uma leitura rápida, muito, muito rápida.  Acredito que seja assim, porque Suenobu Keiko pega o/a leitor/a de tal jeito que a gente dificilmente consegue parar a leitura, mais do que isso, vai devorando as páginas em alta velocidade.  Agora, não me perguntem como alguém consegue escrever mangás tão deliciosos de se ler tratando de temas tão barra pesada, porque, sim, Vitamin é assustador, violento e extremamente realista.

Vitamin acompanha o dia-a-dia de Sawako, uma estudante comum de 15 anos cuja vida se transforma quando é vista por um colega com o namorado em sala de aula.  A história se espalha e ela começa a ser perseguida pela santigas amigas e outros colegas, ganha fama de piranha, e não recebe apoio dos adultos que deveriam protegê-la.  No fundo do poço, ela recorre às vitaminas – antiácidos que mantém a menina funcionando –, tem crises de pânico, abandona a escola e pensa mesmo em se matar.  Existe saída para ela?


Vitamin tem 200 páginas e foi publicado em 2001 na revista Betsufure.  Eu já o havia lido, em scanlation,  vários anos atrás.  2005? 2006? Não lembro realmente.  Retomá-lo tanto tempo depois confirmou a minha primeira impressão, apesar de pesado, afinal, é muita coisa terrível confinada em tão pouco espaço, o mangá continua atual e muito contundente.  Outra comprovação é que eu havia confundido muito de Vitamin e Life, obra mais extensa da autora sobre o mesmo tema, o bullying.  Algumas partes de Life eram, na minha cabeça, de Vitamin, e vice-versa.  Reler foi muito bom.

Vitamin é um mangá didático e, depois de ler a mensagem (freetalk) da autora, certamente tem um quê de autobiográfico.  Ainda que nem tudo tenha acontecido com a Suenobu Keiko, alguma coisa do que é descrito deve ter ocorrido com ela, ou alguém muito próximo, e influenciou diretamente a sua escolha de carreira e os temas que costuma explorar.  A parte didática fica por conta da mensagem de superação do bullying, da preocupação em mostrar a importância do uso da camisinha (*a desgraça da protagonista poderia, sim, ser muito maior*), da necessidade de diálogo entre pais e filhos.  Sim, Vitamin deveria ser lido por adolescentes, pais, mães, professores/as.  É material muito útil.


Uma leitura desinformada poderia nos fazer pensar que a autora exagera no seu retrato do bullying.  Afinal, é muita desgraça junta em cima da mesma personagem.  Olha, leiam Life, lá a autora pega mais pesado... Agora, falando muito sério, é provável que ninguém sofra com tudo aquilo ao mesmo tempo, mas todas as formas de bullying mostradas são possíveis e há ainda outras.  Ijime é coisa séria no Japão.  Há casos de suicídioque são desdobramento de perseguições e humilhações de todo o tipo.  Anos atrás, na época que eu lia Life, publiquei no Shoujo Café uma notícia sobre um garoto que foi amarrado e teve suas pernas queimadas pelos colegas do clube de baseball.  Coisa bem banal atear fogo em um colega... 

Em alguns casos, quando o assunto chega aos professores orientadores ou outras autoridades do colégio responsáveis por proteger e cuidar dos alunos e alunas, a resposta deles é “os jovens de hoje são muito fracos”.  Assim, a vítima se torna culpada de sua fraqueza e, não raro, é alertada que suas notas não vão bem, ou que não deve causar problemas para sua família e escola.  As hipocrisias sociais são bem abordadas em Vitamin.  A protagonista é tratada como uma fracassada que deve trazer vergonha para seus pais.  A própria mãe da menina não entende sua dor, seu terror em retornar ao colégio.  Quantas crianças e adolescentes, no Japão, ou aqui, no Brasil, abandonam os estudos ou tem sérias dificuldades em seguir adiante por causa do bullying dos colegas e, também, do assédio moral dos professores?


Para além do bullying, há dois dramas que são bem desenvolvidos em Vitamin.  Um deles, a relação entre mãe e filha, já que o pai, sempre fora de casa em virtude do trabalho, é compreensivo com a filha, ou, simplesmente, lava as suas mãos.  Já a mãe sonha que a filha terá um bom futuro e, para isso, precisa ir para o melhor colégio possível.  Deve se espelhar na irmã universitária.  Nada do que a filha faz parece ser suficiente e seu sonho de ser mangá-ka – algo que se torna um alento quando a crise se aprofunda – deve ser deixado de lado em prol dos estudos. Essa pressão só torna a relação das duas mais distante e  artificial até que a mãe acorda.  Enfim, não darei spoilers, mas preciso dizer que Suenobu Keiko nos leva ao inferno, mas nunca nos deixa lá.

O outro tema é o abuso sexual.  Não lembrava que Sawako tinha um namorado violento, possessivo, que pisava nela e a estuprava.  Sim, é isso que ele faz.  A menina é constrangida a ceder, afinal, é seu namorado, e fazer sexo com ele deveria ser normal.  Sua baixa autoestima não lhe permite romper o relacionamento, ainda que ela saiba que aquilo não é amor, que ele a humilha e machuca.  O garoto, porque ele também tem 15 anos, é um dos top alunos da escola e norteia suas exigências seguindo o catecismo da pornografia.  E é aqui que a autora se permite uma única idealização, exatamente nas cenas dos dois: a menina pede que ele use camisinha e ele aceita.  Eu duvido que as duas coisas ocorressem normalmente, uma menina como Sawako dificilmente pediria camisinha e um rapaz como seu namorada muito provavelmente não aceitaria usar.  


Quando são pegos fazendo sexo na escola, somente o rosto da menina é visto. Ela é a piranha, a puta...  Inquirido por colegas, ele nega que estivesse com a garota.  Agora, Sawako também é promovida a traidora.  Como alguém pode trair um garoto tão perfeito?  As “amigas” não escondem a inveja, afinal, elas ou não tem namorado, ou nunca fizeram sexo, como Sawako pode ser tão promiscua?  Slut Shaming é parte do bullying que se sustenta na dupla moral sexual vigente.  A menina não presta, a menina deve ser punida e ela mesma acredita nisso por um tempo.   A crueldade dos colegas e a omissão dos professores não tem limites.  

Foi muito feliz da parte da autora colocar a mãe de Sawako dizendo que não importava quem tivesse sido o primeiro homem da vida de uma mulher, mas, sim, o último.  Moralista?  Talvez, mas de uma solidariedade sem limites.  Esse restaurar de laços entre a menina e a mãe, duas mulheres que por conta das convenções sociais poderiam viver para se atormentar, é uma das melhores partes do mangá que culmina com o empoderamento de Sawako, sua volta por cima.  Vitamin é um belo mangá e pensar duas vezes eu o chamaria de feminista.  Aliás, a Betsufure tem no seu currículo ótimas séries didáticas e empoderadoras, é de lá  que saiu, também, Confidential Confessions (Mandaiteiki Sakuhinshu/問題提起作品集), que bem poderia ser lançado pela JBC.  Espero que os mangás de Suenobu Keiko estejam vendendo bem.



Não vou continuar.  Acho que até já dei spoilers demais.  A JBC agiu bem em colocar “18+ anos” na capa, mas pecou por não enviar o mangá lacrado para as bancas.  Há coisas pesadas em Vitamin, coisas pesadas que algumas pessoas poderiam usar para criticar os mangás. De resto, a qualidade de Vitamin é similar a de Orange (オレンジ) em termos de fluência de texto.  Limit (リミット) é que acabou ficando pelo meio do caminho, mas são dois acertos e um erro, a JBC ainda está ganhando.

1 pessoas comentaram:

Excelente resenha. Eu também passei por isso de confundir um pouco os fatos em Vitamin com os de Life. O tema é parecido, e me parece que Life tenha sido uma tentativa de aprofundar no tema de Vitamin, o que pode ter levado a algumas situações parecidas e daí a confusão.
Também gostaria de ver Confidential Confessions publicado por aqui. Li há alguns anos atrás e é um manga também bem pesado, mas trata de temas importantes e normalmente "varridos pra debaixo do tapete".
Lembrei também de Bitter Virgin, que é outro exemplo de manga que toca em assuntos incômodos.

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