Nos ultimos meses tem sido realizado um debate intra-muros na comunidade dos economistas desenvolvimentistas brasileiros. Esse debate refere-se ao modelo de crescimento que seria mais adequado ao caso brasileiro. De um lado, temos um grupo de economistas que defendem que o modelo de desenvolvimento adequado ao Brasil seria o wage-led. De outro lado, temos os que defendem que o modelo adequado seria o export-led. Por fim, outros ainda afirmam que o ideal seria uma espécie de solução de compromisso entre ambos os modelos, de tal forma que o desenvolvimento brasileiro possa se dar de forma “balanceada” no médio e longo-prazo.

O surgimento dessa terceira posição no debate em consideração – a tese da solução de compromisso – me fez refletir sobre se os termos “wage-led” e “export-led” estão sendo corretamente empregados no debate brasileiro sobre estratégias de desenvolvimento. Uma breve reflexão me levou a conclusão de que há uma enorme confusão conceitual em torno dos termos em questão.

Os termos wage-led e export-led são originários na Teoria do Crescimento liderado pela demanda, que tem seus bases conceituais nos escritos de Keynes, Kalecki e Kaldor.

Segundo a teoria do crescimento liderado pela demanda, a taxa de crescimento de longo-prazo de uma economia capitalista é determinada pela taxa de crescimento da parcela autonôma da demanda agregada, ou seja, aquela parcela da demanda que não é, ela própria, induzida pelo crescimento econômico. Em outras palavras, busca-se definir os determinantes do crescimento, ou seja, a relação de causalidade entre as variáveis envolvidas nesse processo

Contudo, parte dos desenvolvimentistas brasileiros enxerga os termos “export-led” e “wage-led” como sinônimos de “crescimento hacia fuera” e “crescimento hacia dentro”; ou seja, relacionam esses conceitos com o comportamento do coeficiente de exportações (exportações/PIB). Assim, o modelo wage-led seria uma estratégia de desenvolvimento apoiada no desenvolvimento do mercado interno, o qual é viabilizado pela melhoria da distribuição de renda, razão pela qual esse modelo é tambem denominado por alguns como “socio-desenvolvimentismo”. Já o modelo export-led consistiria num modelo em que o crescimento é impulsionado pelo aumento do coeficiente de exportações, de tal forma que a economia brasileira possa,  a médio e longo-prazo, alcançar os níveis de abertura comercial observados nos países europeus. Como a maior parte da demanda viria de fora país segue-se que melhorias na distribuição de renda seriam desnecessárias do ponto de vista do desenvolvimento de longo-prazo, quando não contra-producentes; razão pela qual esse modelo de desenvolvimento é denominado, por alguns, ainda que não explicitamente, como “desenvolvimentismo de direita”.      

Mas retomenos a apresentação da teoria do crescimento liderado pela demanda. Quais seriam os componentes autonômos da demanda no longo-prazo, ou seja, aqueles componentes da demanda que não são, eles próprios, induzidos pelo crescimento econômico doméstico?

Claramente o investimento privado em capital fixo não atende a esse quesito, uma vez que os empresários investem em antecipação ao crescimento futuro das vendas, desde que o atendimento a essa demanda futura seja lucrativo. Em outras palavras, o investimento é induzido pelo crescimento econômico, não sendo portanto um componente autônomo da demanda.

E o consumo privado? Se o aumento do consumo privado for financiado exclusivamente a partir do crescimento da massa salarial, e se a massa salarial crescer na mesma proporção da renda doméstica, então o consumo será, ele próprio, induzido pelo crescimento econômico, não sendo portanto parte da demanda autônoma. Para que o consumo se transforme em componente da demanda autônoma ele precisa se “autonomizar” com respeito ao crescimento econômico. Isso pode ser conseguido de duas formas. Em primeiro lugar, parte do crescimento dos gastos de consumo pode ser financiado pelo aumento do endividamento das famílias, ou seja, pelo aumento da relação dívida/renda. Nesse caso, o consumo pode crescer de forma relativamente independente da renda doméstica, tornando-se assim parte da demanda autônoma. Em segundo lugar, a folha de salários pode crescer mais rapidamente do que a renda doméstica devido a mudanças na distribuição funcional de renda, ou seja, a uma mudança na distribuição de renda dos lucros para os salários. Dessa forma o consumo ganha autonomia com respeito ao crescimento da renda doméstica.

As exportações e os gastos do governo são tradicionalmente considerados como parte da demanda autônoma. O crescimento das exportações depende, no longo-prazo, do crescimento da renda mundial, o que torna as mesmas autonomas com respeito ao crescimento da renda doméstica. Já os gastos do governo podem ser financiados com emisssão de dívida pública (ou com emissão de moeda em alguns casos), o que torna os mesmos relativamente autonomos com respeito ao crescimento da renda doméstica.

Isso posto, um regime de crescimento do tipo wage-led é aquele no qual o crescimento do produto real, no longo-prazo, é puxado pelo crescimento dos salários num ritmo superior ao crescimento da produtividade do trabalho. Como os salários crescem mais rapidamente do que a produtividade, segue-se que a participação do consumo no PIB tende a aumentar de forma contínua ao longo do tempo [ supondo p.C = w. L, ou seja, que o consumo (pC)  é financiado inteiramente a partir da folha de salários (w L), então C/X = (w/p)/(X/L), ou seja, a participação do consumo no PIB é igual a razão entre o salário real e a produtividade do trabalho] . Além disso, o custo unitário do trabalho (definido como [(w/p)*L]/X) aumenta de forma contínua ao longo do tempo; levando assim a uma perda gradativa de competitividade das exportações e, no médio e longo-prazo, a problemas no balanço de pagamentos. Esses problemas podem ser postergados se a perda de competitividade – devida ao crescimento dos salários acima da produtividade – for compensada com um aumento das barreiras comerciais. Isso significa que a adoção deste modelo de crescimento gera uma demanda crescente por proteção tarifária e, no limite, uma economia autárquica. Trata-se, portanto, de um modelo insustentável e, do meu ponto de vista, indesejável para a economia brasileira.

Num modelo export-led a taxa de crescimento do produto doméstico é determinada pela taxa de crescimento das exportações. Isso significa, para início de conversa, que a relação exportações/PIB se mantem constante ao longo do tempo. O que define o regime export-led é a relação de causalidade: o crescimento das exportações determina o crescimento do PIB; o tamanho do coeficiente de exportações não é relevante para esse resultado. Um coeficiente constante de exportações – digamos igual a 0,15 – é compatível com um crescimento de 5% a.a do PIB e das exportações, sendo que o crescimento das exportações determina – por intermédio do efeito multiplicador do comércio exterior – o crescimento do PIB; uma vez que as exportações são a variável exógena e o PIB a variável endógena. Trata-se de um raciocínio análogo ao do multiplicador Keynesiano (e , até onde eu saiba, nenhum economista heterodoxo nunca desqualificou a teoria keynesina do produto com base na afirmação de que a participação do investimento no PIB é, em geral, baixa, sendo inferior a 20%). A demanda doméstica (consumo + investimento) estará crescendo na mesma taxa que o PIB, de tal forma a sustentar o crescimento econômico que é induzido pelas exportações. Em equilíbrio, exportações, PIB, consumo e investimento estarão todos crescendo a mesma taxa, qual seja, a taxa de crescimento exógena das exportações. É isso o que se quer dizer com modelo Export-led.

Um crescimento robusto do PIB via exportações exige, no entanto, uma economia que possua uma estrutura produtiva diversificada, isto é, uma economia que produz bens variados do ponto de vista da intensidade dos “fatores de produção” e da tecnologia. Nesse caso, a elasticidade renda das exportações será elevada, permitindo assim que as exportações cresçam num ritmo superior a renda mundial. Em outras palavras, numa economia diversificada do ponto de vista produtivo, o modelo export-led permite que o país faça o catching-up com respeito ao resto do mundo.

A enfase dada a necessidade de diversificação da estrutura produtiva para a obtenção de um crescimento robusto do PIB no contexto de um modelo export-led já deita por terra outra interpretação equivocada do termo “export-led”, qual seja, de que o mesmo seria equivalente ao valho modelo “primário-exportador”. Nada mais longe da verdade. No modelo export-led a estrutura produtivia é diversificada e a indústria possui uma participação expressiva no PIB. Está claro que o modelo export-led é compatível – dentro de certos limites – com a exportação de produtos primários, mas a pauta exportadora deve ser composta, prioritariamente, por produtos manufaturados, tendo os produtos manufaturados de média e alta tecnologia uma participação relevante na mesma.

A existência de uma estrutura produtiva diversificada exige, no entanto, especial atenção com a taxa real de câmbio. Se o câmbio estiver sobre-valorizado, ou seja, abaixo do nível compatível com o “equilíbrio industrial”; então diversas atividades produtivas serão transferidas para o exterior, levando a um processo crescente de “especialização produtiva” naqueles bens para os quais o país possui vantagens comparativas. No caso brasileiro trata-se dos produtos intensivos em recursos naturais. Dessa forma, a sobre-valorização cambial levará a um processo de desindustrialização, o qual fomentará uma re-primarização da pauta de exportações e, por conseguinte, uma redução do crescimento econômico no médio e longo-prazo.

É na questão cambial que os defensores do “sócio-desenvolvimentismo” mais criticam o modelo export-led. Isso porque a adoção desse modelo implicaria, nas condições atuais da economia brasileira, uma desvalorização de cerca de 30% da taxa de câmbio (segundo os cálculos do meu colega Nelson Marconi, da FGV/SP,  o câmbio de equilíbrio industrial seria R$ 2,66). Como toda a desvalorização cambial implica – para ser efetiva – numa redução do salário real (do contrário o efeito pass-though seria 100%); segue-se que a adoção do modelo export-led implicaria numa imediata redução do salário real e, por conseguinte, uma piora na distribuição funcional da renda. Mais uma vez a crítica dos “sócio-desenvolvimentistas” é que isso é “política da direita”.

O problema com essa objeção é que ela ignora o fato de que a participação dos não-salários na renda nacional emgloba não apenas os lucros das empresas produtivas como também os rendimentos financeiros dos rentistas e seus administradores (os financistas). Como, em geral, uma desvalorização cambial vem associada a uma redução da taxa de juros segue-se que parte importante dos efeitos distributivos da desvalorização cambial será absorvido …. pela classe rentista. Impor aos banqueiros uma perda na participação que os mesmos tem na renda nacional está longe de ser uma política de direita ….

Mas essa não é minha objeção fundamental ao argumento “socio-desenvolvimentista”. Se a taxa de câmbio estiver sobre-valorizada então a estrutura produtiva da economia irá se especializar gradativamente nsqueles bens que o país possui vantagens comparativas, ou seja, os bens intensivos em recursos naturais. Nesse caso, o Brasil voltará a ser uma economia primário-exportadora. Uma forma de se evitar isso, e tentar salvar o que resta da indústria nacional, sem mexer na taxa de câmbio, seria por intermédio da adoção de barreiras comerciais, as quais deverão ser crescentes caso os salários cresçam acima da produtividade, tal como prevê a lógica do modelo wage-led. Dessa forma, o modelo wage-led poderá ser mantido, por algum tempo, às custas do retorno ao passado do modelo de substituição de importações e economia fechada ao comércio exterior. O problema é que a experiência histórica brasileira mosotrou que esse modelo produziu uma brutal concentração de renda, o que me parece ser uma política de direita …

Em suma, os termos wage-led e export-led não são sinônimos de “crescimento hacia dentro” e “crescimento hacia fuera”. O regime wage-led é um modelo no qual o crescimento de longo-prazo é impulsionado pelo crescimento dos salários acima da produtividade do trabalho. Esse modelo gera um aumento contínuo da participação do consumo no PIB e do custo unitário do trabalho, levando a uma redução da competitividade externa da economia. Isso significa que esse modelo é compatível com uma queda contínua do coeficiente de exportações, desequilíbrios crescentes no balanço de pagamentos,  desindustrialização e re-primarização da parta exportadora. Esses problemas podem ser evitados temporariamente por intermédio da adoção de barreiras comerciais. Face a queda contínua da competitividade da economia – em função do aumento do custo unitário do trabalho – essas barreiras terão que ser crescentes, levando a um progressivo fechamento da economia ao comércio exterior. Será o retorno ao velho modelo de substituição de importações, o qual se mostrou historicamente incompatível com a melhoria na distribuição de renda.

O regime export-led é um modelo no qual a taxa de crescimento do produto real é determinada pela taxa de crescimento das exportações e sustentada, a nível doméstico, pelo crescimento do consumo e do investimento. O êxito desse regime depende da existência de uma estrutura produtiva diversificada, a qual permite que os produtos manufaturados tenham uma participação expressiva, quando não majoritária, na pauta de exportações. Para tanto é necessário manter uma taxa de câmbio competitiva, ou seja, compatível com o equilíbrio industrial.  Nesse caso, a economia irá manter um razoável grau de abertura ao comércio internacional; ao mesmo tempo em que permite um crescimento robusto do mercado doméstico.

Por fim, o crescimento das exportações num ritmo superior a renda mundial (no caso em que a elasticidade renda das exportações é maior do que um) permitirá que a economia faça o catching-up com respeito ao resto do mundo. Esse é o único “desequilíbrio” previsto pelo modelo. Mas no caso brasileiro seria um “desequilíbrio saudável” pois permitiria ao nosso país superar a condição de país sub-desenvolvido.