sexta-feira, 10 de junho de 2016

Susan Neuman reflete sobre a missão das leituras

Lúcia Guimarães

NOVA YORK - A nova edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicada na última quarta-feira, 18, é um desafio para aqueles que gostam de ver o copo meio cheio. Sim, o número de leitores no Brasil aumentou desde 2011. Eles passaram de 50% a 56%. Mas, quando se considera que 44% dos habitantes da oitava economia do mundo não leem regularmente, em pleno século 21, e que 30% nunca adquiriram um livro, é difícil encontrar causa para celebração.



Uma pesquisa divulgada em outubro passado pelo Pew Research Center revelou que sete em dez norte-americanos leram um livro – concluindo ou não, durante o ano anterior. A média de leitura na população geral do país é de doze livros por ano. Mas o livro eletrônico não parece estar criando novos leitores, as vendas de livros digitais estão desacelerando nos Estados Unidos, enquanto as vendas de livros impressos continuam sólidas. 

Com o começo próximo do verão no hemisfério norte, a mídia norte-americana divulga inúmeras listas de livros para se ler nas férias, dos romances leves para consumir na praia a livros de não ficção. É um típico exemplo cultural da leitura associada ao lazer. Celebridades como Bill Gates são ouvidas. Na lista de cinco que Gates ofereceu este ano, há apenas um romance, Seveneves, de Neal Stephenson, uma história de ficção científica.

A cultura importa, e sabemos que bons exemplos também. Tivemos um presidente intelectual, seguido de um presidente que confessou não ter a menor paciência para ler e uma presidente que, em campanha, lutou para se lembrar do que estava lendo. O presidente intelectual não inspirou, que se saiba, os brasileiros a ler mais, e antes que o acusem de descaso, é importante saber que o hábito de leitura não se adquire imitando chefes de Estado, e sim quem governa a vida do futuro leitor.

“Mas que números tristes”, lamentou a psicóloga e educadora Susan Neuman sobre a pesquisa dos hábitos de leitura no Brasil. Neuman é professora da Universidade de Nova York e foi subsecretária de educação no primeiro mandato de George W. Bush, encarregada de educação fundamental e secundária. Ela é reconhecida como uma das principais autoridades do país em desenvolvimento na primeira infância e alfabetização. Publicou vários livros, o penúltimo deles, em 2012, um estudo sobre o efeito da pobreza na alfabetização, Giving Our Children a Fighting Chance: Poverty, Literacy, and the Development of Information Capital.

Neuman participou de um estudo pioneiro usando a tecnologia de eye-tracking, que acompanha o menor movimento dos olhos, e concluiu que bebês de até 14 meses expostos ao contato regular com livros são capazes de reconhecer, por exemplo, se o livro está de cabeça para baixo. O estudo do qual ela participou, publicado em 2014, também derrubou o mito de que seria possível ensinar bebês a ler. Na época, ela comentou que a enxurrada de mídia eletrônica que promovia alfabetização precoce tinha um público alvo: pais ansiosos para tornar seus filhos mais competitivos na escola. Mas, como ela explica nesta entrevista ao Aliás, preparar a criança para a leitura pós-alfabetização é muito mais do que colocar um livro à sua frente. O hábito da leitura por curiosidade e prazer depende, em boa parte, de boas memórias da infância em torno de palavras e histórias. E elas dificilmente se formam na ausência de exemplos adultos e de afeto.

Diante dos números que a senhora considera tão preocupantes, como a pesquisa brasileira pode refletir a infância dos não leitores?

Há lições críticas que já aprendemos sobre como criar condições para a criança ler visando o objetivo real de leitura mais tarde em sua vida. Se uma criança não vê ninguém lendo habitualmente já é ruim, porque ela está sempre à procura de modelos que indiquem como o mundo funciona. Se não observa à sua volta uma cultura de leitura, tem menos chances de se sentir atraída por livros.

Em 2014, a Associação de Pediatria dos Estados Unidos passou a recomendar que, nas primeiras visitas a consultórios, os médicos recomendassem aos pais que lessem para os filhos bebês.

Sim, é importante ler para o bebê regularmente. Mas a futura alfabetização não depende apenas do objeto livro. Há várias atividades que contribuem para ela. Cantar para as crianças é muito importante, elas adquirem linguagem e aprendem com rimas. É preciso conversar bastante com a criança, mantendo contato de olhos. E brincar também, brincar com objetos, não necessariamente brinquedos fabricados para este fim. Hoje, a gente vê que escolas sofisticadas, frequentadas pela elite, usam pedras, materiais que forçam a criança a improvisar e exercitar a imaginação abstrata. Lembro que o começo do aprendizado de matemática é um sistema de símbolos que vai exigir capacidade de abstração. Por exemplo, quando uma criança desenha rabiscos e lhe conta uma história sobre o que está naquele papel, tudo isso contribui para alfabetização. De modo que não ter brinquedos caros, mas ser engajada por adultos em brincadeiras, está longe de ser uma desvantagem, porque a criança apura seu imaginário.

Em países com populações pobres como o Brasil, é comum os pais não terem livros em casa. Quando são limitadamente alfabetizados, podem se sentir intimidados na leitura para as crianças.

É preciso explicar aos pais que não sabem ler que eles podem ajudar na futura alfabetização dos filhos. O importante é terem atividades que envolvam conversa. Até mostrar imagens sem ler um texto e conversar sobre elas é uma atividade proveitosa.

Quando a criança chega à escola, o quanto professores atentos podem corrigir uma primeira infância com pouca atenção adulta?

Na verdade, a chave da capacidade de aprender está num adulto que demonstre cuidado. Sabemos que o desejo de aprender aumenta com a segurança que vem de se ter abrigo, alimentação e carinho. Pode vir de mãe, pai, avó, parente, qualquer modelo de adulto que “abrace” a criança com sua atenção, que a faça se sentir segura para explorar. A experiência com a leitura cedo é acompanhada de um aprender a aprender, adquirir compreensão sobre narrativas. Os dois primeiros anos de escolaridade são importantes mas, se a criança chega lá sem ter experimentado o estímulo adulto, não há professor dedicado que possa compensar na sala de aula. Falo de uma desvantagem que pode acompanhar o aluno pelo resto de sua vida escolar. Sempre digo, quando a criança pisa na escola pela primeira vez chega na companhia da geração que a enviou para lá.

Até quando a criança que não lê ainda pode ser recuperada para a leitura habitual na vida adulta?

Hoje chegamos a um consenso sobre a terceira série do ensino fundamental. Ali deve ser o limite. Se o aluno não aprendeu a ler até a terceira série, está com problemas. Não deve ser enviado ao ano letivo seguinte sem se recuperar ou terá mais chances de fracasso acadêmico. Há cinco anos, fundações e ONGs educacionais começaram campanhas para endossar essa ideia e as secretarias de educação do país, apesar de sua autonomia, tendem a aceita-la.

O quanto se conhece sobre o efeito de gadgets eletrônicos que caem nas mãos de crianças muito antes de chegarem à escola?

Hoje a gente ouve crianças reclamando “estou com tédio”, querem que tudo venha até elas. Como disse, na primeira infância é sempre bom estimular a abstração e não deixar a criança isolada com gadgets. Mas estamos começando a avaliar resultados positivos com aplicativos, as crianças demonstram grande facilidade de compreender histórias em plataformas digitais. Há o popular Speakaboos, de leitura interativa, e também o Learn With Homer para aprendizado pré-escolar de leitura a partir dos três anos.

Se a senhora tivesse que enfrentar corte de gastos como o que o governo brasileiro vai enfrentar, como atacaria o problema do baixo índice de leitura?

Apostaria em bibliotecas – fixas ou móveis. Elas são centros de aprendizado para a vida toda, um presente que se renova. Dão também uma sensação de segurança, são um elo comunitário.

A senhora é a favor de programas públicos de estímulo à leitura?

Sim, sou entusiasta de programas públicos. Eles são uma grande ajuda, não só para as crianças, como para famílias. Tive uma ótima experiência com bibliotecas móveis no Nepal, um país predominantemente rural, com a ONG Read. As famílias venciam o isolamento e as unidades se tornaram também uma fonte de atividade e construção da capital social.

Por que certos programas de incentivo ao livro fracassam?

Um problema que vejo é o tom excessivamente didático. É a ideia de leitura quase como um privilégio da elite que deve ser imitado. Esquecem de associar a leitura a brincadeiras e ao afeto adulto. Nem toda mãe ou todo pai pode passar muito tempo lendo à noite para cada filho. Mas não importa, nem que seja alguns minutos, abrace e beije a criança, olhe nos olhos enquanto abre um livro. Ela guarda estas emoções na memória e vai sempre associar a leitura a momentos preciosos.

Transcrito de - O Estado de S. Paulo - 22/05/2016

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