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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CÉLIA CRISTINA DA SILVA TAVARES
A CRISTANDADE INSULAR:
JESUÍTAS E INQUISIDORES EM GOA (1540-1682)
NITERÓI
2002
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Célia Cristina da Silva Tavares
A CRISTANDADE INSULAR:
Jesuítas e Inquisidores em Goa (1540-1682)
Tese apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Doutor. Área de
Concentração História Social.
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Vainfas
NITERÓI
2002
CÉLIA CRISTINA DA SILVA TAVARES
A CRISTANDADE INSULAR:
Jesuítas e Inquisidores em Goa (1540-1682)
Tese apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Doutor. Área de
Concentração História Social.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Vainfas - Orientador
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Profª. Drª. Maria Regina Celestino de Almeida
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Prof. Dr. Guilherme Paulo Pereira das Neves
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Prof. Dr. Francisco José da Silva Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
______________________________________
Profª. Drª. Lana Lage da Gama Lima
Universidade Estadual do Norte Fluminense
NITERÓI
2002
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3
AGRADECIMENTOS
O trabalho de pesquisa é por natureza uma atividade solitária. Horas incontáveis
são dedicadas à leitura silenciosa em arquivos e bibliotecas ou até mesmo em casa, mas
tendo de se manter distante da convivência por conta da concentração exigida. Escrever
uma tese, complemento de todo o esforço de estudo de fontes e livros, também é um
exercício onde a solidão e o silêncio são quebrados apenas por apelos sociais da vida
cotidiana e por ricas conversas de orientação e de discussão de idéias. Para uma pessoa
gregária como eu, silêncio e solidão beiram a sensação de tormento e, com certeza, sem
ajuda de muitas pessoas não teria conseguido realizar essa tarefa. Para alguns, agradecer
é uma obrigação; para mim, trata-se de um prazer privilegiado. Portanto, é com extrema
felicidade que inicio uma longa lista de agradecimentos àqueles que povoaram meu
caminho e que tornaram mais fácil percorrê-lo. São muitos. Alguns velhos conhecidos
de toda a vida ou de mais de vinte anos de convivência. Outros são amigos recentes,
mas nem por isso conquistas menos importantes ou queridas. Há também a multidão de
alunos que não posso nomear um a um, ou escolher alguns exemplos que acabem
redundando em injustiça. Portanto, refiro-me a todos quando declaro a importância que
a sala de aula ocupa na minha vida.
O apoio das instituições de pesquisa é de grande importância, merecendo o
destaque por serem iniciativas raras no Brasil. Contei tanto com a bolsa de doutorado do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq, quanto com
a bolsa sanduíche da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior CAPES, que possibilitou meus estudos em Lisboa por quatro meses e meio.
Esse período foi fundamental para o amadurecimento do trabalho, pois descortinou uma
significativa quantidade de fontes e de bibliografia cuja qualidade trouxe densidade às
análises desenvolvidas na redação.
Agradeço toda e qualquer colaboração que tenha recebido dos funcionários de
bibliotecas e arquivos nos quais pesquisei: a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Real Gabinete Português de Leitura, as
bibliotecas da Universidade de São Paulo, a Biblioteca da Ajuda, o Arquivo Nacional da
Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional de Lisboa. Destaco a excelência profissional
do atendimento das duas últimas instituições, que possibilitam uma otimização do
trabalho de pesquisa e que por isso merecem os maiores elogios.
4
Importante contribuição partiu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UERJ que, em função da licença por um ano de minhas atividades docentes, permitiu a
possibilidade de aumentar a solidão, quero dizer, a tranqüilidade para desenvolver
leituras e pesquisas, e elaborar o texto final do trabalho. Um agradecimento especial
quero deixar registrado para María del Carmen Fernández Corrales, do DCARH-SR2,
pela sempre cordial atenção. Aproveito e faço o mesmo para os meus colegas da
Faculdade de Formação de Professores de todos os departamentos e, especialmente, ao
de Ciências Humanas, que apoiaram meu pedido de licenciamento. Como são muitos
deixo o registro geral a todos.
Também devo agradecimentos aos professores do Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense, que participaram de minha formação acadêmica.
Registro especialmente as professoras doutoras Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda
Bicalho, que no curso Pacto e Soberania no Império Português, ministrado quando
fazia os créditos do doutoramento, abriram uma perspectiva que colaborou
significativamente para o desenvolvimento do trabalho.
Subsídio fundamental foi dado pelas professoras doutoras Lana Lage e Maria
Regina Celestino de Almeida no momento do exame de qualificação da tese do
doutorado. As observações atentas e sugestões de encaminhamento tanto do texto
apresentado quanto da pesquisa ainda por ser desenvolvida foram preciosas.
Meu orientador, professor doutor Ronaldo Vainfas, teve uma enorme
importância para o desenvolvimento desse trabalho, e sua colaboração foi inestimável.
Primeiro porque me encorajou a iniciar um estudo sobre o Oriente, especialmente sobre
a Inquisição de Goa, confiando que eu poderia desempenhar tal tarefa, que muitas vezes
eu mesma duvidei sinceramente de que seria capaz de fazer. Além disso, foi sempre um
leitor atento, indicando-me soluções mais corajosas para os problemas que eu esboçava,
realçando perspectivas que eu apenas enunciava, exortando-me a investigar redes de
intrigas que envolveram até assassinato.
Em Lisboa tive a oportunidade de ser orientada pelo professor doutor António
Dias Farinha, que me acolheu de forma muito atenciosa e promoveu, talvez sem o saber,
a minha salvação, pois sem o delicado convite para participar das aulas do curso de
mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa eu não teria a oportunidade de fazer tão bons amigos,
sem os quais, creio, não teria forças para enfrentar a saudade que sentia. A atenção
carinhosa de Zélia Sampaio, Maria da Luz Brás Lopes Sobral, João Caldeira, José
Viegas, Ana Sofia Veran, Ricardo, Benvinda, Clara Filipe, Conceição Pequito, Maria
Helena de Brito, Maria Manuel Marques, Bruno Neves e Carla Delgado de Piedade não
só amparou-me como foi uma oportunidade ímpar de conhecer a cultura portuguesa da
qual herdamos tantas coisas, mas da qual tantas outras esquecemos. Um agradecimento
especial devo à Carla que, com um raro dom na arte da maiêutica, elaborou duas ou três
perguntas que me deram norte quando eu estava à deriva no mar de documentos e
leituras no qual me perdi diversas vezes, revelando rotas que antes estavam enubladas.
Também pude assistir às aulas muito estimulantes dos professores doutores João Cosme
e Maria Benedita Araújo, e as impressionantes demonstrações de poder analítico de
Maria Leonor García da Cruz.
Ainda em solo português tive a oportunidade de conhecer José Carlos Ferreira,
sua esposa Ginita, seu filho Miguel, seu irmão Pedro e sua mãe, D. Eulália Fernandes,
que me abrigou em sua casa, e que, graças ao seu grande carinho, também foi
responsável por manter-me tranqüila nas horas difíceis em que a saudade apertava.
5
A equipe da RTP 2 do programa O lugar da história foi muito simpática comigo
toda vez que nos encontramos: Teresa Catanho, Carlos Oliveira, Maria João Cargaleiro
e Acácia Dourado, além de ótimos profissionais, são excelente companhia. Um
agradecimento especial quero deixar para Maria Julia Fernandes por sua gentil recepção
e acolhida, além de ter dado-me uma inestimável oportunidade de ver imagens gravadas
em Goa que ainda seriam editadas para um futuro programa.
Conheci em Lisboa alguns brasileiros e quero agradecer imensamente a Marco
Antônio Nunes da Silva por sua generosa indicação de toda referência que achava sobre
Goa nos Cadernos de Promotor da Inquisição de Lisboa, que ele explorava; foi uma
contribuição inestimável para esse trabalho. A companhia divertida que Iris Kantor e
Rafael Chambouleyron proporcionaram também ajudou muito.
De volta ao Brasil, há a lista dos amigos. Agradeço a Sérgio Lamarão as
indicações de leitura da revista Lusotopie, cujos artigos foram de grande utilidade. A
Therezinha de Freitas pago o tributo a uma professora de biologia que teve a paciência
de ouvir horas de conversa sobre Inquisição, por pura amizade, tenho certeza. A Pedro
Paulo Soares agradeço a leitura atenta do item sobre o hinduísmo. As trocas sobre os
estudos acerca do Oriente que fiz com Andréa Doré também merecem destaque. Há
ainda um agradecimento a Fernando Amado Aymoré que gentilmente enviou-me a lista
de jesuítas que foram para o Oriente, obtida em uma publicação existente em uma
biblioteca alemã.
Aos velhos amigos nem sei bem por onde começar, de tanto que tenho a
agradecer. Pela paciência com o meu estado de espírito atarantado dos últimos tempos
estou grata a José Roberto Pinto de Góes, Daniela Buono Calainho a quem agradeço
também a leitura crítica do capítulo III Regina Marques, Leila Name, Lúcia Bastos
Pereira das Neves, Guilherme Paulo Pereira das Neves, Ana Regina Vasconcelos
Ribeiro Bastos, Jefferson Miranda e Victor Ramos de Paiva Jr. Um agradecimento
especial faço a Maria Letícia Corrêa, que com seu olhar arguto ajudou-me a dar mais
consistência à redação final. E por último, apenas para dar todo o destaque que merece,
agradeço a Maria Fernanda Vieira Martins todo o esforço de revisão do texto, toda a
paciência, todas as idéias compartilhadas em mais de vinte anos de amizade.
Há ainda a família de origem nordestina, portanto, imensa, o que me impede de
mencionar todos, mas que ficam registrados nessa frase. Agradeço à Tia Vivinha pela
acolhida em São Paulo e à prima Amélia que, com a paciência que faz jus ao nome,
ouvia-me falar sem parar depois de um dia inteiro calada lendo livros nas bibliotecas da
USP. Sou grata também ao discreto apoio de Tia Letícia, mesmo de longe, lá em
Sergipe. Aos meus irmãos, cunhado, cunhada e sobrinhos, que também tiveram
paciência comigo nesse período final, agradeço muitíssimo, especialmente a Tânia, pelo
fato de ser também irmã na profissão. E por último agradeço à minha mãe, Aída, um
grande apoio em toda vida.
Vou para a outra banda, Senhor,
vou para o casamento do Damu
Dou-te os anéis dos tornozelos,
mostra-me o caminho para a passagem do rio
Dou-te as manilhas dos meus pulsos,
Mostra-me o caminho para o barco
Dou-te a corrente do meu colo,
Mostra-me o caminho para o barco
Dou-te o brinco do meu nariz,
Mostra-me o caminho para o barco
Desconheço o caminho,
No pavilhão de Damu vai haver
uma dança de bailarinas...
Canto folclórico de Goa
Tradução de Teotônio R. De Souza.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13
CAPÍTULO I De Ceuta a Goa: o esboço do Império Português ................................ 20
1) A Expansão Marítima: percursos ............................................................................ 21
2) A Expansão Marítima: interpretações ...................................................................... 22
3) O Oriente antes da chegada dos portugueses ........................................................... 44
4) As tradições culturais da população goesa ................................................................ 52
5) Os portugueses no Oriente e a construção do Estado da Índia .................................. 64
CAPÍTULO II Os jesuítas na finisterra da fé ............................................................... 81
1) A fundação da Companhia de Jesus no embate das reformas .................................... 82
2) A Igreja e os jesuítas em Portugal no tempo das reformas ......................................... 97
3) A Igreja no Oriente: a ambição de um projeto ......................................................... 102
4) Francisco Xavier e os “soldados de Cristo” nas partes orientais .............................. 110
5) Cristianização à moda da Índia: os jesuítas como mediadores culturais ..................... 133
CAPÍTULO III O Santo Ofício Goês: a luta pela pureza da fé .................................. 148
1) Tempo de Inquisição .............................................................................................. 149
2) A fundação do tribunal do Santo Ofício de Goa....................................................... 157
3) Santo Ofício de Goa: estrutura e funcionamento ...................................................... 171
4) Inquisição versus Inquisição: a visitação ao Tribunal de Goa .................................... 185
5) O relato dos viajantes: a “lenda negra” da Inquisição goesa ..................................... 190
6) O Santo Ofício de Goa na finisterra da fé ................................................................ 209
CAPÍTULO IV Goa: a cidadela cristã no Oriente ...................................................... 215
1) O estado da Índia no século XVII............................................................................ 216
2) A Propaganda Fide versus Padroado: a intervenção de Roma ............................... 226
3) Colaboração e conflito na cidadela cristã ................................................................. 236
4) Em busca de uma “ordem Goesa”: a Congregação do Oratório da Santa Cruz
dos Milagres ................................................................................................................ 262
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 271
FONTES .......................................................................................................................... 278
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 284
ANEXOS........................................................................................................................... 308
LISTA DE QUADROS E ILUSTRAÇÕES
Quadro I Receitas Das Ordens Religiosas Em Goa (1596) ................................. 112
Quadro II Inquisidores De Goa (1560-1682) ........................................................ 177
Quadro III Ordens a Que Pertenciam Deputados e Promotores de Goa ................ 180
Quadro IV Nº de processos nos Tribunais de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa ....... 183
Quadro V Freguesias de Salcete ........................................................................... 241
Mapa I O Estado da Índia ................................................................................. 309
Mapa II As províncias jesuíticas na Índia.......................................................... 310
Mapa III Jesuítas em Goa ................................................................................... 311
Mapa IV Índia no início do século XVII ............................................................ 312
Mapa V Salcete ..................................................................................................
313
Mapa VI Sítios arqueológicos de Goa ................................................................ 314
Gravura I Estandarte da Inquisição de Goa .......................................................... 315
Gravura II Um pagode segundo Linschoten .......................................................... 316
RESUMO
O objetivo deste trabalho é investigar o processo de cristianização de Goa sob o
domínio português, no período de 1540 a 1682, através da ação evangelizadora da
Companhia de Jesus e da perseguição aos desvios de fé realizada pela Inquisição de
Goa, em relação às populações nativas convertidas, mestiças e portuguesas instaladas no
Estado da Índia. Houve colaboração entre Coroa portuguesa e essas instituições, mas
também surgiram conflitos decorrentes de propostas diferenciadas de métodos de
conversão. O resultado desse esforço foi um cristianismo confinado, insular, fortemente
marcado por trocas culturais entre o Ocidente e o Oriente, o que gerou seu caráter
original.
ABSTRACT
This study aims to analyse the christianization process of Goa during the Portuguese
rule from 1540 to 1682. The process was resulted from the missionary labours of the
Society of Jesus and the repression of the deviations from the faith undertaken by the
Goa Inquisition towards the crossbreds and newly converted people of the Estate of
India. The christianization of Goa was also upheld by the Portuguese monarchy, but the
process was accompanied by conflicts due to the distinct methods of conversion. This
endeavour produced a confined and an isolated christianism, strongly marked by
cultural exchanges between occident and orient, what gave it its originality.
SOMMAIRE
L’intention du présent texte est étudier les procès de christianisation de Goa sous le
domaine portugais, dans la période 1540-1682. L’action d’évangelisation de la
Compagnie de Jesus marchait à côté des travaux de l’Inquisition de Goa sur le
population locale convertie. Le rôle de la monarchie Portugaise en Inde exposait les
problèmes attachés au differents méthodes de conversion au christianisme, que
deviennent peu à peu de difficile comprehénsion pour les hindous, de culture hybride et
syncrétique, et causent des transformations aux échanges des cultures entre l’Ocident et
l’Orient.
INTRODUÇÃO
Eis a cidade morta, a solitária Goa!
Seis templos alvejando entre um palmar enorme!
Eis o Mandovi-Tejo, a oriental Lisboa!
Onde em jazigo régio, imensa glória dorme.
A Velha Goa. Poema de Tomás Ribeiro. Séc. XIX
13
Em 1998 ocorreu um colóquio na cidade de Macau sobre os estudos de
modalidades discursivas no encontro de culturas, com o sugestivo título: “a vertigem do
Oriente”. Em uma das comunicações presentes nesse encontro, Maria Luísa Leal definiu
a “experiência de vertigem”, que muitos estudiosos da história da Ásia vivem ao
desenvolver seus trabalhos, utilizando a imagem das reações ambivalentes que a maioria
das pessoas vivenciam diante do abismo. Ora recuam com temor das diferenças, ora
sentem o desejo de avançar e mergulhar, óbvio fascínio, poderosa sedução.
Complementa dizendo que “para o olhar ocidental, o Oriente é o abismo que seduz,
imobiliza ou rejeita, e quando se encontram ou se confrontam focos de percepção tão
diferentes como os que globalmente designamos por Ocidente e Oriente, é natural que
se coloque o problema da vertigem”
1
.
Esta definição é uma bela metáfora sobre o desafio que se constituiu desenvolver
o presente trabalho. Inúmeras vezes a tarefa de estudar a cristianização realizada na
Índia por jesuítas e inquisidores nos séculos XVI e XVII pareceu um precipício, um
enorme vão que distanciava a possibilidade da realização desse estudo. Apesar dos fios
condutores das análises serem os conhecidos olhares de inacianos e de juízes
inquisitoriais, a realidade que eles descortinavam era a do complexo Oriente, de culturas
com padrões muito diferenciados do ponto de vista de uma historiadora ocidental. Goa
pode ser considerada como símbolo da ambivalência da vertigem, no seu limite. A
cristianização, como sinônimo de ocidentalização, confronta-se na cidade com o
hinduísmo, a sociedade de castas, o islamismo e uma série de outras redes culturais que
se superpõem umas às outras, criando as familiaridades e os estranhamentos que são
sempre enfrentados pelo historiador.
Fernand Braudel considera que existia um vasto conflito “no essencial debate de
civilizações” entre o Ocidente e o Oriente, enraizado desde as origens das civilizações
1
Maria Luísa Leal. Regresso e espaço residual: os quatro legados do Japão nos escritos de Luís Fróis,
Duarte de Sande e no filme “Os olhos da Ásia” de João Mário Grilo. In: Ana Paula Laborinho, Maria
Alzira Seixo e Maria José Meira (orgs). A vertigem do Oriente: modalidades discursivas no encontro de
culturas. Lisboa/ Macau: Cosmos/ Instituto Português do Oriente, 1999. p. 63.
14
associadas ao Mediterrâneo. O autor identifica o estabelecimento de “correntes culturais
principais, do mais rico ao mais pobre, do Ocidente ao Oriente ou do Oriente ao
Ocidente”, variando conforme a supremacia existente em determinados períodos
2
.
Ressalta que não há nisso nenhum juízo de valor, mas sim uma constatação de
alternâncias históricas definidas pelas próprias circunstâncias econômicas, políticas e
culturais das civilizações. Desde o colapso do Império Romano, por exemplo, era o
Oriente que detinha a vantagem. A partir das Cruzadas desenvolveu-se uma reviravolta,
“o cristão apoderou-se do mar” e consolidou “as superioridades e as riquezas que o
domínio das rotas e dos tráficos significa”. Ou seja, no século XVI “houve a invasão do
Oriente pelo Ocidente: uma invasão que levava consigo os elementos de uma
dominação”
3
.
Note-se que Braudel está utilizando nessa argumentação o conceito de cristão
como o de representante do ocidente. Essa justaposição também foi largamente utilizada
no presente trabalho. Considera-se aqui como conceitos perfeitamente intercambiáveis
os de cristianização e de ocidentalização, uma vez que são os cristãos e o discurso
evangelizador que se colocaram em conflito com as tradições culturais existentes no
Oriente. Em contrapartida, dos encontros dessas culturas derivaram também
apropriações de elementos orientais por parte dos europeus, o que foi definido por
George Davison Winius como orientalização ou indianização e para evitar possível
confusão com os habitantes das Américas, pode-se criar um neologismo: hinduização ,
sendo também utilizado nessa pesquisa com o intuito de se perceber o processo de
trocas que se estabeleceu
4
.
Braudel afirma que “as civilizações ou as culturas não há aqui inconveniente
na confusão entre as duas palavras são oceanos de hábitos, de pressões, de
condescendências, de conselhos, de afirmações”, e deve-se lembrar que “uma
civilização é ao mesmo tempo permanência e movimento”
5
. No contato entre
civilizações existem trocas de bens culturais que passam por um processo de aceitação
ou rejeição. Geralmente a religião é “a característica mais forte do cerne das
2
Fernand Braudel. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. Lisboa: Martins
Fontes, 1984. v. 2. p. 160.
3
Idem. p. 160-161.
4
George Davison Winius. A lenda negra da Índia Portuguesa: Diogo do Couto, os seus contemporâneos
e o Soldado Prático. Contributo para o estudo da corrupção política nos impérios do início da Europa
moderna. Trad. Ana Barradas. Lisboa: Edições Antígona, 1994. p. 185.
5
Fernand Braudel. Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII: as estruturas do
quotidiano. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1992. t. 1. p. 495.
15
civilizações, a um tempo o seu passado e o seu presente”
6
, sendo que para o caso do
hinduísmo essa questão é ainda mais complicada, pois “o religioso confunde-se com
todas as formas de vida humana: o Estado é religião, a filosofia é religião, a moral é
religião, as relações sociais são religião”
7
.
Assim, o que ocorreu em algumas regiões da Índia, nomeadamente em Goa na
época do domínio português, foi um contato entre culturas que possuíam significativas
diferenças e interagiram intensamente, produzindo uma rica série de processos de trocas
que ora tendiam à ocidentalização, ora caminhavam para a orientalização. No entanto, é
importante notar que o resultado desse processo de mão-dupla que pode ser definido
como de negociação, de interação ou de “histórias conectadas”, mas que comporta
também reações e rejeições, além de assimilações é uma síntese que Serge Gruzinski
classifica como mestiçagem cultural
8
. A cristianização de Goa através da ação da
Companhia de Jesus e da Inquisição oriental é um objeto que se enquadra perfeitamente
nessa perspectiva, sendo uma rara oportunidade de se analisar a expansão ocidental a
partir do século XV.
Por outro lado, o processo de cristianização ocorrido em Goa caracterizou-se por
um confinamento, uma limitação territorial, que correspondia ao próprio modelo de
construção do domínio português no Oriente, e que nunca conseguiu transpor as
enormes dificuldades de ocupação que as civilizações orientais impunham, seja em
termos de população, seja por outros recursos de defesa. Derivado dessa constatação, o
título do presente trabalho, A Cristandade Insular, ilustra as fortes limitações que
circunscreveram o esforço de cristianização realizado na Índia portuguesa.
O corte cronológico desta pesquisa tem como momento inicial o ano de 1540,
que marca a atitude intolerante do governo português com as populações hindus de Goa,
quando se promoveu a destruição dos templos locais. A partir de então, a atuação da
Companhia de Jesus e da Inquisição começou a ser delineada, e configurou-se o
processo de efetiva cristianização de Goa. Escolheu-se como marco final desse trabalho
o ano de 1682, quando os padres Pascoal da Costa Jeremias, José Cabral, Simão Vaz e
José da Silva, todos brâmanes, fundaram a primeira congregação especificamente goesa,
6
Fernand Braudel. Gramática das civilizações. Trad. Antônio de Pádua Danese. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p. 36.
7
Idem. p. 170.
8
Serge Gruzinski. Les mondes mêlés de la monarchie catholique et autres «connected histories». In:
ANNALES HSS. Paris, nº 1, janvier-février 2001. p. 88-89.
16
a Congregação do Oratório de Santa Cruz de Goa
9
. Esse fato simboliza a atitude do
clero nativo diante dos problemas de enquadramento na vida eclesiástica local, mais
especificamente, no anseio de participação nas atividades missionárias, e desnuda as
grandes contradições do processo de cristianização que se desenvolveu na capital do
Estado da Índia.
O corte geográfico está vinculado aos limites das chamadas Velhas Conquistas,
incluindo as três províncias que formavam Goa, a saber, Tisvadi, Salcete e Bardez, a
Goa Dourada, como definida pelos textos portugueses da época. Por vezes foi
necessário extrapolar essa delimitação territorial, uma vez que a cidade era também a
capital do Estado da Índia, e a iniciativa da ação evangelizadora partia de lá e alcançava
outras regiões do Oriente. Sempre que necessário para a argumentação de alguma
premissa desse trabalho, o olhar espraiou-se para outras regiões da Índia.
O trabalho divide-se em quatro capítulos. No capítulo I, cujo título é De Ceuta a
Goa: o esboço do “império português”, foi elaborada uma visão panorâmica sobre a
expansão marítima portuguesa, com destaque para o balanço da produção
historiográfica sobre o tema, além de definirem-se as características gerais das regiões
envolvidas na expansão lusitana e os impactos da presença portuguesa no Oriente e
seus desdobramentos, principalmente a construção do Estado da Índia.
Evitou-se aqui a discussão, muito recorrente quando se trata de um estudo sobre
Goa, das duas linhas historiográficas antagônicas que a tem como objeto, ou seja, a
oposição entre a Goa Dourada e Goa Índica. As duas tendências têm um viés
ideológico muito marcado, uma vez que à primeira estão vinculados historiadores que
viam-na como uma colônia esplendorosa colocada como um enclave no território
indiano, emblema da enriquecedora presença portuguesa; já os estudiosos ligados ao
segundo grupo assumem uma postura anticolonial e enfatizam a importância da herança
hindu na sociedade goesa, afirmando que a presença portuguesa foi um mero acidente
na história. Ou seja, a Goa Índica é vista como resposta nacionalista para a construção
colonial da Goa Dourada
10
.
Mesmo sendo um capítulo com forte apoio na produção historiográfica, ainda
assim foi utilizado um acervo documental a partir da obra de Antônio da Silva Rego,
Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente (Índia),
9
Luís Felipe F. R. Thomaz, De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p. 287.
10
Raghuraman S. Trichur. Politics of Goan historiography. In: Lusotopie 2000 «Lusophonies asiatiques,
Asiatiques en lusophonies». Paris, Karthala, mars 2001. p. 637-641.
17
para analisar as características da presença portuguesa na Índia no período anterior à
chegada dos jesuítas
11
.
No segundo capítulo, intitulado Os jesuítas na finisterra da fé, há o estudo sobre
a atuação dos jesuítas no Oriente, através da análise dos procedimentos dos inacianos
no processo de cristianização dos goeses e de populações vizinhas na costa da Índia,
assim como as alterações nas práticas de catequese e os dilemas decorrentes, no período
determinado da pesquisa. Para este capítulo, a pesquisa baseou-se nas cartas dos
religiosos da Companhia de Jesus compiladas nas obras do já citado Antônio da Silva
Rego e de José Wicki, Documenta Indica, trabalho monumental, que reúne a
correspondência jesuítica em 18 volumes
12
. Como todo esse material concentra-se no
século XVI, para estudar o século XVII foram utilizadas as publicações das cartas
ânuas, além da inestimável transcrição de epístolas feitas pela pesquisadora portuguesa
Maria de Deus Beites Manso no Arquivo Jesuítico de Roma
13
. Na Biblioteca da Ajuda
também se localizou importante coleção com material relativo aos inacianos que
auxiliou no resgate de informações. Foram ainda utilizadas várias obras produzidas
pelos próprios inacianos sobre a história da Companhia de Jesus no Oriente e estudos
sobre os indianos, que serviram para complementar as informações trabalhadas nas
correspondências.
No Capítulo III, O Santo Ofício Goês: a luta pela pureza da fé, procedeu-se a
uma análise sobre a instalação do Tribunal de Goa e sua atuação até a segunda metade
do século XVII. O material documental aqui utilizado reuniu o resultado das pesquisas
do que sobreviveu à provável destruição dos papéis da Inquisição de Goa no século
XIX. Foram trabalhados os acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do
Arquivo da Torre do Tombo, da Biblioteca da Ajuda e da Biblioteca Nacional de
Lisboa. As correspondências, minutas, denúncias, pareceres, consultas e até mesmo
alguns poucos traslados de processos permitiram analisar o funcionamento do tribunal.
Além desses documentos, também foi utilizada a publicação de Antônio Baião, A
Inquisição de Goa, que no seu segundo volume reúne a correspondência dos
inquisidores da Índia com o Conselho Geral da Inquisição em Lisboa, no período de
11
Antônio da Silva Rego. Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente
(Índia). Edição facsimilar da de 1952. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1991-1996. 13 v.
12
José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1948-1988. 18 v.
13
Maria de Deus Beites Manso. A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622. Aspectos da sua ação
missionária e cultural. Évora, 1999. 2 v. Tese (Doutorado em História). Universidade de Évora. mimeo.
18
1569-1630
14
. Outro conjunto de fontes utilizado nesse capítulo foram os relatos de três
viajantes: Jan Huygen van Linschoten; François Pyrard de Laval e Charles Dellon, que
serviram para complementar a visão acerca da Inquisição de Goa.
Por fim, no capítulo IV, cujo título é Goa: cidadela cristã no Oriente, o foco
concentrou-se no estudo das principais características da capital do Estado da Índia,
pois nos outros capítulos houve uma preocupação maior com as instituições que
desenvolveram a cristianização no Oriente, a Companhia de Jesus e a Inquisição.
Assim, procedeu-se a análise das tensões, das colaborações e dos conflitos existentes
entre as instituições portuguesas as duas citadas juntamente com a administração
eclesiástica e civil lusitanas ocorridas nos limites de Goa e adjacências, decorrentes
do processo de conversão de populações hindus locais, a partir da crise geral que
caracterizou o século XVII e do aumento das pressões do papado sobre o padroado
português.
Complementarmente, foi estudada a fundação da Congregação do Oratório de
Santa Cruz de Goa, fundamentando a reflexão sobre os limites e problemas do processo
de cristianização desenvolvido nas Velhas Conquistas. A documentação na qual se
baseia esse capítulo foi recolhida nas publicações de Wicki e no material sobre a
Inquisição de Goa localizadas nas instituições de pesquisa já citadas, além da obra de
M. da Costa Nunes, Documentação para a História da Congregação do Oratório de
Santa Cruz dos Milagres do clero natural de Goa, que reúne o material utilizado no
processo de beatificação de José Vaz, padre goês que pertenceu a essa ordem
15
.
14
Antônio Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos inquisidores da Índia (1569-1630).
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930. v. II.
15
M. da Costa Nunes. Documentação para a História da Congregação do Oratório de Santa Cruz dos
Milagres do clero natural de Goa. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1966.
CAPÍTULO I
De Ceuta a Goa: o esboço do Império português
"Se não houvesse mercadores que
fossem procurar os tesouros da terra no
Oriente e nas Índias ocidentais, quem
transportaria para lá os pregadores que
levam os tesouros celestes? Os
pregadores levam o Evangelho e os
mercadores levam os pregadores”.
Padre Antônio Vieira, História
do Futuro.
20
1. A expansão marítima portuguesa: percursos
Havia muito as velas portuguesas singravam o Atlântico quando as primeiras
naus chegaram a Calicute. Desde a conquista de Ceuta em 1415, considerada
tradicionalmente como marco inicial da expansão portuguesa, passaram-se mais de 80
anos de viagens e de explorações até a chegada de Vasco da Gama à Índia em 1498.
Na medida em que os navegadores portugueses avançavam em direção ao sul
pelo oceano Atlântico, foram descobrindo as ilhas de Porto Santo (1418), da Madeira
(1419), dos Açores (1431) e de Cabo Verde (1460), onde iniciaram a colonização a
partir da implantação do sistema das capitanias hereditárias
1
.
Ao mesmo tempo, prosseguiram explorando a costa ao sul do Marrocos até
conseguirem contornar os cabos Não e Bojador (1434), o que possibilitou o contato com
a África negra ao encontrar-se, em 1444, a embocadura do rio Senegal, na época
considerado um braço do Nilo. Até 1460 já haviam explorado o litoral do continente
africano até a altura de Serra Leoa, e em 1486 chegavam a Serra Parda, próximo ao
trópico de Capricórnio.
Portanto, quando em 1487 Bartolomeu Dias superou o cabo das Tormentas a
partir de então denominado cabo da Boa Esperança , estabeleceu finalmente o
conhecimento do fim do continente, o extremo sul da África, descortinando a
possibilidade de chegar às Índias pela via marítima. Tal objetivo foi alcançado por
Vasco da Gama em 1498, inaugurando um itinerário que será seguido pelas naus de
carreira do reino de Portugal, com a passagem por Moçambique e Melinde, na costa
oriental africana.
1
Existem indícios de que algumas dessas ilhas já haviam sido visitadas no século XIV, ou até mesmo
antes, na Antigüidade, o que justificaria o uso do termo “redescoberta”. Ver: Paul Teyssier. O século
glorioso. In: Michel Chandeigne (org). Lisboa Ultramarina (1415-1580): a invenção do mundo pelos
portugueses. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 14.
21
As viagens pioneiras de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama abriram o caminho
para uma série de expedições portuguesas, inicialmente a de Pedro Álvares Cabral, que
partiu de Portugal em março de 1500. Com a missão oficial de consolidar as posições
anteriormente estabelecidas por Vasco da Gama no Oriente, presumivelmente também
partira com o objetivo de assegurar a Portugal a conquista e domínio das terras sul-
americanas, conforme estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas de 1494
2
, o que
efetivamente irá ocorrer com a “descoberta”
3
do Brasil e sua incorporação ao Império
português.
Após os primeiros contatos no Oriente, os portugueses conquistaram diversos
pontos estratégicos na Ásia, desenvolvendo as feitorias de Calicute e de Cochim em
1500, além de Cananor, em 1501
4
. Goa foi conquistada em 1510 e, em seguida, Malaca
(na Indonésia) em 1511 e Ormuz, na entrada do Golfo Pérsico, em 1515. Três anos
depois, foi estabelecido um forte em Colombo, no Ceilão (atual Sri Lanka); Baçaim foi
adquirida em 1534 e a importante cidade portuária de Diu conquistada em 1535; Damão
só seria dominada em 1599.
Assim, no último quartel do século XVI, quando finalmente foram consolidados
os contatos com a China, o domínio português estendia-se, grosso modo, do litoral
brasileiro nas Américas até o Japão, compreendendo diversos entrepostos, feitorias e
fortalezas nas costas ocidentais e orientais africanas, na entrada do golfo pérsico com o
estreito de Ormuz, no litoral da Índia (costas do Concão, de Canará, do Malabar e de
Coromandel), no Ceilão, na Malásia, no Timor, em Macau e em Nagasaki.
Esta breve e resumida cronologia tem por objetivo definir as rotas e os limites
extremos da expansão marítima portuguesa e a subseqüente formação do império,
apenas para balizar algumas das reflexões que serão desenvolvidas a seguir.
2
Para reflexões sobre o Tratado de Tordesilhas ver: Renato Pereira Brandão. A cruz de Cristo na Terra de
Santa Cruz: a geopolítica dos descobrimentos e o domínio estratégico do Atlântico sul. Niterói, 1999.
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. mimeo. p. 79-101 e Jacqueline
Hermann. Tratado de Tordesilhas. In: Ronaldo Vainfas (dir). Dicionário de Brasil Colonial (1500-1808).
Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 559-561.
3
O conceito está sendo apresentado entre aspas para guardar o seu aspecto polêmico entre os
historiadores. Para uma sistematização da discussão ver Ronaldo Vainfas. Descobrimento. In: Dicionário
de Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 182-184.
4
A primeira foi destruída e as duas últimas foram substituídas por fortes logo depois: Cochim em 1503 e
Cananor em 1505.
22
2. A expansão marítima portuguesa: interpretações.
A produção tradicional dos historiadores portugueses esteve durante muito
tempo fortemente associada a um discurso nacionalista, que procurava enaltecer os
descobrimentos como o grande momento do passado português, destacando-se a
bravura de Portugal, sua capacidade de enfrentar os desafios e o glorioso domínio de
vastas extensões de terras. Por outro lado, esse tempo áureo teria sido substituído por
um longo processo de decadência, principalmente em termos da presença portuguesa no
Oriente
5
. No entanto, a partir das primeiras décadas do século XX pode-se perceber um
esforço para o desenvolvimento de explicações menos ideológicas acerca daquele
momento histórico.
Parte da historiografia lusitana se refere à expansão marítima portuguesa como
resultado do “renascimento comercial” europeu, a partir do século XII, destacando-se
nessa tendência Antônio Sérgio e Jaime Cortesão.
Antônio Sérgio defendia uma “reforma da mentalidade” na cultura portuguesa e
dedicou-se a inúmeros trabalhos de ordem pedagógica e histórica publicados em vários
artigos nas revistas “Seara Nova” e “Lusitânea”, mais tarde reunidos nos oito volumes
dos Ensaios, no final da década de 1920.
Em ensaio clássico, intitulado Breve interpretação da história de Portugal,
Antônio Sérgio apresenta de maneira sucinta a revolução de 1383-1385 como sendo
caracteristicamente burguesa, e sua vitória “prepara a missão histórica de Portugal”
6
: os
descobrimentos. Para o autor, a expansão ultramarina veio solucionar o problema
europeu relativo ao comércio com o Oriente
7
. A conquista de Ceuta, em 1415, serviu
para abastecer Portugal do trigo necessário para fazer o pão que a população precisava
para sobreviver. No entanto, afirma que o objetivo principal do infante D. Henrique era
chegar à Índia. Como comprovação refere-se aos dizeres de uma carta de D. Manuel de
1502 que atribuía ao tio a intenção de descobrir e achar a Índia
8
. Portanto para Antônio
Sérgio:
5
Para aprofundamento da produção historiográfica portuguesa do século XIX ver interessante estudo de
Maria Leonor García da Cruz. Os «Fumos da Índia»: uma leitura crítica da expansão portuguesa. Com
uma antologia de textos dos séculos XVI-XIX e uma cronologia da expansão portuguesa e do império
ultramarino (c. 1336-1899). Lisboa: Cosmos, 1998.
6
Antônio Sérgio. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1988. p. 33.
7
Idem. p. 33.
8
Idem. p. 41.
23
os descobrimentos do século XV foram uma façanha de gente
metódica, dotada de clara inteligência política, de visão lúcida, muito
precisa, dos escopos práticos a que tendia, e do estudo minucioso dos
meios adequados a tais escopos: em suma, um vasto plano de
conjunto, capacidades raras de organização: nada que se assemelhe ao
aventurismo inconsciente com que a pintaram, depois, os românticos
celticistas do século XIX
9
.
Contemporâneo aos trabalhos de Antônio Sérgio, o livro de Jaime Cortesão
integrava a coleção dirigida por Damião Peres História de Portugal, publicada entre os
anos de 1931 a 1934 e reconhecida pela historiografia portuguesa como obra
fundamental. Trata-se de um estudo clássico sobre a expansão portuguesa, marcado pelo
estilo narrativo e rico em descrições, que explica a expansão como resultado do
crescimento comercial ocorrido nos fins da Idade Média, que teria alimentado a
necessidade e criado as condições para a busca de novos mercados
10
.
Há também um grande destaque ao papel exercido pelo infante D. Henrique,
como se pode depreender do trecho a seguir:
basta divisar em conjunto a marcha geral da expansão do homem no
planeta para se tornar patente que o momento decisivo, nessa série de
tentativas por tantos séculos dispersas, é aquele em que os portugueses
sob a direção ou inspiração do Infante conseguem, não só dar o corpo
e unidade aos esforços do passado, mas assegurar-lhes, pela eficiência
do novo impulso, a continuidade no futuro
11
.
No entanto, Jaime Cortesão soube destacar aspectos cruciais. Percebeu a
importância das rotas comerciais mediterrânicas, tanto de europeus quanto de
muçulmanos, e suas relações com outros eixos comerciais, como os do norte da Europa,
do Índico e do norte da África, identificando como fundamental a participação de
Portugal na conexão do comércio entre a região de Flandres e da Inglaterra com o
Mediterrâneo
12
. Por outro lado, associou o caráter religioso aos fatores econômicos da
expansão, além de fornecer uma análise política da Revolução de Avis, que para o autor
9
Idem. p. 44.
10
Jaime Cortesão. História da expansão portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993. p.
19.
11
Idem. p 13.
12
Idem. p 20-26.
24
foi um movimento caracteristicamente urbano e popular, responsável pela formação das
origens nacionais portuguesas
13
e fator indissociável da expansão.
Um outro aspecto importante diz respeito à conquista de Ceuta, destacando seu
papel de ligação com o comércio do Levante e de local estratégico no confronto com os
corsários muçulmanos e para o controle do estreito de Gibraltar, ajustando assim a
questão do interesse pelo trigo daquela região
14
. Entretanto, assim como Antônio Sérgio,
vê no domínio de Ceuta o primeiro passo de um grande plano português já delineado de
chegar-se ao Oriente.
É importante destacar que neste livro a noção de Império Português está
vinculada ao Oriente, posto que a expressão só é utilizada na parte três, correspondente
ao estudo dessa região. Os outros capítulos utilizam as expressões expansão portuguesa
e colonização, principalmente para o caso do Brasil, evidenciando uma abordagem
diferente quanto à ação dos portugueses na América.
Embora concedam um grande destaque à grandiosidade e à bravura do feito dos
portugueses, numa clara afirmação nacionalista, o ponto principal que aproxima a obra
de ambos os autores é o esforço de interpretação que os tornam distintos daqueles
historiadores que tinham a preocupação de apenas enaltecer os descobrimentos.
Além da discussão de ordem econômica, pode-se encontrar uma abordagem da
questão da expansão marítima associada à lógica religiosa e aos interesses políticos
envolvendo o papado e a Coroa portuguesa em Antônio da Silva Rego
15
. O autor
considera que Portugal tinha a obrigação de evangelizar os povos das regiões que vinha
descobrindo ao desenvolver sua batalha cruzadística contra os mouros do continente
africano. Chega a afirmar que “era esse espírito de cruzada que levava Portugal a
perseguir o Islamismo, obrigado a fugir em franca debandada”
16
. Apesar do tom
exagerado, o que torna seu trabalho digno de nota é o fato de que ele esmiúça a
consolidação do padroado português.
Segundo Rego pode-se encontrar a definição de padroado no código de Direito
Canônico (Cânon 1448): “suma de privilégios, e de alguns encargos que por concessão
13
Idem. p 28.
14
Idem. p 37.
15
Antonio da Silva Rego. O padroado português do Oriente: esboço histórico. Lisboa: Agência Geral das
Colônias, 1940.
16
Idem. p. 5.
25
da Igreja, competem aos fundadores católicos de igrejas, capelas, ou benefícios, assim
como a seus sucessores”
17
.
Em geral, essa concessão implica direitos e deveres concedidos pelos papas aos
reis ou a particulares. No caso do padroado português, os principais direitos eram a
posse das dioceses, o que envolvia a administração dos recursos destinados para esse
fim pela Coroa; a apresentação pelo rei à Santa Sé dos prelados das dioceses; e a
apresentação do rei ao bispo de cônegos, párocos, beneficiados, etc. Em contrapartida,
os principais deveres eram a conservação e manutenção das dioceses e do pessoal a elas
relacionado, além da obrigação de propagar a fé católica
18
.
O padroado português não foi concedido de uma só vez, mas sua consolidação
foi feita ao longo de inúmeras concessões papais e de negociações entre a Santa Sé e a
Coroa portuguesa.
A bula Dum Di Versas de Nicolau V (1452) que concedia ao rei D. Afonso V e
a seus descendentes o direito de conquistar e de subjugar todos os reinos e terras dos
infiéis e de possuir os seus bens públicos e particulares , pavimentou o caminho para
uma outra bula do mesmo papa, a Romanus Pontifex (1455) que, segundo o autor, deve
ser considerada a definidora do padroado português. Nela ficou estabelecido o direito
dos reis de Portugal em fundar e erigir igrejas nas suas conquistas, e de as prover com o
clero necessário para o seu bom funcionamento. No ano seguinte, em 1456, a bula Inter
Coetera, do papa Calisto III, concedeu à Ordem de Cristo, cujo 'regedor e conservador'
era o Infante D. Henrique, o direito de padroado, de cobrança de dízimos e a
administração espiritual por parte da ordem sobre todas as conquistas portuguesas. O
papa Sisto IV, através da bula Aeterni Regis Clementia de 1481, fez a revisão de todos
os privilégios concedidos à Coroa portuguesa até então, reafirmando todos os direitos e
deveres concedidos. Além disso, em 1514, as bulas Dum Fidei Constantium e Ius
Praesentandi atribuíram ao rei de Portugal, D. Manuel I, o direito de provisão de
bispados, paróquias e cargos eclesiásticos em troca do financiamento das atividades
eclesiásticas. E a partir de D. João II, que era ao mesmo tempo rei de Portugal e Grão-
17
Idem. p. 23.
18
Deve-se lembrar que o padroado, ou patronazgo, caracterizou igualmente a Igreja na Espanha e seus
domínios. Também através dele a Coroa espanhola recebia a concessão dos dízimos e era responsável
pela indicação dos ocupantes de cargos eclesiásticos, além do sustento dos clérigos e das igrejas. A
grande diferença entre o padroado espanhol e o português estava na obrigação que o rei de Espanha tinha
de enviar missionários ao Novo Mundo e de dar-lhes o devido sustento, coisa que não estava explícita nos
textos de Roma para os reis de Portugal. Ver Arlindo Rubert. História de la Iglesia en Brasil. Madri:
Mapfre, 1992. p. 41 e Miguel de Oliveira. História eclesiástica de Portugal. Lisboa: Europa-América,
1994. p. 139.
26
Mestre administrador da Ordem de Cristo, ambas concessões pontifícias acabaram por
se reunir nas mãos do monarca português. Mas essa condição que já existia de fato só
foi formalizada pela bula do papa Paulo III Praeclara charissimi, de 1551, afirmando a
incorporação da ordem pelos reis de Portugal
19
.
Por fim, o autor conclui que o papado transferira uma série de atribuições que
seriam de sua alçada aos reis ibéricos, uma vez que:
os papas tinham as mãos cheias com os negócios de Roma e da Europa
e não podiam, materialmente falando, pensar em converter infiéis.
Faltava-lhes tudo. Para a Santa Sé, era quase um favor o que os Reis
de Portugal faziam
20
.
Mesmo que não se considere algumas de suas conclusões, sem dúvida os
conhecimentos de Rego sobre as questões relacionadas à Igreja são muito úteis para
embasar uma análise da expansão que extrapole as interpretações que privilegiam
fatores de ordem econômica.
A obra de Vitorino Magalhães Godinho, Os descobrimentos e a economia
mundial
21
, é outro grande clássico sobre a expansão lusitana. Alinhado a uma vertente
historiográfica mais crítica, no prefácio da segunda edição portuguesa defende que não
há do que se envergonhar ou se vangloriar sobre esse episódio da história, mas sim de
estudá-lo melhor. Tese de doutoramento apresentada na Sorbonne em 1958 com
declarada influência de Lucien Febvre e Fernand Braudel, preocupa-se em destacar “o
papel dos fatores econômicos na gênese dos Descobrimentos e expansão ultramarina”
22
,
centrando-se na análise de estruturas e conjunturas ao longo dos séculos XV e XVI.
O autor declara que pretende preencher uma lacuna nos estudos sobre a
expansão portuguesa nos séculos supracitados, uma vez que enfatiza a excelência dos
19
Antonio da Silva Rego. Op. cit. p. 8. Ver também os verbetes de Guilherme P. C. Pereira das Neves.
Padroado. In: Maria Beatriz Nizza da Silva (org). Dicionário da História da colonização portuguesa no
Brasil. Lisboa/São Paulo: Verbo, 1994. p. 605-607 e In: Ronaldo Vainfas (dir). Op. cit.; e os trabalhos de
Charles-Martial de Witte. Les bulles pontificales et l’expansion portugaise au XV
e
siècle. In: Revue
d’histoire Ecclésiastique. t. XLVIII, 1953. p. 683-471; Miguel de Oliveira. História eclesiástica de
Portugal. Lisboa: Europa-América, 1994. p. 138-139; Lana Lage da Gama Lima. A confissão pelo
avesso: o crime de solicitação no Brasil colonial. São Paulo, 1990. Tese (Doutorado em História).
Universidade de São Paulo. mimeo. p. 375-377; Joel Serrão. Dicionário de História de Portugal. Lisboa:
Iniciativas Editoriais, 1968. v. 3. p. 272-275. Para a informação sobre as ordens militares em Portugal ver
Fortunato de Almeida. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense, 1967. v 1. p. 345-352.
20
Antônio da Silva Rego. Op. cit. p. 11.
21
Vitorino Magalhães Godinho. Os descobrimentos e a economia mundial. 2ª ed. Lisboa: Editorial
Presença, 1981-1985. 4 v.
22
Idem. v. 1. p. 7.
27
trabalhos de vários historiadores portugueses para o século XIV, destacando, entre
outros, o de Jaime Cortesão.
A obra está dividida em quatro volumes. Os dois primeiros estão centrados no
estudo da importância dos metais ouro, prata e cobre e da economia monetária
relacionada ao processo de expansão marítima. Os dois últimos desenvolvem estudos
sobre as rotas comerciais e a formação de mercados estruturados na dinâmica do
Império português, destacando-se a análise de alguns produtos fundamentais para o
comércio lusitano, tais como especiarias, açúcar e escravos. O conjunto da obra,
portanto, ressalta o caráter moderno do processo de expansão marítima portuguesa.
Em relação à motivação da conquista de Ceuta, o autor observa que se atribuir
ao vetor alimentar como garantia para o abastecimento de pão para o reino como
justificativa para essa ação militar tornou-se uma questão muito complexa e deve-se
atentar para a existência de diferentes realidades regionais do Marrocos e períodos
distintos no processo de ocupação do norte da África
23
. Mesmo assim, conclui que “em
vez de contribuir para resolver o problema do pão no reino, a conquista das quatro
cidades do Habt levou finalmente ao agravamento do déficit português de cereais”
24
.
Outra importante contribuição analítica de Godinho está na definição de uma
contradição no processo de expansão marítima e na própria construção do Império
português, nos séculos XV e XVI: as tradições medievais em oposição à orientação
mercantil. Disso resultará a formação de um tipo social híbrido definido pelo autor
como “cavaleiro-mercador”, assim como a própria estruturação política e econômica de
Portugal, que se constituirá no maior entrave ao posterior desenvolvimento lusitano:
o Estado mercantilizou-se, mas não se organizou como empresa
comercial. O cavaleiro deixou-se arrastar pela cobiça, mas não soube
tornar-se mercador e arruinou-se nos gastos demasiados. O mercador
quis ser, ou viu-se forçado a pretender ser cavaleiro, e a hipertrofia do
Estado-negociante obstou ao desenvolvimento de forte burguesia
mercantil e industrial. Descobriu-se a necessidade da poupança, mas
desviou-se para a colocação imobiliária, sem fomentar o investimento.
O dinheiro da expansão irá sobretudo para as igrejas multiplicadas no
deslumbramento da talha, e para os solares a polvilhar a província - e
o solar e a igreja ainda serão os pólos da construção urbana, fora disso
assaz modesta. O investimento, quando se deu, inscreveu-se nos
quadros senhoriais - cavaleiro-mercador, senhorio capitalista, Estado
23
Idem. v. 3. p. 245.
24
Idem. v. 3. p. 251. As quatro cidades eram Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger.
28
mercantilista-senhorial definem talvez a fugidia, cambiante, tão
emaranhada realidade desses dois séculos
25
.
Em obra posterior, Mito e Mercadoria
26
, Godinho procurou refletir mais sobre
aspectos relativos às formas de pensar os descobrimentos e os contatos culturais entre o
Ocidente e o Oriente. Logo no primeiro capítulo fez um balanço da produção
historiográfica sobre a expansão marítima, destacando o início da década de 60 como
marco de uma alteração nas abordagens de pesquisa sobre o tema, indicando a crescente
influência da escola francesa. Ao longo do livro, apresenta as principais características
culturais do Oriente, principalmente do oceano Índico, até a chegada dos portugueses.
Traça, portanto, um rico painel sobre características religiosas, políticas e econômicas
da região e o resultado dos primeiros contatos entre portugueses e indianos.
Como contraponto a essas leituras clássicas, pode-se identificar uma produção
mais atual da historiografia portuguesa, sendo que os trabalhos de Luís Filipe Thomaz
devem ser estudados com muita atenção, principalmente devido à combinação de seu
olhar crítico sobre a produção historiográfica portuguesa com sua enorme erudição, o
que dá extrema solidez às suas afirmações e conclusões, servindo como a base das
reflexões apresentadas no presente capítulo.
O principal livro de Thomaz, De Ceuta a Timor, é um alentado volume que tem
como maior preocupação uma abordagem de história política e possui uma poderosa
orientação analítica. Publicado em 1994, reúne uma série de estudos desenvolvidos pelo
autor ao longo de cerca de vinte anos de ensino da História dos Descobrimentos nas
universidades de seu país. Thomaz apresenta uma revisão crítica das principais
considerações da historiografia portuguesa sobre a expansão marítima. Para ele, com
exceção dos descobrimentos henriquinos e das conquistas albuquerquianas, tudo mais
está por fazer ou refazer, principalmente porque embora exista um bom conhecimento
dos fatos que se ligam à expansão, no entanto, as interpretações deixam a desejar. É
25
Idem. v. 1. p. 62. Como contraponto à visão da hipertrofia do Estado português definido por Godinho,
ver Antônio M. Hespanha. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal Século XVII.
Coimbra: Almedina, 1994, que percebe as limitações do poder central diante da profusão de poderes
locais, pelo menos até o século XVIII. Para uma maior reflexão sobre as características gerais do Estado
Absolutista nos tempos modernos ver Perry Anderson. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo:
Brasiliense, 1985; Emmanuel Le Roy Ladurie. O Estado monárquico: França 1460-1610. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994; Charles Tilly. Coerção, capital e Estados europeus. Trad. Geraldo Gerson
de Souza. São Paulo: Edusp, 1996: e Ernst H. Kantorowicz. Os dois corpos do rei: um estudo sobre
teologia política medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
26
Vitorino Magalhães Godinho. Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar (séculos XIII-XVIII).
Lisboa: Difel, 1990.
29
bem verdade que, cerca de seis anos depois dessas afirmações, já se pode verificar um
significativo avanço nos estudos sobre o assunto, como será visto mais adiante. Mas
sem dúvida a sua contribuição foi fundamental para as novas reflexões sobre a matéria
27
.
Em relação à tradicional afirmação de que a expansão marítima foi resultado do
desenvolvimento do comércio europeu, Thomaz recomenda que se desconfie do nexo de
causalidade direta entre os dois, e de que esta tenha sido um fenômeno uno e coerente.
Deve-se procurar determinar os fatores que se vinculam especificamente à realidade
portuguesa e os que estão relacionados aos aspectos gerais da Europa
28
.
Dessa forma, o historiador passa a analisar cada um deles para fazer uma
classificação de suas relações com o processo de expansão. Alguns ele classifica como
“causas instrumentais relevantes, mas não suficientes para a produção do evento”
29
o
desenvolvimento da marinha e do comércio; legado da civilização árabe; encontro das
técnicas de navegação do Mediterrâneo com as de construção naval do Atlântico.
Outros são definidos como “condições prévias, mas não determinantes”
30
posição
geográfica privilegiada de Portugal; fatores políticos estruturais, tais como centralização
do poder régio, estabilidade de fronteiras, precoce consciência coletiva de
nacionalidade. Há os que ele considera anacrônicos as interpretações que ressaltam o
desejo de contrabalançar a pressão turca sobre os Bálcãs , ou aprisionados a
conjunturas específicas os desejos de encontrar o reino de Preste João, o de chegar às
fontes de ouro do Sudão e o de prevenir a conquista castelhana do Marrocos , o que
não os colocaria na condição de determinantes da expansão
31
. Os fatores ideológicos - a
idéia de cruzada e o espírito franciscano classifica como causas formais, enquanto as
materiais seriam o crescimento do Ocidente europeu e a inserção de Portugal no
comércio entre o Mediterrâneo e o mar do Norte, que resultou no seu desenvolvimento
interno
32
. Por fim conclui:
na sua eclosão o fenômeno expansionista português parece
essencialmente como fenômeno local, embora mergulhe suas raízes
mais profundas naquele crescimento orgânico do Ocidente europeu de
que as demais expansões têm também remota origem. [...] De
27
Luís Filipe Thomaz. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994.
28
Idem. p. 3-6.
29
Idem. p. 6.
30
Idem. p. 7-8.
31
Idem. p. 9.
32
Idem. p. 13-19.
30
fenômeno predominantemente local, logo inflecte para se enxertar no
grande tronco do movimento comercial europeu já em curso
33
.
As críticas mais duras recaem sobre Antônio Sérgio. Suas definições do caráter
moderno e do interesse burguês na conquista de Ceuta são refutadas por Thomaz, que
vê esse episódio mais vinculado à realidade de uma história medieval e de defesa dos
interesses da aristocracia. Para comprovar sua hipótese afirma que:
a longo prazo, D. João I e a classe dirigente não tinham ainda senão
planos muito nebulosos. [...] Quando já se encontrava diante da
cidade, o rei reuniu à pressa o conselho na coberta do seu navio, para
discutir se não valia mais apoderar-se de Gibraltar. Tendo-lhe parecido
ser a cidade demasiado pequena para uma tão grande armada, o que
servia mal os objetivos de prestígio da expedição, e sendo, por outro
lado, da conquista dos reis de Castela, acabou por se decidir não
mudar de objetivo. Após a conquista, o conselho reuniu-se uma vez
mais para decidir se [...] a cidade se deveria arrasar ou, pelo contrário,
ser ocupada em permanência. A segunda hipótese prevaleceu [...]
34
.
Segundo Thomaz, o fato de existir essa hesitação entre destruir-se a cidade ou
ocupá-la denota a mentalidade medieval que já havia inspirado outros episódios
semelhantes protagonizados por genoveses, sicilianos e aragoneses em expedições no
norte da África, durante a Baixa Idade Média. Para o autor, o Marrocos interessava
fundamentalmente a nobreza militar que lá encontraria pilhagens, prêmios, cargos
35
.
Contra a justificativa de que o trigo de Ceuta seria outro elemento de incentivo à
conquista, Thomaz afirma que, na verdade, “o celeiro de trigo localizava-se mais ao sul,
na costa atlântica de Marrocos”
36
. Aproveita a ocasião para confirmar a avaliação final
de Godinho de que a manutenção daquela praça resultou em problemas de
abastecimento de trigo para o reino.
Outro ponto que é descartado por Thomaz em relação às teses de Antônio Sérgio
refere-se à definição da chegada à Índia como objetivo final da expansão. Thomaz
classifica a explicação de Sérgio como teleológica, pois dá esse sentido desde os
primórdios das explorações, o que, segundo o primeiro, só vai ser desenhado tempos
33
Idem. p. 36.
34
Idem. p. 64.
35
Idem. p. 27.
36
Idem. p. 24.
31
depois
37
. Thomaz adverte que o fato de se encontrar nas fontes menção à palavra “Índia”
ou “Índias” só pode ser interpretado à luz dos conhecimentos e crenças geográficas
daquela época, que dessa forma designava “o conjunto de países ribeirinhos do Oceano
Índico, compreendendo, portanto, a África Oriental ou «Etiópia»”
38
, identificada com o
reino semimítico do Preste João na obra de Jourdain de Séverac, em 1329, mas que
outrora acreditava-se situado na Ásia Central, segundo Otão de Freising (1145). Daí não
se poder usar esse argumento como elemento para defender a clareza de objetivos da
expansão pela própria imprecisão de sua definição ao longo da Idade Média.
Thomaz reconhece o esforço de Jaime Cortesão em dar ênfase às motivações
econômicas e sociais em detrimento das políticas, religiosas e culturais, em abordagem
que ele classifica como “socializante”. Mas não o poupa da crítica de também elaborar
uma explicação teleológica, similar a de Antônio Sérgio para o “plano das Índias”, por
reforçar a definição precoce dos objetivos da expansão marítima portuguesa
39
.
Após esta dura revisão crítica, Thomaz inicia uma minuciosa exposição do
processo de expansão marítima. Sugere que a conquista do Marrocos foi o primeiro
projeto expansionista português, após a reconquista do Algarve, em 1250. Existiram
ainda dois outros projetos que ao primeiro se juntaram, no século XIV: a conquista de
Granada e a ocupação das Canárias. Apesar de haver uma certa preferência pela
conquista do Marrocos, dependendo das circunstâncias políticas de uma dada
conjuntura da península ibérica e do reino de Portugal, podia-se tender para os outros
dois
40
.
Ou seja, na verdade, tais projetos acabaram por ter vinculações com as disputas
políticas que a própria sociedade portuguesa do século XIV enfrentava. De um lado,
uma tendência nobiliárquica e feudalizante; do outro, uma política centralista apoiada
pelo terceiro estado. A primeira apoiava o estreitamento dos laços com Castela; já a
segunda interessava-se em fortalecer as relações comerciais com a Inglaterra e Flandres.
É somente com o “estabelecimento da Casa de Avis” que a estratégia atlântica
sobrepuja a estratégia ibérica
41
.
37
Idem. p. 43.
38
Idem. p. 156.
39
Idem. p. 44.
40
Idem. p. 44-49.
41
Idem. p. 56-58. Thomaz ainda detecta algumas oscilações em outros reinados, mas destaca a gradativa
vitória da estratégia atlântica, ao longo do século XV. Para uma visão complementar da presença
portuguesa no Marrocos ver Antônio Dias Farinha. Os portugueses no Marrocos. Lisboa: Instituto
Camões/ Coleção Lazúli, 1999.
32
A conquista de Ceuta simboliza, portanto, um momento em que todos esses
elementos devem ser considerados. Ela pode servir tanto para iniciar a conquista do
Marrocos, quanto para ser base de um ataque a Granada; ou ainda transformar-se em
chave do controle do Mediterrâneo para consolidar o comércio com a Sicília, esta sim a
fornecedora de trigo para o reino de Portugal. Mais uma vez o autor insiste na falta de
clareza de objetivos ou dos desdobramentos do tradicionalmente considerado marco da
expansão marítima portuguesa:
Ceuta era antes da conquista portuguesa não só uma escala importante
do comércio Leste-Oeste através do Estreito - função que a presença
lusa deve ter incentivado - mas também próspera escápula do tráfego
Norte-Sul como articulação que era do reino de Granada com o
Magrebe e, através dele, com o resto do mundo muçulmano, levantino
e sudanês. Esta função desvaneceu-se logicamente com a conquista
portuguesa, passando o comércio muçulmano que se dirigia a Granada
a preferir outros portos e rotas alternativas. É possível que os
dirigentes portugueses não tivessem previsto desde logo tal desvio,
que hoje se nos afigura inevitável; mas ainda que o previssem, as
riquezas acumuladas na cidade que se pretendia tomar pela surpresa
deviam oferecer excelentes perspectivas de saque, o que só por si
constituía um poderoso incentivo à expedição
42
.
Aos poucos foi sendo desenvolvida a consciência de que a conquista do
Marrocos era tarefa muito complexa e necessitava de um grande esforço de organização
que só ao rei caberia promover. Além disso, as tensões na península ibérica
aumentavam graças aos conflitos entre Aragão e Castela, que ameaçavam a neutralidade
portuguesa. Da combinação desses fatores surgem, no século XV, mais dois projetos de
expansão que se juntam aos já existentes no século anterior: o de povoamento das ilhas
do Atlântico e o de exploração do litoral do norte da África ocidental. É nesse contexto
que Thomaz destaca a ação do infante D. Henrique. O historiador afirma que, a
princípio, o objetivo das expedições promovidas pelo infante era fazer um
reconhecimento dos limites territoriais do inimigo, para consolidar uma estratégia de
envolvimento pelo sul do Marrocos. Desde o início da década de 20 do século XV D.
Henrique começou a mandar navios de sua frota corsária para alcançar o Bojador.
Gradativamente seu interesse no Atlântico foi sendo aumentado, principalmente quando
D. Duarte, rei de Portugal, concedeu-lhe uma série de mercês em 1433: exclusivo da
42
Idem. p. 62-63.
33
pesca do atum na costa do Algarve; isenção do quinto das presas devido à Coroa pela
sua armada de corso; título vitalício de senhorio da Madeira
43
.
Mas D. Duarte reativou os planos de conquista do Marrocos ao organizar uma
campanha contra Tânger (1437), na qual os portugueses foram derrotados e o infante D.
Fernando, irmão de D. Henrique, feito refém dos muçulmanos como garantia para a
retirada do domínio lusitano de Ceuta
44
. Os debates e hesitações decorrentes desse
fracasso teriam contribuído para a opção de expansão comercial e de colonização de
espaços vazios, apesar de posteriormente terem ocorrido outras campanhas de conquista
do Marrocos
45
.
A partir de 1441 as expedições à costa da África passaram a conjugar o corso e o
comércio, ganhando ainda maiores incentivos com o patrocínio de particulares (1442) e
da própria Coroa em 1443 o regente D. Pedro concedeu a D. Henrique o exclusivo do
comércio e do corso para além do Bojador, enviando ainda uma caravela com as de seu
irmão. Percebe-se aí o aumento das intercessões de interesses que se envolveram na
expansão, que faz Thomaz afirmar que “a partir da segunda metade do século XV
consolidou-se o processo de aburguesamento dos nobres e nobilitação dos burgueses,
suavizando os choques de interesses”
46
.
A política ultramarina de D. João II é considerada pelo historiador como a
primeira a ser coerente e integrada, apesar de guardar ainda a tradição medieval. Para
comprovar essa afirmação, demonstra o planejamento de sete frentes de ação definidas
pelo monarca: preparação técnica das expedições; exploração do comércio na costa
ocidental africana; coleta de informações no Oriente - as viagens de Pero da Covilhã e
Afonso de Paiva; tentativa de penetração no continente africano - Diogo Cão e João
Afonso de Aveiro; cristianização do Congo (1491); atividades diplomáticas para
garantir a influência portuguesa na costa africana e no Atlântico sul
47
. Não se tratava de
um projeto de caráter colonial que, segundo o autor, só no governo de D. João III
começará a existir , mas sim imperial, no sentido medieval do termo, ou seja, D. João
II seria soberano em vários territórios, sem formar um Estado centralizado e unitário,
43
Idem. p. 70-75. Thomaz destaca a proximidade entre essa data e o sucesso de Gil Eanes em ultrapassar
o Bojador (1434), sob ordens do infante.
44
D. Duarte morreu em 1438, não sem antes deixar registrado seu pedido para que os portugueses
saíssem de Ceuta para salvar D. Fernando, que em 1443 morreu ainda prisioneiro dos muçulmanos.
45
Idem. p. 102.
46
Idem. p. 138.
47
Idem. p. 159-164.
34
mas com direito de tributação
48
. Essa afirmação é muito interessante para a discussão da
estrutura do Império Português que será abordada ao longo do desenvolvimento desta
pesquisa.
Assim, pode-se concluir que o autor destaca ao menos dois momentos distintos
no processo de expansão marítima portuguesa:
se em vida de D. Henrique a exploração comercial do Atlântico Sul
tinha ainda o seu quê de «feudal» - concedida a um grande senhor, a
título vitalício, em troca dos serviços nobres, assaz genéricos, que um
vassalo era esperado prestar ao seu suserano - com o contrato de
Fernão Gomes modernizara-se um pouco: fora arrendada a um
mercador, por prazo limitado, e a troco de uma renda em dinheiro.
Com D. João II tende a ser absorvida pela administração central do
reino, na dependência direta da realeza, que assim opta decididamente
por se tomar em empresa mercantil. Este aspecto deve ser retido em
mente, sob pena de se continuar indefinidamente a lavrar em erros
grosseiros, como o de estabelecer uma relação unívoca e direta entre
comércio e burguesia, identificando interesses comerciais com
aspirações da burguesia, esquecendo que a principal empresa de
comércio é o Estado, e que os seus agentes são, em maioria, pequenos
nobres e não exatamente burgueses - embora estes, naturalmente, não
sejam marginalizados do processo
49
.
Outra observação do historiador que enriquece o olhar sobre a expansão
marítima refere-se à demora em organizar-se uma expedição ao Oriente após a viagem
de Bartolomeu Dias e a consolidação do conhecimento da passagem para o Índico.
Somente cerca de dez anos mais tarde Vasco da Gama seria enviado para completar o
percurso até as Índias
50
.
Para Thomaz esse hiato demonstra que na corte portuguesa no final do reinado
de D. João II e início do de D. Manuel I havia pelo menos duas facções que se
opunham: um grupo apoiava a consolidação da presença portuguesa no Atlântico; outro
alimentava a perspectiva de estabelecimento no Índico. Por fim, D. Manuel I conseguiu
fazer prevalecer seu plano em relação ao Oriente, graças à combinação de um
messianismo que envolvia o rei e o caráter autocrático de seu governo. O plano era
muito complexo, uma vez que partia da crença de que o soberano português seria
48
Idem. p. 165.
49
Idem. p 153-154.
50
Há explicações de ordem técnico-científica para essa demora, pois ela teria sido necessária para o ajuste
da rota correta para a ultrapassagem do Cabo da Boa Esperança. Cf. Renato Pereira Brandão.Op. cit. p.
105.
35
responsável pela construção de uma nova era, de uma nova ordenação do mundo, que se
consubstanciaria com a tomada de Jerusalém. Tinha como objetivo dominar o Índico e a
entrada do Mar Vermelho para enviar um ataque em duas vertentes uma partindo do
Magrebe e outra do Egito para conquistar a Terra Santa
51
. Contava que receberia
apoio dos muitos reinos cristãos que existiriam no Oriente, especialmente o de Preste
João e o da cristandade, que teria sido convertido pela ação evangelizadora no Oriente
de São Tomé, logo após a morte de Jesus Cristo
52
.
Disto pode-se entender porque Vasco da Gama quando convidado a conhecer
templos hindus, na verdade enxergou igrejas:
Aqui nos levaram a uma grande igreja, em a qual estavam as coisas
seguintes:
Primeiramente o corpo da igreja é da grandura dum mosteiro, toda
lavrada de cantaria, telhada de ladrilho [...] e dentro estava uma
imagem pequena, a qual eles diziam que era de Nossa Senhora. [...] E
outros muitos santos estavam pintados pela parede da igreja [...]
53
.
Outro trabalho que se enquadra numa produção mais recente da historiografia
portuguesa sobre a expansão marítima é o de Luís Filipe Barreto. Há uma clara
influência da escola francesa, com destaque para as reflexões de Lucien Febvre
54
. O
autor afirma fazer um estudo no âmbito da História da Cultura, utilizando o método de
hermenêutica proposto por Paul Ricoeur
55
. Seu maior esforço concentra-se no
estabelecimento das relações existentes entre o Renascimento e o fenômeno dos
51
Luís Filipe Thomaz. Op. cit. p. 192. O autor define o messianismo em torno do rei como resultado do
modo inusitado que este chegou ao poder, após a morte de outros seis melhores colocados à sucessão,
considerado como um sinal de sua predestinação a grandes feitos, além do fato de ter sido educado em
sua juventude com influências da filosofia joaquimita Joaquim de Fiora, século XII, cujos preceitos
eram abordagem trinitária da História, interpretação literal das Escrituras para alcançar a espiritualidade e
uma visão apocalíptica e da existência de alguns conselheiros do rei que partilhavam dessa filosofia.
Com isso, Thomaz sugere um outro momento de messianismo na realeza lusitana, além do consagrado
Sebastianismo, posteriormente.
52
Esta é uma das mais antigas e fortes tradições na história da Igreja no Oriente, e muito divulgada na
Idade Média. Textos apócrifos surgidos por volta do século III relatam a obra de cristianização do
apóstolo Tomé na Ásia. Para uma explicação detalhada desses relatos ver Samuel Hugh Moffett.
Christianity in Asia: beginnins to 1500. New York: Orbis Books, 1998. v. 1. p. 24-44.
53
Álvaro Velho. Relação da Primeira Viagem à Índia pela armada chefiada por Vasco da Gama. Apud
Rui Loureiro, O encontro de Portugal com a Ásia no século XVI. In: Luís de Albuquerque et alli. O
confronto do olhar: o encontro dos povos na época das navegações portuguesas. Lisboa: Caminho, 1990.
p. 157-158.
54
Luís Filipe Barreto. Descobrimentos e Renascimento: formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983; Os descobrimentos e a ordem do saber: uma análise
sociocultural. Lisboa: Gradiva, 1989 e Caminhos do Saber no Renascimento português: estudos de
história e teoria da cultura. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986.
36
descobrimentos portugueses, destacando a extrema complexidade do mundo
quinhentista graças às sobrevivências das características medievais convivendo com os
elementos modernos que se formavam. Para o autor:
os descobrimentos foram o fenômeno sociocultural mais significativo
gerado no e pelo Renascimento português. No entanto, não devem ser
lidos como um fenômeno nacional (ista) mas como um elemento
comparticipante de todo um alargamento de fronteiras da Europa à
conquista do Mundo. O Renascimento português, como todo e
qualquer Renascimento, é um fenômeno de continuidade e
descontinuidade frente ao herdado. Uma conservação e uma superação
dos sistemas de valor institucionalizados que abre as fronteiras da
Idade Moderna
56
.
Pela própria proposta de seu trabalho e pelo método utilizado, Luís Filipe
Barreto não tem uma grande preocupação em discutir os grandes marcos do processo de
expansão marítima portuguesa, preferindo procurar nos discursos e nas suas
contradições as principais características da cultura lusitana relacionada às técnicas de
navegação, aos conhecimentos geográficos e aos aspectos dos contatos entre culturas,
do ponto de vista antropológico, afirmando que “os portugueses são os olhos e ouvidos
da Europa, o comunicador intercivilizacional por excelência da cristandade”
57
.
Além da produção dos historiadores portugueses, existem muitos outros autores
que trabalham com a questão dos descobrimentos lusitanos que merecem destaque.
Charles R. Boxer é responsável pela produção de diversos estudos sobre a expansão
marítima portuguesa desenvolvidos ao longo de sua extensa vida, com artigos e livros
produzidos desde a década de 30 até os anos 80 do século XX
58
. Há pequenos trabalhos
com enfoque detalhista, mas existem também estudos generalizantes, principalmente O
Império marítimo português (1415-1825), publicado em primeira edição inglesa em
1969, cujo título já demonstra que o autor privilegia a noção de império.
55
Luís Filipe Barreto. Caminhos do Saber no Renascimento português... p. 316.
56
Luís Filipe Barreto. Descobrimentos e Renascimento ... p. 48. O que o autor chama de Renascimento
português por ele é datado no período que vai de meados do século XV até as décadas de 1620 e 1630.
57
Luís Filipe Barreto. Os descobrimentos e a ordem do saber ... p. 58.
58
Alguns exemplos: C. R. Boxer. From Lisbon to Goa (1500-1750): studies in portuguese maritime
enterprise. Aldershot: Variorum, 1997; A Igreja e a expansão ibérica (1440- 1770). Lisboa: Edições 70,
1990; A mulher na expansão ultramarina ibérica (1415-1815): alguns factos, ideias e personalidades.
Lisboa: Livros Horizonte, 1977; Império colonial português. Trad. Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70,
1977.
37
Neste livro, Boxer assimila muitas das informações apresentadas por Godinho,
mas acrescenta outras reflexões, como, por exemplo, a menção que faz às afirmações de
Gilberto Freyre sobre a tolerância racial típica do português, que teria sido resultado da
longa presença muçulmana na península ibérica. Boxer faz restrições a esse raciocínio,
enfatizando as pressões decorrentes dos critérios de “pureza de sangue” que vieram a se
enraizar na legislação portuguesa
59
.
Estando distante dos conflitos de ordem nacionalista que por vezes ficam
evidenciados nos debates de alguns historiadores portugueses, Boxer percebe a
dificuldade em isolar as razões da expansão marítima, optando por apresentá-las sem
hierarquia, mas sim como resultado de uma mistura que incorporaria fatores religiosos,
econômicos, estratégicos e políticos
60
. É muito interessante notar a sua sensibilidade de
interpretação em pequenas observações que podem se desdobrar em enormes
derivações, ricas em perspectivas de análise:
há boas razões para crer que tanto os motivos de natureza apostólica e
religiosa como uma curiosidade inteligente (mas quase nada científica)
alimentaram a persistência do Infante D. Henrique em enviar os seus
navios e caravelas para sul do cabo Não; mas causas econômicas
desempenharam também o seu papel, se bem que possam não
ter sido muito importantes nas primeiras fases
[não está grifado no original]
61
.
Portanto, o autor relativiza as motivações econômicas do período inicial da
expansão, sem descartá-las, sugerindo antes uma imbricação de fatores do que uma
hierarquia.
Na década de 1960, Frédéric Mauro analisou alguns aspectos da expansão
portuguesa, como parte do processo de longa duração da expansão européia, que
remontaria ao desenvolvimento do comércio no período de 1200 a 1350
62
. Os
portugueses teriam assumido o comando do movimento porque reuniam os avanços
59
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 26.
60
Idem. p. 41.
61
Idem. p. 46. Essa pequena observação foi detalhadamente esmiuçada por Thomaz, como demonstrado
anteriormente.
62
Frédéric Mauro. A expansão européia. Trad. Franco de Sousa. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. p. 21;
ver também do mesmo autor Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670). Trad. Manuela Barreto.
Lisboa: Editorial Estampa, 1997.
38
técnicos associados ao ouro da Guiné
63
. Reconhece a presença de fatores religiosos na
expansão, mas conclui que:
a expansão portuguesa no Oriente é uma expansão capitalista de que
se beneficia em primeiro lugar o rei, que reserva para si um
monopólio, partilhando-o ocasionalmente com particulares, mesmo
estrangeiros. Mas é um capitalismo de circulação, orientado para os
produtos de luxo, que representam um valor elevado para um pequeno
volume, dão lucros vultuosos, mas sujeitos à especulação, à moda, e
sem larga base de um consumo de massas. Na medida em que o
comércio oriental e a rota das Índias dominam o conjunto da atividade
imperial, esta mantém-se, pois, precária e frágil
64
.
Por criar tal generalização, Mauro perde a possibilidade de perceber as sutilezas
e, até mesmo, as indefinições do processo de expansão de Portugal.
Já o trabalho de Bailey W. Diffie e George D. Winius, obra em dois volumes
publicada em 1977 na versão em inglês
65
, elabora uma síntese do processo de expansão
marítima, com um interessante eixo de reflexão que é o da construção do Império
português no Oriente. Possui forte influência do trabalho de Charles. R. Boxer no seu
desenvolvimento, o que é explicitado pelos autores logo na introdução do livro
66
. A
maior diferença repousa no fato dos autores terem concentrado seus esforços analíticos
nas fontes da época, não possuindo uma profunda discussão da produção historiográfica
sobre o tema.
Na década de 80, por iniciativa da Cambridge University Press, uma Nova
História da Índia começou a ser idealizada para substituir a edição dos anos 20 e 30. A
obra foi estruturada para ser composta por eixos temáticos, e um dos volumes ficou a
cargo do historiador M. N. Pearson
67
. O autor declara que seu objetivo é avaliar o
impacto da presença portuguesa na Índia. De início ele inventaria as possíveis razões
para a expansão, destacando as questões de ordem política, econômica, social e religiosa
clássicas, associando-as à superação da crise do feudalismo, discutindo as principais
teses dos economicistas e dos deterministas geográficos. Nessa altura faz uma
advertência interessante:
63
Idem. A expansão européia...p. 43-44.
64
Idem. Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670)... p. 27.
65
Bailey W. Diffie e George D. Winius. A fundação do Império Português (1415-1580). Lisboa: Vega,
1993. 2 v.
66
Idem. p. 16.
67
M. N. Pearson. Os portugueses na Índia. Trad. Ana Mafalda Telo. Lisboa: Teorema, 1990.
39
mas isto não nos deve levar a ver os portugueses como uma raça de
marinheiros intrépidos. Na sua maioria, eram camponeses, que nada
sabiam acerca do mar e não dependiam economicamente dele. O
estado dos conhecimentos de navegação dos portugueses, no começo
dos descobrimentos, está bem patente no fato de a frota que foi
conquistar Ceuta, em 1415, ter tido grande dificuldade em atravessar o
estreito de Gibraltar. No entanto, as coisas não tardaram a mudar; os
portugueses fizeram experiências e aperfeiçoaram tanto os navios
como as técnicas de navegação, de modo a poderem continuar a
avançar para mares desconhecidos
68
.
Pearson também se preocupa em relativizar a afirmação de que os portugueses
foram os primeiros europeus a chegarem em algumas regiões do Índico, destacando a
presença de mercadores italianos que teriam aproveitado a “Pax Mongolica” para fazer
tais incursões. Mas concorda em dar destaque à presença portuguesa, pois entende que
ela teve um caráter de “irrupção maciça” no Oriente, com efeitos incomparáveis aos
contatos irregulares de outros europeus que até então tinham alcançado aquela região.
O indiano Sanjay Subrahmanyam
69
trouxe a perspectiva do Oriente para a
interpretação da expansão portuguesa. O livro foi escrito no início de 1990 e faz
interlocução com as reflexões de Luís Felipe Thomaz. O autor assume a abordagem de
história política e econômica e declara que não pretende fazer nenhuma incursão nas
dimensões da interação cultural entre os portugueses e a Ásia, nos séculos XVI e XVII.
O propósito maior de seu estudo é contribuir para a discussão sobre a continuidade ou
descontinuidade entre a expansão portuguesa na Ásia e a holandesa e a inglesa, ou seja,
uma comparação dos modelos de império que existiram no Oriente.
Como intelectual que tem a oportunidade de trabalhar em uma encruzilhada
cultural, a Índia, Subrahmanyam tem acesso às fontes ocidentais, e também pode
utilizar uma série de outros registros vinculados ao universo oriental. Logo de início o
autor transcreve um texto malaio, provavelmente escrito no início do século XVIII, que
68
Idem. p. 24-25. Sobre as técnicas de navegação há várias publicações, das quais destacam-se: Luís
Albuquerque. Dúvidas e certezas na História dos descobrimentos portugueses (2ª parte). Lisboa: Vega,
1991; Luís Felipe Barreto. Os descobrimentos portugueses... e Caminhos do saber no Renascimento...;
Bailey W. Diffie. Prelúdio ao Império: navegações e comércio pré-henriquinos. Trad. Flávia Coelho
Dias. Lisboa: Teorema, 1989; Gaetano Ferro. As navegações portuguesas no Atlântico e no Índico. Trad.
José Colaço Barreiros. Lisboa: Teorema, 1989.
69
Sanjay Subrahmanyam. O império asiático português 1500-1700: uma história política e econômica.
Lisboa: Difel, 1995.
40
descreve a presença portuguesa em Malaca
70
. É um relato cheio de imprecisões, segundo
o autor, mas rico em informações para o historiador, ainda mais por ser um registro
decorrente da ótica dos orientais, diferente das fontes européias, mais freqüentemente
trabalhadas.
Sua perspectiva a partir do Oriente pode ser comprovada pela própria estrutura
da obra: o primeiro capítulo faz um retrato da Ásia entre 1500 e 1700, e somente no
segundo capítulo o autor apresenta as características de Portugal de 1200 a 1500. Essa
sutil inversão de uma tradicional apresentação do problema não serve apenas como
crítica à visão eurocêntrica, mas enriquece o entendimento do multifacetado mundo
oriental. Subrahmanyam afirma que:
os portugueses não chegaram a uma Ásia estática, nem agiram sobre
uma tabula rasa. Em vez disso, os portugueses viram-se instalados,
nos séculos XVI e XVII, num mundo cujo equilíbrio de forças
geopolíticas, sociais e econômicas estava em permanente mutação
71
.
No capítulo sobre o Estado e a sociedade portuguesa o historiador indiano se
dedica ao período da ocupação muçulmana na península ibérica, desde o início do
século VIII para investigar o desenvolvimento da formação do reino de Portugal: “pois,
num certo sentido, os mouros foram as parteiras que assistiram ao nascimento da nação
portuguesa [...]”
72
. Apresenta um resumo do processo de Reconquista com o intuito de
destacar a importância de dois aspectos que acompanharam a definição de Portugal
como Estado, não apenas no seu nascimento, mas em outros períodos de sua história: a
luta contra os mouros e a necessidade de se diferenciar dos reinos vizinhos que se
formaram naquele mesmo contexto.
O autor também analisa a sociedade portuguesa identificando as suas
características e variações em relação às regiões e aos momentos históricos. Percebe que
existiam antagonismos que acabaram por se enfrentar na crise de sucessão de 1383-
1385, mas apesar da vitória da tendência centralista, não houve a eliminação dos
conflitos.
Subrahmanyam considera a estratégia de D. João I bifurcada, ou seja, a expansão
norte africana tinha um caráter mais militar que comercial, enquanto as expedições no
70
Idem. p. 3-8.
71
Idem. p. 40.
72
Idem. p. 43.
41
Atlântico eram predominantemente comerciais e não militares. Essa simplificação reduz
a uma fórmula muito esquemática de algo que foi detalhadamente descrito por Thomaz.
Em relação à política de D. João II, o historiador indiano classifica-a como
predominantemente comercial e decisivamente distanciada dos interesses de Castela, daí
a opção pela rota atlântica.
Já o plano de D. Manuel é definido a partir do messianismo apontado
anteriormente por Thomaz, mas Subrahmanyam enfatiza as tensões internas decorrentes
do confronto do grupo que considerava essa estratégia por demais perigosa e
dispendiosa.
Também na mesma década de 1990 há o trabalho de Marc Ferro que realizou um
estudo das colonizações européias dos séculos XIII a XX
73
, onde demonstra grande
preocupação em combater a visão europocêntrica, o que está presente em todas as suas
obras. Denunciando esse tipo de abordagem, afirma que:
não se deve iniciar a história da colonização com os Grandes
Descobrimentos ultramarinos, ou seja, com a busca de um caminho
para as Índias. Por certo, os descobrimentos deram nova dimensão ao
fenômeno da colonização, e por vezes à sua natureza, mas o
expansionismo lhe é anterior. A necessidade de contornar o Império
Turco, com tudo que isso implicava, não explica por si só as diferentes
dimensões do fenômeno expansionista colonial. É exatamente a visão
da tradição árabe. Esta considera que a expansão européia começa
com as Cruzadas, primeira expressão do “imperialismo”. A tradição
ocidental, ao contrário, considera as Cruzadas uma tentativa de
reconquistar a Terra Santa do islamismo, que se apossara de uma terra
cristã
74
.
Apesar de ser um bom alerta, o olhar muito crítico, mas um tanto apressado, por
se propor a fazer uma análise abrangente e de um longo período histórico, às vezes
transforma sua explicação numa versão muito simplista.
Fernand Braudel também adicionou algumas reflexões ao debate geral sobre a
expansão marítima, especialmente ao papel de Portugal, discordando da visão
tradicional de enfatizarem-se as carências de recursos do país para desenvolver tal
empreendimento. Considera que Portugal não é “nem anormalmente pequeno, nem
73
Marc Ferro. História das colonizações: das conquistas às independências séculos XIII a XX. Trad.
Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
74
Idem. p. 19.
42
anormalmente pobre, nem fechado sobre si próprio, é, no conjunto da Europa, uma
potência autônoma, capaz de iniciativa (prova-lo-á) e livre nas suas decisões”
75
.
O trabalho de sistematização mais recente sobre esse assunto foi realizado pela
obra dirigida pelo historiador português Francisco Bethencourt e o indiano Kirti
Chaudhuri
76
, pois trata-se de um enorme esforço tanto de revisão historiográfica da
expansão portuguesa, quanto de abordagem de novos temas e objetos de pesquisa. A
obra foi publicada em 5 volumes, a partir de 1998, mas só os três primeiros abrangem a
temporalidade da presente pesquisa. É formada por vários artigos de autoria dos
organizadores, além de historiadores de renome, como A. J. R. Russel-Wood, José
Mattoso, Diogo Ramada Curto, Joaquim Romero Magalhães, Caio Boschi, apenas para
citar alguns.
A obra reúne estudos de cunho econômico, político, demográfico e de viés
antropológico, permitindo um vasto painel sobre o Império português. Talvez o mais
interessante no que se refere à estruturação da obra seja a definição de eixos temáticos,
que são investigados em relação à divisão cronológica definida em cada volume e à
região correspondente do Império português, como por exemplo “fluxos de imigração”,
“a sociedade portuguesa no ultramar”, ou ainda, “articulações regionais e economias
mundo”. Naturalmente que foi dada maior atenção aos textos referentes à temática do
Oriente para a realização do presente trabalho, mas deve-se destacar a interessante visão
de conjunto que a obra proporciona, com painéis sobre a presença portuguesa na
América, na África e na Ásia.
A título de exemplo da contribuição que esta obra proporcionou ao presente
estudo, pode-se resgatar a discussão anterior em relação ao trabalho de Luís Filipe
Thomaz. Como complemento à afirmação daquele autor sobre o caráter imperial da
política joanina, mencionada acima, pode-se incluir as reflexões de Russel-Wood sobre
a ação de D. Manuel I, que classifica de “primeiro esboço oficial de uma política de
colonização”
77
, ao menos no que se refere ao Oriente.
A estrutura geral da obra possibilitou ainda um grande acúmulo de informações
e reflexões em relação ao outro eixo de leituras desenvolvido: a presença portuguesa em
75
Fernand Braudel. A civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII: o tempo do
mundo. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1993. t. 3. p. 115.
76
Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores e Autores, 1998-99. v. 1 (A formação do Império 1415-1570), 2 (Do Índico ao Atlântico
1570-1697) e 3 (O Brasil na balança do Império 1697-1808).
77
A. J. R. Russel-Wood. Fronteiras de Integração. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.).
Op. cit. v. 1. p. 244.
43
Goa, uma vez que muitos dos trabalhos lá publicados analisam as relações de poder e
convivência entre portugueses e os habitantes da Índia.
Merece destaque por sua importância para o cerne da pesquisa o texto de Diogo
Ramada Curto, em especial a seção sobre a produção de escritos jesuíticos
78
. O autor
afirma que apesar de existir uma orientação geral por parte da Companhia de Jesus em
matéria de tolerância em relação aos usos e costumes dos habitantes locais, existiam
discordâncias entre alguns religiosos dessa ordem
79
. Sem dúvida, esse é um aspecto que
será mais aprofundado no decorrer do trabalho, uma vez que é essencial para o
entendimento dos conflitos entre a Companhia de Jesus e a Inquisição no processo de
cristianização de Goa.
78
Diogo Ramada Curto. Cultura escrita e práticas de identidade. In: Francisco Bethencourt e Kirti
Chaudhuri (dirs.). Op. cit. v. 2. p. 469-477.
79
Idem. p. 472.
44
3. O Oriente antes da chegada dos portugueses
A partir da orientação dada por Sanjay Subrahmanyam de não se olhar para o
Oriente como uma realidade estática, uma tabula rasa na qual os portugueses
exerceriam seu poder e influência, deve-se traçar um esboço das características gerais
desse universo multifacetado.
Um dos argumentos de Subrahmanyam para negar a visão de que o Oriente era
estático em oposição ao dinamismo de Portugal baseia-se nas estimativas de população
para a Ásia no século XV. Segundo o autor, embora o cálculo seja difícil, pode-se
verificar que a partir de meados desse século houve uma recuperação demográfica do
impacto resultante da peste negra, tendo a população de todo o continente alcançado o
número de 200 a 225 milhões, em 1500. Informa ainda que a tendência de crescimento
continuará ao longo dos séculos XVI e XVII, chegando à cifra de 500 milhões. A
distribuição dessa população era desigual, havendo uma maior concentração
demográfica na Ásia tropical e subtropical. Esse crescimento proporcionou reflexos
tanto na expansão urbana, como no aumento de terras cultivadas e na produção de
manufaturas
80
. Em contrapartida, na Europa, Godinho estima que em meados do século
XVII em Portugal haja 2 milhões de habitantes, enquanto na Itália, 11 milhões; na
França, 16 milhões; na Espanha, cerca de 7 milhões e meio; ou seja, a partir da
comparação desses dados percebe-se uma considerável desproporção demográfica entre
a Europa e o Oriente
81
.
O principal eixo geográfico que pode ser adotado para esse estudo centra-se no
Oceano Índico. Banhando a borda oriental da África, como caminho para o Pacífico e
em função de seus contatos com o Mar Vermelho, o Golfo Pérsico e o litoral da
península hindustani, o Índico era uma importante chave estratégica para o comércio no
Oriente. Portanto, havia muitos contatos entre as várias culturas que se avizinhavam
nesse espaço, assim como existiam rotas comerciais que se estendiam até a Indochina,
Malásia e a própria China.
Segundo o historiador africano Ki-Zerbo, desde o fim do século XII até o do
século XIV, toda a África negra conheceu um grande desenvolvimento simultâneo de
80
Sanjay Subrahmanyam. Op. cit. p. 13-14.
81
Vitorino Magalhães Godinho. Mito e mercadoria... p. 375.
45
várias regiões, do ponto de vista econômico, político e cultural
82
. No litoral da África
Oriental, na parte que se estende do Cabo da Boa Esperança até o chifre africano,
existiam os importantes portos de Sofala, Quíloa, Mombaça e Melinde, entremeados por
aldeias, de pequena expressão. Quase toda essa região está sujeita às monções (com
exceção das regiões mais ao sul, como Inhambane e a ponta meridional de Madagascar),
o que garante chuvas sazonais regulares. No entanto, a África Oriental, observando-se a
noção de macrorregião, é marcada por grandes variações climáticas, alternando períodos
de boa precipitação pluviométrica, e outros de longas secas, com efeitos dramáticos para
a sobrevivência de pessoas e animais. Geralmente essa instabilidade climática é
apontada como um importante fator de fomento das freqüentes guerras entre as
populações que habitam a região
83
.
Outra característica da área é a existência de uma divisão em terras altas do
interior e terras baixas na faixa litorânea. O vale do rio Zambeze marca uma faixa de
planície que se aprofunda no interior da África Central. Associada aos fatores
climáticos, a criação de gado era mais desenvolvida nas terras altas, enquanto que nas
terras baixas havia agricultura de regadio complementada pela caça, exploração de
minérios e atividades comerciais. A maior parte do ouro da África Oriental era
originária das terras altas acidentadas do Zimbábue.
Os grupos étnicos que habitavam as terras baixas ao sul do Zambeze eram
conhecidos como Tonga. Viviam em pequenas aldeias que tinham seus respectivos
chefes. A agricultura era precária e as atividades comerciais, a caça e a prestação de
serviços (carregadores, remadores, etc) complementavam sua subsistência. Os Tonga
mantinham contatos regulares com as cidades muçulmanas de Sofala e Quilomane.
Alguns chefes Tonga controlavam portos fluviais do Zambeze e participavam do
comércio no interior.
As terras altas ao sul do Zambeze eram habitadas pelos Karanga, que se
caracterizavam por estarem organizados em algumas chefaturas submetidas a dinastias
de proprietários de gado que reconheciam laços dinásticos entre si. Esta organização
tem sido identificada como “império do Monomotapa”, cujos limites territoriais
82
Joseph Ki-Zerbo. Storia dell’Africa nera: un continente tra la preistoria e il futuro. Roma: Einaudi,
1977. p. 157.
83
Malyn Newitt. O impacto dos portugueses no comércio, política e estruturas de parentesco da África
oriental no século XVI. In: Oceanos: culturas do Índico. Lisboa, nº 34, abr-jun 1998. p. 64.
46
chegaram a alcançar desde o deserto de Kalahari até Sofala, em fins do século XV
84
. A
principal atividade econômica era a criação de gado e o comércio ocupava posição
secundária, sendo controlado pelos chefes que podiam dar permissão para comerciantes
de outras regiões entrarem no território, mediante pagamento. Entretanto, constituía-se
como uma área estratégica de acesso às minas de ouro do Zimbábue.
Ao norte do rio Zambeze, nas terras altas viviam os Maravi, e nas terras baixas
os Nguni, mas as informações sobre esses grupos são escassas, muitas vezes
assemelhando-se às descrições dos Tonga.
É importante entender que todos esses grupos étnicos aqui descritos com seus
contatos acabavam por criar uma complexa rede de comércio que, associada às cidades
muçulmanas da costa oriental africana, tinham muito dinamismo e serviam de base para
alimentar as trocas com as outras regiões asiáticas. Assim, ouro, marfim, madeira, peles
exóticas, pérolas e escravos eram trocados por tecidos de algodão indiano e artigos de
luxo, como porcelana, trazidos por embarcações que vinham do Mar Vermelho, Índia,
Malásia e China.
As famílias de comerciantes muçulmanos dos principais portos da África
Oriental mantinham laços com as das outras cidades das regiões do Hadramaut, do
Golfo Pérsico e da costa ocidental da Índia, através de uma rede de casamentos. Dessa
forma, muitos aglomerados mercantis originavam-se da fragmentação de grupos
hegemônicos, promovendo a ocupação de ilhas e difundindo o islamismo.
Boxer destaca que as cidades mais ao norte da costa oriental da África, Quíloa,
Mombaça e Melinde, eram suaíles, com alto grau de florescimento cultural, com forte
influência árabe e prosperidade comercial, mas com graus de islamização variados,
oscilando entre superficial e profundo
85
. É importante notar que a expansão do
islamismo no Índico desenvolveu-se entre os séculos XIII e XV
86
. Uma característica
dessa religião é criar uma identidade cultural e econômica, graças ao preceito básico de
que todo muçulmano tinha que saber o árabe para praticar as rezas e a leitura do Corão.
Dessa forma, desde o califado Abássida considerado o último período da unidade
84
Para Malyn Newitt. Idem. p. 69 deve-se entender que essa denominação está relacionada às fontes
portuguesas da época que dessa maneira referiam-se a esses grupos étnicos. Já Joseph Ki-Zerbo. Op. cit.
p. 234 tem uma análise mais detalhada e faz um histórico da formação do Reino de Monomotapa,
indicando como seu fundador Matope.
85
C. R. Boxer. O Império português... p. 60. O termo suaíle é usado para designar tanto o povo quanto à
língua falada em muitas regiões da África oriental. De origem banto, sofreu uma série de influências dos
contatos culturais ocorridos graças às presenças árabe, persa e portuguesa na região.
86
Sugata Bose. Estado, economia e cultura na orla do Índico: teoria e história. In: Oceanos: culturas do
Índico. Lisboa, nº 34, abr-jun 1998. p. 32.
47
política do Islã que, grosso modo, se manteve até o início do século X , o mundo
muçulmano conheceu um processo efetivo de fragmentação política, mas que não
resultou em enfraquecimento cultural e econômico, havendo um florescimento, retro-
alimentado por expansões como a que ocorreu no Índico
87
.
Na Abissínia havia o reino cristão copta, vizinho aos domínios muçulmanos do
Egito e da própria península arábica. No Golfo Pérsico o destaque era Ormuz, de
domínio islâmico. Era uma pequena ilha com “condições de vida duríssimas por não
dispor de água (ou melhor, apenas possui alguns poços de água salobra), nem produtos
agrícolas porque o solo tem elevada concentração de sal”
88
. Entretanto, era um dos
entrepostos mais ricos do mundo daquela época, graças ao grande valor estratégico de
sua localização geográfica. Naquele mercado eram comercializados os produtos vindos
da Índia, da Pérsia, da Indonésia e os cavalos da Arábia
89
.
Mais ao norte existiam dois estados muçulmanos que começavam a se expandir:
o Império Otomano e a Pérsia da dinastia Safávida, que no início do século XVI irão se
chocar e medir forças
90
, com vantagem para o primeiro.
A noroeste da península hindustani localizava-se o principado de Guzerate, com
o domínio de maometanos, mas com forte presença de populações hindus, muitas delas
islamizadas e que se dedicaram às atividades comerciais marítimas no Índico.
No norte da Índia havia se instalado o Império Mogol, que se considerava
descendente dos mongóis que invadiram o Turquestão, liderados ainda por Gengis Can,
no século XIII. Na verdade, os mogóis eram descendentes muito distantes dos seus
alegados ancestrais, mas utilizaram essa ligação para sustentar sua expansão. Eram
islamizados na tradição do sufismo, pois receberam forte influência da cultura persa (o
nome Mogol é a designação persa para Mongol), onde essa tendência havia se
difundido
91
. No reinado de Babur, já no século XVI, os mogores aprofundaram-se mais
ao sul no interior da península. Lá, ao sul do Decão, havia o reino hindu de Vijayanagar
(posteriormente denominado pelos portugueses de Império de Bisnaga), fundado em
87
Cf. Albert Hourani. Uma história dos povos árabes. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia
das letras, 1994. p. 57-61.
88
Antônio Dias Farinha. Os portugueses no Golfo Pérsico (1507-1538): contribuição documental e crítica
para a sua história. p. L
89
Sugata Bose. Op. cit. p. 60.
90
Sanjay Subrahmanyam. Op. cit. p. 15.
91
O sufismo é uma corrente do Islão que defende a manifestação do misticismo, com características de
esoterismo e exaltação de um ideal asceta de vida. Surgiu no século VIII e trouxe algumas desconfianças
entre os muçulmanos ortodoxos que viam com reservas a defesa de experiências pessoais de união com
Deus feita pelos sufistas. Ver Mircea Eliade. A history of religious ideas. Trad. Alf Hiltebeitel e Diane
Apostolos-Cappadona. Chicago: The University Press of Chicago, 1985. v. 3. p. 122-125.
48
1340 e que viveu seu apogeu no século XV, sendo um importante núcleo de resistência
ao domínio muçulmano na região. No entanto, sem acesso ao mar, acabou
fragmentando-se em função do avanço mogol. A nordeste existia o principado de
Bengala, também dominado por muçulmanos
92
.
O sultanato de Bijapur possuía um importante porto no litoral ocidental da Índia:
Goa. Nessa costa encontravam-se pequenos estados independentes hindus, sendo
Calicute o de maior destaque. Muitas comunidades muçulmanas haviam instalado-se na
região e viviam de atividades comerciais, desenvolvendo relações com as comunidades
hindus, mas com forte influência no poder político
93
. Do ponto de vista cultural,
percebe-se que havia uma oposição entre a forte identidade islâmica e a concepção de
castas do hinduísmo, o que possibilitou a construção de uma espécie de fronteira
étnica
94
. Mas isso não impedia uma forma de interação, principalmente através de
casamentos entre os comerciantes muçulmanos e mulheres hindus, geralmente de castas
mais baixas.
Havia rivalidades entre os estados das costas de Concão, Canará e Malabar. Um
bom exemplo são as disputas entre o rajá de Cochim e o samorim de Calicute; também
existiam laços de vassalagem entre alguns deles, caso de Chalé em relação à mesma
Calicute
95
.
Na região também havia algumas comunidades cristãs nestorianas e sírias, assim
como a presença de muitos judeus, oriundos da Europa, ou de outras regiões do Oriente
Médio corredor sírio-palestino, península arábica, por exemplo. Na verdade, existiam
dois grupos de judeus: os paradesis, ou judeus brancos e os malabares, ou judeus
negros. Os primeiros alcançaram a Índia em tempos mais recentes, ao contrário dos
outros que descendiam de judeus que foram para a região em tempos muito mais
remotos
96
.
92
C. R. Boxer. O Império português... p. 61.
93
É importante salientar que a expansão islâmica na Índia obedeceu duas formas: vagas sucessivas de
invasões afegãs, turcas e mongóis; mas por outro lado, ao sul da península hindustani, uma islamização
ocorreu graças aos contatos pacíficos de comerciantes árabes e persas. Cf. Geneviève Bouchon. L’Asie du
Sud à l’époque des Grandes Decouvertes. Londres: Variorum, 1987. p. 29. Para conhecer detalhes sobre a
expansão muçulmana na Índia ver Eduardo Dias. O Islão na Índia. Lisboa: Livraria Clássica, 1942.
94
Jackie Assayag. Por e contra, muçulmanos e hindus. A construção do outro numa cultura compósita: a
Índia. In: Oceanos: culturas do Índico. Lisboa, nº 34, abr-jun 1998. p. 154.
95
C. R. Boxer. O Império português... p. 61 e José Manuel Correia. Os portugueses no Malabar (1498-
1580). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1997. p. 25-28.
96
Um interessante estudo sobre o tema foi feito por José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. Uma
presença portuguesa em torno da «sinagoga nova» de Cochim. In: Oceanos: Diáspora e expansão os
judeus e os descobrimentos portugueses. Lisboa, nº 29, p. 108- 117, jan-mar 1997. A palavra paradesi
deriva do sânscrito e quer dizer “estrangeiro”.
49
Mais ao sul, em torno do cabo Camorim, a “costa da Pescaria”, localizava-se
uma comunidade hindu denominada de Paravás, uma casta marítima que vivia da pesca
e da exploração de pérolas. Concentravam-se em cerca de 30 povoações com chefes
locais que não obedeciam a uma hierarquia de poder muito rígida. Os Paravás tinham
um baixo estatuto econômico e ritual na lógica das comunidades hindus, e sofriam
pressões de muçulmanos que haviam se instalado na costa do Coromandel e tinham
interesse na exploração de pérolas. Esses conflitos desdobraram-se em disputas pelo
transporte de cargas comerciais na direção do Ceilão e de Malaca, já no século XVI
97
.
Na costa de Coromandel havia a coexistência de comunidades muçulmanas e
hindus mas, a noroeste deste litoral, existia uma comunidade cristã síria que depois será
denominada pelos portugueses de São Tomé de Meliapor.
Na ilha de Sri Lanka a presença muçulmana era discreta, sendo que a população
era em sua maioria de singaleses budistas.
No que se refere ao lado oriental do oceano Índico, as informações são
escassas
98
. Pode-se afirmar que existiam estados com predominância de práticas hindus,
como o caso do Camboja; já o budismo espalhava-se na Birmânia e no Sião.
A península da Malásia possuía vários reinos, mas o de maior destaque era o
sultanato de Malaca, uma vez que se constituíra como um porto de substancial
importância para o comércio no Oriente, assim como Ormuz, na extremidade oposta do
Índico, por receber muitas mercadorias de vários pontos, inclusive da China e Japão. O
islamismo estava espalhando-se pelo arquipélago indonésio e espraiava-se também até
Bornéu, com o sultanato de Brunei.
Além das sociedades existentes ao redor do Índico, cabe ainda apresentar
algumas linhas gerais sobre as civilizações mais orientais, já no oceano Pacífico, como a
China e o Japão. A China da dinastia Ming havia promovido no século XV uma
tentativa de expansão marítima, cujo maior exemplo é a chegada do almirante Cheng
Ho no litoral da África Oriental. Mas em fins desse século já não havia nenhum esforço
por parte das autoridades chinesas em incentivar tais iniciativas. De forma isolada,
alguns mercadores do país mantinham contatos pouco regulares com a Indonésia,
especialmente Malaca.
97
Kenneth McPherson. Uma história de duas conversões: Deus, a cobiça e o desenvolvimento de novas
comunidades na região do Índico. In: Oceanos: culturas do Índico. Lisboa, nº 34, abr-jun 1998. p. 75-77.
98
C. R. Boxer. Império português... p. 61-62.
50
No Japão, o século XV foi marcado pelas disputas de autoridade entre os
imperadores, o shogun, e os daymios, espécie de nobreza feudal, que só seriam
resolvidas no início do século XVII com a consolidação da autoridade dos Tokugawas.
Até lá o Estado não estabeleceria grandes intervenções de caráter comercial, embora os
comerciantes japoneses circulassem nas rotas em direção ao Índico.
A essa altura talvez seja interessante sistematizar as principais rotas comerciais
que existiam no Oriente, por volta de 1500. A rota mais longa era a de Adém, no Iêmen,
na saída do Mar Vermelho, até Malaca, passando por Guzerate ou Malabar. Tecidos de
lã, sedas ouro e prata saíam do Mar Vermelho; tecidos e índigo do Guzerate; pimenta e
canela do Malabar eram trocados em Malaca por noz-moscada e cravo da Indonésia e
sedas e porcelanas da China. Outra rota importante era a que ligava a África Oriental à
costa ocidental da Índia, havendo as trocas de marfim, ébano e escravos por contas e
produtos alimentares. Havia também a rota que passava por Ormuz com a
comercialização de cavalos, pérolas, tapetes persas, corantes, que eram trocados pelas
especiarias e tecidos da Índia e da Indonésia, além de produtos de luxo da China
99
.
Tudo que até aqui foi exposto serve para compreender algumas reflexões do
historiador indiano Subrahmanyam. Para ele o olhar clássico sobre o Oriente sempre
enfatizou o caráter estático daquelas sociedades. Melhor exemplo disso seriam as teorias
que definem o “modo de produção asiático” ou o “despotismo oriental”, que sempre
acentuaram uma tendência de imutabilidade das sociedades asiáticas. Para o autor esta
visão deve ser combatida através de estudos cada vez mais apurados sobre cada uma das
regiões aqui apresentadas
100
.
Subrahmanyam recomenda ainda muito cuidado com a tradicional tipologia dos
estados da Ásia, que define duas modalidades de organização: as sólidas formações
imperiais de base agrária (exemplos: Otomanos, Safávidas, Vijayanagar, os Mogores, os
Ming da China, os Mataram em Java); e os pequenos estados, geralmente costeiros, com
base econômica no comércio (exemplos: Quíloa, Ormuz, Calicute, Malaca). O
historiador indiano considera o uso destes modelos válido, mas alerta para a dificuldade
de se encaixar todas as realidades do Oriente nessas duas “caixas”, uma vez que havia
muitas variações tanto em termos cronológicos, como em processos de formação
econômico-social
101
.
99
M. N. Pearson. Op. cit. p. 40
100
Sanjay Subrahmanyam. Op. cit. p. 16.
101
Idem. p. 16-27.
51
Outra importante constatação do historiador indiano refere-se ao entendimento
de que o comércio oriental seria de domínio árabe. Para ele essa afirmação tem um
caráter simplista e não leva em conta a participação de mercadores asiáticos de diversas
origens que participavam desse tráfico. Entretanto, reconhece que os séculos XIV e XV
foi de expansão do Islã no Índico, com o aumento significativo da presença de
comunidades muçulmanas nas regiões costeiras. Portanto, deve-se perceber também que
o período é caracterizado por uma redefinição do mapa religioso no Oriente, incluindo a
expansão do islamismo e do budismo
102
, além da própria presença judaica no litoral da
Índia, principalmente do lado ocidental, sem mencionar as comunidades cristãs
nestorianas e sírias, o que acrescenta mais elementos de diferenciação à uma realidade
já muito diversificada.
É esse universo complexo, muitas vezes acompanhado por tensões de ordem
cultural e religiosa, vigoroso por suas riquezas e potencialidades comerciais, que os
portugueses encontraram no final do século XV. Carregavam em suas naus um
entendimento muito próprio do que seria o Oriente, e tiveram dificuldades de ajustar o
olhar para aquela nova realidade
103
.
102
Idem. p. 41.
103
Para Luís Filipe Barreto. Lavrar o mar: os portugueses e a Ásia (c. 1480-c. 1630). Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. p. 63-76, é possível definir três
momentos dos contatos dos portugueses com a Ásia, do ponto de vista cultural. O primeiro período de
1498 a 1510 teria sido marcado por movimentos de encontros e desencontros, derivados da pouca
informação que se tinha do Oriente. O segundo momento foi de 1511 a 1545, que com o aumento da
presença portuguesa na Índia desenvolveram “conhecimentos pontuais” sobre a sociedade local. E
finalmente, a partir de 1546 em diante o conhecimento dos europeus sobre a Ásia aprofundou-se.
52
4. As tradições culturais da população goesa
Após o quadro mais genérico sobre o Oriente traçado anteriormente, há a
necessidade de fazer-se uma análise das tradições culturais da população goesa que
iriam sofrer, posteriormente, a ação direta da presença portuguesa. O domínio português
denominado de "velhas conquistas" para distinguir das outras conquistas realizadas na
região principalmente no século XVIII situado na costa ocidental da Índia, na região
de Concão, compreendia três províncias: a de Tisvadi, aglomeração de ilhas formadas
pelas voltas dos rios Mandovi e Zuari, que desciam da cordilheira dos Gates Ocidentais;
a de Bardez, na margem norte do Mandovi e a de Salcete, na margem sul do Zuari. A
cidade de Goa foi construída na ilha de Tisvadi, que era uma faixa de terra de cerca de
setenta quilômetros quadrados entre o rio Mondavi, ao norte, e o rio Zuari, ao sul
104
.
Segundo Teotônio R. de Souza há sinais da presença de uma cultura neolítica de cerca
de 2000 a. C. e “Goa assumiu várias designações no decurso da sua história, mas nunca
lhe faltou o prefixo Go, significando «vaca» em Sânscrito. Desta forma, chamou-se
Gomanchal, Goparashtra, Govarashtra, Gopakapura, Gopakapattana, Govapuri,
Gomantaka, Gove e, finalmente, Goa”
105
.
A região é caracterizada pelo clima de monções, com uma longa estação de
chuvas, seguida de um longo período de calor. O principal produto cultivado, no
interior, era o arroz, mas o solo arenoso do litoral servia melhor às palmeiras, tendo
poucos arrozais. Os principais produtos para exportação da região costeira eram a
amêndoa de coco, o peixe seco e o sal. Havia abundância de pastagens para animais que
forneciam leite. Com a posterior cristianização, houve alteração da dieta dos habitantes
locais, que nela passaram a incluir a carne bovina
106
.
A maior parte da população de Goa no momento da conquista portuguesa
praticava o hinduísmo palavra criada pelos ingleses no século XIX e que se usa hoje
para designar “um conjunto de concepções e práticas religiosas que têm a Índia como
berço”
107
. Só se pode ser hindu por nascimento, ou seja, nessa religião não há
104
Teotônio R. de Souza. Goa Medieval: a cidade e o interior no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa,
1994. p. 51.
105
Teotônio R. de Souza. Goa: roteiro histórico-cultural. Lisboa: Grupo de trabalho do Ministério da
Educação para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996. p. 19-21.
106
Teotônio R. de Souza. Goa Medieval... p.52-53.
107
Jean Delumeau e Sabine Melchior-Bonnet. De religiões e de homens. Trad. Nadyr de Salles Penteado.
São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 305.
53
preocupação com a conversão. O uso da designação de palavra de origem estrangeira da
religião hindu explica-se pelo fato de não existir uma definição própria nas línguas
existentes na península hindustani, isso porque “as pessoas definem-se geralmente de
acordo com a casta e a comunidade local e, entre elas, não há uma única escritura,
divindade ou mestre religioso comum a tudo o que possa ser designado como cerne do
hinduísmo”
108
. É importante enfatizar que existe uma enorme variação regional de
tradições, costumes e práticas religiosas no hinduísmo, portanto muitas das
características da sociedade goesa não podem ser generalizadas para toda a Índia.
Havia ainda em Goa a presença de muçulmanos, uma vez que, no início do
século XVI a cidade pertencia ao sultanato de Bijapur, além da existência de
comunidades judaicas. Pode-se dizer, portanto, que havia o convívio de religiões e
culturas diferentes, um caráter heterogêneo, que a princípio poderia, em tese, facilitar a
convivência com outros estrangeiros. Mas é preciso lembrar que apesar dessas
diferenças conviverem entre si, havia áreas de atrito em Goa, pelo menos do ponto de
vista político, o que, aliás, foi utilizado como instrumento para a consolidação da
presença portuguesa, quando Afonso de Albuquerque se apresentou como o libertador
de Goa. Mas a política inicial de tolerância possibilitou a manutenção da convivência,
até mesmo de mouros, apesar destes serem mais hostilizados.
Outra importante questão para definir-se o ambiente religioso na região
relaciona-se com a migração de muitos cristãos-novos para Goa oriundos de Portugal,
que em contato com as comunidades judaicas que há muito existiam na região, por
vezes, reaproximavam-se das práticas religiosas judaicas.
O relacionamento dessas culturas variadas e de suas respectivas crenças
religiosas, no entanto, não significava que existisse um processo de integração entre
elas. Principalmente da parte do hinduísmo, pois sua doutrina estabelece que o
pertencimento à religião é determinado pelo fato de se nascer em uma das castas, ou ser
pária ou ainda intocável, ou seja, converter-se a outra religião é deixar de ser hindu e,
portanto, deixar de pertencer à sua casta. Por ser o grupo majoritário em Goa e nas ilhas
adjacentes e ser o objeto de intenso interesse por parte dos membros da Companhia de
Jesus, aqui se dará maior atenção ao estudo dos hindus e suas práticas religiosas e
culturais.
As origens do hinduísmo remontam ao período próximo a 1500 a. C., quando da
invasão ariana, oriunda do norte, e que teriam trazido a religião védica. Veda é uma
108
Cybelle Shattuck. Hinduísmo. Trad. Carmo Vasconcelos Romão. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 13-14.
54
palavra do sânscrito arcaico que significa saber” ou “revelação”, designando o
conjunto de textos sagrados mais antigos que, junto com o Smiriti “tradição confiada à
memória”, textos constituídos no início da era cristã , fundamentam a religião hindu
109
.
Portanto, não há fundador humano, e os hindus acreditam que os textos foram registros
de revelação sagrada
110
.
No entanto, há quem identifique elementos ainda mais remotos na formação
dessa religião. Trevor Ling afirma que antes da invasão ariana existia uma civilização
urbana, denominada de dravídica, no vale do rio Indo e no Punjab, ou seja, de sudoeste
para noroeste da península. Pesquisas arqueológicas determinaram alguns aspectos
religiosos dessa antiga civilização e o autor informa que pelo menos cinco deles
mantêm relação às práticas hindus posteriores. São eles: o culto a deusa-mãe; o deus
iogue; o emblema fálico, a árvore sagrada; a ênfase no culto doméstico
111
. Há indícios
também de que a noção de karma lei que preside os renascimentos sucessivos em
função dos atos realizados em vidas anteriores foi assimilada da tradição dravídica
pelos arianos, na medida em que aprofundaram sua expansão na península.
Para Delumeau, “o hinduísmo é ao mesmo tempo uma doutrina e uma
mitologia”
112
. O hinduísmo clássico é relacionado ao Smiriti, pois este é composto, entre
outros livros, dos Códigos de Manu, que contêm os direitos e deveres dos varnas (castas
fundamentais) e a explicação dos ciclos cósmicos yuga, aspecto peculiar dessa
religião. Eliade explica que a doutrina dos ciclos cósmicos
[...] é o verdadeiro "eterno retorno", a eterna repetição do ritmo
fundamental do Cosmos: sua destruição e recriação periódicas. [...].
Evidentemente, a doutrina dos yuga foi elaborada pelas elites
intelectuais, e, se ela se tornou uma doutrina pan-indiana, não
pensemos que revelava seu aspecto terrífico a todas as populações da
Índia. Eram sobretudo as elites religiosas e filosóficas que sentiam
desespero perante o Tempo cíclico, que se repetia até o infinito, o
eterno retorno à existência graças ao karma, a lei da causalidade
universal. Por outro lado, o Tempo era equiparado à ilusão cósmica
(mâyâ), e o eterno retorno à existência significava o prolongamento
indefinido do sofrimento e da escravidão. A única esperança para as
elites religiosas e filosóficas era o não-retorno à existência, a abolição
109
Jean Delumeau e Sabine Melchior-Bonnet. Op. cit. p. 305.
110
Jean Delumeau. As grandes religiões do mundo. Lisboa: Presença, 1997. p. 339-342.
111
Trevor Ling. História das religiões. Lisboa: Presença, 1993. p. 40-41.
112
Jean Delumeau e Sabine Melchior-Bonnet. Op. cit. p. 307.
55
do karma; em outras palavras, a libertação definitiva (moksha), que
implicava a transcendência do Cosmos
113
.
Segundo o autor essa perspectiva leva a uma visão pessimista da existência e
acaba justificando as condições sociais de cada casta.
O panteão védico tem como destaque os deuses Varuna e Mitra, enquanto que
no hinduísmo clássico a importância maior é dada ao trimûrti tríade divina Brahma,
Vishnu e Shiva. Posteriormente, por volta do século VI-V a. C., surgiu o budismo como
variação do hinduísmo, mas a partir do século XI, ele desapareceu da Índia, tendo, no
entanto, obtido pleno sucesso na sua difusão pelo sudeste da Ásia, Ceilão, Tibete,
China, Japão e Coréia.
O sistema de castas (jatis) é fundamental para entender a organização social
hindu, e, por outro lado, é um dos aspectos que distinguem o hinduísmo de outras
religiões. Em uma original tese de doutoramento, Eduardo Judas Barros define o
“sistema de castas como um fenômeno cultural, especificamente hindu, enraizado no
sistema de valores e na filosofia hindu, sendo incompreensível fora deste marco de
referência”
114
. O autor informa que a palavra “casta”, é oriunda do “vocábulo latino
castus e significa pureza de nascimento”
115
, sendo a designação usada pelos portugueses
para definir as jatis, uma vez que perceberam a forte estratificação, a hierarquia e a
obrigatoriedade de distanciamento entre os grupos.
Os varnas fundamentais na tradição védica eram quatro: os brâmanes (espécie
de sacerdotes e letrados); os kxátrias (guerreiros), os váixias (comerciantes) e os sudras
(trabalhadores braçais). Os homens das três primeiras castas são dvijas, “duas vezes
nascido”, pois considera-se que receberam o upanayana (iniciação)
116
. Os párias ou
intocáveis não pertencem a nenhum varna e não podem ter contato com nenhum deles.
A partir dos últimos tempos védicos, ocorreu um processo de desintegração social que
promoveu a multiplicação das castas (jatis), o que gerou uma série de subcastas e castas
113
Mircea Eliade. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. p. 95-96.
114
Eduardo Judas Barros. Classes castóides em Goa colonial: um estudo microssociológico da dinâmica
das relações de castas numa aldeia cristã de Goa, na Índia. São Paulo, 1981. Tese (Doutoramento em
Ciências Sociais). Universidade de São Paulo. mimeo. p. 4. Já Valerio Valeri. Casta. In: Ruggiero
Romano (dir). Enciclopédia Einaudi: Parentesco. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989. v. 20.
p. 199, define casta como grupos de estatutos cujas funções rituais e econômicas têm uma relação
sistemática e conscientemente justificada por uma ideologia que subordina as partes do todo, além das
características mais comumente mencionadas de desigualdade e ausência de mobilidade vertical.
115
Idem. p. 30.
116
Mircea Eliade e I. P. Couliano. Dicionário das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 177.
56
mistas, criando uma enorme complexidade da divisão social
117
. Deve-se entender que a
existência dessas castas fragmentadas é um fenômeno local e muitas delas existem
apenas em uma só região, ou seja, muitas castas que existiam em Goa não possuíam
semelhantes em outras regiões, por exemplo, “nenhuma casta de Goa se encontra em
Damão, e raras são as de Damão que se encontram também em Diu”
118
.
Cada casta tem o seu grau de pureza, os membros das superiores são mais puros
que os das inferiores, e arriscam-se a perder a sua pureza em caso de mistura. Existe
uma série de interditos de ordem sexual, alimentar e ritual por conta disto. Assim, o
casamento só pode ocorrer dentro da mesma casta (endogamia), geralmente a profissão
está associada à ela e existem regras de comensalidade determinadas por essa divisão
social. “Cada casta tem uma posição definida na hierarquia, podendo esta posição ser
alterada num grupo inteiro, mas não em indivíduos isolados, a menos que algum deles
seja expulso e perca assim seu estatuto”. Há ainda os estados de impureza transitórios
pelo qual todos os seres humanos passam, como exemplos podem ser citados o parto, a
menstruação e a morte. Entidades naturais podem restituir a pureza nesses casos: a água
e a urina e os excrementos da vaca
119
.
Os brâmanes, os kxátrias e os váixias consideravam-se os únicos três varnas de
sangue ariano. Mas o grupo de maior destaque na sociedade hindu é o dos brâmanes. O
Código de Manu afirma que:
a ele [o brâmane] o ser que existe por si próprio criou da sua própria
boca; só ele, depois de ter observado os preceitos sagrados, pode
apresentar manteiga purificada aos deuses e arroz aos progenitores da
humanidade, para a conservação do Mundo
120
.
Os brâmanes não se alimentam de carne de vaca, cebola, alho, vinagre e não
podem beber vinho. Sua vida está dividida em quatro estágios: brahmachari (iniciação
não basta ser brâmane por nascimento, deve ser iniciado no conhecimento dos livros
117
Eduardo Judas Barros.Op. cit. p. 38-39. O autor informa que esse processo é contínuo e até hoje
ocorre, sendo que se contabilizou para cada região da Índia cerca de 200 castas, que se subdividem em
3.000 unidades menores. Para atender a perspectiva pan-indiana costuma-se aceitar os varnas como
modelo genérico para o hinduísmo.
118
Luís Felipe Thomaz. O cristianismo e as tradições pagãs na Índia portuguesa. In: Actas do Congresso
Internacional de Etnografia. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. v. 4. p. 4-5.
119
Valerio Valeri.Op. cit. p. 204-209.
120
Apud Mariano Feio. As castas hindus de Goa. Lisboa: Junta de Investigação Científica do Ultramar/
Centro de Estudos de Antropologia Cultural, 1979. p. 24.
57
sagrados); grihastha (vida de casado); vanaprastha (renúncia à sociedade e isolamento
na floresta); saniassa (completa renúncia).
A noção de hierarquia no hinduísmo é muito importante, pois define uma
distinção radical entre religião e política, sendo que a segunda está submetida à
primeira, mas as duas fazem parte da totalidade social. Valeri afirma que “a hierarquia
social corresponde portanto à hierarquia dos valores tal como é estabelecida por uma
ideologia religiosa que justifica uma totalidade social articulada em funções
complementares”
121
. Assim sendo, toda a lógica do hinduísmo reforça a totalidade social
em detrimento do interesse individual.
Segundo Cybelle Shattuck “o hinduísmo é uma religião centrada mais no
comportamento do que na crença. Há uma grande diversidade de crenças, há diferentes
divindades, filosofias e caminhos, mas todos eles requerem o cumprimento de regras
especiais de comportamento”. Essas regras são definidas pelo termo dharma, que pode
ser traduzido por “lei, dever, justiça, virtude” e, na falta de uma palavra nas línguas
indianas equivalente para “religião”, é o que mais próximo chega da designação
ocidental
122
.
No hinduísmo muitas práticas religiosas eram domésticas, mas o pagode
(devullas), ou templo hindu, também tinha muitas funções. De forma retangular, os
pagodes tinham diante da porta principal um grande vestíbulo coberto (montâp ou
sonddavô), depois vinha o sarvoli, três naves que circundam o chouco, que por sua vez
se comunica com o santuário (garbahacudd). Nesse último, só os brâmanes podiam
entrar e no chouco os outros hindus, com exceção dos párias; os que não eram hindus
não passavam do sarvoli. Em frente aos pagodes erguiam-se torres de alguns andares
(stambha ou khambo), e junto deles existiam tanques quadrados com escadarias,
denominados tirtha, onde os hindus faziam suas abluções, e os bottos (sacerdotes) as
suas rezas. Nos pagodes eram feitos os cultos a uma divindade principal, dentre os mais
comuns Brahma, Vishnu, Shiva, Ganesha. Suas imagens, que também eram designadas
pela palavra pagode, eram o objeto de veneração e podiam ser feitas de pedra, madeira,
121
Valerio Valeri. Op. cit. p. 205.
122
Cybelle Shattuck. Op. cit. p. 14. Segundo a autora há quatro famílias lingüísticas distintas na Índia:
indo-européia; dravídica, tibeto-birmanesa e austro-asiática. Delas decorrem as variações. O tâmil, o
malaiala, o telugu e o kannada são línguas dravídicas faladas no sul da Índia.
58
cobre, prata ou ouro. Outra importante característica dos pagodes era o cuidado artístico
e arquitetônico na sua construção
123
.
No caso específico de Goa, a população hindu goesa (que era a predominante no
momento da chegada dos portugueses) pode ser definida geograficamente como
“Concão-Marata”, etnicamente, como indo-ariana e lingüisticamente, como indo-
européia. Os portugueses se referiam a ela usando o termo “canarim”, de forma
equivocada, pois a palavra designaria os habitantes do Canará, uma região do Decão,
com grupos étnicos de características distintas dos de Goa. O termo “canarim” às vezes
era utilizado para designar aqueles que haviam se convertido ao cristianismo, outras
para aqueles que continuavam hindus
124
. Esse é um pequeno exemplo da dificuldade de
análise que obriga o pesquisador a uma cautelosa leitura das fontes, pois a realidade
multiforme da Índia, de difícil compreensão, por vezes era reduzida a fórmulas simples
e equivocadas pelos observadores europeus dos séculos XVI e XVII.
A composição da sociedade de Goa é marcada pela diversidade. Há a presença
muito antiga de comunidades compostas por sudras, enquanto os brâmanes
estabeleceram-se tempos depois na região, o que corresponde ao padrão de ocupação da
invasão ariana da península hindustani e a decorrente subordinação dos grupos que lá
viviam anteriormente
125
.
As subdivisões da casta brâmane em Goa eram denominadas de chitpavanas,
padhês, caradés, zoixis e sarasvats. A última é a mais numerosa em Goa e divide-se em
vishnuítas pois afirmam a supremacia de Vishnu e em shivaítas dão preferência a
Shiva. Os vishnuítas ainda subdividiam-se em sasticares naturais de Salcete e
bardescares nascidos em Bardez. Por sua vez, os shivaítas dividiam-se em smartas e
pednemcares
126
. A casta kxátria tinha a correspondência em Goa nos maratas que se
dividiam em duas subcastas: maratas (descendentes dos oficiais nobres) e cunebi-
maratas (descendentes dos soldados). Ao terceiro grupo de castas, os váixias,
correspondiam os vanis. Brâmanes, maratas e vanis usam a linha sagrada que os
distingue como superiores
127
.
123
A. B. de Bragança Pereira. Etnografia da Índia portuguesa: as civilizações da Índia. Bastorá:
Tipografia Rangel, 1940. v. 1. p. 226-228.
124
A advertência é de C. R. Boxer. As relações raciais no Império colonial português: 1415-1825. Porto:
Afrontamento, 1988. p. 85.
125
Antônio Emílio d’Almeida Azevedo. As comunidades de Goa: história das instituições antigas. Lisboa:
Viúva Bertrand e Cª.; Sucessores Carvalho & Cª., 1890. p. 25.
126
Eduardo Judas Barros. Op. cit. p. 96.
127
Mariano Feio. Op. cit. p. 21.
59
Os sudras possuíam muitas subdivisões: cumbares (oleiros); piducares
(vendedores de miçangas); mitt-gauddés (salineiros); gauddés e kunnbis chamados de
curumbins pelos portugueses (trabalhadores braçais na agricultura); bandaris
(destiladores de vinho de palma); telis (extraem óleo de coco); mainatos (lavadeiros);
calavantas (bailadeiros do templo); bavinas (serventes dos templos); malés (barbeiros)
e mais uma série de outras. Os intocáveis de Goa, naturais da cidade, eram os mahares
(farazes) e os chamar (alparqueiros). Havia ainda os mangas (varredores de ruas), que
vinham do Canará e os bonguis (fazem a limpeza das privadas, cuspideiras, carregam as
fezes humanas), cuja origem é o norte da Índia
128
.
Além desses grupos propriamente hindus, devem ser mencionados os indianos
das castas cristãs que surgiram do processo de cristianização desenvolvido com o
domínio português na região. As castas cristãs estão divididas em três grupos: os
brâmanes; os chardós (ou charodós, como aparece grafado em algumas fontes); e os
sudras
129
. Portanto não há entre os cristãos os váixias, uma vez que, segundo Eduardo
Judas Barros, o comércio ficara “concentrado nas mãos
dos hindus, que não tinham
acesso aos cargos públicos no início da colonização portuguesa”
130
. Também não
existem os intocáveis entre os cristãos de Goa.
As unidades fundamentais da organização social, cultural e econômica de Goa
eram as comunidades aldeãs, os gancares, de longa tradição local, como explica Barros:
sabe-se que os primeiros povoadores de Goa se dividiram em famílias
constituindo vangores e que estes vangores foram classificados
conforme a importância dos elementos da produção por eles prestados
a favor da comunidade, em 1
o
, 2
o
e 3
o
vangor e assim por diante.
Depois dividiram o território em málos ou províncias gãos ou aldeias,
e um certo número de vangores formaram uma gaumponna ou
comunidade. As aldeias ou novas sociedades agrícolas tinham o seu
regime especial interno, e achavam-se ao mesmo tempo confederados,
sendo cada uma delas representada por um vangor nas deliberações de
comum interesse, que era discutido num corpo central chamado
gaumpónn ou câmara agrária, que demorava na capital da província, e
128
Eduardo Judas Barros. Op. cit. p. 97-98.
129
Panduranga Pissurlencar. Goa pré-portuguesa através dos escritores lusitanos dos séculos XVI e XVII.
Bastorá: Tipografia Rangel, 1962. p. 38-39. Grosso modo se associa os chardós ao varna kxátria, mas este
autor discorda dessa associação. Já os outros grupos mantiveram sua designação original: brâmanes e
sudras. Em interessante estudo de ordem geográfica e antropológica sobre Goa do século XX Raquel
Soeiro de Brito. Goa e as praças do Norte. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1966. p. 36,
informa que, posteriormente, outra casta formou-se em Goa: a dos descendentes, isto é, goeses de origem
portuguesa. O dialeto cristão concanim os designa por “mestiços”.
130
Eduardo Judas Barros. Op. cit. p. 98.
60
onde se reuniam, e ainda hoje reúnem os principais gãocares,
representantes de cada aldeia. Cada vangor tinha um voto nas
deliberações da câmara agrária ou geral. As gãocarias ou
comunidades das aldeias dividiram-se em vaddós ou bairros, e os
terrenos de cada vaddo, em solo de 1
a
e 2
a
qualidade
131
.
As terras de primeira qualidade eram utilizadas para os arrozais e estavam
divididas em três partes: uma reservada para o culto religioso e o sustento da
administração; outra para uso da própria comunidade e por último, a designada por nelli
ou namoxins, que servia para sustentar os servidores da comunidade. As terras de
segunda qualidade eram para a cultura de coqueiros, mangueiras, cajueiros e outras
árvores frutíferas. Também foram divididas em três: uma parte para a construção e
conservação dos pagodes; outra para construção e conservação de estradas públicas e a
terça parte era dividida em aforamentos
132
. É sobre essa estrutura existente que os
portugueses adaptaram sua dominação, como prova a elaboração do Foral de Usos e
Costumes de 1526.
Toda a organização da comunidade aldeã estava vinculada ao sistema de castas
do hinduísmo, obedecendo à lógica da hierarquia a ele associada, com a correspondente
posse do poder político e econômico por parte das castas altas, a saber, os brâmanes e
chardós, que eram os gancares, os que tinham direito à posse comum das terras das
comunidades. Já os sudras tinham o direito de usufruto das terras em troca da prestação
de serviços associados à condição de cada uma de suas subcastas
133
.
Essas aldeias possuíam certa independência administrativa e, além de um
Conselho da Aldeia (formado por cinco membros oriundos das castas altas), tinham
seus oficiais e artífices que eram responsáveis por funções públicas. Grosso modo,
havia um cabeça da aldeia (autoridade administrativa, judicial e comercial); um escrivão
(sempre um brâmane, responsável pela escrituração e contabilidade); um médico, entre
outros cargos, que eram remunerados. “Um oficial de aldeia não podia ser privado do
seu cargo, salvo por crime de traição, e ainda neste caso não se tirava o cargo à família,
mas passava ao descendente mais próximo que não houvesse incorrido no crime”
134
. O
131
Idem. p. 58-59. Gancaria ou Gãocaria é a comunidade da aldeia, organização rural muito antiga na
Índia. Era baseado no sistema social e econômico das castas e governava-se por lei costumária, até a
consolidação feita pelo Foral. Sob o domínio português, a comunidade responsabilizava-se pelo
pagamento do foro ao Estado, pela manutenção do culto e pelas obras públicas e de caridade na aldeia.
Somente os filhos homens tinham direito à gancaria.
132
Idem. p. 59.
133
Idem. p. 62.
134
Idem. p. 62.
61
estatuto social mais simples nas aldeias era os vangores (famílias ou parentelas), que,
por sua vez, também estavam fundamentados nas castas.
No plano das crenças religiosas, todas as aldeias tinham o seu deus próprio e
exclusivo designado genericamente de gram-deu. A ele eram atribuídas várias funções:
cuidar da segurança dos habitantes da aldeia; protegê-los contra os espíritos ruins;
ajudá-los nas ocasiões de crise; consagrar a semeadura e a colheita. Mas o gram-deu
podia recusar-se a aceitar as solicitações, ou porque tinha outras coisas a fazer ou por
considerar o pedido fora da sua jurisdição (que não era apenas territorial,
necessariamente, podendo fazer a proteção de uma pessoa fora da aldeia)
135
.
Havia dois tipos de espíritos ruins: bhut que era um espírito alevantado de uma
mulher morta quando grávida, parida ou impura; e mharú, o mesmo tipo de espírito de
um homem morto. Para os dois casos, a condição de espírito ruim advinha do fato de
não terem recebido sacrifícios, por terem praticado o suicídio ou por serem vítimas de
acidentes
136
.
Em Goa ocorria uma cerimônia muito importante para reforçar os vínculos entre
a aldeia e o gram-deu, chamada de shimá-ullanghána (shimá significa limite;
ullanghána, ato de atravessar). Por nove noites festejava-se o gram-deu e no décimo dia
ele era levado em procissão até o limite da aldeia para que ele visse as terras da
comunidade e pudesse assim reafirmar sua jurisdição e enfrentar os bhuts e mharús que
estivessem a ameaçá-la. Essa festa realizava-se entre os meses de setembro e outubro.
Uma das mais importantes festividades agrícolas era o Addan, onde havia a benção da
primeira espiga
137
.
Santeri (também conhecida como Roina e por Shanta Durga) era uma das
divindades mais cultuadas em Goa e nas ilhas adjacentes no século XVI. O nome da
deusa designava também o montículo de formigas que, depois de abandonado por elas,
podia vir a ser habitado por uma cobra muito peçonhenta que ameaçava constantemente
os trabalhadores das lavouras, pois estes costumavam utilizar esse material na
preparação dos campos cultivados. É um culto geralmente atribuído a rituais de
135
As terras nas aldeias estavam divididas em três grupos. Havia as terras de propriedade comum das
aldeias, parte desses campos tinham suas rendas reservada aos cultos divinos (Kushivrat). Existiam
também terras que pertenciam individualmente a membros da comunidade. Por último havia os namoxins,
terras que poderiam ser doadas pelo rei a quem se distinguisse em alguma atividade. Maria Selma de
Vieira Velho. Goa a synthesis of Indo-portuguese cultural relations. Lisboa: Instituto de investigação
Científica Tropical, 1985. p. 471.
136
Panduranga Pissurlencar. Op. cit. p. 27-29. Além das divindades cultuadas na aldeia, havia as de culto
doméstico.
137
Idem. p. 28. Os festejos religiosos hindus obedeciam a um calendário lunar.
62
fertilidade agrícola
138
. Em frente a todas as casas das aldeias de Goa e adjacências havia
um tulâss, planta considerada sagrada que se acreditava tivesse a função de proteger o
lar
139
. O principal alimento consumido pela população local era o arroz e o caril. O uso
de comer com a mão sobre olas ou folhas de bananeira era considerado sagrado entre os
hindus
140
.
Havia ainda uma série de celebrações rituais para marcar vários acontecimentos
sociais ao longo da vida. Nessas festividades eram desenvolvidas muitos procedimentos
que tinham o objetivo de proteger as pessoas e a comunidade. No nascimento de uma
criança eram feitas preces e doações ao templo, além de se bostejar a casa com o
objetivo de garantir a proteção da criança contra os espíritos maus. No sexto dia do
nascimento fazia-se uma festa noturna. As festividades de casamento podiam durar
muitos dias, de dez a quinze, geralmente. Havia abluções rituais; unturas; oferendas de
bétele areca e de grinaldas de abolim (flor vermelha muito estimada em Goa);
procissões; trocas de presentes; reunião de parentes dos noivos nas vésperas da boda; a
cerimônia de pitans (moer arroz durante a noite, com grande festa). Muitas preces eram
feitas por todos os convivas com votos de muitas felicidades, além de festejos com
música e loas dos noivos cantadas em concanim
141
. Já o luto durava dez dias. Antes da
presença portuguesa, as viúvas tinham que praticar a cerimônia do sati, ou seja, com a
presença de todos os familiares, jogar-se espontaneamente na pira que consumia o corpo
do marido. Mas com a proibição feita por Afonso de Albuquerque houve a substituição
dessa prática pelo hábito de colocar-se sobre o corpo do marido, antes de ser tirado de
casa em cortejo fúnebre, uma porção do cabelo da viúva. Complementando as práticas
fúnebres havia banquetes, praticavam-se bostejamentos rituais e lâmpadas eram
deixadas acesas no quarto do morto, dia e noite. Fazia-se o panegírico poético do
defunto e era comum demonstrações de dor de todos os presentes. Havia uma grande
138
Idem. p. 38-39. Outros deuses muito populares na região eram Vetal, Maya, Ravalnath. O culto a
Santeri parece ser anterior à invasão ariana. Ver Teotônio R. de Souza. Goa: roteiro histórico-cultural...
p. 21. Outro interessante trabalho é de Rosa Maria Perez. Hinduísmo e cristianismo em Goa (II). Deuses
clandestinos e devotos e fiéis. In: Oceanos: culturas do Índico. Lisboa, nº 34, p. 174-180, abr-jun 1998.
139
Trata-se de um arbusto muito parecido com o manjericão e por isso muitas vezes confundido nas
fontes portuguesas. Ver Sebastião Rodolfo Dalgado. Glossário luso-asiático. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1919. v. 2, p. 382.
140
Luís Filipe Thomaz. O cristianismo e as tradições pagãs na Índia portuguesa... p. 7-10.
141
Antônio Emílio d’Almeida Azevedo. Op. cit. p. 63 e Luís Filipe Thomaz. Luís Felipe Thomaz. O
cristianismo e as tradições pagãs na Índia portuguesa... p. 6-7. Bétele é uma planta aromática originária da
Índia, cujas folhas são utilizadas para mascar, e cuja noz, por produzir cor vermelha, é empregada em
tinturaria; é também a mistura em que entram as folhas dessa planta, tabaco e o fruto de areca (tipo de
palmeira), e que é usada para mastigar. Ver Sebastião Rodolfo Dalgado. Op. cit. v. 1, p. 121, informa
ainda que seu oferecimento e aceitação era sinal de amizade, acordo ou pacto.
63
preocupação em ter-se um filho varão, pois ele seria responsável por purificar as cinzas
do pai
142
.
No período inicial da conquista de Goa os portugueses fizeram poucas alterações
e interferências na vida das populações hindus que habitavam a região. Não houve
repressão aos cultos hindus nem a seus templos, tanto que por volta de 1540 havia em
Goa 116 pagodes, em Bardez 176, em Salcete 264. Eles foram sistematicamente
destruídos a partir de então, juntamente com muitas das práticas culturais descritas,
graças à alteração da política de tolerância que existia desde o início da presença
portuguesa
143
.
142
Antônio Emílio d’Almeida Azevedo. Op. cit. p. 63. Segundo José Ignácio de Andrade. Cartas da Índia
e da China. Macau: Livros do Oriente/Imprensa Oficial de Macau, 1998. p. 37-38, “Brama não inventou
este bárbaro holocausto, foram suas mulheres. Quando essa divindade expirou, estas julgando-se viúvas
da primeira pessoa da trindade, tomaram em ponto de honra não lhe sobreviver; lançaram-se na fogueira
devoradora do seu idolatrado. Esse exemplo levou as mulheres dos bramas e dos militares [...] a fazerem
o mesmo”. Começaram a surgir justificativas para incentivar essa prática: a viúva que ardesse na fogueira
do seu marido, não transmigraria, atingindo a purificação. Mas a que rejeitasse seria lançada no inferno e
ainda arrastaria todos os parentes, que ficavam impuros e para limparem-se entregavam a viúva à
condição de pária. Não se queimavam mulheres que tivessem filhos menores, estivessem grávidas ou
doentes e aquela a quem morreu o marido estando ele ausente.
143
Teresa Albuquerque. Santa Cruz: Calapor profile of a village in Goa. Goa: Fernandes Publication,
1989. p. 9.
64
5. Os portugueses no Oriente e a fundação do Estado da Índia
De uma maneira geral, os historiadores costumam enfatizar a chegada de Vasco
da Gama a Calicute, deixando em segundo plano outros contatos que se desenvolveram
ao longo de sua viagem, isso porque para muitos, como já foi visto anteriormente,
“chegar às Índias” sempre fora o maior objetivo das viagens dos portugueses. Mas
mesmo aqueles estudiosos que não compartilham dessa visão teleológica, ainda assim,
concentram maior atenção nos aspectos dos primeiros contatos entre os portugueses e o
samorim (designação do título do rei local) de Calicute.
É novamente Subrahmanyam que sugere uma alteração do foco de análise da
primeira viagem de Vasco da Gama. A armada era composta dos navios S. Gabriel, S.
Rafael e Bérrio, além de uma embarcação de abastecimentos que não chegou à Índia.
Partindo de Portugal em 8 de julho de 1497, alcançou o Cabo da Boa Esperança em 19
de novembro, mas somente em 20 e 21 de maio de 1498 chegaria a Calicute, totalizando
uma viagem de 316 dias. Vasco da Gama percorreu, por cerca de quatro meses, boa
parte do litoral da África Oriental. Em princípio estabeleceu contato com a ilha de
Moçambique onde, embora os primeiros encontros tenham sido amistosos, enfrentou
conflitos cujas origens são desconhecidas, mas que resultaram em combate entre as
forças locais e os navios portugueses, o mesmo ocorrendo em Mombaça. Em Melinde,
no entanto, receberam uma melhor acolhida. Segundo o historiador indiano essas
experiências definiram o comportamento tenso de Vasco da Gama nos primeiros
contatos com o samorim de Calicute
144
.
Ao chegar nesse reino, o navegador aguardou que embarcações locais se
aproximassem das naus e mandou um membro dispensável da tripulação para terra, o
degredado João Nunes. Essa passagem, apesar de muito citada, merece novamente
registro, pois João Nunes encontrou no porto dois comerciantes tunisinos, que sabiam
falar castelhano e genovês, travando o seguinte diálogo:
- Ao diabo que te dou; quem te trouxe cá?
E perguntaram-lhe o que vínhamos buscar tão longe.
E ele respondeu:
- Vimos buscar cristãos e especiaria.
E eles lhe disseram:
144
Sanjay Subrahmanyam. Op. cit. p. 75-83.
65
- Por que não manda cá el-rei de Castela e el-rei de França e a senhoria
de Veneza?
E ele lhe respondeu:
- El-rei de Portugal não queria consentir que eles cá mandassem.
E eles disseram que:
- Fazia bem
145
.
Nesse diálogo é possível identificar não apenas a preocupação econômica, como
também a questão da procura por cristãos no Oriente com o intuito de formar uma
coligação contra os muçulmanos e, ainda, uma postura cosmopolita da região, que pelo
menos de início, não demonstrou nenhuma agressividade em relação aos portugueses.
Isso nega uma série de registros posteriores, tanto de fontes portuguesas quanto de
relatos árabes, que indicaram os desentendimentos entre o samorim de Calicute e os
portugueses como tendo ocorrido quase que imediatamente, ao primeiro contato.
O primeiro mal-estar promovido pela diferença de expectativas ocorreu no
momento da oferta de Vasco da Gama dos presentes enviados pelo rei de Portugal, após
vencido o primeiro temor de contato:
quando o feitor e o alcaide (bal ou catual) do samorim de Calicute se
aperceberam que a oferta preparada por Vasco da Gama era
constituída por doze lambéis, quatro capuzes de lã, seis chapéus,
quatro ramais de coral, seis bacias, uma caixa de açúcar, dois barris de
azeite e outros dois de mel, teriam começado a rir (segundo o próprio
relato de Álvaro Velho), dizendo que não era presente digno do mais
pobre mercador vindo de Meca e que o samorim não aceitaria aquilo,
apenas ouro como era de costume
146
.
Esse episódio é uma boa ilustração de como os portugueses estavam distantes da
imagem dos ricos comerciantes orientais que freqüentavam esse importante porto
indiano.
Os portugueses permaneceram cerca de três meses na região e não guardaram
boa impressão de Calicute, assim como acabaram sendo mal vistos pelo samorim.
145
Álvaro Velho. Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama. Apud John Villiers. Vasco da Gama, o
Preste João das Índias e os cristãos de São Tomé. In: Oceanos: Vasco da Gama. Lisboa, nº 33, jan-mar
1998. p. 58.
146
Francisco Bethencourt. O contato entre povos e civilizações: a Índia. História da expansão
portuguesa... v. 1, p. 93. Segundo D. Raphael Bluteau. Vocabulário Portuguez e Latino Rio de Janeiro:
UERJ, 2000. [cd-rom] lambéis são panos de lã grossos, comumente listados de várias cores e que servem
para cobertura de algum banco.
66
Apesar da animosidade e das desconfianças, no entanto, não houve um conflito aberto,
ao menos nesse momento.
Além disso, a compreensão que tiveram das características culturais e religiosas
da região foi obliterada pelos juízos preliminares que já traziam
147
. Tanto é verdade que
o rei D. Manuel escreveu, em agosto de 1499, uma carta para o cardeal Alpedrinha, que
vivia em Roma, para informar detalhes sobre o descobrimento da Índia, onde diz:
o rei desta cidade se tem por cristão e assim a maior parte de seu povo,
os quais mais com verdade se devem ter como hereges, vista a forma
de sua cristandade, de que ao Santo Padre escrevemos. [...] Carne não
comem, geralmente havendo por mal matá-la para isso. [...] Afirmam
estes haver na Índia 38 reis e a maior parte deles cristãos da mesma
maneira dos de Calicute
148
.
A partir dessa constatação, o rei demonstrou que mesmo os aspectos
considerados estranhos eram atribuídos a uma má formação cristã e não
necessariamente ao fato de que, simplesmente não se tratavam de cristãos aqueles com
quem entraram em contato. Não se pode imputar essa opinião apenas aos registros
daqueles que haviam participado da viagem, mesmo porque Vasco da Gama trouxe
alguns homens da região. É o próprio rei que informa ao mesmo cardeal:
trouxeram-nos os nossos cinco ou seis índios naturais de Calicute, dos
quais um deles era mouro e já agora cristão, e os outros cristãos da
maneira em cima dita. Estes índios são menos pretos que os Guinéus,
de uma pretidão sobre roxo, porém seus cabelos corredios, e em
narizes e todas outras particulares feições e jeito de seu rosto
semelhantes de todo às gentes de cá
149
.
Malgrado todo equívoco desses primeiros contatos, o que de resto pode ser
afirmado é que a viagem de Vasco da Gama serviu para selar o projeto de expansão para
147
A atitude dos europeus em relação aos povos asiáticos foi muito diferente daquela ocorrida com os
indígenas americanos, povos novos que eles sequer haviam imaginado e de quem nada sabiam segundo
Geneviève Bouchon. Premières experiences d’une societè coloniale: Goa au XVI
e
siècle. In: Inde
découverte, Inde retrouvée (1498-1630). Études d’histoire indo-portugaise. Lisboa/Paris: Centre Culturel
Calouste Gulbenkian/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
p. 291.
148
Antônio da Silva Rego. Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente
(Índia). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947. v. 1 (1499-1522). p. 8.
149
Idem. p. 9.
67
o Oriente, que não era hegemônico no reino e que sofria oposição daqueles que
apoiavam a alternativa da conquista do Marrocos
150
.
A viagem de Pedro Álvares Cabral seria responsável por mais um passo no
processo de consolidação do projeto de expansão para o Oriente. Mesmo havendo ainda
alguma resistência, D. Manuel conseguiu organizar uma armada de grande porte, treze
navios com mais de mil homens, objetivando a consolidação de algumas posições na
Índia. Alguns fragmentos das instruções de D. Manuel para Cabral foram transcritos por
Antônio da Silva Rego e neles pode-se mais uma vez observar a preocupação com a
questão dos cristãos, além do olhar de interesse material:
[...] desejando muito saber das coisas daquela terra da Índia e das
gentes dela, principalmente por serviço de Nosso Senhor, por termos
informação que ele e seus súditos e moradores de seu reino são
cristãos e de nossa fé, e com que devemos folgar de ter todo trato,
amizade e prestança, nos dispusemos a enviar algumas vezes nossos
navios a buscar a via da Índia, por sabermos que os indianos são assim
cristãos, e homens de tal fé, e verdade e trato, que devem ser buscados,
para mais inteiramente haverem praticar de nossa fé, e serem nas
coisas dela doutrinados e ensinados, como cumpre a serviço de Deus e
salvação de suas almas, e depois, para nos prestarmos e tratarmos com
eles, e eles conosco, levando das mercadorias de nossos reinos a eles
necessários, e assim trazendo das suas [...]
151
.
Muitos utilizam essa passagem para reforçar o caráter pouco correto, eticamente
condenável, da associação de fé e cobiça, mas é importante perceber que estas questões
não estavam necessariamente dissociadas no imaginário dos homens da época, e mesmo
de tempos depois, como se pode ler na epígrafe deste capítulo, na justificativa de Vieira,
no século XVII, para aproximar mercadores e clérigos.
D. Manuel também pretendeu consolidar uma feitoria em Calicute, primeira
etapa para a consolidação posterior de uma fortaleza estratégia utilizada no processo
de expansão no litoral africano ocidental que se desdobrava para a Índia
152
e fez
recomendação explícita para que:
150
Concordam com essa argumentação Luís Filipe Thomaz. Op. cit.; Sanjay Subrahmanyam. Op. cit.; e
Kirti Chaudhuri. O estabelecimento no Oriente. História da expansão portuguesa... v. 1, p. 171.
151
Antonio da Silva Rego. Documentação... v. 1, p.12-13.
152
Luiz Felipe de Alencastro. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 75.
68
[...] logo em sua cidade deixes e fique nosso feitor e casa de nossas
mercadorias e pessoas outras que nela hajam de ficar, e assim clérigos
e frades e as coisas da Igreja, para que nossa fé lhe seja assim
inteiramente mostrada e ensinada, que possa nela ser doutrinado, como
fiel cristão [...]
153
Além disso, D. Manuel instruiu Cabral a fazer guerra a qualquer embarcação
dos mouros de Meca, e recomendou a apreensão de mercadorias e homens. Dessa
forma, confirmava a intenção de desdobrar os conflitos com os mouros no Oriente e
franqueava o corso com seus lucros do Mediterrâneo para o Índico.
Outro interessante documento que Cabral portava para o Oriente era uma carta
do rei D. Manuel ao samorim de Calicute. Nela há dezessete menções a Deus; seis a
Jesus Cristo; quatro a Nosso Senhor; e muitos outros usos das palavras cristãos, cristãs e
cristã. Trata-se de um resumo da fé romana e contém uma explicação da aproximação
de Portugal e Roma. Também apresenta suas intenções comerciais associadas mais uma
vez à religião, como pode ser visto no trecho a seguir:
[...] mandamos agora lá o nosso capitão e naus e mercadorias e feitor
nosso que, por vosso prazer, haja lá de fazer e estar; e assim mesmo
mandamos pessoas religiosas e doutrinadas na fé e religião cristã, e
também ornamentos eclesiásticos para celebrarem os ofícios divinos e
sacramentos para que possais ver a doutrina da fé cristã que temos,
dada e instituída por Cristo Jesus Nosso Senhor, Nosso Salvador a
doze apóstolos discípulos seus, a qual depois de sua santa ressurreição
foi por eles geralmente pregada e recebida por todo mundo, dos quais
alguns, a saber São Tomé e São Bartolomeu, pregaram nessas vossas
partes da Índia, fazendo muitos e grandes milagres, tirando essas
gentes da gentilidade e idolatria, em que dantes todo o mundo estava,
e convertendo-os a verdade da santa crença e fé cristã
154
.
É também dessa carta o trecho em que se apoiam diversas explicações que
defendem a premeditação do objetivo em chegar às Índias nas ações desenvolvidas pelo
infante D. Henrique. O texto é uma espécie de histórico da expansão, mas deve-se
atentar para o fato de que seu autor escreve muitas décadas depois desses
acontecimentos:
153
Antonio da Silva Rego. Documentação... v. 1, p. 13-14.
154
Idem. p. 18-19.
69
[...] há sessenta anos, um nosso tio vassalo nosso chamado infante
Dom Henrique, príncipe de mui virtuosa vida e santos costumes, o
qual por serviço de Deus tomou propósito, por Deus inspirado, fazer
esta navegação, e por os reis nossos antecessores foi prosseguida até
agora, que prazendo a Nosso Senhor lhe quis dar o fim por nós
desejado [...]
155
.
A argumentação de Luís Filipe Thomaz, que critica o aspecto teleológico da
explicação de historiadores que certamente tomaram essas afirmações como referência
para suas conclusões, baseia-se no fato, muito razoável, de que essas referências
explícitas não são encontradas na época do Infante e, quando relacionadas aos eventos
daquele momento histórico, revelam mais hesitações do que certezas.
Por outro lado, para Thomaz, no que tange ao discurso de D. Manuel, de forma
geral, o tom assumido pelo rei de Portugal denuncia que ele se sentia incumbido de
“uma missão universal para manter a justiça, a paz e a supremacia da fé cristã”
156
e, por
ter missão tão global, presume-se que D. Manuel estava mais preocupado com a
suserania do que com a soberania.
Apesar de todo o discurso de boa vontade que pode ser percebido nos textos
apresentados, é claro também que a orientação dada à armada de Cabral era ser mais
truculenta nos possíveis percalços que surgissem nos contatos com as sociedades do
Oriente. O melhor exemplo foi o violento rompimento com Calicute, após a destruição
da feitoria portuguesa naquela cidade.
Cabral conseguiu, entretanto, consolidar posição na cidade de Cochim, cujo rajá
tinha interesse na aliança com os portugueses para neutralizar a força da influência do
samorim de Calicute naquela região. Cochim passou a ser então uma importante base
para as ações dos portugueses no Índico, até a tomada de Goa.
A expedição seguinte foi a segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, em
1502, e já tinha como meta fazer conquistas permanentes no Oriente, sendo responsável
pela construção da feitoria de Cochim e Cananor. Na África Oriental instalou uma
feitoria em Moçambique e estabeleceu ligações comerciais com Quíloa e Melinde.
Dessa forma, já estava sendo definido o domínio na região com o intuito de garantir o
acesso ao ouro que lá circulava para sustentar o comércio com a Índia. Outra atividade
mais uma vez praticada pelos portugueses foi a pirataria, principalmente próxima ao
155
Idem. p. 16-17.
156
Luiz Felipe Thomaz. Op. cit. p. 196. Ou seja, mais uma vez o autor afirma o messianismo no reinado
de D. Manuel I.
70
Mar Vermelho contra os mouros de Meca, que atendia à sede de rapinagem de
muitos fidalgos.
Em 1505 o Estado da Índia
157
surgiu como entidade política através da
nomeação de D. Francisco de Almeida, que recebeu detalhadas instruções para construir
fortificações no litoral, dando chance para a construção de uma estratégia que
viabilizasse a dominação do comércio do Oceano Índico. A definição de Thomaz para
esse período inicial do Estado da Índia é muito feliz e merece o registro: “D. Francisco
de Almeida é ainda um vice-rei flutuante, governador de um Estado sem território, com
o convés da sua nau por capital”
158
. A grande vantagem de Portugal, nesse momento,
repousava na discrepância entre a tradição comercial de toda região do Índico, que se
baseava em relações pacíficas, e o poderio bélico das naus portuguesas, verdadeiras
fortalezas flutuantes que possibilitaram o sucesso da ação lusitana
159
.
No entanto, somente com a chegada de seu sucessor, o governador Afonso de
Albuquerque (1509-1515), se estabeleceu a efetiva conquista portuguesa na Índia, pois
ele foi o responsável pelas conquistas de Goa (1510), Malaca (1511); e Ormuz (1515),
ressaltando-se que o valor estratégico dessas regiões era maior do que a área de terras
conquistadas, constituindo assim a base do que foi definido por Boxer como uma
talassocracia, que compreendia uma cadeia de fortalezas costeiras e feitorias com o
objetivo do controle das rotas comerciais marítimas
160
.
O maior objetivo de D. Manuel era o ataque aos domínios muçulmanos do Egito
e do corredor sírio-palestino, visando a reconquista de Jerusalém. Homem ligado ao
grupo mais próximo do rei, Afonso de Albuquerque compartilhava dessas aspirações,
mas procedeu de forma pragmática enquanto atuou no Oriente. Seu plano considerava a
importância de se firmar o domínio português no Índico, para só então efetivar uma
ação contra o Oriente Próximo muçulmano. Além disso, percebeu que o comércio inter-
regional era mais seguro que a arriscada rota do Cabo, e garantiria bons lucros para
sustentar a presença portuguesa na região. Assim, Albuquerque planejou a captura de
quatro pontos para controlar algumas regiões: Adém e Ormuz, objetivando o controle
do mar Vermelho e do Golfo Pérsico; Cambaia e Malaca, domínio do Guzerate,
157
Idem.p. 207. Thomaz alerta que o uso da expressão Estado da Índia só se generalizou a partir da
segunda metade do século XVI, ainda assim sugere que se use o conceito para o período anterior.
158
Idem. p. 213.
159
Para entender o papel da força da coerção e do uso da guerra para a consolidação dos Estados
Nacionais europeus modernos ver Charles Tilly. Op. cit. p. 123-132.
160
C. R. Boxer. A Índia portuguesa em meados do século XVII. Trad. Luís Manuel Nunes Barão. Lisboa:
Edições 70, 1982, p. 13.
71
Coromandel e o arquipélago malaio. Seu projeto não foi um sucesso absoluto, pois
fracassou na tentativa de conquistar Adém
161
, mas conseguiu as posições de Ormuz e
Malaca, de importância fundamental, graças ao destacado papel comercial que exerciam
no Oriente.
Goa, capturada ao sultão de Bijapur, também foi uma importante conquista, uma
vez que sua posição central no litoral ocidental da península hindustani era ponto
estratégico para dominar o comércio asiático, principalmente depois que Calicute
assumiu a postura de feroz opositor à presença portuguesa. Essa importância estratégica
de Goa pode ser ilustrada pelo fato de que no período de 1475 até 1510, como destaca
Geneviève Bouchon, o território foi disputado por três forças consecutivamente: a velha
cidade hindu vassala dos rajás de Vijayanagar foi capturada pelos sultãos de Bijapur,
quando houve a destruição dos templos da cidade. A cidade assim transformada em
muçulmana fazia o esforço de reconstrução e repovoamento quando sofreu o ataque dos
portugueses em 1510
162
.
Além disso, tratava-se de uma posição segura para abastecimento devido às
características agrícolas da região. Acabou se tornando a capital do Estado da Índia
163
,
pois as relações entre os portugueses e as autoridades de Cochim passaram por alguns
desgastes, criando instabilidade que desmotivou o antigo projeto de fixação da capital
nessa cidade.
Albuquerque tinha consciência de sua importância, como pode ser visto na carta
ao rei D. Manuel de 17 de outubro de 1510:
Senhor, as coisas de Goa são tão grandes que tocam tanto à segurança
da Índia e a tudo o que nos cumpre e desejais, assim para gastos
despesas, oficiais, madeira, ferro, salitre, linho, arroz, mercadoria,
roupas de algodão, que me parece que sem ela não podereis sustentar a
Índia, porque os calafates e carpinteiros com mulheres de cá e trabalho
em terra quente, passado um ano não são mais homens, e com Goa
pode vossa alteza escusar os desses Reinos, porque os há mais e
melhores entre os que os que cá andam. [...] É ilha cercada de água, de
muita renda, e muito proveitosa; barra de muita água, porto morto de
todos os ventos, ilha de muitos mantimentos e muita criação, veados
tantos que é uma coisa de espanto, lebres, perdizes, lavouras de
161
Para Vitorino Magalhães Godinho. Op. cit. v. 3. p. 81-134, a conquista de Adém seria fundamental
para a consecução dos planos de Albuquerque. Mas a resistência da cidade foi ferrenha e o governador
teve que se adaptar às circunstâncias.
162
Geneviève Bouchon. Op. cit. p. 292.
163
Cf. Luís Filipe Thomaz. Op. cit.; Sanjay Subrahmanyam. Op. cit.; e Kirti Chaudhuri. O
estabelecimento no Oriente. In: História da expansão portuguesa... v. 1.
72
arrozais e de trigo abastada muito de feno para a gente de cavalo, se aí
houver de estar, pode-a suster e defender, como aí houver espaço para
segurar, porque se o tiver, nunca mais turcos entrarão. [...] O que mais
me contenta do feito de Goa, poder ela sofrer e suster muita gente sem
nenhum gasto nem despesa vossa; e depois que Goa se segurar bem
sem ter mouros dentro, quatrocentos portugueses a terão viva para
sempre; mas ainda digo que, pois ela pode sustentar dois ou três e
quatro mil homens, e à vossa alteza cumpre tê-los na Índia para
segurança dela e para serdes senhor dela seguro, que por isso a deve
vossa alteza suster e ter, porque todas as naus que quiserdes podeis aí
fazer
164
.
A iniciativa da conquista de Goa partiu exclusivamente de Albuquerque, e isto
serviu de alimento para intrigas no reino contra ele daqueles que eram opositores dos
empreendimentos no Oriente. Ainda assim, a cidade tornou-se o centro das decisões
políticas e econômicas dos domínios lusitanos na Ásia. Em condições normais, só Goa,
como capital do Estado da Índia, fazia o comércio e estabelecia comunicação
diretamente com Portugal
165
, sendo a base estratégica para a atividade comercial dos
portugueses no Oriente.
Aproveitando-se da numerosa presença hindu na região, Afonso de
Albuquerque apresentou-se como o "libertador" de Goa das mãos dos muçulmanos, e
desenvolveu uma política de tolerância nos primeiros anos da "conquista"
166
,
confiscando as terras que pertenciam aos muçulmanos, preservando a posse dos
canarins (como eram chamados pelos portugueses), não reprimindo o hinduísmo.
Um bom exemplo da política de tolerância de Albuquerque em relação aos
territórios conquistados ou aliados pode ser verificada na correspondência dos capitães
das fortalezas de Cananor e de Cochim, que ordenavam que seus respectivos feitores
dessem aos naires “uma peça de beatilha, para esta festa que hora têm, que se chama
Ova Puravaa, e estava em costume neste dia se lhe dar”, e ao rei de Cananor e ao
príncipe, “dois fardos de açúcar dos pequenos que estão nesta feitoria, a saber, a cada
um dois, que mando dar em nome d’el rei nosso senhor para esta sua Páscoa que ora
têm”
167
. Note-se que o trecho da primeira carta refere-se à festa com a expressão hindu;
164
Apud Teotônio R. de Souza. Goa: roteiro histórico-cultural... p. 137-138.
165
A. R. Disney. A decadência do Império da pimenta: o comércio português na Índia no início do século
XVII. Trad. Pedro Jordão. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 29.
166
Idem. p. 57.
167
Antonio da Silva Rego. Documentação... v. 1. p. 97 e 98. Cartas datadas de 17 e 27 de agosto de 1510.
Segundo D. Raphael Bluteau. Op. cit. Beatilha “é um pano de linho, seda ou algodão, muito fino e ralo
que na Índia se fazem de camisa”; e naire é “o nome de toda gente mais nobre de todo aquele Gentio,
abaixo dos brâmenes, que são os seus religiosos”.
73
já no segundo, há o estabelecimento de uma associação com a tradição cristã. De
qualquer forma, ambos os gestos simbolizam um respeito às tradições locais, o que
posteriormente, a partir de meados do século XVI, não será comum encontrar.
Albuquerque contribuiu ainda para a formação do Estado da Índia ao instituir a
política dos casamentos mistos entre portugueses e mulheres locais. Seu objetivo era
fixar a presença portuguesa na região e, posteriormente, proporcionar a possibilidade de
recrutamento para defesa entre os descendentes gerados nessas famílias. Cada noivo
ganhava um cavalo, uma casa, terras, gado e um subsídio monetário; chegou a ocorrer o
casamento de fidalgos, mas a maioria era de soldados e artífices
168
.
Diversas cartas de Albuquerque referiam-se aos “casados”; como exemplo,
pode-se citar o trecho de uma delas, enviada ao rei D. Manuel, datada de 1 de abril de
1512, quando o rei já havia revogado a autorização para se realizarem esses casamentos,
mas estes eram ainda defendidos pelo Governador do Estado da Índia:
o feito dos casados vai muito avante, porque casam homens de bem e
muitos oficiais ferreiros e carpinteiros, torneiros e bombardeiros e
alguns alemães são casados. E creio, Senhor, que se não partira de
Goa, casavam aquele ano mais de 500 pessoas. Há em Cananor e
Cochim cem casados e em Goa perto de duzentos [...]
169
.
Naturalmente, tal independência de ação angariava opositores na corte
portuguesa, como já foi mencionado, o que obrigou Albuquerque, diante do abalo de
seu prestígio, a freqüentemente justificar-se aos olhos do rei
170
. De todo modo, a política
dos casados promoveu uma possibilidade das culturas portuguesa e hindu interagirem,
mas também criou problemas, na medida em que os princípios de “pureza de sangue”
enraizavam-se na sociedade portuguesa.
Até 1515, quando morreu Afonso de Albuquerque amargurado com a
incompreensão do rei que o destituíra do cargo de governador, os principais objetivos
da política portuguesa no Oceano Índico foram o controle naval no mar, a tentativa de
exclusão dos navios e mercadores muçulmanos no comércio transoceânico da pimenta e
o fomento do comércio português entre os portos do Oceano Índico.
168
A. J. R. Russel-Wood. Fluxos de emigração. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.).
História da expansão portuguesa... v. 1. p. 253.
169
Antonio da Silva Rego. Documentação... v. 1. p. 151.
170
Uma série de cartas da Índia atacavam muitos procedimentos de Albuquerque, o que associado à
oposição na corte contribui para a queda de seu prestígio junto ao rei.
74
Dessa forma, pode-se repetir Thomaz quando diz que:
Albuquerque construiu para D. Manuel um verdadeiro império
marítimo na Ásia e deu à presença portuguesa no Oceano Índico a
forma definitiva, que se manteria por mais de um século com
alterações insignificantes
171
.
O historiador Russel-Wood defende a idéia de que a palavra “império”, como
conceito que definia fusão da metrópole e das colônias numa só entidade, surgiria
apenas no século XVIII. Para ele, os portugueses eram, antes disso, “emporialistas”,
pois na verdade dominavam uma série de redes, teias ou espaços
172
.
Anthony Disney é outro historiador que duvida da possibilidade de definir-se a
situação dos portugueses no Oriente com o termo “império”. Em sua argumentação cita
a definição do Oxford Dictionary daquela palavra, ou seja, o “domínio e a supremacia
sobre muitos Estados e territórios”, o que para ele não exemplifica a forma pela qual os
portugueses se estabeleceram na Ásia nos séculos XVI e XVII. Reconhece a dinâmica e
a importância da presença portuguesa na região, mas não quer utilizar a palavra
“império”. Em contrapartida propõe a adoção de outro conceito a partir da noção de
possessão: os modelos “sul asiático” e “leste asiático”. O primeiro modelo teria como
característica os territórios terem sido obtidos por uma ação oficial de dominação, seja
pela diplomacia ou pela força militar, com a presença de uma comunidade de
portugueses casados, comumente vivendo próximos às fortalezas, contando com a
colaboração da população indígena, freqüentemente (mas nem sempre) convertida ao
cristianismo, com a presença militar e administrativa da Coroa portuguesa, cujo melhor
exemplo é Goa. Já o segundo modelo poderia ser caracterizado, grosso modo, por uma
ação não oficial portuguesa, tendo como melhor ilustração o domínio exercido pelos
portugueses em Macau
173
.
Por outro lado, Luís Filipe Thomaz reconhece que a característica fundamental
do domínio português no Oriente assenta-se numa rede, mas isso não o impede de
utilizar o conceito de “império”, definindo-o como invulgar, uma vez que sua
171
Luís Felipe Thomaz. Op. cit. p. 197.
172
A. J. R. Russel-Wood. Os portugueses fora do Império. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(dirs). História da expansão portuguesa... v. 1. p. 256.
173
Anthony Disney. Contrasting Models of “Empire”: The Estado da Índia in South Asia and East Asia in
the Sixteenth and Early Seventeenth Centuries. In: Francis A. Dutra e João Camilo dos Santos. The
portuguese and the Pacific. International Colloquium at Santa Barbara. Santa Barbara: University of
California, 1995. p. 27-35.
75
descontinuidade espacial não inviabiliza sua existência, já que seu maior interesse
estava relacionado à circulação dos bens e ao controle dos mares
174
. Complementando a
afirmação de Thomaz, Sanjay Subrahmanyam define a presença portuguesa no
vastíssimo território do Oriente dizendo que ela:
[...] não era controlada em termos efetivos pela Coroa portuguesa,
constituindo antes a tela sobre a qual os portugueses pintavam as suas
concepções e idealizavam os seus projetos de dominação imperial,
muitos dos quais nunca chegaram a concretizar-se, como é evidente.
Ao longo desta extensão de milhares de quilômetros, certas áreas eram
controladas com algum rigor, como foi o caso das conquistas clássicas
na costa ocidental da Índia, ou nos territórios recentemente
conquistados em Ceilão. Outras eram postos avançados de somenos
importância, dominados por comerciantes «casados», ou feudos de
capitães pertencentes às grandes famílias da nobreza, como sucedeu
com freqüência em Malaca
175
.
Podem-se associar as reflexões de Thomaz e Subrahmanyam à definição do
mesmo conceito feita por Anthony Pagden. Para ele o termo latino imperium” tem
originalmente diversos significados, sendo que três deles permaneceram em uso, muitas
vezes mesclando-se desde o período romano até a época moderna: como ordem perfeita;
como território reunindo mais do que uma comunidade política; e como soberania
absoluta de um indivíduo. Além disso, na Idade Moderna, império transformou-se em
sinônimo de Estado o que sugere o entendimento da designação dos domínios
portugueses no Oriente, Estado da Índia
176
. Justifica-se então a aplicação do conceito ao
momento histórico estudado, com base em Thomaz, Subrahmanyam e Pagden.
A partir de 1515 até 1560 os portugueses utilizaram três métodos para manter
sua hegemonia no controle do Índico: a feitoria e a fortaleza; a ação da armada e os
“cartazes”, espécie de salvo-conduto que os comerciantes não portugueses tinham de
174
Luís Felipe Thomaz. Op. cit. p. 207-210.
175
Sanjay Subrahmanyam. Uma viagem através do Oriente em finais do século XVI. In: Antônio Manuel
Hespanha. Os espaços de um Império (Estudos). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999. p. 21.
176
Ver Anthony Pagden. Lords of all the World: ideologies of Empire in Spain, Britain and France
(c.1500- c.1800). New Haven/London: Yale University Press, 1995. p. 13-19. Para uma explicação da
metodologia contextualista adotada por Pagden a partir de Quentin Skinner e J. G. A. Pocock ver: José
Eisenberg. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 14-17.
76
comprar das autoridades lusitanas estabelecidas na região, o que rendia lucros
significativos
177
.
No que toca às estruturas governativas que caracterizaram o Estado da Índia, sua
administração central localizava-se em Goa. Catarina Madeira Santos destaca o caráter
de capitalidade dessa cidade, o seu estatuto singular em comparação às outras capitais
européias que se desenvolviam no Estado moderno nos séculos XV e XVI,
denominando-a de “alter ego do centro metropolitano Lisboa no mundo índico”
178
.
A autoridade suprema de todo o Estado era o vice-rei ou governador, a quem era
delegado vastos poderes, devido à grande distância entre o reino e o Oriente. Dessa
forma, muitas decisões eram tomadas para só mais tarde serem informadas ao rei de
Portugal
179
. É claro que essa relativa autonomização em relação ao poder central muitas
vezes era vista com desconfiança, ainda mais diante do próprio processo de
centralização burocrática pelo qual passava Portugal nesse período
180
.
A maior preocupação da governança, segundo Joaquim Romero Magalhães era
“assegurar a compra da especiaria a tempo e hora de se fazer a sua carga para Lisboa
operação que [o vice-rei ou governador] devia dirigir pessoalmente”
181
. Havia ainda um
Conselho de Capitães, que a partir de 1569 passou a ser chamado de Conselho de
Estado, cuja função era ajudar o vice-rei no governo.
Existiam outros órgãos, tais como a Vedoria da Fazenda, responsável pela
administração da fazenda; a Casa dos Contos, que cuidava da gestão e fiscalização
financeira; o Tribunal da Relação, criado em 1550, cujo modelo era a Casa de
Suplicação de Lisboa. Havia também o Tribunal da Alçada, criado em 1571, que
deliberava em matérias de graça; e o Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens,
fundado no Oriente em 1570, cuja incumbência era administrar, vigiar e garantir a
177
Kirti Chaudhuri. O estabelecimento no Oriente. In: História da expansão portuguesa... v. 1. p. 180.
178
Catarina Madeira Santos. «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da
Índia (1505-1570). Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1999. p. 34. O conceito de capitalidade segundo a autora pode ser definido como a coincidência entre o
poder político e os organismos administrativos centrais cujo alcance ultrapassa a cidade onde se situam,
repercutindo por todo o império.
179
A complicada rede de instâncias de poder que se forma no processo de expansão portuguesa permite
visualizar o peso dessas instituições no reino e sua influência na caracterização do Estado. Cf. Antônio
Manuel Hespanha. As vésperas do Leviathan ..., passim.
180
Amélia Aguiar Andrade. Novos espaços, antigas estratégias: o enquadramento dos espaços orientais.
In: Antônio Manuel Hespanha. Os espaços de um Império ..., p. 37. A autora justifica a criação do aparato
burocrático na Índia devido às dificuldades de amiudado contato entre Portugal e o Oriente uma vez que
era enorme a distância que os separava.
181
Joaquim Romero Magalhães. Os Portugueses no mundo do século XVI: espaços e produtos. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 85.
77
defesa das questões da Igreja no Reino
182
. Ainda no nível da justiça existiam dois cargos
importantes: o ouvidor-geral da Índia, que cuidava dos feitos cíveis e o ouvidor-geral do
crime, criado em 1550, responsável por todos os feitos crimes em Goa e nas fortalezas
portuguesas
183
.
A Câmara Municipal e a Misericórdia foram duas instituições de grande
importância para a administração das cidades, tanto em Goa como em todo o Império
português, o que levou Boxer a identificá-las como “os dois pilares do império”
184
,
formando o substrato comum que lhe dava coesão. Nas fortalezas o poder civil e militar
era acumulado pelo capitão, que tinha como substituto um alcaide-mor.
A fundação da Câmara Municipal de Goa não possui registro, mas considera-se
a data da conquista como seu marco inicial. Sua estrutura teve como modelo a Câmara
de Lisboa e tinha inicialmente, como membros formadores, um vereador fidalgo, dois
vereadores nobres, dois juízes ordinários, um procurador da cidade e quatro
procuradores dos mesteres, todos com direito a voto. Possuía autonomia, mas tinha
limitações em relação ao comércio das especiarias, garantindo-se os direitos da Coroa.
No entanto, diante do poder do vice-rei e do direito do capitão da cidade de participar e
votar nas sessões da Câmara, muitas vezes essa autonomia foi ferida, o que gerou
diversas tensões e conflitos
185
. Havia também formas de cooperação entre a Coroa e a
Câmara como, por exemplo, na obtenção de recursos para construção naval e defesa. A
função de fornecer empréstimos também era desempenhada pela Santa Casa de
Misericórdia. Esses dois órgãos eram importantes espaços de exercício do poder local, e
possibilitavam a consolidação de prestígio social.
Sobre o relacionamento da administração portuguesa com as populações da
região de Goa, observa-se que, em 1526, Afonso Mexia, vedor da Fazenda, codificou a
legislação consuetudinária das comunidades rurais goesas, apurada junto aos nativos
letrados, que deu origem ao Foral de Usos e Costumes, constituído por quarenta e nove
cláusulas, e que esclarecia a organização social, política e econômica da região, sendo a
mais antiga descrição da Índia feita por um europeu, mas deve-se ressaltar que era uma
espécie de manual para administradores, não dando conta de todos os aspectos dessas
182
Catarina Madeira Santos. Op. cit. p. 188-191.
183
Idem. p. 134-133.
184
Charles R. Boxer. Portuguese society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia e
Luanda (1510-1800). Cambridge: Hakluyt Society at University Press, 1964.
185
Charles R. Boxer. Portuguese society in the Tropics... p. 12-15.
78
comunidades
186
. De qualquer forma, tal esforço de sistematização atendia tanto às
necessidades da Coroa portuguesa quanto das comunidades locais submetidas, pois
legitimou e criou uma interface entre tradições e leis das duas culturas em contato e
possibilitou a sobrevivência das comunidades agrárias hindus, que a dominação
muçulmana havia enfraquecido em outras regiões da Índia.
Graças ao Foral é possível saber que na ilha de Tisvadi, onde estava localizada a
cidade de Goa, havia trinta e uma aldeias
187
. Em cada uma delas havia os gancares que
tradicionalmente eram importantes elos nas relações de cobrança de tributos locais e
cujas funções os portugueses adaptaram ao seu domínio, como ilustra o trecho a seguir:
e cada uma das ditas Aldeias nos é obrigada a pagar certa renda
conteúda e declarada no dito Foral atrás, a qual os ditos Gancares de
cada Aldeia com o Escrivão dela repartem e lançam pelos lavradores e
pessoas que no limite de cada Aldeia tem herança, e isto segundo a
condição com que lhe é dada por seus usos e costumes; e os ditos
gancares são obrigados a fazer e arrecadar, pagar a dita renda, quer
cresça, quer mingue [...]
188
.
Questões relacionadas a empréstimos, fugas de lavradores e de gancares,
heranças, compras, vendas e roubos eram contempladas pelo Foral. Um exemplo pode
ser dado na citação abaixo:
se alguns Gancares [...] fugirem para os Mouros para fora da terra por
não pagarem renda, como se diz que se já fez o que não esperamos que
daqui em diante façam, perderão suas fazendas móveis para nós e as
de raiz e Gancarias se arrematarão às pessoas que caibam, e por elas
mais derem, obrigando-se aos foros a que as tais heranças são
obrigadas; e o que mais derem pelas ditas heranças, e Gancarias, além
de ficarem com o foro, será para nós
189
.
186
Teotônio R. de Souza. Goa medieval... p. 59.
187
Os nomes das aldeias eram Neurá, o grande; Gansim; Ellá; Azossim; Calapor; Morombim, o grande;
Carambolim; Batim; Talaulim; Salecer; Mercurim; Agaçaim; Neurá, o pequeno; Mandur; Corlim; Ororaá;
Gaudalim; Renovadi; Bambolim; Sirdão; Curqua; Taleigão; Goa-Velha; Gonvali Moulà; Cugir; Dugari;
Morura; Morombim, o pequeno; Chimbel; Panelim; Bangani. Ver Foral de Usos e Costumes dos
Gancares e Lavradores desta ilha de Goa e outras anexas a ela. Apud Eduardo Judas Barros. Classes
castóides em Goa colonial: um estudo microssociológico da dinâmica das relações de castas numa aldeia
cristã de Goa, na Índia. São Paulo, 1981. Tese (Doutoramento em Ciências Sociais). Universidade de São
Paulo. mimeo. p. 182.
188
Idem. p. 181-182.
189
Idem. p. 190. Segundo Teotônio R. de Souza. Goa: roteiro histórico-cultural... p. 197.
79
Também traduzia as hierarquias que existiam entre as gancarias e os gancares,
definindo, por exemplo, a primazia na sementeira do arroz, nos festejos feitos pelas
bailadeiras (subcasta sudra) e numa série de outros costumes locais.
Além das instâncias burocráticas centrais e locais, uma outra instituição muito
importante na sociedade portuguesa também estabeleceu-se em Goa: a Igreja
190
. A
estrutura eclesiástica no Oriente inaugurou-se com a criação da diocese de Goa em
1534, que possuía a jurisdição sobre todas as comunidades cristãs entre o Cabo da Boa
Esperança e a China. O primeiro bispo só chegou em 1538 e a Catedral Metropolitana
de Goa foi inaugurada em 1539. Em 1540, havia cerca de 100 padres, muitos dos quais
não cumpriam com muita rigidez e atenção os dogmas da Igreja católica
191
.
Apesar da contínua presença de religiosos nas viagens e na fixação dos
portugueses no Oriente (ou seja, nas fortalezas, feitorias e cidades conquistadas); da
instalação em 1518 da ordem dos franciscanos em Goa; e do batismo de milhares de
hindus na costa da Pescaria, através da ação do vigário-geral padre Miguel Vaz nos anos
de 1535 a 1537, costuma-se afirmar que a atividade missionária só ganhou real impulso
com a chegada dos jesuítas, em 1542
192
.
Vale relembrar que o Padroado exercia forte controle das estruturas eclesiásticas
no Oriente. A viagem para a Índia só poderia ser feita com beneplácito régio e os bispos
não deveriam, nem poderiam, ter relações diretas com a Santa Sé sem a prévia
autorização do rei
193
. Dessa forma, a estrutura eclesiástica estava fortemente associada
às diretrizes empregadas pelos monarcas portugueses.
No reinado de D. João III (de 1521 a 1557) é possível identificar que a política
de avanço no Oriente se articula com a ocupação mais efetiva nas “conquistas” do
Atlântico, mormente no litoral do Brasil. Dessa forma, em meados do século XVI:
a política ultramarina se encaixa em dois sistemas. O primeiro
“atlântico” marcado pelo domínio territorial, o repovoamento e a
economia escravista de produção açucareira , engloba Madeira, Cabo
Verde, São Tomé, e os enclaves da América portuguesa. O segundo,
de tipo “asiático” caracterizado pelo domínio indireto, a economia
190
Catarina Madeira Santos. Op. cit. p. 201 classifica a montagem administrativa da Igreja em Goa como
a “segunda capitalização” daquela cidade.
191
M. N. Pearson. op. cit. p. 129.
192
O padre Miguel Vaz era franciscano e ocupou o cargo de vigário-geral da Índia no período de 1532 a
1547. Além do trabalho pioneiro na costa da Pescaria foi um colaborador muito próximo dos trabalhos do
jesuíta Francisco Xavier.
193
Caio Boschi. Estruturas eclesiásticas e Inquisição. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.).
História da expansão portuguesa... v. 2. p. 437-438.
80
de circulação e o envolvimento mercantil toma corpo nas feitorias
fincadas nos terminais das zonas de comércio descobertas na Guiné,
no Congo, em Angola, Moçambique, na Ásia [...]
194
.
Somado a isso, dois outros fatores completavam o quadro das condições da
presença portuguesa no Oriente, naquele momento. O avanço do Império Otomano na
direção do Mar Vermelho e Golfo Pérsico, no governo de Suleimão (1520-1566) foi o
primeiro movimento de uma série de outros que começaram a pressionar as posições
portuguesas no Índico. E o despontar de uma atividade mercantil agressiva por parte de
dois estados da Birmânia, o que atraiu a atenção de muitos portugueses naquela direção.
Além disso, com o Tratado de Saragoça, de 1529, os portugueses haviam obtido direitos
sobre as ilhas de Maluco, conhecidas como região de drogas muito valiosas, levando-os
a expandir suas rotas até lá de forma contínua, o que espalhava ainda mais a presença
portuguesa, mas, em contrapartida, criava muitas dificuldades na manutenção do
controle sobre tão extensas áreas.
Por outro lado, na Europa, a crise da cristandade ocidental, que se desenhava
desde a Baixa Idade Média, desembocou nas Reformas protestante e católica da
primeira metade do século XVI, o que significou o surgimento de outras igrejas cristãs e
de uma série de medidas por parte da Igreja de Roma, com vários desdobramentos que
alimentaram tensões e conflitos diversos
195
.
A situação tornou-se ainda mais complexa quando D. João III procurou fundar o
Tribunal do Santo Ofício em Portugal, pois acentuou uma série de tensões existentes na
sociedade portuguesa. A primeira bula que estabeleceu a Inquisição no reino data de
1531, mas seus termos nunca foram aplicados. Em 1536 a bula Cum ad nihil magis
retoma o estabelecimento, sendo esse momento considerado o da definitiva instalação
do Tribunal em Portugal. Mas somente em 1547 na bula Meditatio Cordis o
estabelecimento foi feito nos moldes pretendidos por D. João III
196
.
194
Luiz Felipe Alencastro. Op. cit. p.73.
195
Ver Pierre Chaunu. O tempo das Reformas. Lisboa: Edições 70, 1993. 2 v.; Jean Delumeau. História
do medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Lana Lage da Gama Lima. A
confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil colonial. São Paulo, 1990. Tese (Doutorado em
História). Universidade de São Paulo. mimeo; Peter Burke. Cultura popular na Idade Moderna: Europa,
1500-1800. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. O aprofundamento dessa
questão será feito no próximo capítulo.
196
Ver Antônio José Saraiva. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1994; Anita
Novinsky. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1996; Francisco Bethencourt. História das Inquisições:
Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. O aprofundamento
dessa questão será feito no capítulo III.
81
Diante desse quadro compreende-se porque a flexibilidade que inicialmente
marcou a convivência religiosa em Goa foi substituída por um período de violenta
intervenção no modo de vida goês, a partir de 1540, pois nesse momento, segundo
Pearson, percebe-se a chegada no Oriente da ideologia da Contra-Reforma
197
. Nesse ano
todos os templos hindus em Goa foram destruídos, marcando a nova forma de
relacionamento entre os portugueses e a população local. Em 1541, as terras que haviam
sido doadas aos templos foram entregues ao clero secular e às ordens religiosas. Tanto
as práticas religiosas hindus, quanto algumas sobrevivências da presença muçulmana na
região começaram a ser perseguidas e reprimidas. Em 1542, Francisco Xavier chegou a
Goa, graças à ação de D. João III, um dos primeiros a apoiar a recém fundada
Companhia de Jesus, e contribuiu ainda mais para a alteração do quadro que existia até
então, através de uma ação abrangente na tentativa de cristianização.
Portanto, a partir da década de 40 do século XVI, pode-se afirmar que houve
uma guinada no comportamento das autoridades civis e eclesiásticas em Goa, cuja
marca mais evidente foi o esforço de cristianização das populações submetidas ao
domínio português e até mesmo fora dele, resultado do processo de expansão que deve
ser visto tanto nos seus aspectos econômicos, quanto nas suas contribuições culturais.
197
M. N. Pearson. Op. cit. p. 129.
CAPÍTULO II
Os Jesuítas na finisterra da fé
“Certifico a Vossa Alteza que, além do
fruto que estes padres todos fazem tão
bem em suas pregações, avisam vossos
capitães e oficiais que façam o que devem
em seus cargos, por maneira que deles é
Vossa Alteza bem servido. Estes homens
vivem como falam, e fazem o que dizem, e
por eles se pode dizer que são o sal da
terra”.
Tomé Lobo, soldado em Goa (1548)
83
1. A fundação da Companhia de Jesus no embate das Reformas
A crise e a desagregação do mundo feudal no Ocidente europeu marcaram o início
dos Tempos Modernos, promovendo uma série de transformações de ordem política,
econômica, cultural e, até mesmo, geográfica. A principal instituição do mundo feudal, a
Igreja Católica, não ficou imune a esse quadro de mudanças.
Para a Igreja o período foi marcado por séria crise que, aliás, se prolongava desde o
século XIII. As heresias medievais, a exemplo dos cátaros, difundiam doutrinas que se
opunham à ortodoxia de Roma, sendo que a Inquisição medieval fora criada com o propósito
de combatê-las. Além disso, ordens mendicantes foram formadas, tal como a dos
franciscanos, cujo fundador, S. Francisco de Assis, exaltava a pobreza como valor essencial
dos cristãos, em contraste com a riqueza e ostentação das igrejas. O período ainda seria
marcado pelo Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), que dividindo a cristandade
ocidental, abalou ainda mais a estrutura da Igreja
1
.
Um clero mal formado intelectualmente, muitas vezes desconhecedor do conteúdo
dogmático da Igreja, distante da vocação religiosa, permitia, de um lado, uma religiosidade
popular muito próxima a práticas pagãs, mas incitava, de outro, uma avalanche de críticas,
sobretudo provenientes do meio letrado, que teve em Erasmo um dos maiores destaques,
com o seu Elogio da Loucura, no início do século XVI. Essas críticas, ligadas ao
humanismo, possibilitaram o movimento da Reforma protestante e, também, de uma ação da
própria Igreja, a Contra-Reforma ou, como melhor definição, a Reforma Católica.
1
Esse quadro genérico sobre a passagem da Idade Média para a Idade Moderna e sobre a fundação da
Companhia de Jesus está baseado em Célia Cristina da Silva Tavares. Entre a cruz e a espada: jesuítas e a
América portuguesa. Niterói, 1995. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense.
mimeo. Ver principalmente o Capítulo I.
84
A Igreja Católica trazia, portanto, uma enorme carga de problemas originados ao
longo do período feudal e que alimentaram a crise no século XVI. J. H. Elliot afirma que “a
reforma da igreja romana, por mais que tivesse sido concebida como resposta ao desafio
protestante, brotou da mesma vasta corrente de renovação espiritual que revitalizava a
Europa desde os últimos anos do século quinze”
2
.
A crise da cristandade ocidental deve ser entendida, portanto, como um processo
que se desenvolve desde a Baixa Idade Média. Dessa forma, a produção historiográfica mais
recente tende a definir as reformas protestante e católica como resultantes de um passado
comum, malgrado as suas diferenças e enfrentamentos. A expressão “tempo das reformas”
define o processo de longa duração da renovação do cristianismo
3
. A idéia de que a Contra-
Reforma significou um conjunto de mudanças promovidas pela Igreja Católica, como simples
reação aos ataques protestantes tem sido muito criticada, assim como outra abordagem, de
cunho elitista e institucional, que não acumulava reflexão acerca da atuação da Igreja sobre as
práticas religiosas da cristandade
4
.
Assim, esses historiadores definiram ao menos três momentos distintos e
complementares: a preparação da Reforma (dos fins da Idade Média ao princípio do século
XVI); o período do Concílio de Trento (1545-1563), entendido como o da Contra-
Reforma, propriamente dita; e, por último, um longo período de implementação das medidas
reformadoras (entre os séculos XVI e XVIII). Há variações dessa cronologia: a divisão em
dois períodos a pré-Reforma e a Reforma propriamente dita , ou ainda em quatro pré-
Reforma; Reforma protestante; Reforma católica e, por último, seus desdobramentos. O
essencial em qualquer das fórmulas propostas é a ênfase no entendimento do fenômeno como
um longo processo de mudanças, marcado.
John Bossy faz um importante alerta sobre o uso da expressão Reforma: “aconteceu
qualquer coisa de importante ao Cristianismo Ocidental no século dezesseis, e o termo
«Reforma» é certamente o melhor guia para quem deseje investigar”. Mas recomenda
2
J. H. Elliot. A Europa dividida (1559-1598). Lisboa: Editorial Presença, 1985. p. 112.
3
Para a discussão sobre as reformas ver entre outros: Pierre Chaunu. O tempo das reformas: a crise da
cristandade (1250-1550). Lisboa: Edições 70, 1993. v. 1; Jean Delumeau e Monique Cottret. Le catholicisme
entre Luther et Voltaire. Paris: Presse Universitaire de France, 1971; John Bossy. A cristandade no
Ocidente: 1400-1700. Trad. Maria Amélia Silva Melo. Lisboa: Edições 70, 1990; Lana Lage da Gama Lima.
A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil colonial. São Paulo, 1990. Tese (Doutorado em
História). Universidade de São Paulo. mimeo.
4
Lana Lage da Gama Lima. Op. cit. v. 1. p. 163-164.
85
cuidado com o uso dessa expressão para que não se reforce a “noção de que uma má forma
de Cristianismo estava a ser substituída por uma boa”. Deve-se ter em mente que é um
conceito necessário mas muito generalizador, não comportando aspectos mais específicos
5
.
Nessa perspectiva, considera-se muito mais importante uma análise da difusão dos
princípios reformadores, além do entendimento de que, embora inimigas, as tendências
protestante e católica atuavam sobre a população européia que vivia muito distante do que
era chamado de “pureza da fé”, que cada lado reformista dizia defender.
Assim, o Concílio de Trento iniciado em 1545, por determinação do papa Paulo
III, interrompido várias vezes, marcado por inúmeras discussões e divisões políticas, e que só
terminou sob o pontificado de Pio IV, em 1563 decidiu:
revalorizar a figura do padre e insistir na castidade, procurando promover
a formação de um clero mais digno em seus costumes, melhor preparado
intelectualmente, mais coeso enquanto corpo social hierarquizado e mais
obediente à Roma. Para isso foram mobilizados os bispos, cujo poder foi
reforçado, e acionadas as justiças eclesiástica e inquisitorial para punir as
condutas desviantes. A fundação de seminários; a difusão das conferências
eclesiásticas; a implementação das visitas diocesanas; o aumento do rigor
na seleção dos candidatos à ordenação; a consolidação de uma vasta rede
paroquial que viabilizasse a ação pastoral; o combate à simonia, ao
nicolaísmo e ao absenteísmo, foram algumas das medidas destinadas a
garantir a eficácia da reforma do clero e, por conseguinte, de toda a
cristandade
6
.
Embora anterior ao Concílio de Trento, mas inserida no conjunto de ações
empreendidas pela Reforma católica, por iniciativa de Inácio de Loyola foi formada em 1537
a Companhia de Jesus, com sua Fórmula do Instituto
7
aprovada pelo papa Paulo III na bula
Regimini Militantis Ecclesiae em 1540 considerada pelo historiador Dauril Alden como
“a mais dinâmica, bem sucedida, influente e controvertida das novas Ordens criadas durante
5
John Bossy. Op. cit. p. 113.
6
Lana Lage da Gama Lima. Op. cit. v. 2. p. 333.
7
O texto da Fórmula do Instituto pode ser encontrado em Serafim Leite. História da Companhia de Jesus
no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro: Portugália/Civilização Brasileira, 1938. v. 1. p. 6-9.
86
o turbulento século XVI”, ou ainda, nos dizeres de Jean Delumeau e Monique Cottret, “o
elemento mais dinâmico da Igreja romana de 1550 a 1650”
8
.
A origem desse movimento encontra-se em Paris, um dos centros humanistas onde a
Devotio Moderna se desenvolvia com o espírito de "renovar a escolástica e purificar o culto
de superstições e de devoções espúrias"
9
. A Devotio Moderna tinha se originado nos Países
Baixos, por volta do final do século XIV e início do XV, e preconizava uma piedade
individual e reflexiva que teve no livro Imitação de Jesus Cristo, cuja autoria geralmente é
atribuída a Thomas a Kempis, seu maior símbolo. Para Pierre Chaunu ela foi um meio de
responder à crise da Igreja, pois:
[...] a sua pedagogia supõe uma clara compreensão do latim e a inserção
no coletivo da família monástica. A missa da devotio moderna é uma
missa curta, uma missa à qual as pessoas se associam através de uma
oração pessoal que não adere estreitamente aos temas litúrgicos. O monge
apostava na regra; a devotio moderna, pelo contrário, é socrática, maneja
a introspecção e recorre à direção de consciência. A devotio moderna
conhece já a tentação casuística. Mantém de boa vontade um diário,
individualiza e recorre aos exercícios. Mas é sobretudo imitatio Christi.
Está próxima do Cristo da dor e vive a pietá. O seu Cristo é homem,
desceu do vitral. No mistério da encarnação, está do lado da santa
humanidade, do homem Deus e não do Deus feito homem. Tem
necessidade do Cristo torturado para ultrapassar o santo terror que lhe
inspira a transcendente grandeza de Deus. Numa palavra, após um longo
milênio de cristandade, a sensibilidade popular está nos antípodas do
arianismo e adquire uma espécie de coloração monofisista. É necessário
ensinar ao povo que, no verdadeiro Deus e verdadeiro homem do
símbolo, o Cristo é também verdadeiramente homem e que, além do
verdadeiro Deus, existe também nele o verdadeiro homem
10
.
A Devotio Moderna difundiu-se dos Países Baixos para outras regiões da Europa,
alcançando parte do meio letrado de Paris. É nessa Paris de debates humanistas que Inácio
8
Dauril Alden. The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, Its Empire and Beyond,
1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996. p. 4 e Jean Delumeau e Monique Cottret. Op. cit. p.
106.
9
Guilherme P. C. Pereira das Neves. O Seminário de Olinda: educação, cultura e política nos Tempos
Modernos. Niterói, 1984. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. mimeo. v.
1. p.31.
10
Pierre Chaunu. Op. cit. v. 1. p. 218-219.
87
de Loyola realizou seus estudos de filosofia e teologia entre 1529 e 1534, absorvendo o
clima da época
11
.
A trajetória religiosa de Inácio de Loyola iniciou-se quando convalescia de ferimento
grave obtido na batalha de Pamplona em 1521, um dos capítulos das disputas territoriais
entre os Habsburgos e os Valois, onde lutara comandando uma guarnição de defesa da
cidade contra o ataque dos franceses. Para tentar impedir que ficasse coxo, submeteu-se a
uma série de operações, que o obrigaram a um longo período de recuperação. A
convalescença, ao mesmo tempo que indicava a permanência do defeito físico que o
impediria de continuar sua carreira militar, possibilitou a Loyola entrar em contato com dois
livros que constavam da biblioteca da casa paterna: um sobre a vida dos santos,
especialmente de São Domingos e São Francisco, e Vita Christi de Ludolfo da Saxônia
12
,
que grande impressão lhe causaram, despertando seu interesse pela vida religiosa e por seguir
em peregrinação aos lugares santos.
Depois de restabelecido, Loyola executou o plano de peregrinação e, ao longo dessa
viagem, desenvolveu os famosos exercícios espirituais com influência das leituras da
Imitação de Jesus Cristo de Thomas a Kempis e do Livro de Exercícios para a vida
espiritual do abade Cisneros, de inspiração na Devotio Moderna que tanto marcaram a
formação dos inacianos. Espécie de manual sobre métodos de oração e exames de
consciência, trata-se de uma série de instruções práticas que ensinavam a utilização de todos
os cinco sentidos aliados à razão para se buscar descobrir a vontade de Deus, através de
várias etapas de experiências, distribuídas em quatro semanas de exercícios, onde cada
semana não necessariamente correspondia a sete dias, mas que no geral perfazia cerca de
trinta dias. Um “guia espiritual” que a princípio era seguido individualmente, mas que ao longo
dos séculos XVII e XVIII difundiu-se como prática em grupo
13
.
Voltando à Espanha, decidiu dedicar-se aos estudos. Em Barcelona, Alcalá e
Salamanca, num período de três anos e meio, Loyola aplicou-se no estudo de gramática
latina, lógica, física e teologia. Paralelamente, difundia os exercícios espirituais entre colegas
11
Jean Lacouture. Os jesuítas: Os conquistadores. trad. Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: LP&M, 1994.
p. 48. O autor chama Santo Inácio pelo seu nome de batismo, Iñigo López Recaldo.
12
Cf. Jean Delumeau e Monique Cottret. Op. cit. p. 65 e Dauril Alden. Op. cit. p. 4.
13
José Eisenberg. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 33-34.
88
e outros seguidores, o que lhe causou problemas com a Inquisição, chegando mesmo a ser
preso por breve período. Foi sentenciado a só fazer sua pregação após a conclusão de seus
estudos, apesar dos exercícios espirituais terem sido reconhecidos como de doutrina
ortodoxa e de moral irrepreensível.
Assim, sentindo-se limitado na Espanha, Loyola resolveu completar os estudos em
Paris. Nesta cidade, com alguns colegas estudantes formou um pequeno grupo de iniciados
nos exercícios espirituais, o qual se transformaria no núcleo fundador da Companhia de
Jesus: Pedro Fabro, Francisco Xavier, Diogo Laínez, Afonso Salmerón, Nicolau Bobadilha e
Simão Rodrigues
14
.
Tomados de fervor religioso, os sete estudantes resolveram investir na conversão dos
muçulmanos de Jerusalém e para isso fizeram votos de pobreza, de castidade e de ir à Terra
Santa, formando uma espécie de fraternidade. Mas mesmo nesse momento inicial pode-se
perceber que o grupo não formava um bloco monolítico, pois havia os que queriam ir para
Jerusalém com o espírito e, até mesmo, os métodos das cruzadas e os que defendiam a
questão numa ótica mais universal, uma ação para o mundo (a que vai marcar as ações
futuras da Companhia de Jesus)
15
.
Ao grupo inicial logo se juntaram outros, e todos se transferiram para a Itália, em
1537, à espera da permissão para seguir com destino à Palestina, momento em que
decidiram se identificar como Companhia de Jesus.
A peregrinação a Jerusalém não pôde ser realizada por inúmeras dificuldades,
especialmente pelo aumento das tensões entre Veneza e o Império Otomano naquele momento.
No entanto, os membros da Companhia procuraram o papa em 1538, e se dispuseram a ir a
qualquer parte do mundo para defender a fé católica. Estava dado o passo essencial para a
confirmação da Companhia de Jesus como ordem religiosa missionária, que se concretizaria
dois anos mais tarde.
O crescimento da ordem inaciana foi vertiginoso, sendo que ao tempo da morte de
Inácio de Loyola, em 1556, a Companhia de Jesus já possuía cerca de 1.000 membros e
14
William V. Bangert. História da Companhia de Jesus. Porto/São Paulo: Apostolado da Imprensa/
Edições Loyola, 1985. passim.
15
Jean Lacouture. Op. cit. p. 82-83.
89
administrava uma centena de fundações, entre residências, colégios e outras instituições
16
.
Mesmo levando-se em conta a influência de um período de debates religiosos que
alimentavam o desenvolvimento do fervor apostólico na Europa católica, a partir de meados
do século XVI, esse crescimento da ordem jesuítica é digno de nota. Por terem, desde o
início, se dedicado intensamente ao trabalho pedagógico, os inacianos devem ter gerado
grande fascínio entre seus discípulos em relação à missionação, despertando inúmeras
vocações. No final do século XVI, a Companhia, seus missionários e seus colégios se
espalhavam por várias regiões da Europa, África, América e Ásia. Mas, mesmo assim, será
possível constatar que os mais renomados missionários inacianos sempre se queixavam de
haver poucos, e sempre pediam a seus superiores o envio de novos jesuítas para enfrentar o
enorme número de atribuições nos trabalhos de evangelização.
A base da estruturação da Companhia de Jesus assenta-se numa síntese das
correntes de piedade tradicionais e modernas. Assim, os inacianos possuem “uma piedade
para a ação, uma piedade para a vida”, o que faz com que um dos traços marcantes da
ordem seja a “formação de homens chamados a viverem no coração da vida”, agindo em
termos apostólicos, evangélicos e edificantes
17
.
Daí a preocupação com a missão e os cuidados com a educação serem as marcas
mais conhecidas da Companhia de Jesus. Rego define o conceito:
etimologicamente missão deriva de missio-nis, de mittereenviar. [...] No
sentido genérico, missão equivale ao envio ou deputação de alguém a fim
de se desempenhar de determinada obrigação. No sentido teológico,
verifica-se que a redenção do mundo se consumou por meio da missão da
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, enviada pela Primeira. No
sentido jurídico, o direito canônico atribui-lhe tríplice acepção: a) lata, ou
missão canônica, pela qual alguém recebe o ministério de pregar; b) estrita,
ou ciclo de pregações a realizar, pelo menos de dez em dez anos [...]; c)
muito estrita ou propriamente dita, [...] é a obra da fundação e da
plantação da Igreja
18
.
16
Jean Delumeau e Monique Cottret. Op. cit. p. 105. O autor lembra ainda que cem anos mais tarde, já
havia mais de 15000 jesuítas e 550 fundações espalhadas pelo mundo.
17
José Sebastião Silva Dias. Correntes de sentimento religioso em Portugal. Coimbra, 1960. v. 1. p. 169-
170.
18
Antonio da Silva Rego. Lições de missionologia. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, Centro de
Estudos Políticos e Sociais, 1961. p. 2-3.
90
Nesse sentido, para a Companhia de Jesus a missão era o caminho da consolidação
da Igreja, onde a conversão tinha o destacado papel de alargamento da sua área de atuação.
Era ainda um local privilegiado para a concretização do princípio do contato mais cristão com
o mundo
19
.
Existe ainda um outro significado para “missão” que não é considerado por Rego.
Na discussão sobre o conceito de “império”, Anthony Pagden explora a associação da
definição romana para civitas que corresponde à comunidade ideal, ao local de
humanidade, ao lugar de florescimento à noção de “civilizar”, ou seja, transferir a civitas
para outros lugares, o que significa dizer, dominar regiões para levar a sua própria cultura.
Com os imperadores cristãos o antigo sonho de universalidade transformou a ambição pagã
de civilizar em um objetivo análogo de conversão na cristandade christianitas. Deriva daí a
noção de “império cristão”, que apoiou a transposição do conceito de civitas para o de
“missão”
20
. Dessa forma, a ordem perfeita só podia ser alcançada no trabalho de
cristianização, no trabalho em prol do domínio da fé, o que foi amplamente assumido pela
Companhia de Jesus.
É importante destacar que o espírito prático dos jesuítas, que marcou a ordem
inaciana principalmente no trabalho missionário, iria conduzir a um esforço de aproximação
cultural com os grupos sociais e étnicos a serem evangelizados, que pode ser exemplificado
na catequese feita nas línguas dos povos submetidos à missionação da Companhia de Jesus.
Porém, tal aproximação não significou, ao menos inicialmente, uma ampla compreensão das
diferenças do outro, mas sim uma tática de identificação para facilitar o processo de
conversão.
Algumas vezes o procedimento dos jesuítas em relação aos povos “não europeus”
se tornou alvo de críticas do clero mais ortodoxo, que via no tipo de abordagem por eles
desenvolvido ameaças à integridade da fé. A questão do laxismo dos inacianos pode ter
como exemplo a discussão sobre a utilização de práticas religiosas dos chineses e dos hindus
19
José Sebastião Silva Dias. Op. cit. p. 170.
20
Anthony Pagden. Lords of all the World: ideologies of Empire in Spain, Britain and France (c. 1500- c.
1800). New Haven/ London: Yale University Press, 1995, principalmente o capítulo II.
91
para a propagação do catolicismo nessas regiões, que refletiu importante ponto de tensão,
nos séculos XVII e XVIII
21
, o que será estudado adiante.
No entanto, tal procedimento em relação a outras culturas não é algo novo para a
Igreja, nem se configura como prática evangelizadora exclusiva da Companhia de Jesus.
Muito antes, a “adaptação” foi proposta por S. Paulo como método para conduzir infiéis a
Cristo, e os jesuítas apenas levaram essa proposta a limites extremos
22
.
Apesar do esforço de aproximação, deve-se ter bem claro que, mesmo quando os
inacianos aparentemente toleram ou conformam-se com a realidade cultural e religiosa
daqueles que pretendem evangelizar, o postulado básico de sua ação é o de transformar, ou
seja, submeter o outro à sua própria lógica, ao catolicismo, pois o que acreditam que deve
ser feito é promover a salvação das almas daqueles que estão longe da fé
23
.
Essas questões remetem à discussão dos conceitos relacionados aos contatos entre
culturas que baseiam as reflexões da antropologia cultural e que servem de instrumento para a
realização da análise histórica presente neste estudo. O conceito mais antigo utilizado é o de
transculturação, surgido no século XIX, e já muito criticado, pois o conceito, em si mesmo,
possui uma forte conotação etnocêntrica, uma vez que admite a transferência unilateral de
padrões culturais de uma cultura específica para outra, rigidamente submetida
24
. Nessa
perspectiva, a missão pode ser entendida como conquista que utiliza a violência para
erradicar os elementos culturais dos dominados. Mesmo que não se negue a utilização de
métodos violentos na conversão por parte dos jesuítas, ainda assim os inacianos tinham por
princípio antes buscar fórmulas de entendimento com as culturas locais, o que dificulta o uso
do conceito de transculturação para a análise de sua atuação evangelizadora. Além disso,
21
Ver C. R. Boxer. O Império Colonial Português. Trad. Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70, 1977. p.
267; Jonathan D. Spence. O palácio da memória de Matteo Ricci (a história de uma viagem: da Europa
da Contra-Reforma à China da dinastia Ming). Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986, e ainda Jean Lacouture. Op. cit. p. 257-311.
22
Maria de Deus Beites Manso. A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622. Aspectos da sua ação
missionária e cultural. Évora, 1999. 2 v. Tese (Doutorado em História). Universidade de Évora. mimeo. p.
86-87.
23
Para a discussão sobre a questão das alteridades em conflito ver: Tzvetan Todorov. A conquista da
América: a questão do outro. Lisboa: Martins Fontes, 1983; Maria Regina Celestino de Almeida. Os
vassalos D' El Rey nos confins da Amazônia: a colonização da Amazônia Ocidental (1750 - 1798).
Niterói, 1990. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. mimeo. p. 63-66 e Luís
Felipe Baêta Neves. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão
cultural. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.
24
Denys Cuche. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 1999. p.
33-39.
92
esse conceito por si mesmo é muito rígido, e não se aplica às realidades múltiplas dos
contatos entre culturas.
Um outro conceito que costuma ser usado para classificar o esforço de aproximação
que os jesuítas faziam em direção a outras culturas é o de aculturação. O termo aculturação,
apesar de reunir “paradoxos e ambigüidades”
25
, é mais flexível que o de transculturação,
principalmente na abordagem proposta por Roger Bastide, que entende o processo de
contato entre culturas como algo que promove modificações mútuas. Para o pesquisador
francês não há cultura unicamente doadora, assim como exclusivamente receptora. A
aculturação é uma via de mão dupla, havendo, sim, “interpenetração” ou “entrecruzamento”
entre elas
26
.
Por outro lado, Ignacy Sachs salienta que prevalece no conceito de aculturação a
concepção de “um contato entre culturas, uma das quais se considera superior à outra e tenta
impor-lhe as suas estruturas e os seus valores”, ou seja, uma abordagem etnocêntrica.
Apesar da ressalva, esse autor considera que o conceito de “aculturação” adequa-se bem ao
uso em História, uma vez que serve à elaboração de “grandes sínteses de caráter
sociológico”, possibilitando verificar diacronicamente a circulação e a assimilação de uma
vasta série de elementos culturais de diferentes sociedades em contato, desde plantas e
animais domésticos até idéias e símbolos
27
.
Já o processo de aculturação propriamente dito é definido como o contato direto e
contínuo entre duas culturas, que pode produzir mudanças sociais, assimilações, e difusões,
conforme os tipos de encontros e as diferentes situações em que eles se desenvolvem, e que
pode ter como resultado a aceitação, a adaptação ou a reação de um dos grupos em
contato
28
. Diante dessas definições conceituais, percebe-se que a atuação dos jesuítas pode
ser estudada a partir dessa chave de interpretação, graças ao fato de serem portadores da
cultura européia e, através dos trabalhos missionários, terem entrado em contato com
variados tipos de cultura em diversas regiões do globo e em diferentes épocas.
25
O alerta é de Nathan Wachtel. Aculturação. In: Jacques Le Goff e Pierre Nora. História: novos
problemas. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro: Fancisco Alves, 1988. p. 113.
26
Ver Roger Bastide. Antropologia aplicada. Trad. Maria Lúcia Pereira e J. Guisburg. São Paulo:
Perspectiva, 1979. p. 83-92.
27
Ignacy Sachs. Aculturação. In: Ruggiero Romano. Enciclopedia Einaudi: Sociedade Civilização.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998. v. 38. p. 423-429.
93
Sem negar a complexidade da questão dos contatos entre culturas e dos debates
conceituais travados pela antropologia nesse âmbito, deve-se considerar o papel singular que
os jesuítas desempenharam na ação evangelizadora. De maneira geral, a postura do religioso
da Companhia de Jesus é etnocêntrica e europocêntrica. Mas, por outro lado, ao partir do
princípio da adaptação paulina, essa ordem acabou construindo na sua prática cotidiana
fórmulas de abordagem de aproximação que podem ser melhor entendidas ao usar-se o
conceito de “mediadores culturais”. Esses seriam responsáveis por estabelecer “ligações
entre mundos, povos e culturas, aqueles que efetivaram a passagem, o salto ou a transferência
de um universo intelectual, material ou religioso para outro”
29
.
Através do estudo dos mediadores culturais e de suas trajetórias, Gruzinski considera
possível definir a impermeabilidade ou a porosidade das fronteiras culturais, a referenciação
das circunstâncias, das condições e das modalidades da passagem feita por eles (amálgama,
transferência, síntese, tradução)
30
. Ao colocar em contato duas culturas, o mediador cultural
pode utilizar-se de sistemas de significados com diferentes chaves de interpretação e irá obter
mais resultados na medida em que conseguir transmitir sentido e ser legível e interpretado por
todos
31
.
Vivendo na fronteira de civilizações, nos limites de cada cultura, muitos jesuítas
puderam construir pontes, conexões entre esses mundos, tornando-se, portanto, mediadores
culturais na concepção definida por Gruzinski. É verdade que isso deve ser entendido como
uma das tendências desenvolvidas pela Companhia de Jesus no conjunto de várias
modalidades de contatos com culturas e civilizações distintas, e não como forma única de
atuação. Além disso, não pode ser usado de maneira generalizante para a ordem como um
todo, pois não existia a homogeneidade que muitas vezes é destacada em estudos sobre os
28
Idem. p. 419. O autor baseia-se na definição de aculturação dos antropólogos R. Redfield, R. Linton e M.
J. Herskovits.
29
Ver a introdução de Rui Manoel Loureiro e Serge Gruzinski (coord.). Passar as fronteiras: II Colóquio
Internacional sobre mediadores culturais. Séculos XV a XVIII. Lagos: Centro de Estudos Gil Eanes, 1999. p.
5. Os autores pertencem ao “Centre de Recherches sur les mondes Américains” que pertence à “École des
Hautes Études en Sciences Sociales” e pretendem questionar a figura do “mediador cultural” no mundo
ibérico entre os séculos XV e XVIII. Os trabalhos apresentados no Colóquio, no entanto têm uma
abrangência geográfica maior, pois existem estudos sobre o Oriente também.
30
Idem. p. 6.
31
Beatriz Moncó Rebollo. Mediación cultural y fronteras ideológicas. In: Rui Manoel Loureiro e Serge
Gruzinski (coord.). Op. cit. p.342-343.
94
inacianos. Mas com certeza o uso do conceito de “mediador cultural” possibilita visualizar a
práxis da evangelização dos jesuítas na sua diversidade.
Outro aspecto que merece destaque quando se menciona a fundação da Companhia
de Jesus é o fato dessa ordem religiosa ter-se formado na própria ação evangelizadora, a
partir de três princípios básicos que definiam o modelo inaciano: o romanismo (total
fidelidade ao papa, havendo inclusive um voto especial com esse objetivo, além dos habituais
três votos regulares pobreza, castidade, obediência), a “polivalência” (além de religiosos,
seriam um pouco de tudo que fosse necessário médicos, botânicos, professores e assim por
diante) e o ascetismo (procura da plenitude da vida moral). Obedecendo a esses princípios e
treinado pelas quatro semanas dos exercícios espirituais que combinavam em alto grau a
segurança da retidão, o conhecimento de Deus, a experiência mística e a decisão prática –, o
religioso dessa ordem deveria se tornar um elemento de uma tropa de elite combatendo ao
lado do próprio Cristo e, assim, poderia lutar para a propagação da fé católica, segundo as
pretensões de seu fundador
32
.
É comum dar-se destaque à disposição militar dos jesuítas, fazendo-se alusão ao
passado de “soldado” de Inácio de Loyola, que na Fórmula do Instituto conclamava com o
entusiasmo identificável em um general “todo aquele que pretender alistar-se como soldado
de Deus, sob a bandeira da cruz, na nossa Companhia [...]”
33
. No entanto, Dauril Alden
alerta para o perigo de se vincular essa característica militar da ordem jesuítica apenas ao
passado de seu fundador, destacando que naquela época era muito comum tal correlação
entre religiosos e soldados, fé e exército, imagens referentes ao momento de tensão religiosa.
Esclarece ainda que, apesar da rigidez da hierarquia, os possíveis castigos que porventura um
religioso da Companhia viesse a receber não se aproximavam da violência daqueles que
32
Havia quatro graus os coadjutores temporais (permanecendo como irmãos); os coadjutores espirituais
(que eram ordenados padres, mas só eram qualificados para ouvir confissões, fazer exortações e ensinar a
doutrina católica); os professos dos três votos regulamentares e os professos dos quatro votos (o voto de
fidelidade ao papa só podia ser feito pelos professos considerados altamente qualificados nos estudos,
com domínio do latim). Cf. Dauril Alden. Op. cit. p.12-13.
33
Para destacar essa organização militar deve-se indicar Luís Felipe Baêta Neves. O combate dos
soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1978. passim, além de C. R. Boxer. O Império Colonial Português... passim.
95
existiam nas organizações militares, tais como o exército e a marinha, no mundo moderno
europeu
34
.
Deve-se destacar também a ambivalência dessa nova ordem: por um lado, ela pode
ser considerada moderna pela sintonia com a Devotio Moderna e com as reformas
tridentinas; por outro, percebem-se os ecos medievais do espírito de cruzada que motivou os
fundadores da ordem. Mas esse hibridismo também pode ser encontrado nas estruturas
políticas, sociais e econômicas de um mundo em transformação, como era a Europa da
época Moderna. Sendo assim, o elemento mais marcante na caracterização da Companhia
de Jesus é o fato de ser moderna, pois, como destaca Lana Lage da Gama Lima, “as
condições de vida dos jesuítas aproximam-nos muito mais dos padres diocesanos do que dos
monges beneditinos [...]. Os jesuítas encarnarão, na verdade, o espírito do clero tridentino
[...]”
35
.
De qualquer forma, é notável a originalidade da organização da Companhia de Jesus
se compararmos com as ordens que até então existiam: os inacianos renunciaram ao coro e à
mendicância; submetiam seus letrados às práticas de humildade e mortificações estabelecidas
para os demais religiosos; defendiam o apostolado no mundo, e não a reclusão; acreditavam
que a salvação das almas poderia ser obtida através da prédica, do confessionário e do
ensino
36
.
Um outro aspecto da ordem inaciana é sua vinculação com o movimento quinhentista
conhecido como “segunda escolástica”, responsável pela reinterpretação do pensamento de
São Tomás de Aquino, o tomismo que apresentava a fé como uma forma superior do
conhecimento compatibilizada perfeitamente com a idéia aristotélica da razão essencial na
formação dos jesuítas, e que marcou sua ação pedagógica nos colégios da Companhia. Estes
possuíam desde 1599 um Plano de Estudos, a Ratio Studiorum, espécie de diretriz geral a
qual estavam submetidos, e que pode ser resumido como uma gradual ordem nos estudos,
34
Dauril Alden. Op. cit. p. 11-12. O autor confirma a rigidez da estrutura administrativa e a cadeia de
comando que caracteriza a ordem, mas não concorda com os autores citados na nota anterior. Outro autor
que relativiza a rigidez hierárquica da ordem é G. R. Elton. A Europa durante a Reforma (1517-1559).
Lisboa: Editorial Presença, 1982. p. 162. Ele ainda enfatiza que “Loyola há muito perdera a confiança nas
austeridades exteriores assim não via vantagens nas severas regras do traje, da alimentação ou da vida
cotidiana, à maneira das ordens antigas. Uma vez que os jesuítas tinham que viver no mundo, deveriam
também viver moderadamente com ele em questões exteriores”.
35
Lana Lage da Gama Lima. Op. cit.v. 2. p. 334.
36
José Sebastião Silva Dias. Op. cit. p. 170.
96
um respeito pela diferente capacidade de aprendizado do estudante, assistência às lições e
abundância de exercícios. Portanto, a educação se caracterizava pelo humanismo, e
englobava o currículo clássico, havendo certa oposição à pesquisa, por inspiração do
aristotelismo
37
.
Nos colégios da Companhia de Jesus praticava-se uma abordagem pedagógica
peculiar em relação aos alunos dos internatos, caracterizada por dois traços essenciais: o
distanciamento do mundo e a constante fiscalização dos internos. Assim, o espaço do colégio
transformava-se em um "outro mundo", que se pretendia longe dos perigos e dos pecados
que habitavam o exterior, fazendo com que o processo de aprendizagem obedecesse o ritmo
e a lógica daquela célula
38
.
O governo da ordem era responsabilidade do Superior Geral, também denominado
apenas por Geral, cargo vitalício. A Companhia de Jesus tinha como supremo poder
legislativo a Congregação Geral, composta de delegados das diversas províncias
conhecidos como Procuradores , eleitos pelos professos, e outros com direito a voto, nas
Congregações Provinciais (que deveriam se reunir de três em três anos para, além de votar
esse representante, definir os postulados que deveriam ser enviados ao Geral), mas isso não
significa que houvesse a possibilidade de se neutralizar o poder e a autoridade do Superior
Geral. Os Procuradores de todas as Províncias jesuíticas formavam também a Congregação
dos Procuradores
39
.
A Companhia foi dividida em províncias que, agrupadas segundo critérios
geográficos ou lingüísticos, formavam seis Assistências: Itália, Portugal (à qual ficariam
submetidas as províncias do Brasil, Índia e Japão e as vice-províncias da China e do
Maranhão), Espanha, Alemanha, França e Polônia. Os Superiores de cada província,
chamados de Provinciais, governavam todas as casas, ou seja, os Colégios e as Residências
dos padres, sendo que cada casa tinha o seu superior. Percebe-se, portanto, a rígida
hierarquia criada pelo fundador e primeiro Geral dos companheiros de Cristo, Inácio de
Loyola. Existia ainda o cargo de Visitador, nomeado pelo Geral, hierarquicamente colocado
37
Idem. p. 171.
38
Ver Georges Snyders. La Pédagogie en France Aux XVII
e
e XVIII
e
Siècles. Paris: Presses Universitaires
de France, 1965. p. 38-41.
39
José Wicki. Dois compêndios das ordens dos padres gerais e congregações provinciais da província
dos jesuítas de Goa, feitos em 1664. Separata de Studia. Lisboa, nº
s
. 43-44, jan-dez 1980. p. 350-351. O autor
informa que entre 1575 e 1665 ocorreram vinte e uma Congregações de Procuradores e nove Gerais.
97
acima dos provinciais, e que tinha atribuições de supervisionar as províncias jesuíticas,
detectando problemas, resolvendo conflitos, determinando necessidades, entre outras
tarefas
40
.
É importante reafirmar que, apesar de ter sido criada antes da convocação do
Concílio de Trento, a Companhia de Jesus enquadrava-se perfeitamente no espírito das
reformas tridentinas, ao se preocupar com a catequese e a educação, tornando-se uma
espécie de ponta de lança da Reforma católica e desempenhando importante papel de defesa
da fé católica na Europa, nas Américas e no Oriente.
40
Dauril Alden. Op. cit. p. 247.
98
2. A Igreja e os jesuítas em Portugal no tempo das reformas
A Igreja Católica em Portugal não estava distante do quadro geral europeu da
decadência moral denunciada pelos humanistas e do desgaste institucional observado ao
longo do século XV. Os problemas enfrentados em território português tinham muitas e
antigas origens (crise de vocação dos padres, afastamento de suas paróquias, bispos pouco
atuantes, fraco trabalho de evangelização entre os fiéis), e não se restringiam ao clero secular,
atingindo também as ordens monásticas e mendicantes existentes, uma vez que “de modo
geral, o número de religiosos em cada mosteiro era diminuto, não faltando aqueles em que
não havia o mínimo de quatro para se poder afirmar que havia mosteiro”
41
.
O clero secular em Portugal de meados do século XV caracterizava-se por uma
ação pastoral rudimentar, e tinha uma formação bastante limitada, pois “a falta de assistência
e apoio da parte da hierarquia, devido às grandes distâncias que seria preciso vencer e de
transportes rápidos, a escassez de meios materiais e o tradicional isolamento em que o clero
paroquial vivia” contribuía para estimular o absentismo que proporcionava pouco rigor no
exercício das funções eclesiásticas
42
.
Uma parte significativa do alto clero assumia cargos eclesiásticos e comportava-se
como grandes senhores, objetivando muito mais o aumento de prestígio e poder temporal e a
conquista de títulos e riquezas do que as atribuições pastorais inerentes a suas funções.
Mesmo para os meados do século XVI é difícil afirmar que esse quadro tivesse se alterado
muito em relação ao século anterior
43
.
Diante dessa crise institucional e sacerdotal, pode-se entender que a religiosidade
popular estivesse longe do rigor da doutrina cristã, havendo condições ideais para o
desenvolvimento dos considerados desvios morais, da falta de compostura nos templos, do
descaso com a guarda dos dias santificados, das práticas supersticiosas e de proximidades
com o paganismo. No entanto, apesar de pouco ortodoxas, as manifestações religiosas
41
José Marques. Da situação religiosa de Portugal nos finais do século XV à missionação do Brasil.
Revista Histórica. Porto, v. XI p. 52, fev. 1991.
42
Idem. p. 56.
43
José Sebastião Silva Dias. Op. cit. v. 1. p. 33-47.
99
populares tinham um referencial básico na fé católica, como afirma o historiador José
Sebastião Silva Dias:
não devem tirar-se daqui conclusões excessivas. Os homens do século XV
são rudes, grosseiros, carecidos muitas vezes do sentido evangélico: não
são porém ímpios ou pré-agnósticos. A sua fé é geralmente sincera e viva.
Abraçam-se a ela nos lances dramáticos da existência e não a abandonam
nas preocupações do dia a dia. A sua imaginação alimenta-se do
maravilhoso cristão. Não saberiam viver sem o arrimo da crença
católica
44
.
Naturalmente que as práticas rústicas da religiosidade popular eram um fenômeno
mais geral, detectável em várias regiões da Europa e objeto de uma ação disciplinadora e
civilizadora que foi estudada por Norbert Elias
45
.
Somente com a chegada das ordens religiosas modernas, herdeiras da Devotio
Moderna os teatinos, os barnabitas, as ursulinas, entre outras, e, especialmente, a
Companhia de Jesus e com as repercussões do Concílio de Trento, pode-se detectar uma
tendência de alteração desse cenário, cujas transformações iriam se desenvolver lentamente,
ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Além dos problemas institucionais, que de certa forma podem ser generalizados para
outras regiões européias, deve-se lembrar que a Igreja Católica enfrentava em Portugal as
limitações decorrentes do padroado
46
. Os reis de Portugal utilizaram as prerrogativas legadas
pelos papas para designar uma numerosa série de funções, dignidades e cargos eclesiásticos
e suas respectivas receitas econômicas, bem como erigir, conservar, ou permitir a construção
de igrejas, catedrais, mosteiros, conventos - tanto nos limites do próprio reino como no vasto
domínio colonial português.
44
Idem. v. 1. p. 62. Segundo o autor nos três primeiros quartéis do século XVI surgiu em Portugal “uma
corrente de sentimento religioso tipicamente popular”, o iluminismo. Recebeu a influência da Doutrina do
Corpo Místico de Cristo e do pietismo. Foi difundido pelas beatas. v. 1. p. 363.
45
Ver Norbert Elias. O processo civilizador.Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. 2
v.
46
A situação da Espanha era muito semelhante à de Portugal, nos séculos XIV e XV: corrupção
econômica do clero regular, abusos na provisão de benefícios eclesiásticos, deficiente instrução dos
sacerdotes e dos fiéis, desordem moral do clero em geral e difusão de algumas doutrinas errôneas, além da
crise econômica dos mosteiros e diminuição da população monástica. Ver Elisa Luque Alcaide e Josep-
Ignasi Saranyama. La Iglesia Catolica y América. Madri: Mapfre, 1992. p. 20-46.
100
Não se pode deixar de enfatizar, também, que se trata do momento de centralização
do poder real e o padroado consubstancia-se em um de seus aspectos: por um lado, o
padroado régio vai marcar todo o processo de consolidação da Igreja nos domínios coloniais
portugueses e, por outro, será responsável pela limitação da autonomia do clero secular
47
.
Em Portugal, no seu aspecto formal, as determinações do Concílio de Trento foram
rapidamente recebidas e colocadas em prática através do alvará de 12 de setembro de 1564,
de D. Sebastião, que dava pleno apoio à execução dos decretos tridentinos. Não obstante,
entre a letra da lei e sua execução houve grande lentidão. Diversos estudiosos da história da
Igreja em Portugal e no Brasil observam que essas reformas só se consolidaram no século
XVIII e até mesmo no XIX, uma vez que o programa tridentino era muito ambicioso e só
podia ser atingido a longo prazo. Entretanto, houve muitos esforços para concretizar as
deliberações de Trento, tais como a convocação de vários sínodos ou concílios diocesanos
na segunda metade do século XVI e, em menor quantidade, no século XVII, além da criação
de novas dioceses para facilitar e melhorar a qualidade do trabalho dos bispos
48
.
A ação das ordens modernas também teve importância na consolidação da Reforma
católica em Portugal. Não deixa de ser sintomático que a presença da Companhia de Jesus
em Portugal se tenha feito logo após sua fundação, em 1540.
O rei de Portugal D. João III fora informado por Diogo de Gouveia doutor em
teologia pela Universidade de Paris, anti-erasmista convicto e reitor do colégio de Santa
Bárbara, onde Inácio de Loyola e outros fundadores da ordem estudaram de que um dos
propósitos desse grupo de religiosos era a conversão de infiéis. O rei então enviou uma
ordem ao embaixador D. Pedro Mascarenhas em Roma, onde já se encontravam os
fundadores da Companhia, para colher informações sobre a vida e a formação intelectual
desses homens, solicitando ainda que os convidasse a “exercerem o apostolado nas
47
Miguel de Oliveira. História eclesiástica de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1994. p. 139.
48
Cf. várias obras: Laura de Mello e Souza. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; Ronaldo Vainfas. Trópico dos
pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1989; Francisco
José da Silva Gomes. O sistema de cristandade colonial: o reino de Deus rebaixado à colônia. Niterói,
1979. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. mimeo. Lana Lage da Gama
Lima. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil colonial. São Paulo, 1990. Tese (Doutorado
em História). Universidade de São Paulo. mimeo. Fortunato de Almeida. História da Igreja em Portugal.
Porto: Livraria Civilização Editora, 1968-1971. 4 v. Guilherme P. C. Pereira das Neves, O Seminário de
Olinda: educação, cultura e política nos tempos modernos. Niterói, 1984. 2 v. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal Fluminense. mimeo.
101
conquistas de Portugal”
49
. O embaixador entrou em contato com Loyola e com o papa,
solicitando seis padres para o propósito revelado pelo soberano português. Mas como isso
ocorreu nos momentos iniciais da fundação da ordem, só foi possível a destinação de dois
religiosos: Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha. O segundo veio a adoecer e em seu lugar
foi designado Francisco Xavier.
Francisco Xavier nasceu em 1506, no castelo de Xavier, perto de Pamplona. Com
19 anos foi estudar Humanidades, Filosofias e Artes na Universidade de Paris. No colégio de
Santa Bárbara conheceu Inácio de Loyola e sob sua direção praticou os exercícios
espirituais. Já Simão Rodrigues nasceu em Vouzela, Portugal, no ano de 1510, e ainda
criança viveu na corte em Lisboa como criado do Deão da Capela Real. A partir de 1527
estudou no mesmo colégio de Santa Bárbara, em Paris, onde também veio a conhecer
Loyola e praticar os mesmos exercícios espirituais.
Em 1540 chegaram a Lisboa acompanhados por D. Pedro Mascarenhas. Os dois
causaram grande impressão na corte portuguesa pela força de suas pregações, fazendo com
que o rei retivesse Simão Rodrigues para o trabalho religioso em Portugal, enviando
Francisco Xavier para o Oriente, em 1541.
José Sebastião da Silva Dias afirma que não se pode explicar o interesse de D. João
III pela Companhia de Jesus apenas pela fama de santidade que acompanhava os primeiros
jesuítas. Para o autor, além disso, devem ser agregados outros elementos explicativos: a
modernidade da cultura e a integração dos inacianos no momento da reforma católica e a
“espiritualidade adequada aos novos tempos de que eles se faziam arautos”
50
.
A Companhia de Jesus instalou-se em Portugal em 1542, tendo sido confirmado
como provincial Simão Rodrigues, em 1546, e já no próprio século XVI, vários colégios
foram fundados: em Coimbra (1547), em Évora (1553), em Braga e no Porto (1560), em
Bragança (1561), em Angra e Funchal (1570), o que demonstra que havia grande
preocupação por parte dos inacianos com a educação e a juventude. O número de
admissões crescia rapidamente: em 1544, 26; em 1546, 38.
Mas apesar da rápida expansão, ou justamente por causa dela, surgiu uma grave
crise. Como fundador da Companhia de Jesus em Portugal, Simão Rodrigues ditou muitos
49
Fortunato de Almeida. Op. cit. v. 2. p. 169.
50
José S. Silva Dias. Op. cit. v. 2. p. 641.
102
procedimentos na formação dos postulantes ao ingresso na ordem, antes mesmo que as
Constituições elaboradas por Inácio de Loyola tivessem sido consolidadas, o que gerou
conflitos. Na verdade, Loyola tinha dúvidas sobre a prudência do provincial dos jesuítas em
Portugal desde 1544. Mas foi só em 1552 que as tensões chegaram ao seu auge, com a
destituição de Rodrigues, acusado de quebra de disciplina. Logo depois foi chamado de volta
a Roma, onde enfrentou Loyola e exigiu um tribunal para julgar sua administração. O
resultado foi a proibição de voltar a Portugal. É claro que a destituição do cargo e o posterior
desterro de Portugal de Rodrigues tornaram pública uma crise que já se desenhava há algum
tempo. Segundo José Sebastião Silva Dias “a relutância pelos ministérios sacerdotais,
associada a uma nova tentação da vida eremítica” que assumiu após sua punição são
indicadores de que Simão Rodrigues não havia assimilado os preceitos de Loyola
51
. De
qualquer forma, apesar da perda de muitos discípulos e religiosos que, nesse momento de
crise, deixaram a Companhia em apoio a Rodrigues, não houve arrefecimento da tendência
de expansão da ordem em Portugal: em 1560 havia 350 jesuítas; em 1574, 552
52
.
O colégio de Santo Antão, em Lisboa, principal instituição administrativa da
Companhia de Jesus em Portugal, juntamente com a Casa Professa de São Roque, tornou-se
o centro formador dos jesuítas, além de atender aos alunos externos, e foi responsável pelo
envio de um grande número de missionários para o Oriente. Os colégios jesuíticos existentes
em Portugal tornaram-se, aliás, centros de recrutamento para os trabalhos evangélicos no
reino e nos domínios portugueses. O número de candidatos muitas vezes superava a
capacidade de treinamento que esses colégios eram capazes de dar, ao menos no período
inicial de formação da ordem
53
. A Companhia de Jesus era também responsável pelas
universidades de Coimbra (1555) e Évora (1559).
Portanto, os jesuítas rapidamente consolidaram sua presença na educação e no
ensino em Portugal, e fomentaram a ação evangelizadora e missionária em várias direções, no
próprio reino, na América, na África e no Oriente.
51
Idem. v. 2. p. 675-676.
52
Dauril Alden. Op. cit. p. 674.
53
Idem. p. 30-36. Apesar dos missionários enviados para o Oriente não serem apenas portugueses, é
verdade que o número deles sempre foi superior aos de outras nacionalidades.
103
3. A Igreja no Oriente: a ambição de um projeto
Durante a consolidação da presença portuguesa no Oriente através da ação dos
primeiros governadores e vice-reis, as cristandades do Oriente estavam subordinadas ao
vigário de Tomar, prior-mor da Ordem de Cristo. Logo o papado estabeleceu algumas
orientações básicas para a estruturação eclesiástica naquela região. A mais importante delas
foi determinar, através da bula Pro Excellenti Praeeminentia do papa Leão X, de 1514,
que todo o Oriente estaria sujeito ao bispado de Funchal. Dessa forma permaneceu, até que
Clemente VII criou a diocese de Goa no consistório de 1533, porém, a bula Aequum
Reputamus só foi expedida no ano seguinte, por seu sucessor, Paulo III. Abrangendo todos
os territórios desde o Cabo da Boa Esperança até a China, passando pela Índia, a diocese foi
entregue in perpetuum ao Rei de Portugal e a seus sucessores. Em 1557, a diocese de Goa
foi desmembrada, criando-se duas outras, e elevada a arcebispado, na Constituição
Apostólica Etsi Sancta Et Immaculata, continuando a pertencer in perpetuum ao padroado
português no Oriente. Assim, surgiram as dioceses de Cochim e Malaca; mais tarde, outras
dioceses foram criadas: Macau (1576); Funay (1588); Angamale (1594); Meliapor
(desmembrada da de Cochim em 1606); Nanquim e Pequim, ambas em 1690
54
.
Por essa longa descrição constata-se que uma das metas do Concílio de Trento
estava sendo posta em prática a partir da segunda metade do século XVI, com a proliferação
de dioceses que, no caso particular do Oriente, devido à vastidão territorial e à diversidade
cultural, tornava-se ainda mais urgente.
É interessante notar também que o maior número de dioceses concentrava-se no
litoral indiano: Cochim, Angamale, Meliapor e Goa, relevante sinal da maior presença lusitana
na região. Pelo destaque que assumia a arquidiocese do Oriente, Goa também era chamada
de “pequena Roma do Oriente”, consolidando sua importância ao associar a autoridade
eclesiástica à administrativa, na medida em que também se constituía como capital do Estado
da Índia. Além disso, os dignitários eclesiásticos eram ouvidos pelos vice-reis e governadores
54
Ver: Antônio da Silva Rego. O padroado português do Oriente: esboço histórico. Lisboa: Agência
Geral das Colônias, 1940. p. 15-23.
104
em questões locais, regionais, ou até mesmo mais gerais e participavam das decisões
55
, o que
Maravall define como “coordenação entre as instâncias administrativas”, ou, como afirma
Caio Prado Jr., “a ausência de competências bem definidas na administração portuguesa”
56
. É
importante entender que essas instâncias de poder não estavam separadas da forma pela qual
hoje em dia costumam ser classificadas, havendo justaposição de atribuições civis e
eclesiásticas, dos campos político e religioso.
Como já foi dito anteriormente, o clero que se estabeleceu no Oriente até meados do
século XVI compartilhava com os eclesiásticos que permaneciam na Europa as mesmas
características de má formação religiosa, somando-se a isso uma maior possibilidade daqueles
que tinham fraqueza vocacional em ceder a práticas distantes dos preceitos da fé pela
proximidade e a convivência com outras tradições culturais e religiosas naquela região.
Russel-Wood destaca que:
alguns comentadores contemporâneos, leigos e membros do clero,
concentravam a sua atenção na evidente imoralidade da sociedade
ultramarina portuguesa, que era mais notória relativamente a três aspectos:
a venialidade dos funcionários públicos e o abuso dos ocupantes de cargos
públicos, a ganância dos membros do clero e a licenciosidade sexual
desenfreada dos homens portugueses
57
.
As fronteiras entre os diferentes mundos que se tangenciavam no Oriente eram muito
tênues, o que possibilitava um contato permanente e muitas trocas decorrentes desse estado
de coisas. Havia muitos pontos que eram vistos como problemas para manutenção da
integridade religiosa. Um breve resumo deles, nesse momento, destacaria a convivência com
55
A. J. R. Russel-Wood. Os portugueses fora do Império. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(dirs.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores e Autores, 1998. v. 1 p. 268.
56
José Antonio Maravall. Estado Moderno y Mentalidad Social (siglos XV a XVII). Madri: Alianza
Editorial, 1972. p. 278-9, e Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,
1986. p. 300. No auge de sua irritação, Prado Jr chega a definir a administração portuguesa como um
"cipoal", referindo-se ao Brasil colonial. Acredito que se ele tivesse estudado o caso goês teria reiterado
essa afirmação. Ao adjetivar negativamente a estrutura administrativa lusitana, Prado Jr não percebeu que
era necessário fugir dos padrões atuais de organização político-administrativa. Por isso, considero que a
definição conceitual de Maravall é mais sensível ao que acontecia no século XVI. Outro autor importante
para o entendimento da estrutura administrativa portuguesa é Raymundo Faoro. Os donos do poder:
formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1984. especialmente o v. 1
57
A. J. R. Russel-Wood. Os portugueses fora do Império. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(dirs.). Op. cit. v. 1 p. 276. O autor está generalizando, mas sua observação atende à especificidade do caso
goês.
105
comunidades judaicas ou com um grande número de cristãos-novos que se deslocaram para
o Oriente, assim como o problema dos renegados que se aproximavam dos mouros ou de
outras tendências religiosas, além das práticas morais distante das normas estabelecidas pela
Igreja católica, tais como a bigamia, a sodomia, a onzena (usura) e os jogos de inspiração
gentílica. Muitas vezes essas questões alimentavam discussões que se transformavam em
sérios embates entre as autoridades civis e eclesiásticas
58
.
Há um ótimo exemplo em uma carta enviada ao rei de Portugal, D. Manuel I, por
parte do vigário-geral da fortaleza de Cananor, padre Julião Nunes, datada de 14 de outubro
de 1510. O documento permite perceber muitos dos elementos até aqui referidos, e ilustra a
possibilidade permanente da ocorrência de conflitos entre as autoridades civis e eclesiásticas
no Império português no Oriente. O vigário-geral informa ao rei que:
primeiramente eu prendi aqui um clérigo, por nome de Lopo Saquo, que
havia dois anos que tinha aqui uma manceba com um filho, e o mandei de
armada, para o apartar de sua conversação, e parecia-me ser mais serviço
de Deus e Vosso irem de armada cinco ou seis clérigos que aqui havia a
este tempo, irem de armada e confessarem a gente de lá que estarem na
terra, com mancebas gordas. [...] Depois que este mandei, determinei de
mandar outro, do teor deste e o prendi e tirei inquirição dele, e achei-o
culpado, que não era para celebrar missa, de idiota, mais, havia três anos
que tinha uma manceba, e provou que saía dos travesseiros de noite, e que
falava de luxúria com os leigos da igreja; e também se lhe provou que ia a
casa de sua afilhada a meia noite [...] e que era bêbedo [...] e outros muitos
vícios se lhe provaram para clérigo
59
.
Mas apesar de tantas culpas comprovadas (o padre não informa o nome do segundo
religioso), o capitão da fortaleza solicitou diversas vezes ao vigário que libertasse esse clérigo
(não há explicação da motivação para essa solicitação), sendo que sua resistência em manter
58
Ana Cannas da Cunha. A Inquisição no Estado da Índia - origens (1539-1560). Lisboa: Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo, 1995. p. 90-91. A expressão “jogos de inspiração gentílica” provavelmente
refere-se aos jogos de dados e cartas muito populares na Índia que eram feitos em casas de jogos
denominadas de gaogao, ou gaugau. O vocábulo designa também “vociferação” e “balbúrdia”, além de
uma renda que era cobrada pelos governantes sobre os lucros da casa de jogos. Essas práticas estavam
associadas a apostas e endividamentos que alimentavam a prática da onzena (pagava-se 11 por 10).
59
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões do padroado português do
Oriente (Índia). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947. v. 1. p. 110.
106
o prisioneiro provocou a irritação do capitão. Dessa forma, o conflito se estabeleceu, e é
narrado com viva indignação por parte do padre Julião Nunes:
e porque os capitães nesta terra se querem adorados como deuses, como
já tenho escrito a Vossa Alteza, porque não quis fazer o rogo, me começou
a maltratar de palavras, injúrias [...] Me requereu que lhe mostrasse os
poderes que tinha, e eu lhos mostrei e me disse que não valiam nada, e que
lhe mostrasse como era vigário, e de tudo se riu e disse que, pois ele era
capitão desta fortaleza, ele tinha poder em todos da fortaleza, assim leigos,
como clérigos e, sem mais tardar, me tirou logo de vigário e fez um clérigo
que não sabe dizer missa
60
.
Por fim, o padre Julião Nunes lamenta que, durante o período em que era vigário de
Cananor, quando ao longo de cinco meses pudera fazer oito casamentos, e ensinar alguns
moços a ler e ajudar missa, seu trabalho tenha sido prejudicado: “como fui preso, tudo se
perdeu, e outros fugiram para os mouros”
61
. Por último, ainda acrescentou uma advertência
ao rei, destacando o grande afluxo de cristãos-novos para o Oriente:
uma coisa deve Vossa Alteza lá em Portugal defender porque quando
Vossa Alteza cuida que manda cá mil homens, não manda duzentos,
porque vêm cá muitos cristãos-novos, e não vos fazem nenhum serviço, e
assim vêm cá moços que não pelejam, e homens mancos de pés e mãos, e
velhos que não se podem ter
62
.
Um outro exemplo pode ser retirado da correspondência do próprio Afonso de
Albuquerque ao rei, datada de 1 de abril de 1512. Trata-se de acusação a um frade de São
Domingos, vigário de Cananor, de ter roubado mais de setecentos cruzados dos defuntos,
60
Idem. p. 110-111. Note-se a menção a cartas anteriores fazendo outras queixas. Isso era prática comum, e
os reis portugueses chegavam mesmo a incentivar que membros civis e eclesiásticos enviassem suas
impressões e denúncias do que consideravam procedimentos incorretos. Se isso municiava o rei de
controvertidas versões sobre um mesmo assunto, por outro lado, alimentava toda sorte de intrigas. Mas o
historiador não pode se queixar, pois graças a essa prática tem acesso a diferentes perspectivas de muitas
questões.
61
Idem. p. 114.
62
Idem. p. 114
107
pois fazia os testamentos e se constituía como herdeiro, além de ter ameaçado os casados de
excomunhão, tirando de cada um deles, entre um ou dois cruzados (e eram cerca de 150)
63
.
Já em 1530 pode-se registrar uma outra ilustração. Em carta ao rei D. João III,
datada de 25 de setembro, frei Vicente de Laguna, também da ordem de São Domingos, mas
aparentemente melhor intencionado do que seu confrade citado por Albuquerque, faz uma
série de considerações sobre o estado da cristandade em Goa. Ele diz:
há nestas partes alguns padres clérigos os quais não tão somente dão mau
exemplo aos portugueses, mas também aos novos cristãos da terra, entre
os quais padres são sete ou oito [...] porque pouco fermento basta para
corromper muita massa, e deve Vossa Alteza mandar que os padres que
vierem sejam homens de grande exemplo, e se estes não vierem, mas vale
que não venha nenhum. [...] Senhor, deve Vossa Alteza mandar que os
cristãos da terra sejam bem ensinados nas coisas da fé [...]
64
.
Além dessas denúncias, por vezes as autoridades eclesiásticas agiram para combater
os desvios. Exemplo disso foi um inquérito sobre o padre Diogo de Morais, vigário de Goa,
instalado pelo Bispo João Afonso de Albuquerque em 1539, baseado na acusação de
completo despreparo desse clérigo para as funções religiosas do cargo eclesiástico. Foram
ouvidas cerca de dezoito testemunhas, a maioria de religiosos seculares, alguns regulares, além
de leigos. Todos confirmaram as acusações contra o padre, muitos acrescentando detalhes
significativos sobre a conduta do vigário, outros de forma curta e breve, apenas concordando
com a inquirição.
O testemunho do padre Estevão Madeira afirmou que:
havia doze anos que ele conhecia nesta Sé de Goa ao dito Diogo de
Morais, e que deste tempo a cá, a este cabo, nunca o soube viver em paz,
mas antes que com todos os padres que foram e são, desde o dito tempo,
com todos o sabe ter discórdia e os desonrar de muitas más e feias
palavras, chamando-lhes de sapateiros e almocreves, vilões ruins, a uns
ameaçando que lhes mandaria dar cutiladas e a outros pancadas [...] E
perguntado se sabia reger o que a seu ofício pertencia, assim ministrar os
63
Idem. p. 145-146.
64
Idem.v. 2. p. 192-193.
108
sacramentos, batizar, entre outras coisas, e que quanto ao regimento da
Igreja, disse que o dito vigário o não sabia, nem as cerimônias delas,
segundo os tempos
65
.
Outra testemunha foi o padre Fernão Aires, que confirmou o despreparo do vigário,
informando que:
quando ele dizia missa e ele, testemunha, servia no altar, ele lhe perguntava
como havia de fazer e que ele, testemunha, lhe dizia: assim haveis de fazer e
isto em algumas coisas. E perguntado se sabia bem dizer missa, e se lia
bem, disse que lia muito mal e com muitas mentiras. E perguntado que
sacerdote era, disse que era o mais fraco que nunca vira. E perguntado se
sabia dar os sacramentos da Igreja, disse que não sabia batizar, nem dar
comunhão, nem benção, nem fazer a estação, nem bem nenhum
66
.
Várias testemunhas deram como exemplo da incúria do vigário o episódio do batismo
de rei de Maluco, mas só o testemunho do padre João Fernandes proporcionou uma narrativa
mais detalhada do acontecido:
e perguntado se sabia ministrar os sacramentos da Igreja que pertencem a
seu cargo de vigário, disse que é insuficiente de todo, que nenhuma coisa
sabe, que quando fizeram cristão ao rei de Maluco, ele o batizara e ele
testemunha, estava de presente, o qual vigário Diogo de Morais não sabia
o que havia de dizer no dito batismo, e que Nuno da Cunha, governador,
que era padrinho, se estava rindo do dito vigário e ele, testemunha, lhe
estava dizendo o que havia de dizer, e que ele, Diogo de Morais, não
acertava o que havia de dizer por não saber
67
.
Houve ainda uma testemunha, o padre Francisco Fernandes, que fez acusação ainda
mais grave, informando ter ouvido uma vez o vigário dizer que era o próprio Jesus Cristo.
Infelizmente, Antônio da Silva Rego não transcreve o resultado do inquérito, provavelmente
porque não conseguiu localizá-lo, mas o peso dos testemunhos e sua gravidade devem ter
65
Idem.v. 2. p. 270. Segundo D. Raphael Bluteau. Vocabulário Portuguez e Latino. Rio de Janeiro: UERJ,
2000. [cd-rom], Almocreves são homens que levam besta de carga de uma parte a outra.
66
Idem.v. 2. p. 273.
109
contribuído para uma condenação do vigário
68
. De qualquer forma, trata-se de mais um
exemplo para reforçar a visão da desqualificação do clero local.
Outro foco de problemas enfrentado pela Igreja ao instalar-se no Oriente foi a
existência de comunidades cristãs muito antigas na região. Os cristãos da costa do
Coromandel que tradicionalmente atribuem sua conversão ao apóstolo São Tomé , ao
longo do tempo sofreram várias perseguições que os levaram a migrar para outras regiões,
especialmente para a serra do Malabar, espalhando-se desde Cangranor até Coulão,
chegando a Travancor e ao reino de Calicute. Aparentemente, esses grupos foram perdendo
muitas das práticas religiosas cristãs, mas acabaram associando-se aos bispos da Babilônia,
por volta do século VI. Quando esses últimos tornaram-se nestorianos, levaram com eles a
cristandade do Malabar
69
. Havia também relações com os cristãos da Síria.
Com a expansão do Islão na região da antiga Pérsia, houve um isolamento dos
cristãos da Índia que começaram a mesclar ao seu cotidiano elementos culturais hindus. No
século XIII, o franciscano Montecorvino esteve na Índia e fez alguns batismos, e no século
XIV, o dominicano Jordanus, juntamente com quatro irmãos leigos Tomás de Tolentino,
Jácome de Pádua, Pedro e Demétrio chegaram a fazer um trabalho missionário em São
Tomé de Meliapor, onde foram venerar as relíquias do apóstolo depois de terem passado
pela Pérsia e por Ormuz
70
. É claro que essas iniciativas isoladas não promoveram o
estabelecimento dos dogmas romanos entre essas populações cristãs. Pode-se afirmar que os
cristãos da Índia, de uma maneira geral, mantiveram-se fiéis ao patriarca da Pérsia,
designando-se como igreja nestoriana siro-caldaica do Malabar, com sede de arcebispado
em Angamale, até os finais do século XVI
71
.
67
Idem.v. 2. p. 278. Geralmente quando um homem de destaque se convertia ao cristianismo, a maior
autoridade presente era seu padrinho, cedendo-lhe o sobrenome, inclusive, como forma de prestígio.
68
Idem.v. 2. p. 275. Há registros de outros inquéritos como o que investigou graves acusações contra o
vigário-geral Sebastião Pires e seu criado Pero Gonçalves que teriam roubado dinheiro das esmolas, a prata
religiosa que transformaram em bacia , além de fazerem e desfazerem casamentos e terem convívio
íntimo com mulheres.
69
Fortunato de Almeida. Op. cit. v. 2. p. 18.
70
Ver Samuel Hugh Moffett. A history of Christianity in Asia: beginnings to 1500. New York: Orbis
Books, 1998. v. 1. p. 265-271 e especialmente p. 498-503 e Maria de Deus Beites Manso. Op. cit.. p. 28-29.
71
Segundo Antônio da Silva Rego. O padroado português... p. 19-20, em 1594, Angamale passou à fé
católica e foi incorporada ao padroado português do Oriente como bispado por breve papal de Clemente
VIII, no ano seguinte.
110
Mas a presença portuguesa alterou o equilíbrio existente. Na ótica lusitana, esses
cristãos eram imperfeitos, mal formados, necessitando de ensinamentos e instruções
72
.
Mesmo assim, no início da fixação lusa na costa ocidental da Índia no século XVI, muitos
desses cristãos foram doutrinados na fé romana e utilizados como clérigos nas igrejas locais,
devido à carência de religiosos vindos do reino
73
. De qualquer maneira, essa foi mais uma
tensão que freqüentava as preocupações dos membros da Igreja no Oriente.
A partir de meados do século XVI, os procedimentos isolados de investigação das
condutas dos religiosos e dos fiéis foram substituídos por um maior aparato, obedecendo
inclusive aos ditames do Concílio de Trento. É significativa a atividade na Sé de Goa: entre
1567 e 1606 houve reuniões episcopais; nos anos de 1567, 1575, 1585, 1592 e 1606 houve
concílios provinciais; as Constituições do Arcebispado de Goa são de 1568. Além de
obedecer às determinações tridentinas, para Caio Boschi a efervescência desse período
também retrata “o espírito de intolerância e de radicalismo religioso, manifestado, por
exemplo, na decisão de destruir templos hindus existentes naqueles sítios, na perseguição aos
sacerdotes e na queima de livros sagrados de outras crenças e credos”
74
.
Portanto, os elementos que concorreram para a viragem no comportamento das
autoridades civis e eclesiásticas em relação às populações goesas, ocorrida a partir da década
de 40 do século XVI, podem ser entendidos como decorrentes da associação da
radicalização religiosa, alimentada pela crise da cristandade européia, com o próprio desgaste
das relações interétnicas e culturais, decorrente da convivência muito próxima entre cristãos e
hindus e ainda outras religiosidades, no espaço da cidade de Goa e territórios adjacentes. É
nessa conjuntura histórica que a Companhia de Jesus fixou-se no Oriente.
72
Os cristãos de São Tomé “não acreditavam na virgindade de Maria, na transubstanciação e na
encarnação do Verbo Divino, não veneravam imagens e apenas consideravam como sacramentos o
batismo, a eucaristia e a ordem”. Maria de Deus Beites Manso. Op. cit. p. 66.
73
C. M. I. Mundadan. The arrival of the Portuguese in India and the Thomas Christians under Mar
Jacob (1498-1552). Bangalore: Dharmaram College, 1967. p. 80-81. Ver também Antônio Lourenço
Farinha. A expansão da fé no Oriente: subsídios para a História colonial. Lisboa: Agência Geral das
Colônias, 1943. p. 19. O autor afirma que já em 1505 D. Manuel ordenava ao vice-rei D. Francisco de
Almeida enviar dois ou três sacerdotes cristãos da terra para Portugal e lá eles completariam sua educação.
74
Caio Boschi. Estruturas eclesiásticas e Inquisição. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.).
Op. cit. v. 2. p. 437. O autor refere-se ao decreto do vice-rei de 4 de dezembro de 1567 onde todos os
templos hindus deveriam ser demolidos e todos os sacerdotes não cristãos deveriam ser expulsos de Goa.
111
4. Francisco Xavier e os “soldados de Cristo” nas partes orientais
O início da atuação da Companhia de Jesus no Oriente está associado ao nome de
Francisco Xavier
75
. Delumeau e Monique Cottret advertem que seu apostolado na Ásia está
marcado por referências a seus grandes feitos, o que por vezes encobre sua verdadeira face
76
.
Portanto, cuidadosamente deve-se separar o mito, que foi construído ao longo do tempo, do
homem que viveu a sua época.
Francisco Xavier partira de Lisboa em abril de 1541 na nau que transportava também
o novo governador do Estado da Índia, Martim Afonso de Sousa, só chegando a Goa em
maio de 1542. Na longa jornada cuja duração deveu-se à necessidade de se invernar na
ilha de Moçambique devido a atrasos provocados por dificuldades diversas na parte atlântica
da viagem foi acompanhado por Francisco de Mansilha e Paulo Camarte, ou Micer Paulo,
como é chamado nas cartas, que tinham entrado na ordem recentemente. Xavier estava
investido do cargo de Superior das Missões no Oriente e no de legado do papa, o que lhe
granjeava grande autoridade.
Nos dez anos em que viveu no Oriente foi responsável por grande número de
batismos (as contas variam entre centenas de milhares a cerca de trinta mil, sendo que o mais
provável é este último número)
77
; pela estruturação administrativa inicial da Companhia de
Jesus e por um número impressionante de viagens, além da própria amplitude delas: costa da
Pescaria, Cochim, Meliapor, Malaca, Molucas, Japão, chegando próximo a China, que
estava fechada à entrada de estrangeiros, onde aliás veio a falecer, em dois de dezembro de
1552. Dessa forma, pode-se perceber que o tempo que passou na cidade de Goa,
propriamente dita, foi diminuto. Mas através de uma freqüente correspondência ficava a par
dos problemas e questões pertinentes a sua função e tomava as decisões necessárias.
A Província de Goa da Companhia de Jesus estava submetida à Assistência de
Portugal e era responsável, de 1542 até 1601, pela administração da presença jesuítica em
75
Os Franciscanos haviam se instalado em Goa em 1518; os Dominicanos instalaram-se em 1548; os
Agostinianos em 1572, os Carmelitas em 1607. Cf. Dauril Alden. Op. cit. p. 43.
76
Jean Delumeau e Monique Cottret. Op. cit.p. 141.
77
Idem. p. 141.
112
áreas que iam do litoral da Índia, até o Japão e a China. A partir de 1601, foram criadas
outras províncias no Oriente: a do Japão e do Malabar e ainda a Vice-província da China.
Em Goa concentrava-se todo o movimento de chegada dos jesuítas e sua posterior
distribuição em função das tarefas determinadas pelo Provincial. Ali também se encontrava o
colégio de São Paulo, que não foi fundado pelos jesuítas, mas que passou a ser administrado
por eles, após instâncias das autoridades civis e eclesiásticas de Goa junto ao próprio
Francisco Xavier. Após um período inicial de hesitações, a Companhia de Jesus acabou por
não admitir indianos em seus quadros, desde o último quartel do século XVI, apesar de ter
grande quantidade de estudantes de várias etnias nos colégios pertencentes à ordem e de ter
sido responsável pela formação de grande número de clérigos seculares de origem indiana
78
.
Havia ainda na capital do Estado da Índia pertencentes à ordem jesuítica a Casa Professa, a
igreja de Bom Jesus e a Casa de provação, com o noviciado. Os jesuítas eram também
responsáveis pela administração do Hospital Real de Goa. Os inacianos possuíam uma
tipografia na cidade e isso possibilitou muitas publicações que serviram para a divulgação e
realização dos trabalhos de evangelização.
A missionação nos territórios em volta da cidade de Goa foi repartida entre as ordens
religiosas a mando do governador Francisco Barreto, em 1555. Os franciscanos ficaram com
Bardez; os jesuítas com Salcete e algumas ilhas; e os dominicanos com outras ilhas próximas,
algo semelhante ao que aconteceria, posteriormente, na região amazônica
79
. No entanto, a
ocupação e o desenvolvimento das atividades missionárias não foram imediatamente
colocadas em funcionamento devido a problemas da administração da Companhia de Jesus
naquele momento.
78
Em 1588, o visitador da Companhia de Jesus Alessandro Valignano reuniu no “Sumário das regras para
o provincial da Índia” uma orientação geral do governo da Província da Índia e lá recomendava que “os
cristãos naturais da terra de qualquer nação que sejam, excetuando os japões, não se admitam na
Companhia [...] não somente os naturais da terra, mas também os mestiços e castiços parece que será mais
seguro não receber nenhum de ordinário [...] e quanto aos castiços portugueses nascidos em Índia não se
devem receber senão mui raramente [...].In: José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica
Societatis Iesu, 1979. v. 14. p. 834.
79
No final do século XVII foi feito esse tipo de divisão no Estado do Maranhão e Grão-Pará. Grosso
modo, coube aos carmelitas o território compreendido pelos rios Solimões, Negro e Branco; aos
franciscanos, Cabo Norte, ilha de Marajó e afluentes da margem norte do rio Amazonas; aos jesuítas, a
região dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira; aos capuchinhos, o baixo Amazonas; e aos
mercedários, o médio Amazonas até próximo ao rio Urubu. Cf. Ângela Domingues. Estado do Grão-Pará e
Maranhão In: Maria Beatriz Nizza da Silva (org). Dicionário da História da colonização portuguesa no
Brasil. Lisboa/São Paulo: Verbo, 1994. p. 314-319.
113
Os recursos econômicos utilizados pelos jesuítas para a manutenção dos colégios e
outras casas religiosas, além dos seus esforços de missionação, provinham de várias origens.
Havia as doações dos reis, vice-reis e outros nobres e a renda decorrente de aluguéis de bens
que lhes foram doados e de terras que lhes pertenciam. Muitas vezes os padres da
Companhia de Jesus envolveram-se nas transações do comércio da pimenta e de outros
produtos, obtendo grandes lucros, prática que foi sempre alvo de polêmicas e críticas contra
os inacianos
80
. Mas a maior fonte de sustentação da ordem em Goa resultava do pagamento
das rendas dos pagodes, com destaque para os de Salcete, cuja a responsabilidade de
missionação era exclusiva dos jesuítas, aproveitando a própria lógica de tributos que as
comunidades goesas costumavam pagar tradicionalmente, muito antes da presença
portuguesa
81
.
Para o ano de 1596, a título de exemplo, há a informação dos rendimentos dos
jesuítas em comparação com outras ordens religiosas em Goa, num total de 9418$438 réis de
rendimentos auferidos, distribuídos conforme quadro abaixo:
QUADRO I
RECEITAS DAS ORDENS RELIGIOSAS EM GOA (1596)
ORDEM RECEITA PERCENTUAL
JESUÍTAS 6686$438 71%
FRANCISCANOS 874$400 9,5%
DOMINICANOS 1238$400 13%
AGOSTINIANOS 619$200 6,5%
Fonte: Artur Teodoro de Matos. «Teres e haveres» das ordens religiosas de Goa em finais do século XVI
(algumas notas para o seu estudo). In: Studia. Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses.
Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Instituto de
Investigação Científica Tropical, 1996. 1 Cd-ROM. v. 53. p. 4.
Apesar de não ser possível acompanhar as receitas por um período longo, dada a
escassez de fontes que registrem de forma amiudada esses rendimentos, o exemplo acima é
80
No já citado “Sumário das regras para o provincial da Índia” de Valignano há uma recomendação:
“ainda que na regra diz: «os nossos não se metam em negócios seculares», todavia quando estes se
endereçam a negócios espirituais para bem da cristandade e conversão e mais ajuda das almas, se podem
com licença dos superiores tratar alguns deles pelos nossos, negociando-os em modo conveniente e
religioso, sem prejuízo de ninguém [...]”. In: José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica
Societatis Iesu, 1979. v. 14. p. 857-858.
114
deveras indicativo do poder econômico da Companhia de Jesus em Goa em finais do século
XVI, ainda que os encargos dos jesuítas fossem consideravelmente maiores do que os das
outras ordens religiosas.
A principal fonte utilizada pelos pesquisadores para estudar a Companhia de Jesus é
a produção epistolar dos seus religiosos. Em relação às cartas dos jesuítas, cabem aqui
algumas reflexões, antes de serem apresentados alguns exemplos que fundamentarão muitas
observações sobre a ação inaciana. Em um interessante ensaio, Alcir Pécora analisa de forma
acurada a estrutura formal das cartas dos membros da Companhia de Jesus atribuindo a elas
a característica de serem “um mapa retórico em progresso da própria conversão”
82
. Isso
significa afirmar que são produzidas como instrumento decisivo para o êxito da ação
missionária jesuítica. O autor recupera as correntes definidoras do estilo epistolar remontando
ao século IV, chegando às interpretações e formulações dos humanistas sobre a questão, que
teriam contribuído para a sedimentação da proposta jesuítica.
Pécora percebe que na Fórmula do Instituto, base das Constituições da
Companhia de Jesus, publicadas em 1558, existem várias menções a exercícios e obrigações
dos iniciados e dos admitidos na ordem para que desenvolvam leituras e aprendam as técnicas
de redação de cartas, assim como a observância de uma comunicação assídua por escrito
entre os representantes na escala hierárquica inaciana. Dessa forma, pode-se perceber que:
a presença ostensiva da carta no corpo da Companhia evidencia que sua
função está pensada ao menos segundo três aspectos decisivos: o da
informação, o da reunião de todos em um e, enfim, o da experiência mística
ou devocional. Com efeito, o primeiro deles fica logo claro quando se
conhece que a correspondência é muitas vezes o único meio de relato dos
sucessos passados nas várias frentes da ação jesuítica espalhada ao longo
do vastíssimo novo orbe. Nessa perspectiva [...] o segundo aspecto
manifesta-se justamente aí, quando os acontecimentos enfeixados em linhas
de informação reforçam igualmente a rede espiritual dos irmãos dispersos
no mundo, de cuja solidariedade de ação e unidade de propósito depende
a sobrevivência do corpo inteiro da Companhia e a eficácia global de sua
intervenção na história, enquanto co-autora da Providência. Contudo, esse
81
Ver tábuas de despesas e receitas em Charles J. Borges. The economics of the Goa jesuits: an
explanation of their rise and fall. New Delhi: Concept Publishing Company, 1994. p. 162-183. Não há uma
informação contínua desses dados, mas sim anos e pequenos períodos para os séculos XVI, XVII e XVIII.
82
Alcir Pécora. Cartas à segunda escolástica. In: Adauto Novaes (org.). A outra margem do Ocidente.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 373-414.
115
corpo único, em que todos agem como um só, ainda não se compreende
verossimilmente enquanto a unidade não se traduz em experiência mística,
isto é, como êxtase da participação na plenitude de uma vida espiritual,
que, no limite, exige a perda do cuidado de si. Nesse ponto, as letras
enviadas de toda parte do mundo constituem-se, ao mesmo tempo, como
particulares e como exemplares, quer dizer, como referência histórica única
e como alegoria espiritual comum numa palavra: como escrita humana
análoga às divinas escrituras. As cartas cumprem aqui a função de atualizar
a missão apostólica e a palavra de Deus [...]
83
.
Para consolidar suas afirmações, estuda a correspondência de Inácio de Loyola e
identifica uma espécie de metaepístola, referência exemplar daquilo que o fundador da
Companhia de Jesus recomendava como adequado às obrigações de um jesuíta. A estrutura
das cartas apresentada por Pécora é: salutatio (a saudação); captatio benevolentiae
(obtenção da simpatia do leitor); narratio (o relato dos acontecimentos); petitio (o pedido de
algo necessário para a continuação da obra) e conclusio (a conclusão). A partir dessa
classificação, o autor analisa as cartas de Nóbrega.
É importante entender que as cartas dos jesuítas assumiram uma função de
propaganda e legitimação da Companhia de Jesus na Europa católica, pois ao informar os
grandes feitos fomentava a admiração por suas ações. Aparentemente essa função foi
conscientemente trabalhada por parte do fundador da ordem, uma vez que, em 1541, Inácio
de Loyola instituiu a hijuela, onde determinava que os problemas enfrentados pelos jesuítas
deveriam ser escritos em folha separada da carta que informava os feitos edificantes e
exemplares
84
.
Munido das cautelas sugeridas por Delumeau, Cottret e da abordagem analítica
proposta por Pécora, a análise do texto das cartas de Francisco Xavier torna-se mais
elucidativa. Reconhecido como o mais fiel dos discípulos de Loyola, em sua correspondência
vemos com que obediência executa a tarefa de escrever cartas, além das quase semanais para
os seus subordinados, as anuais a Simão Rodrigues, a Inácio de Loyola, aos colegas do
Colégio de Santo Antão, ao próprio rei de Portugal e ao Papa. Em um trecho de sua carta
para Inácio de Loyola datada de 27 de janeiro de 1545, Xavier diz saber que Loyola lhe
escreve anualmente, assim como ele escreve para o Geral, mas informa que as cartas de
83
Idem. p. 381-382.
116
Loyola não chegam todas a seu destino, e imagina que o mesmo acontecia com aquelas
enviadas por ele
85
.
Xavier redige cartas em latim, em português e em castelhano. Pode-se perceber que
não domina muito bem a língua portuguesa, mas a semelhança com o castelhano não impede
de tornar seu texto compreensível. Do ponto de vista formal, as cartas de Xavier estavam
organizadas a partir das proposições estruturais de Inácio de Loyola, identificadas por
Pécora.
No dia 20 de setembro de 1542, Francisco Xavier escreve várias cartas. Em uma
delas, endereçada a Inácio de Loyola, pede a intervenção do companheiro de fundação da
ordem junto ao papa para obter algumas graças pretendidas pelo governador do Estado da
Índia:
[...] esta cidade está em uma ilha, a qual é de três léguas, há nesta ilha
algumas ermidas de Nossa Senhora mui devotas, ricas de edifícios e
ornamentos [...], pede o senhor Governador para acrescentamento da
devoção destas casas, e para que em suas festividades Nossa Senhora seja
deveras honrada de vivos templos espirituais, que em tais dias todos os que
se confessarem e comungarem ganhem indulgência plenária visitando as tais
ermidas; e os que não se confessarem e comungarem que não as ganhem.
E destas graças há mais necessidade na Índia que em outra parte de
cristãos; porque aqui há poucos confessores e muitos cristãos, assim
portugueses como naturais da terra. E muitos gentílicos se convertem cada
dia, todos na Quaresma confessarem-se não é possível; e o que nesta parte
o senhor Governador pretende é fazer que toda a gente se confesse e
comungue; e para isto demanda de Sua Santidade estas graças, para atrair
a gente aos sacramentos e fazer com que todos conheçam os verdadeiros
tesouros que Cristo Nosso Senhor nos deixou nesta vida para ir à outra
86
.
Pode-se constatar, em primeiro lugar, que já era possível identificar dois problemas
enfrentados por Xavier logo no início de seus trabalhos no Oriente: a grande disparidade entre
o número de fiéis e o de religiosos, e a falta de qualidade doutrinal na conversão, que havia
privilegiado a quantidade. De certa forma, a ação do jesuíta contribuiu para a continuidade da
84
José Eisenberg. Op. cit. p. 51-56.
85
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões do padroado português do
Oriente (Índia). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947. v. 3. p. 143.
86
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 43-44.
117
prática de se fazer batismos em massa, pois “num período de três dias em 1548, foram
batizadas 912 pessoas em apenas três das freguesias da cidade de Goa”
87
. Para Francisco
Bethencourt a prática de batismo em massa e a de exclusão dos não convertidos ao acesso a
cargos da administração apenas repetiam as ações violentas que já tinham sido usadas na
conversão forçada dos judeus em 1497
88
.
Mesmo entre os primeiros jesuítas que se fixaram em Goa a questão do batismo em
massa não era unanimidade. O padre Antônio Criminal escreveu uma carta em italiano a
Inácio de Loyola em 1545, anotando as primeiras impressões, logo após sua chegada. O que
causou maior aflição ao padre foi o procedimento do batizado feito pelos jesuítas no colégio
de Goa, “sem ensinar coisa alguma, pois eles chegam e dizemos que queremos que sejam
cristãos; ao fim da prédica, quando se predica, rapidamente os batizamos”. Descreve o
procedimento: “dizemos quatro ou três palavras na terceira pessoa declarando-lhes que coisa
devem crer, declaramos os mistérios da cerimônia de batismo, e isto sempre com intérprete”.
Criminal declarou-se em caso de consciência e foi consultar o mestre Diogo, do colégio de
São Paulo, citando São Tomás de Aquino, que dizia da necessidade de seis meses para se
fazer um homem prudente, e Silvestre Prierias, que se baseava na disciplina sacramental, cuja
recomendação era o catecumenato durar 40 dias, reproduzindo o tempo da Quaresma.
Contrariado, ouviu a pragmática resposta do padre Diogo, que disse “deste modo não
batizaria nenhum”. E por fim confessou não entender o que acontecia, pedindo orientação ao
Geral da Companhia sobre como proceder
89
.
Pode-se dizer que a grandiosidade e a pompa das cerimônias de batismo que
ocorriam na Índia eram uma espécie de compensação pelos poucos cuidados doutrinais na
preparação desse sacramento. É importante notar que as responsabilidades e gastos nesses
eventos eram assumidos pela Coroa portuguesa, que comprava as vestes para os neófitos e
promovia as festas relacionadas ao evento. Tratava-se de um acontecimento de grande
87
M. N. Pearson. Os portugueses na Índia. Trad. Ana Mafalda Telo. Lisboa: Editorial Teorema, 1990. p.
131.
88
Francisco Bethencourt. A Igreja. In: História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores e
Autores, 1998. v. 1 p. 376-377.
89
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 171-172. Carta do padre
Antônio Criminal a Inácio de Loyola de 7 de outubro de 1545. O padre Antônio Criminal morreu
assassinado por Badagás em 1549, na missão da costa da Pescaria, após ter sido indicado por Xavier para
ser superior daquela missão. Badagá era o nome usado para designar os habitantes do reino de Bisnaga.
118
importância social e de uma estratégia de legitimação daqueles que se convertiam ao
cristianismo
90
.
Em quase todas as cartas endereçadas à Europa, o padre Francisco Xavier pedia o
envio de mais companheiros, com a recomendação precípua de terem boa saúde para
poderem agüentar os rigores dos trabalhos missionários
91
. Narrava também muitas
características das populações indianas, inclusive das cristãs. Em uma carta endereçada aos
confrades da Europa, datada de 1545, Xavier contou que estivera em São Tomé (Meliapor),
“onde dizem os gentios da terra que está o corpo de São Tomé Apóstolo. Há em São Tomé
mais de cem portugueses casados. Há uma igreja muito devota e todos têm certeza que está
ali o corpo do glorioso Apóstolo”
92
. É interessante notar que a crença nas viagens de São
Tomé era uma referência constante entre os padres da Companhia. Para comprovar essa
afirmação, basta lembrar as narrativas de jesuítas no Brasil do século XVI, que associavam o
herói civilizador do mito de criação das tribos tupi-guarani, o “Pai Sumé”, ao apóstolo de
Jesus
93
.
Nas cartas que trocava com os seus subordinados, às vezes dava orientações para
traduções da doutrina nas línguas locais, num esforço de criar a possibilidade da transferência
do material religioso da cultura européia para a hindu, numa clara atitude de mediador cultural,
construindo as pontes lingüísticas, sistemas de significados e significantes, entre os mundos em
contato:
no credo, quando dizeis enaquvenum em lugar venum direis vichuam,
porque venu[m] quer dizer “quero” e vichuam quer dizer “creio”: é
melhor dizer “eu creio em Deus”, que não dizer “eu quero em Deus”. Não
90
Maria de Deus Beites Manso. Op. cit. p.255-258.
91
Ao comparar-se com outras cartas de jesuítas do Oriente, ou ainda com as de inacianos da América
portuguesa, como Nóbrega, ou, mesmo depois, Vieira, percebe-se que este era um padrão que se repetia.
Havia sempre a solicitação, às vezes dramática, de envio de mais religiosos.
92
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 235. Carta de Francisco
Xavier a seus confrades na Europa de 10 de novembro de 1545.
93
Para detalhamento da questão ver Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: os motivos edênicos
no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1992. p. 108-129 e Renato Pereira
Brandão. A cruz de Cristo na Terra de Santa Cruz: a geopolítica dos descobrimentos e o domínio
estratégico do Atlântico sul. Niterói, 1999. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense. Mimeo. p. 119-131.
119
direis vão pinale, porque quer dizer “por força”, e Cristo padeceu por
vontade e não por força
94
.
Outras vezes apenas consolava aqueles que estavam cansados e contrariados com os
trabalhos de missionação:
nem vos desconsoleis em ver que não fazeis tanto fruto com esses cristãos
como desejais, por serem eles dados a idolatrias e el-rei ser contra os que
se fazem cristãos, e olhai que mais fruto fazeis do que cuidais em dar vida
espiritual às crianças que nascem, batizando-as com muita diligência e
cuidado, como fazeis; porque se bem olhais achareis que poucos vão da
Índia ao paraíso, assim brancos como pretos, senão os que morrem em
estado de inocência
95
.
Pode-se notar uma crítica ao rei, uma vez que diante de várias solicitações feitas pelo
inaciano, o monarca português não o atendia, causando-lhe evidente irritação. Percebe-se
também um certo pessimismo em relação ao relaxamento que prevalecia na região. Xavier
chegou a recomendar ao rei de Portugal a criação de um Tribunal do Santo Ofício em Goa
96
.
A carta é longa, mas merece o registro:
[...] tenho escrito a Vossa Alteza da muita necessidade que a Índia tem de
pregadores, porque à míngua deles a nossa santa fé entre nossos
portugueses vai muito perdendo-se a fé. Isto digo pela muita experiência
que tenho pelas fortalezas donde ando: é tanta contratação contínua que
temos com os infiéis, é tão pouca a nossa devoção, que mais azinha se trata
com eles proveitos temporais, que mistérios de Cristo Nosso Redentor e
Salvador. As mulheres dos casados naturais da terra, e filhos e filhas
mestiças, contentam-se em dizer que são portugueses de geração e não da
lei: a causa é a míngua que é cá de pregadores, que ensinam a lei de Cristo.
A segunda necessidade, que há na Índia tem para serem bons cristãos os
que nela vivem, é que mande Vossa Alteza a Santa Inquisição, porque há
muitos que vivem a lei mosaica e a seita mourisca, sem nenhum temor de
Deus nem vergonha do mundo. E porque isto [...] são muitos e espalhados
94
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 78. Carta de Francisco
Xavier para Francisco Mansilhas de 27 de março de 1544.
95
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 4. p. 74-75. Carta de Francisco
Xavier para Francisco Henriques de 22 de outubro de 1548.
96
M. N. Pearson. Op. cit. p. 132
120
por todas as fortalezas, é necessária a Santa Inquisição e muitos
pregadores: proveja Vossa Alteza seus leais e fiéis vassalos da Índia de
coisas tão necessárias
97
.
Quando se analisar o momento da instalação da Inquisição em Goa será possível
constatar que outros jesuítas, posteriormente, também apoiaram a iniciativa, mas deve-se
notar que, assim como sutilmente sugerido no texto de Xavier, a idéia era coibir as atividades
dos cristãos-novos, procurando-se proteger os indianos que haviam se convertido.
Os métodos de trabalho de Xavier e de outros jesuítas de meados do século XVI
variavam conforme as circunstâncias ou com o grupo com o qual se trabalhava. Na costa da
Pescaria, por exemplo, onde na década de 1530 ocorreu uma conversão em massa dos
Paravás, Xavier atuou com muito cuidado:
logo que cheguei a essa costa [...] procurei saber deles o conhecimento que
de Cristo Nosso Senhor tinham [...]. Não achava neles outra resposta, a
não ser que eram cristãos, e que por não entender eles a nossa língua, nem
no que haviam de crer, e como eles não me entendessem, nem eu a eles,
por ser sua língua natural malabar e a minha basca, juntei os que entre eles
eram mais sabidos, e procurei pessoas que entendessem nossa língua e a
deles. E depois de havermos juntado muitos dias com grande trabalho,
ensinamos as orações [...]
98
.
Mas também sabia ser rígido, principalmente com os brâmanes de Goa, uma vez que
os jesuítas perceberam, logo no início, que estes eram os seus mais fortes antagonistas:
há nestas partes entre os gentios uma geração que chamam brâmanes: estes
sustentam toda a gentilidade. Têm cargo nas casas em que estão os ídolos:
é a gente mais perversa do mundo. [...] É gente que nunca diz a verdade e
sempre pensam como hão de sutilmente mentir e enganar os pobres simples
e ignorantes, dizendo que os ídolos mandam que lhes levem a oferecer
certas coisas, e estas não são outras senão aquelas que os brâmanes fingem
97
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 351. Carta de Francisco
Xavier para o rei de Portugal de 16 de maio de 1546.
98
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 55. Carta de Francisco
Xavier para seus confrades de Roma de 15 de janeiro de 1544.
121
e querem para manter suas mulheres e filhos e casas. Fazem crer aos
simples que os ídolos comem [...]
99
.
Xavier passou então a narrar um encontro que teria tido em um pagode com mais de
duzentos brâmanes. O jesuíta teria perguntado quais os mandamentos de seus deuses e
ídolos. O mais velho dos brâmanes respondeu que “a primeira é não matar vacas, as quais
eles adoram; e a segunda é dar esmolas, e estas aos brâmanes que servem nos pagodes”
100
.
Xavier conta que então se levantou e em altos brados disse o Credo e os mandamentos.
Segundo ele, depois disso, os brâmanes o festejaram e afirmaram que o Deus dos cristãos era
verdadeiro Deus. Mas, em seguida, eles perguntaram “se nossa alma juntamente com o corpo
morria, assim como a alma dos brutos animais [...] lhes dei a entender claramente a
imortalidade das almas, do que eles mostraram muito prazer e contentamento”. E de maneira
quase arrogante diz aos confrades em Roma que “as razões, que a essa gente idiota se hão de
fazer, não hão de ser tão sutis como as que estão escritas em doutores muito escolásticos”
101
.
Os brâmanes fizeram-lhe outras perguntas, tais como para onde ia a alma quando se dormia e
se Deus era branco ou negro, mas infelizmente Xavier não registrou essas respostas,
limitando-se a dizer que elas haviam deixado os brâmanes satisfeitos.
Há ainda a narrativa de um encontro particular do jesuíta com um brâmane que lhe
teria contado o segredo de como aquela religião era ensinada:
que nunca dissessem que há um só Deus, criador do céu e da terra, o qual
está nos céus; e que ele adorasse este Deus e não aos ídolos que são
demônios. Têm algumas escrituras, nas quais têm os mandamentos. A
língua, que naqueles estudos ensinavam, é entre eles como latim entre nós.
Disse-me muito bem os mandamentos, cada um deles com uma boa
declaração; guardam os domingos estes que são sábios, coisa para não se
poder crer. [...] Disse-me que os defendia a lei da natureza ter muitas
mulheres; e que têm eles em suas escrituras que há de vir o tempo, no qual
todos hão de viver debaixo de uma lei. Disse-me mais este brâmane; que
ensinam naqueles estudos muitos encantamentos
102
.
99
Idem. p. 63.
100
Idem. p. 65
101
Idem. p. 65.
102
Idem. p. 66-67.
122
Deve-se notar que, inicialmente, os jesuítas desenvolveram uma postura de
antagonismo em relação aos brâmanes por terem identificado sua autoridade religiosa em
relação aos hindus e perceberem que lutar contra esse grupo hegemônico poderia
proporcionar aos inacianos a supremacia nas questões de fé. Pode-se fazer aqui um
paralelismo com a atuação dos padres da Companhia em outras regiões, como no litoral da
América portuguesa, ou mesmo no Paraguai das missões, nos séculos XVI e XVII
103
. Nessas
regiões a estratégia fundamentou-se no enfrentamento da autoridade dos xamãs locais. Para
tal, os jesuítas dedicavam-se, por exemplo, à cura dos doentes, uma vez que essa era uma
das atribuições do poder mágico que os xamãs tinham e que determinava sua autoridade no
grupo indígena. Essa tática às vezes não obtinha sucesso, porque para algumas doenças que
se difundiram entre os indígenas não havia a possibilidade de cura. É verdade que a
percepção que os jesuítas tinham dos grupos americanos, nos casos citados, era de uma
anomia, algo muito diferente do que era encontrado e enfrentado no Oriente, especificamente
em Goa. Mas do ponto de vista do método, pode-se perceber algumas semelhanças de
procedimentos, principalmente no esforço de reconhecimento daqueles que simbolizavam o
poder de cada região em que os jesuítas se estabeleciam.
Muitas vezes a rigidez de Xavier voltava-se também contra homens cristãos europeus
que por suas ações de ambição traziam prejuízo para as obras da fé. Há uma carta na qual o
jesuíta instruiu o padre Mansilhas a pressionar um funcionário que havia feito conluio com
inimigos em Tutocorim, na costa da Pescaria, resultando em mortes de portugueses:
a Cosme de Paiva ajudareis a descarregar sua consciência dos muitos
roubos que nesta costa tem feito, e dos males e mortes de homens que por
muita cobiça sua se fizeram em Tutocorim; e mais aconselha o, como
amigo de sua honra, que torne o dinheiro que tomou dos portugueses, pois
é coisa tão feia vender por dinheiro o sangue dos portugueses: e não
escrevo, porque não espero emenda nenhuma nele. E assim lhe direis da
minha parte, que o aviso que tenho de escrever a El-rei suas malfeitorias, e
ao Senhor Governador para que o castigue, e ao Infante D. Henrique, que
por via da Inquisição castigue aos que perseguem aos que se convertem a
nossa santa lei e fé; e por isso que se emende
104
.
103
Para o caso da América ver Luís Felipe Baêta Neves. Op. cit. e Maxime Haubert. Índios e jesuítas no
tempo das missões. trad. Maria Appenzeller. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1990.
104
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 163. Carta de Francisco
Xavier a Francisco Mansilhas de 7 de abril de 1545
123
Algum tempo depois, já mais familiarizado com os aspectos da administração no
Oriente, e um tanto mais irritado com suas características, Xavier escreveu ao rei dizendo-se
hesitante se devia ou não relatar o que achava errado no que via acontecer. Mas dois
parágrafos adiante se decide a escrever:
há de saber Vossa Alteza que nestas partes, assim como em outras muitas,
muitas vezes se deixam de fazer muitos serviços a Deus Nosso Senhor por
santos ciúmes que uns têm dos outros, dizendo: “eu farei; e outros: “não
senão eu”; e outros: “pois eu não faço, não folgo que vós o façais”; outros:
“eu sou o que levo os trabalhos e outros agradecimentos e proveitos”. [...]
E desta maneira passa o tempo, de jeito que não fica lugar para levar
adiante o serviço de Deus Nosso Senhor. E também por esta causa muitas
vezes coisas, assim de muita honra como o serviço de Vossa Alteza deixam
de fazer na Índia
105
.
Nesse trecho Xavier destaca os ciúmes e as vaidades que geravam conflitos entre os
vários funcionários da Coroa e, na sua avaliação, disso decorre grande prejuízo para a obra
da conversão. Naturalmente, não eram apenas sentimentos desse gênero que dificultavam os
trabalhos evangélicos, mas com certeza a superposição de instâncias administrativas, tanto
seculares quanto religiosas, servia de combustível para muitas disputas e desentendimentos
que acabavam por complicar algumas ações dos jesuítas.
Francisco Xavier também redigiu algumas obras, com destaque para os catecismos: a
Doctrina chrisitiana ou Catecismo Breve escrito em 1542, mas só impresso na tipografia
do colégio de São Paulo em Goa no ano de 1557 ; A Declaração do símbolo da fé, datada
de 1546 e O modo de rezar e salvar a alma, com data atribuída a 1548. O primeiro é um
catecismo elementar com enunciados de doutrinas e pequenas orações. O segundo é uma
espécie de resumo da salvação, feito em uma linguagem simples. O último reúne uma série de
orações, conselhos para a vida espiritual e fórmulas da doutrina. Deve ser ressaltado que
esses textos são muito superficiais, o que pode ser explicado tanto pelo fato de que Xavier
teve como finalidade conhecer e organizar um território vastíssimo, não tendo desse modo
105
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 4. p. 17-18. Carta de Francisco
Xavier ao rei de 20 de janeiro de 1548.
124
disponibilidade de tempo para profundas leituras e reflexões, quanto por pretender alcançar
um grande número de pessoas com uma mensagem simples e direta. Ainda assim, o esforço
de sistematizar a doutrina em forma de catecismo está em perfeito acordo com a orientação
do Concílio de Trento, que enfatizava a necessidade da catequese voltada para as crianças,
alvos principais das cartilhas produzidas por Francisco Xavier
106
.
As crianças, aliás, eram constante preocupação de Xavier, que chegou a recomendar
que os jesuítas fossem de casa em casa dos gentios para batizá-las. Recomendava ainda que
o ensino de jovens indianos começasse por volta dos treze anos a quinze anos:
isto porque nesta altura já sabiam falar a língua local e, portanto,
posteriormente ser-lhes-iam úteis para contactar com os povos locais, e,
por outro lado, dada a sua pouca idade seria muito mais fácil convertê-los,
uma vez que o conhecimento a respeito da religião hindu era escasso. Para
além do fraco conhecimento das tradições hindus, dada igualmente a sua
tenra, mas, ao mesmo tempo, por terem mais facilidade na aprendizagem,
poderiam estas crianças servir de intérpretes, cantando de dia a doutrina
pelas ruas e à noite ensinando a doutrina aos seus familiares e escravos
107
.
Também nesse aspecto existem semelhanças de procedimentos com os jesuítas de
outras regiões que davam grande atenção às crianças, como no caso da missionação no Brasil
e no Paraguai, uma vez que os inacianos entendiam que elas podiam aprender mais facilmente
e ainda estimular seus pais para a conversão
108
.
De tudo até aqui exposto pode-se chegar à conclusão de que a ação inicial sugerida
por Francisco Xavier e praticada por outros jesuítas ao longo da segunda metade do século
XVI possuía como principais características um desconhecimento ou um conhecimento
extremamente superficial das tradições religiosas hindus, misturadas com um certo sentido de
superioridade da cultura européia, que só eram suavizados pela consciência da obrigação de
se fazer a conversão dessa população à religião católica
109
. De certa maneira era esse o
106
Carlos Moreira (dir). Dicionário de história religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2000.
v. 1. p. 306.
107
Maria de Deus Beites Manso. Op. cit. p. 268-269.
108
Maxime Haubert. Op. cit. passim.
109
É interessante notar que as impressões que Francisco Xavier registrou sobre os japoneses eram bem
diferentes, quase elogiosas. Isto serve de contraponto ao significado da ação jesuítica em Goa, pelo
menos no período estudado até aqui.
125
parâmetro geralmente utilizado para definir as práticas de missionação, com algumas
exceções, como no caso da atuação do padre Henrique Henriques na costa da Pescaria. De
qualquer forma, mesmo que não fosse a tônica da sua atuação, os jesuítas já procuravam
desenvolver uma série de pontes entre a cultura européia e a hindu, principalmente com a
recorrente preocupação com a tradução das línguas locais e na adequação do catecismo
católico ao universo cultural das comunidades indianas.
em relação aos muçulmanos, a expectativa dos jesuítas não era a da missionação
ou, até mesmo, da evangelização, mas sim da extirpação do inimigo. Há uma interessante
carta do padre Nicolau Lanciloto ao também jesuíta Martinho de Santa Cruz, de Coimbra,
datada de 1545, informando que:
nesta ilha não há mais pagodes, mas há muitos infindos mouros e gentios e
maus cristãos, de maneira que é como Babilônia, porque cada um vive
como bem lhe parece, e não há cá homens de conselho nem doutrina,
senão como possam alcançar dinheiros. [...] Venha muita gente porque cá
há muitos campos para combater os inimigos e grande comodidade para
dizer coisa por amor de Cristo
110
.
Percebe-se nessa carta a recorrente solicitação de remessa de religiosos, mas nas
cartas de Xavier a principal preocupação era com o trabalho missionário, enquanto Lanciloto
fazia uma convocação nos moldes cruzadísticos de enfrentamento e combate aos infiéis, que
pareciam estar fazendo cerco à obra de cristianização e precisavam ser erradicados do
convívio com os cristãos.
Com a morte de Xavier em 1552, após algumas hesitações sobre a sucessão do
provincial da Índia, finalmente assumiu o cargo Antônio Quadros (1559-1572)
111
. Somente
nesse período a presença jesuítica em Salcete foi consolidada, apesar da divisão feita pelo
poder civil português em 1555, que atribuía à Companhia de Jesus a missionação da região.
110
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões... v. 3. p. 163. Carta de Nicolau
Lanciloto a Martinho da Santa Cruz de22 de outubro de 1545.
111
Donald F. Lach. Asia in the making of Europe: the century of Dicovery. Chicago/London: The
University Chicago Press, 1965. v. 1. Book one. p. 251-253. O autor define os anos de 1553 a 1560 como de
interregno da missionação jesuítica na Índia. O ano de 1555 também foi o da chegada das constituições da
ordem em Goa. O autor identifica Quadros como o grande responsável pela definitiva estruturação da
ordem no Oriente por ter criado uma sólida hierarquia de cargos. Por outro lado, Quadros considerava que
126
O provincial contou nesse momento com o contundente apoio do recém-chegado
primeiro arcebispo de Goa D. Gaspar de Leão Pereira (em 1560, mesmo ano da fundação
do Tribunal do Santo Ofício de Goa) e do vice-rei D. Constantino de Bragança, um
renomado defensor da fé
112
. Pode-se mesmo afirmar que os últimos anos da década de 1550
foram marcados por uma retomada das perseguições aos hindus, à semelhança do que havia
ocorrido em 1540. Para comprovar essa afirmação basta observar a legislação produzida em
1559 – conhecida como “leis anti-hindus” que proibiu que gentios ocupassem cargos
subalternos da Justiça e da Fazenda (houve uma lei que precedeu a esta, em 1557, que
determinava que os cargos de tesoureiros, almoxarifes, escrivães, tabeliães e quaisquer outros
ofícios não podiam ser de hindus); estabeleceu que os gentios órfãos de pai e mãe sem avós
fossem levados à casa de catecúmenos para se fazerem cristãos; interditou os pagodes e as
cerimônias gentílicas nas terras da Coroa, com exceção de Diu; e estabeleceu que filho ou
filha de infiel herdasse, logo após a conversão, a terça parte dos bens da sua legítima para
sustentação própria.
Todo esse conjunto de leis alimentou protestos dos brâmanes, que chegaram mesmo
a fechar suas lojas, ameaçando a economia da cidade de Goa. Diante disso, muitos
portugueses preocupados com seus próprios interesses econômicos começaram a fazer
críticas ao governo de D. Constantino e observavam em cartas ao rei que:
se perderiam as rendas de S.A., e que os brâmanes se iriam sem dúvida e
que ficaria aquela ilha destroçada; e que isto não parecia nem serviço de
Deus nem de S. A. E que visse S. Senhoria que com isto não se deitasse a
perder este Estado, porque os gentios eram muitos e poderosos e Goa está
a derredor cercada de infiéis
113
.
era preferível um número menor de missionários, mas que fossem bem formados, bem treinados,
divergindo do que defendera Francisco Xavier.
112
Na correspondência dos jesuítas encontram-se inúmeros elogios à atuação do vice-rei D. Constantino
de Bragança (1558-1561). Como exemplo das suas ações e de sua simpatia pelos jesuítas há o caso da
conquista de Damão executada por D. Constantino. Ele ordenou que a mesquita local fosse purificada e
que se fizesse dela igreja, doando-a aos inacianos e permitindo que fosse a habitação da ordem na cidade.
Ver Alessandro Valignano. História del princípio y progresso de la Compañia de Jesús en las Índias
Orientales (1542-1564). Ed. Josef Wicki. Roma: Institutum Historicum S. I., 1944. p. 363.
113
Idem. p. 370-371.
127
O vice-rei não se intimidou diante dessas críticas. Tanto que em 1560,
complementarmente, D. Constantino determinou em outra lei o confisco de bens ou a pena de
galés aos que dificultassem alguém de se batizar, e ainda expulsou um grupo de quarenta
brâmanes acusados de obstruir os trabalhos de conversão, com o objetivo de dar o exemplo
para que outros da mesma casta não se insurgissem. Ao fazer isso, obteve pleno apoio dos
jesuítas e de outras autoridades religiosas
114
.
Foi nesse clima de recrudescimento dos atritos religiosos entre cristãos e hindus que
os jesuítas iniciaram a missionação de Salcete. As terras de Salcete e Bardez tinham
pertencido ao sultanato de Bijapur, que as perdeu para os portugueses em 1520 e tentou
retomá-las várias vezes ao longo da primeira metade do século XVI, até renunciar
formalmente a seus direitos sobre essas terras em 1548
115
. Ainda assim, era uma região de
fronteira, sempre muito ameaçada por inimigos muçulmanos e hindus, o que a tornava sempre
alvo de ataques
116
.
Em 1560 o Provincial Antônio Quadros ordenou que o padre Pero Mascarenhas e o
irmão Manuel Gomes tomassem cargo na igreja que existia dentro do forte de Rachol, em
Salcete, onde os soldados costumavam ouvir missa. Em carta enviada de Goa aos padres que
estavam em Portugal e datada de 1 de dezembro de 1560, o jesuíta Luís Fróis narrou a
iniciativa:
nestas terras firmes d’El Rei de Portugal, que estão defronte desta ilha de
Goa, que se chamam Salcete, há perto de mil cristãos, e por lá estarem
misturados com os gentios e tão vizinhos dos mouros, careceram até agora
de quem os cultivasse e viviam quase como os mesmos gentios.
Condoendo-se disso nossos padres e vendo o muito que se podia fazer
naquela terra, na qual dizem que El-Rei tem 66 aldeias, nas quais poderá
haver 50.000 almas e daí para cima, todos gentios. Trataram com o vice-
114
Antônio Lourenço Farinha. A expansão da fé no Oriente: subsídios para a História colonial. Lisboa:
Agência geral das Colônias, 1943. p. 33-35. A expulsão dos brâmanes causou sérios problemas
econômicos para a cidade e outros vice-reis abrandaram as perseguições a essa casta, posteriormente. Em
1581, um alvará isentou de dízimos por 15 anos os cristãos recém-convertidos, medida que reforça as
conversões pelo caminho econômico.
115
Ver Sanjay Subrahmanyam. Notas sobre um rei congelado: O caso de Ali bin Yusuf Adil Khan,
chamado Mealecão. In: Rui Manoel Loureiro e Serge Gruzinski (coord.). Passar as fronteiras: II Colóquio
Internacional sobre mediadores culturais. Séculos XV a XVIII. Lagos: Centro de Estudos Gil Eanes, 1999. p.
265-290.
116
Ver Dauril Alden. Op. cit. p. 45 e Teotônio R. de Souza. Goa medieval: a cidade e o interior no século
XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 34.
128
rei de se por lá de assento um padre e um irmão nosso, que andassem
instruindo e ensinando as coisas da fé àqueles cristãos. E com o pretexto ir
também entendendo na gentilidade, conversando-os para que venham em
conhecimento da verdade e de Deus
117
.
A partir dessa iniciativa começou a haver uma grande quantidade de conversões na
região, com números cada vez maiores ao longo do tempo. Na carta citada acima, o padre
Luís Fróis informava já estarem à espera de batismo cerca de cem indianos. Em 1577 já eram
contados dez mil cristãos nas terras de Salcete
118
. Anos depois, em 1587, o reitor do colégio
de Rachol informava ao Geral da Companhia de Jesus, Claudio Acquaviva, que em Salcete
havia mais de mil catecúmenos naquela data
119
. Em 1590 a população de cristãos da terra em
Salcete já era contabilizada pelo número de vinte e três mil pessoas
120
. Além das conversões,
aumentou também o número de igrejas. Em 1564 edificou-se a igreja de Margão, por
iniciativa do arcebispo D. Gaspar de Leão Pereira. Em 1586 o provincial dos jesuítas
Alessandro Valignano relatou a existência de doze igrejas em toda Salcete
121
. Fernão
Guerreiro deu o número de treze igrejas e mais de trinta e três mil cristãos para o ano de
1603 e, quatro anos depois, quatorze igrejas, cada uma delas cuidada por um jesuíta, para
quarenta e cinco mil convertidos
122
. Em 1686 na Breve Notícia das Missões que a
Companhia de Jesus tem nas partes do Oriente os jesuítas afirmavam haver lá oitenta ou
até noventa mil cristãos e repartia-se “toda esta cristandade por 25 freguesias de que são
117
José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1956. v. 4. p. 742-743.
Carta de Luís Fróis para a Sociedade Lusitana. Goa, 1 de dezembro de 1560.
118
Leopoldo da Rocha. As confrarias de Goa (séculos XVI-XX): conspecto histórico-jurídico. Lisboa:
Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973. p. 109.
119
José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1979. v. 14. p. 647. Carta
do reitor de Rachol, Miguel Leitão ao Geral Claudio Acquaviva. Rachol, 25 de novembro de 1587.
120
Joseph V. Velinkar. Early Evangelization Methods in Salcete (Goa). In: Congresso Internacional De
História: Missionação Portuguesa e encontros de culturas. Actas. Volume II: África Oriental, Oriente e
Brasil. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa/Comissão Nacional Para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses/Fundação Evangelização e Culturas, 1993. v. II. p. 290.
121
José Wicki. Documenta Indica... v. 14. p. 473-474. Inspeção financeira da Província da Índia feita por
Valignano. [Cochim], 23 de dezembro de 1586.
122
Fernão Guerreiro. Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas
missões (1600-1603). Dirigida e prefaciada por Artur de Viegas. Coimbra: Imprensa da Universidade.,
1930. t. I. p. 4 e Relaçam annual que fezeram os padres da Companhia de Jesus nas partes da Índia
Oriental & em algumas outras partes da conquista deste reyno no ano de 606 & 607 & do processo de
conversão da christandade daquelas partes, Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1609. p. 137.
129
vigários 25 religiosos da Companhia [...]”
123
. Ou seja, no período definido para esta
pesquisa, a Companhia de Jesus contabilizava um significativo aumento da cristandade em
Salcete.
Os métodos utilizados pelos jesuítas para a conversão em Salcete desde o início
eram variados. Primeiro os padres faziam incursões nas aldeias a partir de Rachol,
desenvolvendo pregações com o auxílio de jovens intérpretes e sempre retornavam à noite
para o forte. Somente mais tarde, com a fundação de igrejas e o aumento das conversões, os
jesuítas começaram a viver nas localidades, criando condições de fazer um trabalho mais
próximo das comunidades hindus.
Além do seminário e do colégio de Rachol, denominados de Santo Inácio, os jesuítas
fundaram o colégio do Espírito Santo de Margão para o ensino das crianças indianas, um
hospital, um colégio de catecúmenos e um seminário para órfãos, entre outras residências e
iniciativas assistenciais por toda Salcete. Aparentemente havia também uma tipografia em
Rachol, mas existem dúvidas sobre se era apenas uma tipografia móvel
124
.
Todas essas iniciativas estruturaram uma importante rede para desenvolver a
conversão. É importante notar que os religiosos aproveitaram a antiga organização das aldeias
hindus interferindo nos usos e costumes religiosos, mas guardando as identidades
administrativas e produtivas locais. Isso difere, por exemplo, da prática de aldeamentos
desenvolvida na América, que muitas vezes misturava vários grupos tribais diferentes numa
mesma missão e onde ocorria a alteração substancial de práticas cotidianas desses grupos,
introduzindo desde um controle social do tempo, até técnicas de produção agrícola e pecuária
estranhas àquelas culturas
125
.
A prática dos batismos em massa e das cerimônias pomposas envolvendo os
catecúmenos também foi largamente utilizada nas conversões de Salcete no sentido de
despertar novas adesões ao cristianismo. É verdade que o arcebispo D. Gaspar de Leão
Pereira proibiu os batismos solenes assim que chegou a Goa, uma vez que sempre esteve
próximo aos princípios dos franciscanos, que antagonizavam os jesuítas, e considerou
123
Biblioteca da Ajuda. Livro Quarto da Missão do Reino de Tonquim (traslados feitos em 1746 por João
Álvares) Breve Notícia das Missões que a Companhia de Jesus tem nas partes do Oriente (1686). fl 265v-
266.
124
Maria de Deus Beites Manso. Op. cit. p. 265.
125
Ver Maxime Haubert. Índios e jesuítas no tempo das missões. trad. Maria Appenzeller. São Paulo:
Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1990 e L. F. Baêta Neves. Op. cit.
130
inicialmente que era uma prática que feria o espírito de simplicidade cristã. Mas
posteriormente, não apenas revogou a proibição como incentivou o aparato das cerimônias
com recursos significativos, pois entendeu o efeito sobre as comunidades locais de tais
procedimentos
126
.
A par disso, os jesuítas empregaram métodos que foram qualificados como violentos
por alguns contemporâneos: obrigavam os habitantes das aldeias a comerem carne bovina,
cortavam-lhes tufos de cabelos ou davam comida a eles. Todas essas formas de contato
tornavam os hindus impuros e aptos a tornarem-se cristãos e por saberem disso, alguns
inacianos utilizavam esses recursos para a conversão, assim como também recorriam a
expedientes dissimulados. Um exemplo dessa estratégia foi o caso de um rapaz hindu recém-
convertido que se deixou prender para atrair a mãe à cidade. No momento em que a mãe
implorava pela liberdade do filho era-lhe informado que só poderiam soltar o jovem caso a
mãe se convertesse. Pensando que assim salvaria seu filho, a mulher aceitava ser batizada. De
uma maneira geral esses procedimentos foram condenados no Primeiro Concílio Provincial de
Goa em 1567, convocado pelo arcebispo D. Gaspar de Leão Pereira, que em seus primeiros
decretos afirmava que não era lícita a conversão feita pela força. Apesar disso, as práticas
continuaram a existir, tanto que em outros concílios essa recomendação foi repetida
127
.
O próprio visitador da Companhia de Jesus, Alessandro Valignano em 1588
recomendou que:
para tirar todo escândalo e razão de murmurar aos gentios, se há-de
procurar que para os converter se lhe não faça nenhuma força direta ou
indiretamente, advertindo todavia que, enquanto se trata de não fazer força
aos gentios, não se deixem os meios que são lícitos e convenientes para
ganhar suas almas. Por onde bem os podem fazer batalotes ementes estão
presos se sem perigo de suas almas não se pode esperar para depois que
estão livres
128
.
126
Ver Casimiro Cristovão Nazareth. Mitras lusitanas no Oriente. Catálogo dos prelados da Igreja
Metropolitana e primacial de Goa e das dioceses sufragâneas com recopilação das ordenanças por eles
emitidas e sumário dos fatos notáveis da História eclesiástica de Goa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1897. p.
46-47 e Francisco Bethencourt. A Igreja. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.). Op. cit. v. 1 p.
376-377.
127
Joseph V. Velinkar. Op. cit. p. 286-288..
128
“Sumário das regras para o provincial da Índia” In: José Wicki. Documenta Indica. Romae:
Monumenta Historica Societatis Iesu, 1979. v. 14. p. 874. Batalote significa hindu poluído por quebrar
alguma regra de casta segundo Sebastião Rodolfo Dalgado. Glossário luso-asiático. Coimbra: Imprensa
da Universidade, 1919. v. 1, p. 118.
131
A ressalva final do visitador abria brecha a interpretações sobre a questão do
“perigo” que corriam aquelas almas, o que podia permitir e justificar ações que ao final
desconsiderassem a recomendação inicial do não uso de força na conversão. De qualquer
forma, a proposição estava afinada com as recomendações diocesanas.
No entanto, contraditoriamente, a expansão da fé não se fazia sem muitos reveses e
contratempos e com o uso de alguns métodos ainda mais violentos, tendo apoio das
autoridades civis portuguesas. Um bom exemplo foi o que ocorreu em 1567 (mesmo ano do
primeiro concílio), quando o capitão de Salcete, Diogo Fernandes, gabou-se de ter destruído
todos os pagodes da região, com a ajuda de religiosos
129
. Isso gerou protestos que foram
enviados pelos indianos às autoridades civis de Goa e a tensão cresceu nas aldeias.
Houve tentativas de reconstrução de pagodes e de restauração dos cultos hindus e
para tanto os habitantes de Salcete recorreram até mesmo ao rei D. Sebastião (através de
petições enviadas para o Conselho Geral e a Mesa de Consciência), solicitando licença para
fazer publicamente suas cerimônias como de costume
130
. Em 1579 o rei ordenou que fosse
formada uma junta de teólogos para avaliar o pedido, presidida pelo arcebispo de Goa, D.
Henrique de Távora, da qual os jesuítas não participaram. Ao final, os teólogos decidiram-se
pela proibição dos cultos públicos, mas o vice-rei Luís de Ataíde permitiu que os gentios
praticassem suas cerimônias nas terras do Norte (Damão, Baçaim e Chaul), decisão que
desagradou fortemente as autoridades eclesiásticas de Goa
131
. Mas é bom ressaltar que a
colaboração por parte da administração portuguesa no Estado da Índia variava de acordo
com as preocupações dos governantes do momento. Tanto que já no início da década de
1580, o vice-rei D. Francisco Mascarenhas ordenou um ataque noturno à Salcete com o
objetivo de destruir os pagodes da região.
129
Em sua lápide mandou escrever: “Aqui jaz Diogo Frz, o do Forte, Capitão das terras de Salcete que
derrubou todos os pagodes delas”. Apud Biblioteca Nacional de Lisboa. Reservados. Microfilme. F4869.
Sebastião Gonçalves. História dos religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram com a divina
graça na conversão dos infiéis à nossa Santa Fé Católica nos reinos e províncias da Índia Oriental,
composta pelo padre Sebastião Gonçalves, religiosos da mesma Companhia. Português natural de Ponte
Lima, 1614. fl. 321 v. O número de pagodes destruídos atribuídos a Diogo Fernandes (ou Diogo Rodrigues
em outras fontes) varia entre 280 e 300.
130
Francisco de Sousa. O Oriente conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus da
Província de Goa. Introd. e Rev. M. Lopes de Almeida. Porto: Lello & Irmão Editores, 1978. p. 926.
131
Idem. p. 926-934.
132
Essa tensão resultou numa violenta reação por parte dos hindus da aldeia de
Cuncolim, uma das mais ricas de Salcete por ter solos muito férteis, bem irrigados pelos rios
da região, além de significativo artesanato, com destaque para o trabalho com metais. Na
aldeia também existia um mercado permanente, importante ponto de rotas de caravanas que
vinham do interior da península hindustani e traziam tecidos para comercializar no local. Toda
essa atividade comercial também estava relacionada às festividades religiosas e à freqüência
de cultos ao pagode local, sendo um importante fator de dinamização econômica, pois
gerava-lhe muitas oferendas. As aldeias de Assolnã, Velim e Ambelim sofriam a influência do
poderio de Cuncolim e costumavam aparecer juntas em solicitações e protestos feitos às
autoridades portuguesas
132
.
No dia 25 de julho de 1583, um pequeno grupo de jesuítas formado pelos padres
Rodolfo Acquaviva, Alfonso Pacheco, Pedro Berno, Antônio Francisco e o irmão Francisco
Aranha , passou pelas terras da aldeia acompanhado de alguns cristãos da terra que serviam
como guias e indicavam os lugares dos pagodes hindus na região. Tinham o objetivo de
levantar uma cruz e escolher um terreno para a construção de uma igreja
133
.
Os habitantes da aldeia reuniram-se e decidiram emboscar os cristãos por
entenderem que deviam proteger seu pagode. Armados com flechas, espadas e outras armas
atacaram o grupo. Os jesuítas foram mortos, assim como doze cristãos que os
acompanhavam. Em represália, as autoridades lusitanas ordenaram ataques aos revoltosos,
confiscaram as terras das aldeias de Cuncolim, Assolnã, Velim e Ambelim e as distribuíram
entre portugueses e a própria Companhia de Jesus
134
. Esse episódio ilustra bem as tensões
que se desdobravam no processo de cristianização realizado em Salcete pelos jesuítas. Indica
também que o choque cultural muitas vezes resultava em ações violentas da parte tanto de
portugueses e religiosos, assim como dos hindus.
132
Ver Teotônio R. de Souza. Why Cuncolim martyrs? An historical re-assesment. In:
http://www.goacom.com/culture/history/cuncolim.html
133
Esse grupo é designado pela Igreja católica como os Mártires de Cuncolim. Rodolfo Acquaviva era
sobrinho do quinto geral da Companhia de Jesus, Claudio Acquaviva, e teve importante participação nos
contatos com o Grão-mogol; quando de sua morte era o superior da missão de Salcete. Alfonso Pacheco,
Pedro Berno e Antônio Francisco tinham acompanhado ações anteriores de destruição de pagodes. O
irmão Francisco Aranha era arquiteto e destacara-se por ter construído a igreja de Cortalim em apenas um
ano. Ver A. X. D’Souza. Martyrs of Cuncolim. In: New Advent Catholic Enciclopedia.
http://www.newadvent.org/cathen/04568a.htm. O relato detalhado do ataque é feito pelo provincial
Alessandro Valignano em carta de Goa em 8 de dezembro de 1583 que encontra-se em José Wicki.
Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1972. v. 12. p. 916-933.
133
A partir do episódio de Cuncolim, o esforço de conversão feito pelos jesuítas em
Salcete foi ainda maior do que havia sido desenvolvido até então, e proporcionou o
crescimento da população de cristãos da terra, mesmo que se leve em conta a fuga de muitos
habitantes da região. A legislação que discriminava os hindus e muçulmanos de uma série de
instâncias da vida econômica e social de Goa e adjacências também colaborou muito para o
aumento do número de convertidos e funcionou em associação com os trabalhos dos
missionários
135
.
Portanto, apesar da constante afirmação da necessidade de fazer-se a conversão das
comunidades indianas de Goa e adjacências sem o uso da força e com o esforço de
estabelecer a comunicação direta através do domínio das línguas locais e de trabalhos
assistenciais, muitos jesuítas associaram-se a ações repressivas das autoridades
administrativas da Coroa portuguesa às práticas culturais locais. Isso serve como indicador da
falta de homogeneidade de métodos desenvolvidos pelos membros da Companhia de Jesus.
134
R. P. Rao. Portuguese rule in Goa (1510-1961). London: Asia Publishing House, 1963. p. 45.
135
Caio Boschi. Ordens religiosas, clero secular e missionação em África e na Ásia. In: Francisco
Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.). Op. cit. v. 3. p. 329. Segundo o autor, no século XVIII, em Salcete,
para um universo de 100.000 cristãos havia apenas 3.000 hindus. Segundo Antônio Lourenço Farinha. A
expansão da fé no Oriente... p. 131, um levantamento feito em 1722 acusava a maior população do domínio
português na Índia para Salcete: 70.449 contra os da ilha de Goa e adjacentes, 62.087 e os de Bardez,
48.508.
134
5. Cristianização à moda da Índia: os jesuítas como mediadores
culturais
João Paulo de Oliveira e Costa observou que as ações de evangelização dos jesuítas,
fossem elas no Oriente, na América ou na África, não se desenvolviam de maneira uniforme.
Onde a presença das autoridades régias portuguesas era marcante e inequívoca, o modelo de
conversão tendia a ser “excessivamente ocidentalizador”, mas nas regiões fora do domínio
direto do Império português “foram ensaiadas numerosas abordagens inovadoras”
136
.
Assim, como forma de se perceber e de se reafirmar que a Companhia de Jesus não
se constituía no bloco monolítico que se dizia, ou que acreditava ser, há o exemplo dos
métodos de conversão desenvolvidos pelos jesuítas Henrique Henriques e Roberto de Nobili,
no Malabar, que não estava sob a jurisdição do Império português, ao contrário de Goa,
Salcete e adjacências, estudadas anteriormente. Nessa região os jesuítas teriam que contar
com a flexibilidade das autoridades locais hindus para que pudessem instalar missões e
desenvolver a cristianização. Nesse espaço é possível identificar uma ação dos inacianos mais
adequada ao papel de mediadores culturais proposto por Gruzinski.
Para tanto, deve-se iniciar a análise através da experiência pioneira do padre
Henrique Henriques. Nascido em Vila Viçosa, Portugal, no ano de 1520, descendente de
cristãos-novos
137
, primeiramente entrou na ordem dos capuchos, mas não lhe foi permitido
nela professar porque as constituições dessa ordem proibiam a entrada dos “impuros de
sangue”. Após esse episódio, estudou Artes e Cânones na Universidade de Coimbra. Já
como diácono resolveu repartir seus bens entre os pobres e a Companhia de Jesus e com isso
conseguiu obter a admissão na ordem jesuítica, com a surpreendente concordância do
provincial da Assistência de Portugal, Simão Rodrigues, que geralmente fazia restrições à
entrada de cristãos-novos, apesar de não haver ainda nenhuma clara objeção do Geral Inácio
136
João Paulo de Oliveira e Costa. A diáspora missionária. In: João Francisco Marques e Antônio Camões
Gouveia (coord.). História religiosa de Portugal: Humanismo e Reformas. Lisboa: Círculo de Leitores,
2000. v. 2. p. 279. O autor usa o conceito de acomodação cultural ao definir essas abordagens inovadoras.
137
Segundo Dauril Alden. Op. cit. p. 50 sua ascendência era tanto de judeus quanto de mouros
convertidos ao cristianismo.
135
de Loyola. Como padre coadjutor embarcou para a Índia em 1546, juntamente com mais
nove companheiros, o terceiro grupo de missionários jesuítas enviados de Portugal
138
.
De 1548 até sua morte em Tutocorim, no ano de 1600, Henriques trabalhou na
missão da costa da Pescaria, com as populações que haviam sido convertidas ainda na
década de 1530, onde praticou algumas formas de adaptação, com a aprovação dos
superiores. A mais importante delas foi a reserva de certas igrejas para determinadas castas,
respeitando a lógica da manutenção da pureza da sociedade hindu. É o próprio Henriques
que explica ao Geral da Companhia essa prática em carta de 1561:
temos feito três igrejas grandes, 2 para os paravás e uma aos careás, em
que aos domingos todos venham à Igreja [...]. Os careás do lugar pequeno
e os palevilís [...] têm também cada um sua igreja pequena, para ensinarem
as orações aos meninos e maninas e aos domingos vêm os homens às
igrejas principais. Aos sábados vêm as mulheres dos cristãos paravás e
palevilís às duas igrejas principais. E as mulheres dos careás ordenamos
que viessem à 5ª feira[...]
139
.
Pela descrição feita, pode-se perceber que o jesuíta já tinha perfeita compreensão
das diferenças entre os grupos e da necessidade da separação, mesmo em populações já
cristianizadas, o que reforça a idéia de que quando as conversões eram feitas em massa, a
lógica cultural e as forças de coesão da sociedade de castas sobreviviam.
Outra prática estabelecida por Henriques foi a suspensão do uso da saliva na
administração do batismo, considerada repulsiva na cultura indiana, demonstrando mais uma
vez o sentido pragmático da ação dos jesuítas e a capacidade de adaptação de códigos do
cristianismo em respeito das características culturais hindus.
138
Antônio Lourenço Farinha. Vultos missionários da Índia Quinhentista. Cucujães: Editorial Missões,
1955. p. 73-74. Quando Henrique Henriques entrou para a Companhia ainda não havia sido feita a redação
final das Constituições da ordem que vieram a proibir a admissão dos descendentes dos judeus entre os
jesuítas. Depois de promulgadas, Henriques solicitou ao papa dispensa de impedimento, mas em carta de
27 de janeiro de 1552, Loyola informou que quem já estava na Companhia que continuasse. Além disso,
não criou nenhum impedimento para os três votos solenes aos cristãos-novos. Cf. José Wicki. Documenta
Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1950. v. 2. p. 312. Dessa forma, Henriques pode fazer
profissão em 1560. Mas é notável que, ao longo de 52 anos de trabalhos missionários na costa da Pescaria,
nunca tenha subido na hierarquia da Companhia de Jesus no Oriente. Para conhecer as listas de jesuítas
que foram para o Oriente ver Jerônimo P. A. da Câmara Manoel. Missões jesuíticas no Oriente nos séculos
XVI e XVII. Lisboa: Imprensa Nacional, 1894.
139
José Wicki. Documenta Indica... v. 5. p. 380. Carta de 19 de dezembro de 1561 ao Geral Lainez e aos
companheiros do colégio de Coimbra.
136
Mas a maior contribuição de Henrique Henriques está no domínio da língua tâmil,
além do malaiala e do telugu. Produziu dois catecismos, uma vida de santos, um manual de
confissão e outras obras religiosas, além da primeira gramática de tâmil. Ines Županov
considera que o esforço de aprendizado, tradução e produção de textos que foram
publicados por parte de Henriques foi a forma por ele encontrada de direcionar a sua energia
apostólica no plano da lingüística, por ser o “menos político de todos, era o único campo
óbvio em que podia exercer seus talentos”, pois sua condição de descendente de cristãos-
novos seria sempre um impedimento para outras aspirações
140
.
O próprio Francisco Xavier ordenou que Henriques aprendesse o tâmil. A princípio
ele enfrentou grandes dificuldades, mas ao fim de pouco tempo conseguiu produzir um manual
básico para a aprendizagem. No entanto, à medida que aprofundava seu conhecimento,
verificou que existiam muitos problemas a enfrentar: “havia uma língua que era usada pelos
‘sábios’ e outra pelo povo comum; que o tâmul escrito e o tâmul falado não coincidiam [...]; e
evidentemente, que havia diferenças regionais e de casta”
141
. Outra grande dificuldade era a
pronúncia da língua.
Dominar a língua da região serviu para dois modos de ação: formar missionários
capazes de estabelecer comunicação direta com os cristãos da terra, principalmente para
atender o sacramento da confissão sem o uso de intérpretes, e divulgar a doutrina através de
catecismos e outros manuais. O dedicado trabalho de Henriques possibilitou a consolidação
de pontes para o trabalho de evangelização, numa clara atuação de mediação cultural. O
esforço de aprendizagem da língua foi tão bem sucedido que na costa da Pescaria em finais
do século XVI não se falava português na missão, o que era uma norma estabelecida pelo
próprio Henrique Henriques
142
.
Outro nome de destaque na inovação de métodos de conversão na Índia foi o de
Roberto Nobili. Nascido em Roma no ano de 1577, de uma família nobre de Montepulciano,
140
Ines Županov. Do sinal da cruz à confissão em Tâmul: gramáticas, catecismos e manuais de confissão
missionários na Índia Meridional (séculos XVI-XVII). In: Antônio Manuel Hespanha. Os construtores do
Oriente português. Porto: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1998. p. 160.
141
Idem. p. 161.
142
Idem. p. 161. O uso das línguas locais pelos jesuítas parece ter se tornado um padrão assim como as
críticas a essa prática por parte dos colonos em geral. Pode-se inclusive comparar com a questão da
“língua geral” utilizada pelos jesuítas na evangelização dos indígenas e que fomentou duras críticas dos
colonos no Estado do Brasil e no Estado do Maranhão e Grão-Pará.
137
na Toscana, foi noviço da Companhia de Jesus em Nápoles em 1596. Solicitou aos
superiores fazer missão no Oriente, saindo de Lisboa para Índia em 1604, chegando a Goa
em 1605. Esteve brevemente em Cochim e na costa da Pescaria.
Ao contrário de Francisco Xavier, Nobili identificou na casta brâmane a chave das
conversões na Índia, avaliando que se fosse possível cristianizar esse grupo, as outras castas,
historicamente submetidas aos brâmanes, os acompanhariam, criando um efeito multiplicador
do número de convertidos.
Com a autorização dos superiores eclesiásticos, Nobili apresentou-se na região de
Maduré, na costa Malabar, em 1606, como um nobre romano que não tinha nenhum vínculo
com os outros missionários e com os portugueses e que “rejeitara todos os prazeres e
confortos do mundo”
143
. Adotou a vestimenta amarela dos saniassas, ou seja, assumiu a
postura dos brâmanes que viviam o último estágio de sua vida, a completa renúncia. Declarou
que seu objetivo era estudar a literatura, as línguas sânscrita e telugu, além da malaiala. Em
troca oferecia aos brâmanes da região revelar as verdades do cristianismo. Deixou de comer
carne, dedicou-se apenas a rezar e a estudar. Dificultava os encontros com os brâmanes, para
dar a impressão de sua importância.
Por outro lado, o padre Gonçalo Fernandes que conseguira permissão do Naique
(denominação do título de rei local) de Maduré para viver e missionar na região desde 1595 e
ao longo desses anos de trabalhos obtivera poucos resultados , por ser muito conhecido,
atendia a outras castas mais baixas
144
. Ele conta como fazia para comunicar-se com Nobili:
nem eu, nem meus moços, nem portugueses, nem cristãos vão a sua igreja,
nem casa, e se é necessário ir algum moço a sua casa há de ser de noite, e
quando o Padre para nos confessarmos há de vir a esta casa, há de ser em
tempo de escuro, e muito de noite, de modo que se não saiba quem é ele a
143
Carta de Nobili para o papa Paulo V, por volta de 1620 Apud Dauril Alden. Op. cit. p. 151.
144
O padre Gonçalo Fernandes nasceu em Lisboa, em 1541. No ano de 1561 entrou na Companhia de
Jesus como noviço, após ter participado da armada de D. Constantino de Bragança. Recebeu a aprovação
do padre Henrique Henriques, que o recomendou em carta ao Geral Laínez. Em 1583 foi sacerdote e
procurador da missão da costa da Pescaria. Em 1588 foi admitido como coadjutor. Em 1595 construiu igreja
em Maduré com aprovação do Naique. Depois de voltar à costa da Pescaria em 1596, retornou ao Maduré e
em 1599 além da igreja, já tinha edificado uma escola e um hospício para enfermos. Em 1618 foi para o
colégio de Cochim. Em 1621 pediu ao Provincial para retornar à costa da Pescaria para que fosse enterrado
aos pés do padre Henrique Henriques. Morreu no dia 6 de abril de 1621. José Wicki. Tratado do Padre
Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o hinduísmo (Maduré, 1616). Lisboa: Centro de Estudos Históricos
Ultramarinos, 1973. p. XI-XVII.
138
esta casa para nos confessarmos: porque nos trajes em que ele anda não é
conhecido e eu se for logo me conhecerão. Quanto aos seus cristãos não
hão de vir ouvir missa a esta Igreja nem prática, posto que por alguma
ocasião aconteça não estar o padre para dizer Missa ao domingo ou
santo
145
.
Pode-se perceber nesse relato a preocupação de Nobili em desvincular-se de
qualquer conexão com elementos que pudessem quebrar a lógica da pureza de sua condição
aos olhos dos brâmanes. Com tudo isso, Nobili gradativamente conseguiu promover a
conversão de alguns brâmanes por volta de 1608. Procurava sempre respeitar os costumes
indianos que não considerasse superstição. Dessa forma, não reprimia o uso da linha
bramânica (tríplice cordão de algodão que os brâmanes traziam a tiracolo da esquerda para
direita), do kudumi (tufo na cabeça), o uso do sândalo nas fricções corporais, dos banhos
rituais, a continuação de sinais na testa que faziam as distinções das castas, entre outros
costumes. É importante notar que a postura de Nobili não feria dois conceitos básicos da
formação dos jesuítas “adaptação de normas e tolerância das violações que não fossem
extremamente ofensivas”
146
que caracterizavam o pragmatismo tão peculiar à ordem
inaciana.
Fernão Guerreiro relata a experiência de Nobili em livro publicado em 1609:
o padre Roberto Nobili, italiano de nação e sobrinho do ilustríssimo
Cardeal Sforza [...] começando a aprender a língua e os costumes da terra
e considerando que o maior impedimento que havia para a conversão era o
baixo conceito que os Badagás tinham dos portugueses e de nossa lei [...]
determinou de os levar por seu humor
147
.
Guerreiro informa ainda que Nobili agiu inspirado pelo sucesso da missão na China do
italiano Ricci, que já obtivera bons resultados, a partir do uso, por parte dos padres jesuítas,
do hábito usado pelos letrados chineses, pois passaram a ser respeitados como os sábios
145
Carta para o padre visitador de Maduré, de 7 de maio de 1610 Apud Maria de Deus Beites Manso. Op.
cit. p. 251-252.
146
José Eisenberg. Op. cit. p. 45.
147
Fernão Guerreiro. Relaçam annual que fezeram os padres da Companhia de Jesus nas partes da Índia
Oriental & em algumas outras partes da conquista deste reyno no ano de 606 & 607 & do processo de
conversão da christandade daquelas partes, Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1609. p. 112.
139
locais
148
. O autor afirma que a repercussão da apresentação de Nobili foi grande e que até o
Naique de Maduré queria que fosse conhecê-lo:
ao que respondeu um dos seus grandes que o padre era tão casto que só
por não ver mulheres nem saía de casa: a qual virtude tanto eles mais
veneram, quanto menos a guardam pela dificuldade que nisso
experimentam. É verdade que o padre com haver mais de um ano que
residia naquela cidade nunca jamais sai de casa, nem fala a todos a todo
tempo: respondendo às vezes que está em contemplação, porque aquela
gente se rege tanto pelo exemplo do que ensina, conforme ao conceito que
deste fazem, assim estimam a doutrina. E foi Nosso Senhor servido que
não saísse debalde todo este santo estratagema, ou artifício de que o padre
usou, porque daqui teve princípio a conversão dos infiéis que nesta terra se
vai começando com tanta glória de Nosso Senhor
149
.
Apesar do entusiasmo pelo método, que fica evidente no texto de Fernão Guerreiro,
não havia unanimidade de opinião sobre as práticas de Nobili, que causavam polêmica dentro
da própria Companhia de Jesus, e que eram por alguns classificadas como excêntricas. O
primeiro a fazer sérias reservas aos procedimentos de Nobili foi o seu próprio companheiro
de missão, padre Gonçalo Fernandes. Ele informa que:
[...] pareceu convir aos que se convertiam e eram convertidos porem na
testa sândalo em certa forma como os gentios o põem, que eles gentios o
fazem por galantaria [...] depois vejo o padre a usar do sândalo da mesma
forma, mas assim o sândalo que o Padre põe, como o que põem os
cristãos benze o Padre ao Domingo antes de começar a missa e se reparte,
porque nem o Padre diz missa, nem os cristãos a ouvem sem se lavarem e
porem o sândalo
150
.
148
A missão na China do padre Matteo Ricci começou em 1582 quando de sua chegada a Macau. Até sua
morte em 1610, este jesuíta desenvolveu um método denominado oficialmente de accommodatio que
utilizava os elementos culturais locais e exteriores, tais como vestimentas e hábitos cotidianos, como forma
de aproximação para desenvolver o trabalho de evangelização. Ver Jonathan D. Spence. O palácio da
memória de Matteo Ricci (a história de uma viagem: da Europa da Contra-Reforma à China da dinastia
Ming). Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
149
Idem. p. 112-113.
150
Carta para o padre visitador de Maduré, de 7 de maio de 1610. Apud Maria de Deus Beites Manso. Op.
cit. p. 250.
140
Fernandes mostrou-se temeroso em relação ao método porque considerava que
parecia-se mais com uma outra seita do que com evangelização, mencionando ter ouvido que
nem o nome de Jesus era mencionado nas conversas com os brâmanes; por outro lado, havia
o constante perigo de se descobrir a verdadeira identidade de Nobili
151
Por fim, justificava-se
pela iniciativa de informar ao visitador da Companhia de Jesus, Nicolau Pimenta, porque
“havendo coisa que tenha necessidade de conserto, seja antes consertado pela Companhia
que por outrem”
152
.
Mesmo que se possa dizer que o padre Fernandes opunha-se aos métodos de Nobili,
suas críticas possuíam elementos que denunciavam os perigos da ação desenvolvida pelo
italiano e, a comprovar suas reservas, os problemas começaram a acontecer, depois do
sucesso inicial.
Um paravá cristão teria contado a outros convertidos que o padre Nobili era um
parangi designação local para portugueses e que sendo assim, ao terem sido batizados
por ele tinham perdido sua casta. Essa informação espalhou-se e trouxe tensão à região.
Nobili então escreveu uma declaração em tâmil numa ola (folha de palmeira) e fixou-a numa
árvore em frente a sua casa, declarando que não era um parangi, mas sim um homem vindo
de Roma, de família muito nobre e que pregava a lei do verdadeiro Deus
153
. Isso serviu para
aplacar a situação na região de Maduré.
No entanto, os problemas estavam apenas começando. A partir da carta do padre
Fernandes, datada de 1610, o visitador Pimenta iniciou uma série de ataques a Nobili.
Primeiro fez uma condenação do método e enviou uma consulta a Cochim, sede da Província
do Malabar os limites geográficos dessa província compreendiam as regiões da costa do
Malabar à costa do Coromandel, ou seja, o sul da península hindustani, incluindo as cidades
de Cochim, Travancore, São Tomé de Meliapor e Maduré; observe-se que a maior parte
desse território não se encontrava sob o domínio direto dos portugueses à qual estava
submetida a missão de Maduré , solicitando a suspensão dos procedimentos de Nobili na
região. Mas de lá não obteve apoio. Então, convocou dois teólogos em Goa que, após
151
Idem. p. 253.
152
Idem. p. 254.
153
Augusto Truzzi. P. Roberto de Nobili e la sua apologia. In: Enrico Fasana e Giuseppe Sorge. Civiltà
indiana ed impatto europeo nei secoli XVI-XVIII: l’apporto dei viaggiatori e missionari italiani. Milano:
Jaca Book, 1988. p. 104.
141
analisarem a questão, condenaram como supersticiosas, escandalosas e ilícitas as tentativas de
aproximação desenvolvidas por Nobili no Malabar.
Por outro lado, o jesuíta italiano também recebia apoio entre seus colegas inacianos,
e seus maiores aliados eram um companheiro da missão de Maduré, o padre Antônio Vico e
o arcebispo de Cranganor, o jesuíta Francisco Roz. Diante das acusações, Nobili escreveu
um texto conhecido como “Primeira Apologia”, ou simplesmente, “Resposta do Padre
Roberto Nobili às censuras de Goa”
154
. O documento foi escrito com a urgência que a
situação exigia e ilustra a alta formação intelectual do missionário italiano, que não tinha
disponível textos teológicos, forçado a elaborar seus argumentos com o auxílio da memória
de suas antigas leituras. O jesuíta defendia-se das acusações alegando que esses costumes
locais o uso da linha bramânica, os banhos rituais, as vestimentas, entre outros tinham
significado social, eram sinais exteriores e não de superstição, portanto poderiam e deveriam
ser tolerados. Antônio Vico e Francisco Roz também fizeram considerações escritas sobre os
métodos praticados em Maduré, além dos três terem participado de debates sobre a questão
tanto em Cochim como em Goa.
A discussão acabou por extrapolar os limites da ordem jesuítica e começou a
envolver outras autoridades eclesiásticas do Oriente. O bispo de Cochim, D. André de Santa
Maria opunha-se de forma veemente ao método de Nobili. Por sua vez, o arcebispo de Goa,
D. Aleixo de Menezes tinha simpatia pelos argumentos do jesuíta italiano. No entanto, a partir
de 1611, o seu sucessor D. Cristovão de Sá não manteve a mesma posição, polarizando
ainda mais o debate. Em 1613, o provincial da Companhia de Jesus, Pero Francisco, chegou
a ordenar que Nobili e Vico não fizessem mais batismos na região.
O problema finalmente chegou a Roma. A princípio, os métodos de Nobili causaram
escândalo, mas logo outras interpretações dos acontecimentos foram apresentadas e o debate
também lá se estabeleceu. Em 1615, o Geral da Companhia de Jesus, Claudio Aquaviva, deu
sua aprovação a Roberto Nobili. No ano seguinte, no breve Cum sicut fraternitas o papa
Paulo V demonstrou consideração ao método de Nobili e recomendou um exame mais
154
O texto completo encontra-se na Biblioteca da Ajuda. Resposta do Padre Roberto Nobili às censuras
de Goa. Jesuítas na Ásia. Códice 49-V-7. fls. 334-345 v. Esse texto datado de 1611 foi enviado a
autoridades eclesiásticas em Goa, Lisboa e Roma.
142
cuidadoso da questão. Em 1618, outro breve do mesmo papa ordenou que o arcebispo e os
inquisidores de Goa organizassem uma junta para analisar as práticas de Nobili
155
.
As considerações dessa junta foram remetidas ao Inquisidor Geral em Lisboa, D.
Fernão Martins de Mascarenhas, para dar uma sentença, que por sua vez a enviou a Roma,
onde a questão foi examinada por três teólogos que deram razão a Nobili. Baseado em todas
essas considerações o papa Gregório XV, na bula Romanae sedis antiste, de 1623, permitiu
a continuidade dos trabalhos do jesuíta italiano, fazendo algumas recomendações para que a
superstição e o escândalo fossem sempre evitados. Além disso, aprovou a separação das
castas, mas recomendou que nada fosse feito em prejuízo dos mais pobres e humildes
156
.
Nobili continuou seus trabalhos missionários na região, por vezes enfrentando tensões
locais. De 1639 a 1641, por exemplo, permaneceu preso por ordem do Naique de Maduré.
Posteriormente, alguns outros jesuítas reproduziram os métodos do italiano na região, com
variações: os padres Baltazar da Costa, Leonardo Cinnani, João de Brito são os melhores
exemplos
157
. Já muito doente, quase cego, e apesar de ter expressado o desejo de morrer em
Maduré, Nobili foi mandado para Meliapor, onde veio a falecer em 1656
158
. O legado de seu
esforço missionário na região se pode resumir em cerca de quatro mil cento e oitenta e três
conversões num período de trinta e nove anos de trabalhos
159
. Além disso, Nobili também foi
responsável pela tradução de muitas orações para o sânscrito e escreveu nessa língua uma
doutrina cristã e uma vida de Nossa Senhora. Em tâmil escreveu um catecismo em quatro
volumes, um tratado sobre a vida eterna, uma negação à transmigração da religião gentílica,
entre obras, muitas das quais traduziu para o telugu. Ou seja, seguiu a mesma linha de estudo
155
A participação da Inquisição de Goa nas discussões sobre os ritos malabares está estudada no
capítulo IV deste trabalho.
156
Apesar dessa decisão do papa, a questão não foi definitivamente superada. O maior problema foi a
reação de outras ordens rivais que, no final do século XVII, acabaram denunciando os jesuítas de
permitirem a prática de “usos gentílicos”, que ficou conhecida como a querela dos ritos malabares,
sempre associada à questão dos ritos chineses. A polêmica continuou e só teve fim no século XVIII
quando Bento XIV, em 1742 publicou a bula Ex quo singulari onde condenou os ritos chineses como
supersticiosos e em 1744, publicou a bula Omnium sollicitudinum, que resolve o mesmo sobre os ritos
malabares.
157
O destaque maior é João de Brito, que ao tentar penetrar no Maravá acabou preso e foi degolado em
1693 a mando das autoridades hindus e por isso foi canonizado em 1947. Ver João Paulo A. de Oliveira e
Costa. A missão de João de Brito. Lisboa: Secretariado Nacional das Comemorações dos 5 séculos, 1992.
158
Augusto Truzzi. Op. cit. p. 106.
159
William V. Bangert. Op. cit. p. 290. Já Dauril Alden. Op. cit. p. 152 dá o número de 30.000 conversões
atribuídas a Nobili.
143
das línguas locais indicada anteriormente pelos trabalhos de Francisco Xavier e Henrique
Henriques
160
.
Deve-se destacar a engenhosidade do método desenvolvido por Nobili, ou adaptado
por ele a partir da experiência de Ricci na China. Sua proposta de missionação compreendia
a necessidade de se entrar na lógica religiosa dos hindus, uma vez que os laços entre a
estruturação da sociedade e o hinduísmo são tão imbricados. Utilizar os símbolos como
fórmulas poderosas da existência dos homens para o caso hindu uma série de
características culturais, tais como a vestimenta, a alimentação, o isolamento , reconhecidos
como de valor, para angariar primeiro a atenção e depois introduzir outros conceitos
religiosos era um caminho alternativo, habilidoso por manipular os elementos culturais
existentes e, por isso mesmo, do ponto de vista da ortodoxia, perigoso
161
.
Significou também uma clara construção de pontes e vínculos entre as culturas indiana
e européia, constituindo-se no exemplo mais completo de mediação cultural desenvolvida por
jesuítas na Índia.
Outra interessante maneira de confronto com a realidade multiforme que se
apresentava diante dos jesuítas era tentar melhor compreendê-la. Conhecer melhor aquelas
culturas com as quais entravam em contato também era uma variação de mediação cultural,
segundo Rebollo
162
. É no início do século XVII que se localiza um significativo número de
registros etnográficos elaborados por inacianos, com destaque para Historia do Malavar, do
padre Diogo Gonçalves (1615) e Tratado sobre o hinduísmo, do padre Gonçalo Fernandes
(1616).
O primeiro, além de fazer um histórico sobre os reis do Malabar, produz uma
detalhada descrição dos costumes dos hindus daquela localidade. É claro que existem muitos
juízos de valor mas, de uma maneira geral, consegue apresentar uma razoável caracterização
daquela cultura. Por exemplo, pode-se citar a questão da prática de se queimar as viúvas com
160
A biografia do religioso encontra-se em J. Castets. Roberto de Nobili. In: New Advent Catholic
Encyclopedia. www.newadvent.ogr/cathen/11086a.htm.
161
Utiliza-se aqui a definição de religião de Clifford Geertz. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Guanabara-Koogan, 1989. p. 104-105: “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições
e motivações parecem singularmente realistas”.
162
Beatriz Moncó Rebollo. Op. cit. p. 344.
144
a morte dos maridos, o sati. O padre Diogo Gonçalves teve o cuidado de informar que essa
não era uma prática comum na costa do Malabar, e sim entre os badagás e que:
nasce-lhe esta barbaria de outra, que é terem muitas mulheres, tantas
quanto possam sustentar, tendo por maior grandeza e soberania quanto
mais tem [...]. O costume pois é que tanto que morre o marido, as mulheres
ou seja uma ou muitas, sem mostrar sentimento, se há de lavar e vestir pano
novo e untar-se, andar brincando e folgando. Entretanto os parentes fazem
uma cova, conforme a gente há de morrer, em que põem muita lenha, e
põem fogo, onde primeiro lançam o corpo do marido. [...] Chega a mulher
ou mulheres que se hão de lançar no fogo, e se tem algum receio os
mesmos parentes a lançam e botam todos lenha e azeite para se acabar de
consumir depressa. A isto chamam ticurî
163
.
Já o Tratado sobre o hinduísmo foi escrito por Gonçalo Fernandes no contexto das
discussões sobre os métodos de missionação do padre Nobili na região do Maduré e por
ordem do provincial Pero Francisco, que era forte opositor do jesuíta italiano
164
. Apesar de
ser um instrumento político, o trabalho tem uma proposição mais erudita que a de Diogo
Gonçalves, uma vez que Fernandes afirmou ter lido os textos sagrados hindus, a partir de uma
tradução do sânscrito para o tâmil. Visava sistematizar informações sobre a religião dos
hindus, mas a ênfase é claramente a descrição dos usos e costumes dos brâmanes para
condenar os ritos que estes praticavam e que eram defendidos por Nobili.
Logo de início procurou esclarecer a função dos brâmanes na sociedade hindu. O
jesuíta discutiu a alegação que se fazia entre os europeus de que os brâmanes não eram
sacerdotes e sim gente baixa e plebéia, afirmando que:
quanto a dizer que não são sacerdotes porque não são guardas dos
templos, como se fosse coisa essencial ao sacerdote vigiar os templos: que
nas sés catedrais há porteiros que juntamente as vigiam, e em nossas igrejas
ao sacristão incumbe vigiar a igreja. O segundo, dizer que os que fazem
163
Diogo Gonçalves. Historia do Malavar. Ed. Josef Wicki. Münster: Aschendorffsche Verlangsbuch
Handlung, 1955.
164
O texto do Tratado do Padre Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o hinduísmo (Maduré, 1616).
Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973, foi localizado por José Wicki no Arquivo
Romano da Companhia de Jesus. Wicki considera que o documento nem chegou a sofrer exame, pois
quando o Tratado chegou a Roma, as condições políticas já haviam mudado e havia apoio à causa de
Nobili. p. XIII.
145
ofício de sacerdotes nos templos serem como plebeus, e por isso não se
comer com eles nem conversarem como com outros brâmanes, também
parece que não tem alguma razão, pois da mesma maneira se não conversa
nem come com os brâmanes, cantores ou bailadores, nem com os que
conversam com sudras, nem os que são devassos com mulheres, nem ainda
com os que conversam com os que vendem carne [...]
165
.
O autor faz uma cuidadosa descrição das práticas religiosas e culturais dos brâmanes,
mas não se exime de expressar muitos juízos de valor, classificando-os como gente que só
fazia coisas para o seu interesse, e designando como “diabólica religião” seus cultos,
cerimônias e ritos. Apesar da demonstração de conhecimento da cultura local, Fernandes não
é um adepto dos métodos de aproximação empregados por Nobili, e visivelmente tem a
preocupação de condenar os brâmanes.
Há ainda um outro tipo de produção bibliográfica incentivada pela Companhia de
Jesus que foi o de se fazer a história dos jesuítas no Oriente como forma de propaganda,
muito semelhante ao que era feito com as cartas ânuas, um esforço promovido ainda no final
do século XVI, mas que deu seus melhores frutos também no início do século XVII. Além
disso, os inacianos também eram poderosos veiculadores das observações sobre as culturas
com as quais entravam em contato.
A obra de maior destaque é a de Alessandro Valignano, História del princípio y
progresso de la Compañia de Jesús en las Índias Orientales (1542-1564). O livro está
dividido em duas partes, a primeira escrita em espanhol e a segunda em português, e foi
terminado por volta de 1605
166
. Alessandro Valignano pertencia a uma nobre família
napolitana e entrou para a Companhia de Jesus aos vinte sete anos em 1556. Como visitador
da Província da Índia (1574-1595) e depois Provincial de Goa (1583-1587), foi o
responsável por uma série de deliberações e sistematizações da estrutura administrativa da
ordem, tendo contribuído também para a consolidação das missões no Japão e na China. Foi
165
Gonçalo Fernandes. Tratado sobre o hinduísmo. Ed. José Wicki. Lisboa: Centro de Estudos Históricos
Ultramarinos, 1973. p. 300.
166
Alessandro Valignano. História del princípio y progresso de la Compañia de Jesús en las Índias
Orientales (1542-1564). Ed. Josef Wicki. Roma: Institutum Historicum S. I., 1944.
146
um superior que trouxe uma série de tensões também, em contrapartida, pois muitos das suas
decisões sofreram duras críticas
167
.
Em 1574 Valignano recebeu a incumbência do Geral Mercuriano de fazer um relato
das coisas dignas de nota sobre a obra jesuítica na Índia. Para tanto, Valignano, com seu
poder de Visitador, convocou todos os jesuítas do Oriente a lhe enviar cópias ou resumos
dos trabalhos que cada um desenvolvia, além dos registros de memória sobre a obra de
Francisco Xavier. Reuniu ainda os registros feitos pelos padres da Companhia nas suas cartas
para consolidar a narrativa do livro. Praticamente toda a primeira parte é dedicada à figura de
Francisco Xavier, com algumas características de hagiografia tais como recorrentes
transcrições de predições, premonições, curas, a preservação do corpo após a morte, entre
outros elementos , com objetivo de sustentar sua santificação, que estava em processo na
cidade de Roma
168
.
O relato procurava também mostrar as diversidades de culturas asiáticas, assim como
o papel desempenhado pelos portugueses. Há considerações até mesmo sobre a soberania
do rei de Portugal no Oriente, como pode ser visto na seguinte passagem: “o rei de Portugal
[...] é absoluto senhor deste mar da Índia”
169
. É notável sua percepção contemporânea de que
o domínio português restringia-se ao mar e não à terra. Valignano fez ainda uma detalhada
transcrição de usos e costumes de chineses e de japoneses, chamando os últimos de “gente
branca”, considerando-os melhores do que os outros povos do Oriente, opinião
compartilhada com a do próprio Francisco Xavier
170
.
Outro exemplo desse tipo de produção desenvolvida pelos inacianos é a obra de
Sebastião Gonçalves, História dos religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram
com a divina graça na conversão dos infiéis à nossa Santa Fé Católica nos reinos e
167
Charles R. Boxer. The christian century in Japan: 1549-1650. Los Angeles/London: University of
California Press/Cambridge University Press, 1951. p. 72.
168
Houve uma série de intensas negociações para a canonização de Francisco Xavier e outros jesuítas
que atuaram em outras regiões além da Ásia. Ver Dauril Alden. Op. cit. p. 641.
169
Alessandro Valignano. Op. cit. p. 40.
170
Idem. p. 126. No entanto, havia outras opiniões entre os jesuítas: o padre Nicolau Lanciloto, por
exemplo, referindo-se aos indianos, considerava que “a gente desta terra não é menos aguda do que é a
nossa, nem é menos capaz de ciência e doutrina do que nós outros somos; e por isso é certo que se
aplicassem os meios humanos devidamente, se faria nestas partes grandíssima cristandade”. Em carta para
Inácio de Loyola de Coulão, datada de 29 de outubro de 1552. In: José Wicki. Documenta Indica. Romae:
Monumenta Historica Societatis Iesu, 1950. v. 2. p. 380-381.
147
províncias da Índia Oriental
171
. A obra foi encomendada a Sebastião Gonçalves pelo
Provincial Manuel da Veiga em 1604 e foi escrita na própria cidade de Goa. Somente em
1614 ela foi terminada
172
.
O autor indica as fontes por ele utilizadas: as memórias antigas e modernas, cartas
dos companheiros com destaque para as de Henrique Henriques, Francisco Peres e Manuel
Teixeira ; relatos de testemunhas ainda vivas, a quem ele podia perguntar sobre coisas de
tempos anteriores e até mesmo “histórias profanas, tomando delas o que a nosso propósito
vinha”
173
. Refere-se ainda a outras obras de história da Companhia de Jesus no Oriente feitas
por outros jesuítas, tais como o próprio Valignano, além de Giovanni Pietro Maffei e João de
Lucena, que escreveram livros sobre as coisas da Índia, com ênfase na descrição da vida de
Francisco Xavier
174
.
No momento em que Sebastião Gonçalves escrevia, Francisco Xavier já era beato e
o seu processo de canonização estava em curso. Portanto, também este autor dedica uma
parte significativa do livro para narrar a vida de Xavier e sua obra no Oriente. No entanto, fez
também uma rica descrição da ação dos jesuítas em Goa, especialmente em Salcete, e na
costa da Pescaria. Há ainda uma descrição dos usos e costumes dos indianos da região,
inclusive com detalhada narrativa sobre os deuses hindus, com forte veiculação de juízos de
valor, como pode ser visto, por exemplo, no início do capítulo oito, intitulado “Contra a
sobeja multidão dos deuses indianos e demais gentilidades”. Lá Gonçalves diz, em clara
condenação da religiosidade local: “já que escrevemos da falsa genealogia dos deuses
indianos, será bem que digamos quão supérflua seja a desnecessária multidão dos deuses
gentílicos”
175
. Por outro lado, faz a apologia da ação missionária dos jesuítas, com grande
destaque para o sucesso da cristianização de Salcete.
171
Biblioteca Nacional de Lisboa. Reservados. Microfilme. F4869. Sebastião Gonçalves. História dos
religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram com a divina graça na conversão dos infiéis à nossa
Santa Fé Católica nos reinos e províncias da Índia Oriental, composta pelo padre Sebastião Gonçalves,
religiosos da mesma Companhia. Português natural de Ponte Lima, 1614. Trata-se de um livro manuscrito
com 428 meias folhas escritas.
172
Idem. fl. III v.
173
Idem. fl. III III v.
174
Giovanni Pietro Maffei. Le Historie delle Indie Orientali. Venetia: appresso Damiano Zenaro, 1589 e
João de Lucena. História da vida do padre Francisco de Xavier: e do que fizeram na India os mais
religiosos da Companhia de Jesus. Lisboa: Pedro Crasbeek, 1600. As duas obras têm várias edições e
podem ser encontradas na Biblioteca Nacional de Lisboa.
175
Biblioteca Nacional de Lisboa. Reservados. Microfilme. F4869. Sebastião Gonçalves. História dos
religiosos da Companhia de Jesus... fl.332.
148
Por tudo exposto até aqui, pode-se afirmar que os procedimentos da Companhia de
Jesus em relação ao processo de cristianização colocada em prática no Oriente sofreram
variações ao longo do tempo e das regiões em que foram desenvolvidos e ainda provocaram
algumas dissensões dentro da ordem. Geralmente esses conflitos são atribuídos às diferentes
nacionalidades dos jesuítas, especialmente a rivalidades entre portugueses, espanhóis e
italianos. Na verdade essas rusgas podem ser detectadas na vasta correspondência da
Companhia de Jesus, queixas e críticas de jesuítas portugueses aos italianos, principalmente
no período da administração de Valignano, o que comprova a existência desses atritos
176
. No
entanto, não se deve atribuir apenas as diferenças de atuações de missionação ao país de
origem de cada inaciano. Muitos jesuítas portugueses tentaram modelos de aproximação com
as culturas locais. Henrique Henriques é um exemplo, assim como João de Brito, entre
diversos outros. Com certeza havia diferenças na formação de jesuítas em Portugal e na Itália,
em função das próprias especificidades culturais desses países, e disso derivavam diferenças
de abordagens de situações e problemas. Parece ser mais proveitoso entender que a
existência de métodos diferenciados de trabalhos de cristianização desenvolveram-se em
função do maior ou menor apoio da Coroa portuguesa, ou onde havia um significativo aparato
administrativo lusitano, que trabalhava em associação com os objetivos missionários e fazia
prescindir de estratégias engenhosas de mediação cultural
177
.
Ainda assim, não se pode esquecer que também existiram atritos entre as autoridades
eclesiásticas e civis. Nem sempre os governadores e vice-reis agiam conforme os interesses
da missionação e houve muitos casos de divergências, o que ao fim fragilizava o
estabelecimento da cristandade no Oriente.
Conflitos dessa natureza só acentuaram o gigantesco isolamento no qual a cristandade
que se instalara em Goa, sob o incentivo da expansão portuguesa, estava confinada. A
sensação de que os inimigos estavam em muitos lugares, e cada vez mais próximos,
alimentava a insegurança que servia de combustível para o aumento da violência de inspiração
religiosa.
176
Maria de Deus Beites Manso. Op. cit. p. 206. Para a autora os missionários italianos mostram sempre
preocupação em relação aos programas e aos métodos a seguir. p. 86-87.
177
Cf. João Paulo de Oliveira e Costa. Op. cit. p. 279.
CAPÍTULO III
O Santo Ofício Goês: a luta pela pureza da fé
“Sendo assim que sem ele [o Santo
Ofício] se não poderá conservar [a
cristandade] em partes tão distantes e
rodeados de tantos e tão diversos
inimigos de nossa Santa Fé”
Carta da Mesa do Conselho Geral do
Santo Ofício (1631)
1. Tempo de Inquisição
O conceito chave para entender-se a Inquisição é o de heresia. Segundo Anita
Novinsky “a palavra herege origina-se do grego hairesis e do latim haeresis e significa
doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé. Em grego, hairetikis
significa «o que escolhe»”
1
. Citando o teólogo M. D. Chenu, a autora complementa:
“herege é «o que escolheu», o que isolou de uma verdade global uma verdade parcial, e
em seguida se obstinou na escolha”
2
. Um ato de escolha puramente humano em termos
religiosos é interpretado, do ponto de vista teológico, como opção pelo erro, uma vez
que a vontade do homem é corrupta e não pode ser superior à vontade de Deus,
segundo São Jerônimo e Santo Agostinho, entre outros
3
. Já São Tomás de Aquino
define heresia como “uma espécie de infidelidade dos homens que ao professar a fé em
Cristo, corrompe os seus dogmas”
4
.
Heresia não deve ser confundida com apostasia
5
, pois “o herege não se afasta da
sua fé, senão parcialmente, enquanto o apóstata a abandona na sua totalidade”
6
. Numa
perspectiva teológica, o herege é uma ameaça à unidade da Igreja, enquanto que a
apostasia constitui perigo de redução do número de fiéis
7
.
1
Anita Novinsky. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 10.
2
Idem. p. 11.
3
J. Wilhelm. Heresy. In: New Advent Catholic Encyclopedia. www.newadvent.org/cathen/07256b.htm.
4
Idem. Tradução livre do texto.
5
O significado da palavra apostasia no Dicionário Eletrônico Aurélio é separação ou deserção do corpo
constituído (de uma instituição, de um partido, de uma corporação) ao qual se pertencia; abandono da fé
de uma igreja, especialmente a cristã; abandono do estado religioso ou sacerdotal. Mas também pode-se
entender apostasia como a rejeição aberta dos ensinamentos cristãos feita individualmente. Assim como a
heresia, a apostasia também era objeto da perseguição inquisitorial.
6
Elias Lipiner. Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Documentário, 1977. p. 80.
7
Leszek Kochakowicz. Heresia. In: Ruggiero Romano (dir). Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1987. v. 12. p. 303.
No Novo Testamento existem várias referências às “heresias” dos Saduceus,
dos Fariseus e dos Nazarenos, mas o sentido nele atribuído à palavra está relacionado
geralmente à noção de uma seita ou uma facção, com exceção de algumas menções
feitas por S. Pedro que podem ser interpretadas tanto por “«divisões» como, mais perto
da acepção moderna do termo, a erros doutrinais”
8
.
A heresia existe em oposição à ortodoxia, a crença julgada correta, que no caso
da Igreja de Roma foi definida, grosso modo, a partir do Concílio de Nicéia em 325,
onde foram estabelecidos seus dogmas fundamentais, na tentativa de superar muitas
polêmicas religiosas da época, a exemplo do arianismo, no contexto da chamada
questão cristológica. Eliade e Couliano esclarecem:
a ortodoxia cristã é o resultado de um processo que dura três séculos
e meio e estabelece-se como um sistema com múltiplos subconjuntos
interdependentes cujo funcionamento provém ou de um mecanismo
interno de dissociação das duas grandes correntes existentes na
teologia cristã (a corrente judaica e a platonizante), ou da interação
entre um subsistema central e subsistemas que gravitam em torno do
cristianismo (suas “heresias”) e não são propriamente cristãos
9
.
Resulta daí o entendimento de que existe uma “pureza” da fé em oposição
àqueles que conspurcam a religião, que se isolam numa crença errada, imperfeita. Ou
ainda:
um herege tanto para o historiador como para os ensinamentos
cristãos é alguém que apela para o mesmo cânone que os ortodoxos,
mas que o interpreta de modo diferente; a maior parte das vezes não
quer ser um inovador, apenas pretende restaurar a mensagem divina
original e por isso acusa os ortodoxos de heresia. O fato de ser ele o
herético e não seus adversários decorre de ter sido derrotado ou de
estar em minoria, ou ainda porque os ortodoxos conseguiram manter
intacta a continuidade do corpo religioso
10
.
Kochakowicz destaca o fato de que o historiador deve estar atento a não
reproduzir a definição de heresia da Igreja Católica para não se colocar dentro da sua
8
Idem. p. 301.
9
Mircea Eliade e Ioan P. Couliano. Dicionário das religiões. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 1994. p. 104.
10
Leszek Kochakowicz. Op. cit. p. 302-303.
lógica dogmática e do seu critério de julgamento. Este deve deixar claro que estuda um
fato institucional e não apenas doutrinal
11
. O autor também propõe uma tipologia de
heresias: “heresias políticas, intelectuais e populares”. As primeiras são motivadas por
razões predominantemente políticas sem discussões dogmáticas profundas (dá como
exemplo o cisma oriental e o de Henrique VIII da Inglaterra); as segundas são
claramente eruditas e circunscritas às camadas mais cultas (cita Servey, que atacou o
dogma da Trindade no século XVI, entre outras); e por último as heresias populares,
que “afetam largas camadas da população inculta camponesa ou urbana”
12
.
Desde o Concílio de Nicéia, aquelas tendências consideradas heréticas sofriam
isolamentos e perseguições por parte das autoridades religiosas, mas não havia uma
sistematização dos procedimentos e nem um instrumento específico para o julgamento
dessas questões
13
, na forma que viria a se organizar com o tribunal inquisitorial.
A origem da Inquisição remonta à Idade Média, quando foi criada para reprimir
as heresias que se espalharam a partir dos séculos XII e XIII, principalmente na França.
Nesse momento, era uma instituição “idealizada e dominada pelo papa”
14
com o
objetivo de combater as contestações aos dogmas que se disseminavam por algumas
regiões européias. As formas de inquisições variavam desde nomeações de bispos ad
hoc feitas no século XII para averiguar as paróquias sob suspeita de heresia, até a
constituição de um tribunal religioso, a exemplo do organizado por Domingos de
Gusmão a pedido do Papa Gregório IX, no século XIII:
assim nasceu a mais estruturada das Inquisições medievais,
controlada pelos dominicanos, subordinada ao Papado e responsável
por inúmeras perseguições aos cátaros, «seguidores do livre espírito»,
e a outros hereges. E nasceram, por outro lado, os modernos
procedimentos judiciários calcados no segredo do processo, na
institucionalização da tortura como meio de arrancar confissões, no
anonimato das testemunhas, e outros mecanismos exaustivamente
detalhados nos manuais de Bernardo Gui, Practica Inquisitionis, e de
11
Idem. p. 304.
12
Idem. p. 315-17.
13
O mecanismo usado freqüentemente pelos papas no período da Alta Idade Média era a excomunhão,
como exemplo pode-se citar a excomunhão de Fócio, Patriarca de Constantinopla em 863, ou ainda, a
excomunhão que o papa Leão IX lançou sobre a Igreja do Oriente, respondida pelos patriarcas do Oriente,
em contrapartida, com a excomunhão da Igreja romana, em 1054, episódio conhecido como o Grande
Cisma.
14
Anita Novinsky. Op. cit., p.16.
Nicolau Eymerich, Directorum Inquisitorum, ambos datados do
século XIV
15
.
Apesar das raízes medievais da Inquisição, no período moderno os tribunais
inquisitoriais organizaram-se em moldes diferentes, adequados ao contexto da
formação dos Estados Nacionais, principalmente no que se refere às monarquias
ibéricas
16
. Bennassar destaca que a Inquisição é um elemento essencial do aparato do
Estado nesse momento, uma vez que sua excepcional eficácia tornava-a uma
importante aliada tanto do catolicismo romano quanto “o melhor auxiliar de
Leviatan”
17
.
Assim, no contexto especificamente hispânico de perseguição aos conversos de
origem judaica e para salvaguardar a fé cristã como bandeira da unidade nacional, foi
instalada em 1478 a Inquisição na Espanha. Fora solicitada pelos reis católicos
Fernando de Aragão e Isabel de Castela ao papa Sisto IV, que a erigiu através da bula
Exigit Sincerae Devotionis Affectus
18
. A diferença fundamental entre o tribunal
espanhol e aqueles existentes no período medieval consistia no fato de que a indicação
dos inquisidores era feita pelo rei, e só mais tarde confirmada pelo papa. Outra
característica da Inquisição Espanhola que deve ser destacada é a perseguição aos
“marranos” designação dos convertidos de origem moura ou judaica , especialmente
os suspeitos de judaizar
19
.
Em Portugal, a Inquisição foi instaurada pela bula de 23 de maio de 1536,
concedida pelo papa Paulo III. Esta é considerada a data do estabelecimento do tribunal
do Santo Ofício português, mas é importante lembrar que ela foi apenas uma etapa
decisiva em meio às tensas negociações entre o papado e o rei D. João III, que se
15
Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Campus, 1989. p. 189.
16
Um interessante estudo comparativo das inquisições modernas encontra-se em Francisco Bethencourt.
História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália séculos XVXIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
17
Bartolomé Bennassar (org). Inquisición española: poder politico y control social. Barcelona: Editorial
Crítica, 1981. p. 68.
18
Autorizava estes reis a nomearem três prelados ou outros eclesiásticos para inquirir os hereges e
apóstatas nos domínios de seus reinos. Houve alguma resistência inicial por parte da rainha que
finalmente consentiu no estabelecimento definitivo em 1480. Ver Alexandre Herculano. História da
origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Europa-América, s/d. v 1, p. 44-45.
19
Cf. Jean-Pierre Dedieu. Les quatre temps de l’Inquisition. In: Bartolomé Bennassar (org). L’Inquisition
Espagnole (XV
e
-XIX
e
siècles). Paris: Marabout, 1982. p. 13-40. O autor informa que entre os fins do
século XV e primeiras décadas do XVI os marranos foram os mais perseguidos pela Inquisição
espanhola.
arrastavam desde 1531 e prolongar-se-iam até 1547
20
. Essa tardança decorreu das
grandes pressões exercidas por parte dos procuradores dos cristãos-novos em Roma,
que utilizaram toda sorte de expedientes para impedir a fundação do tribunal, inclusive
corrompendo, até onde foi possível, membros da cúria.
O centro da disputa entre a cúria romana e a Coroa portuguesa repousava na
questão da autoridade real sobre a Inquisição. A bula de 1536 não satisfazia plenamente
ao rei de Portugal, uma vez que por ela estava definido que o papa nomearia três
inquisidores e autorizaria o Rei a nomear um outro. Determinava ainda que durante três
anos os nomes das testemunhas de acusação não fossem secretos, e que por dez anos os
bens dos condenados não fossem confiscados. Além disso, os bispos teriam os mesmos
poderes que os inquisidores no conhecimento das heresias e, por intermédio do seu
núncio em Lisboa, o papa reservava-se o direito de fiscalizar o cumprimento da bula, de
conhecer os processos quando bem entendesse e de decidir em última instância
21
.
Somente depois de muitas negociações, e até mesmo após a ameaça de
rompimento com a Santa Sé, finalmente D. João III conseguiu consolidar a Inquisição
portuguesa nos moldes da espanhola, concedida através da bula de 16 de julho de 1547,
que lhe deu a forma de tribunal religioso submetido à autoridade do rei, o que, aliás, se
tornaria marca peculiar da Inquisição na Península Ibérica, assim como o seu caráter de
perseguição aos cristãos-novos. Esse aspecto é reforçado por Boxer quando afirma que
os tribunais espanhol e português podiam julgar o protestantismo e outras heresias,
além de exercerem a censura da palavra escrita, especialmente em Portugal, mas de
início concentraram-se “na detecção e prossecução dos criptojudeus [...] tanto no Velho
Mundo como no Novo”
22
.
Se o objeto inicial de perseguição era preferencialmente a heresia judaica,
percebe-se, no entanto, que ao longo do século XVI a Inquisição ibérica foi ampliando
gradativamente seu campo de atuação e marcando um movimento de aproximação com
os temas gerais que a Contra-Reforma enfrentava, sem com isto se afastar da vigilância
das práticas religiosas dos cristãos-novos. Assim, a partir da segunda metade do século
20
Cf. Alexandre Herculano. Op. cit. v. 1, livro III.
21
Idem. v. 2, livro V.
22
C. R. Boxer. A Igreja e a expansão ibérica (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1990. p. 107. Para a
questão dos cristãos-novos ver José Lourenço D. de Mendonça e Antonio Joaquim Moreira. História dos
principais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1980. p. 96; Alexandre Herculano. Op. cit. v 1, livro II; Anita Novinsky. Op. cit.; Maria José Pimenta
Ferro Tavares. Judaísmo e Inquisição: estudos. Lisboa: Presença, 1987 e Antônio José Saraiva.
Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa, 1994.
XVI e no século XVII, incrementou-se a perseguição aos bígamos, aos blasfemos, aos
defensores do luteranismo e calvinismo, aos que duvidavam da virgindade de Maria e
aos que negavam a primazia do estado clerical, entre outros “desvios”.
Entre 1541 e 1565 foram instalados quatro tribunais da Inquisição nos domínios
portugueses: Évora, cuja jurisdição circunscrevia à província do Alentejo e ao reino de
Algarve; Lisboa, que atuava na província da Estremadura e parte da Beira, além de
todas as conquistas até o cabo da Boa Esperança, incluindo o Brasil; Coimbra, que
cuidava das províncias de Entre Douro e Minho, de Trás-os-Montes e a parte restante
da Beira; e Goa, responsável pelos domínios portugueses além do cabo da Boa
Esperança
23
.
Para cada um deles, com a exceção do tribunal de Goa, havia três inquisidores,
quatro deputados ordinários, quatro deputados extraordinários, um promotor, quatro
notários ou secretários com seus ajudantes, dois procuradores dos presos, um meirinho,
um alcaide e quatro guardas dos cárceres secretos, dois médicos e um cirurgião, um
porteiro, três solicitadores, um despenseiro, um cozinheiro, um capelão, um alcaide e
um guarda nos cárceres da penitência, juiz do Fisco e escrivão do Fisco com seu
meirinho, escrivão do meirinho e provedor. Esses funcionários eram auxiliados por
uma rede de colaboradores e informantes voluntários, conhecidos como familiares do
Santo Ofício
24
, cujo número aumentou ao longo dos séculos XVII e XVIII
25
, passando
a agir por todo o reino e seus domínios. Todos os funcionários e colaboradores da
Inquisição eram submetidos a rígidos processos de seleção
26
. Deviam provar serem
23
Entre 1536 e 1539 o tribunal português funcionou em Évora e Lisboa. Em 1541 foram criados quatro
tribunais no norte e no centro do país: Porto, Lamego, Coimbra e Tomar. Em 1548 somente dois tribunais
funcionavam: o de Lisboa e de Évora. Em 1560 o tribunal de Goa foi criado e em 1565 foi restabelecido o
tribunal de Coimbra, ver em Francisco Bethencourt. Op. cit.. p.52-53. Depois disso houve uma
estabilização dos tribunais que é esta apresentada no texto.
24
José Lourenço D. de Mendonça e Antonio Joaquim Moreira. op. cit., p.122-23. Para estudar os
familiares do Santo Ofício ver Daniela Buono Calainho. Em nome do Santo Ofício: familiares da
Inquisição portuguesa no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, 1992. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio de Janeiro. mimeo. A autora define os Familiares como pertencentes à
categoria de oficiais leigos. p. 29. Ver também da mesma autora Metrópole das mandingas: religiosidade
negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime. Niterói, 2000. Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal Fluminense. mimeo. p. 207-208.
25
Segundo Daniela Buono Calainho. Em nome do Santo Ofício: familiares da Inquisição portuguesa no
Brasil Colonial... p. 29-30, nos Regimentos da Inquisição de 1552 e 1570 não há qualquer registro aos
Familiares, apesar de se ter indícios de sua existência. Somente no Regimento de 1613 se definem
claramente suas atribuições na estrutura inquisitorial.
26
Sônia A. Siqueira. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978. p. 124.
"limpos de sangue" e com um passado sem máculas
27
, remontando às suas gerações
anteriores:
a 'boa vida e costumes' era, junto com a pureza de sangue, requisito
fundamental para que se habilitassem aos 'negócios de importância e
segredo do Santo Ofício'. Deveriam, ainda, se afastar de pessoas
suspeitas e não pedir emprestado à 'gente de nação', isto é, os cristãos-
novos
28
.
Apesar das semelhanças entre as Inquisições portuguesa e espanhola, pode-se
constatar algumas diferenças, principalmente no que se refere à criação de tribunais nas
áreas coloniais. Na América Espanhola funcionaram tribunais do Santo Ofício em Lima
(1570), México (1571) e Cartagena (1610), o que não ocorreu na América Portuguesa,
pois o único tribunal do Santo Ofício português que funcionou fora dos limites
geográficos do reino foi o de Goa. A Inquisição havia sido transplantada para os
domínios espanhóis na região com o intuito de impedir a entrada de heresias.
Bartolomeu de Las Casas requisitou sua instalação em 1516, e em 1517 um decreto real
deu aos três bispos na América poderes para que procedessem contra os hereges. Na
verdade, quatro tipos de Inquisição foram instalados na América hispânica: a episcopal;
a monástica; os próprios tribunais do Santo Ofício, mencionados acima; e ainda o
Provisiorato del Tribunal del Santo Oficio para los Indios.
Mesmo diante dessa complexa rede criada pela Espanha em suas colônias
americanas, não se deve menosprezar a ação da Inquisição no Brasil, embora aí não
tenha sido consolidado nenhum tribunal do Santo Ofício. Os bispos estavam
encarregados de agir em nome do tribunal, mesmo não pertencendo aos quadros
inquisitoriais. Além disso, algumas visitações do Santo Ofício foram realizadas no
Brasil, sendo a primeira a de Heitor Furtado de Mendonça na Bahia e Pernambuco
(1591-1595), cujos registros se encontram na publicação de quatro volumes: Confissões
da Bahia, 1591-1593; Denunciações da Bahia, 1593-1595; Denunciações de
Pernambuco, 1593-1595 e Confissões de Pernambuco. Outras visitações ocorreram na
primeira metade do século XVII, havendo a suspensão dessa prática a partir da segunda
metade do mesmo século - uma vez que a malha dos familiares do Santo Ofício estava
27
Ou seja, não podiam ter antepassados judeus e nem estarem envolvidos em má conduta moral.
28
Daniela Buono Calainho. Em nome do Santo Ofício: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil
Colonial... p. 47.
mais disseminada e estruturada na colônia -, tendência estranhamente quebrada pela
visitação de Geraldo José de Abranches ao Pará, Maranhão e Rio Negro, entre 1763 e
1769, época em que a Inquisição se encontrava em franco declínio, controlada pelo
Estado
29
.
A violência dos tribunais do Santo Ofício, principalmente a institucionalização
das confissões por meio de tortura, costuma ser enfaticamente salientada, sobretudo nos
casos das monarquias ibéricas. Mas a violência da Inquisição ibérica teve
correspondência em outras regiões da Europa. Como bem assinala Ronaldo Vainfas,
às tarefas desse gênero, inscritas na estratégia de aculturação popular,
se dedicariam os poderes do Ocidente tanto nos países católicos como
nos protestantes, ocupando a atenção de inquisidores - onde os havia,
juízes eclesiásticos ou magistrados civis.[...] As atitudes policiais e
repressivas da moderna Inquisição, ibérica ou romana, integravam o
vasto painel da violenta pedagogia cristã posta em prática no
Ocidente
30
.
Portanto, a truculência dos processos inquisitoriais e da execução dos autos-de-
fé não estavam distantes da lógica de dominação baseada na violência que caracterizou
o regime absolutista e as monarquias nacionais européias da época moderna:
masmorras, torturas, castigos exemplares, execuções públicas povoavam as práticas
repressivas tanto no combate aos abusos da fé quanto nas ameaças e disputas políticas
31
.
29
José R. Amaral Lapa. Livro da visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará (1763-1769).
Petrópolis: Vozes, 1978. p. 6.
30
Ronaldo Vainfas. Op. cit. p. 189-191.
31
Para fazer-se uma comparação entre a violência da justiça do rei e da eclesiástica do período moderno
ver Michel Foucault. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,
1987.
2. A fundação do Tribunal do Santo Ofício de Goa
Ao contrário da abundância da bibliografia acerca da expansão marítima
portuguesa e sobre os jesuítas, em geral, e no Oriente especificamente, a produção
historiográfica sobre a Inquisição de Goa é muito restrita.
A referência fundamental para o estudo do Tribunal do Santo Ofício goês ainda
continua sendo o trabalho de Antônio Baião, que não apenas faz uma análise das
características de seu funcionamento, como também apresenta um meticuloso balanço
da problemática das fontes, uma vez que a maior parte da documentação produzida pela
Inquisição de Goa foi provavelmente destruída no século XIX. Sobre isso, Baião
informa que o Vice-rei, conde de Sarzedas, em ofício para a metrópole datado de 20 de
dezembro de 1812, escrevia:
como se achou ser uma cousa imensa os papéis que compunham o
arquivo daquele tribunal, e que na secretaria do estado não havia lugar
onde eles pudessem ser arrecadados, como eu tinha determinado,
ordenei que ficassem em uma casa do arsenal real, metidos em
grandes sacos, signetados com armas reais por um inquisidor e
fechada a casa com três chaves, das quais eu fiquei com uma, outra na
secretaria e outra na mão do intendente da Marinha; pareceu-me justo
tomar todas estas providências de cautela com estes papéis, porque
existindo neles, segundo me dizem, todos os autos do Santo Ofício de
Goa, desde a sua criação, se acaso não se guardassem com todo o
cuidado, poderia haver motivo para se difamarem, ainda mesmo que
falsamente, todas as famílias do Estado, e cevarem por esta ocasião
inimizades e intrigas de que o país tanto abunda. [...] Será justo que S.
A. R. determine o que quer se faça destes imensos processos e papéis,
e como estou persuadido que não é conveniente que eles tornem a ser
vistos por pessoa alguma, parece-me que seria justo mandá-los
queimar
32
.
Baião afirma que após essa correspondência não se encontram mais registros do
que poderia ter ocorrido com tais documentos, presumindo que teriam sido destruídos.
32
Conde de Sarzedas. Ofício de 20 de dezembro de 1812. Apud Antônio Baião. A Inquisição de Goa:
tentativa de história da sua origem, estabelecimento, evolução e extinção (introdução à correspondência
dos Inquisidores da Índia 1569-1630). Lisboa: Academia das Ciências, 1945. v. I. p. 15. Esta obra é uma
importante reunião de reflexões e informações sobre o tribunal de Goa. Nela consta outra importante
contribuição deste historiador, a apresentação dos nomes dos inquisidores, deputados e alguns outros
funcionários da Inquisição de Goa, além da publicação da correspondência dos inquisidores de Goa para
o Reino de Portugal, de onde se pode apreender parte do cotidiano daquele tribunal.
Manuel Cadafaz de Matos informa que a Corte portuguesa não autorizou a queima dos
papéis; mesmo assim, parece ter sido este o destino de boa parte dessa documentação
33
,
sobrevivendo apenas os documentos remetidos ao Reino, e que se encontram na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Constituem-se em papéis administrativos, incluindo importantes consultas e dúvidas
remetidas de Goa a Lisboa sobre assuntos relacionados ao cotidiano do tribunal do
Oriente.
Apesar da destruição dos processos da Inquisição de Goa, ainda foi possível
recuperar alguns de seus traslados enviados para o Conselho Geral do Santo Ofício ou
até mesmo para o próprio Tribunal de Lisboa. Isso foi possível graças às referências
feitas na correspondência entre os inquisidores de Goa e o inquisidor-geral, que muitas
vezes mencionava os casos daqueles réus que estavam sendo transferidos da Índia para
Portugal. Havia uma determinação do Conselho Geral para que os casos que causavam
“grande escândalo” em Goa fossem enviados com muito cuidado para o reino. Assim, a
partir dos nomes mencionados nessa correspondência, houve a possibilidade de consulta
ao banco de dados da Inquisição de Lisboa do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e
a resultante localização de tais processos. Dessa forma foram localizados oito cópias de
processos da Inquisição de Goa
34
. Outro veio documental importante foram os Cadernos
do Promotor, com várias denúncias e até mesmo uma cópia de um processo, com
imensa maioria de casos relacionados ao judaísmo
35
. Há ainda algumas listas de autos-
de-fé que foram remetidas ao reino, relacionando nomes, crimes e sentenças, mas as
informações não estão uniformizadas em muitas delas, além de existirem muitas lacunas
de informações, chegando a haver décadas sem nenhum registro, o que compromete a
construção de séries confiáveis. Mesmo reconhecendo-se que o material localizado é
uma ínfima amostragem face ao número de processos atribuídos à Inquisição de Goa, o
ineditismo dessa identificação pode fornecer contribuição relevante para o assunto,
33
Manuel Cadafaz de Matos. Um voto de peregrinar a Santiago de Compostela feito nos cárceres de Goa
as desventuras de Pyrard de Laval e de Dellon ante os inquisidores na Índia portuguesa do século XVII
(Um estudo de mentalidades). In: Maria Helena Carvalho dos Santos (coord). Comunicações
apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição. Lisboa: Sociedade Portuguesa de
Estudos do Século XVIII/Universitária Editora, 1989. v.2. p. 601. Cita a carta de resposta ao Conde de
Sarzedas, datada de 27 de dezembro de 1813.
34
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Processos nº 1689, 5037, 5330, 8450,
12197, 13942, 14993, 15086. Doravante se usarão as iniciais ANTT para designar este arquivo.
35
ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor. nº 4, Livro 205; nº 8, Livro 209; nº 13, Livro
214; nº 60, Livro 257; nº 68, Livro 262; nº 85, Livro 278 e Proc. 15.086 (nesse processo há 20 maços de
culpas remetidas da Índia para Lisboa: judaísmo, feitiçaria, bigamia, fuga para terra de mouros e tentativa
de fugir dos cárceres do Santo Ofício).
ressaltando-se que as digressões proporcionadas pelo estudo desses documentos devem
ser feitas com muita cautela.
Pode-se dizer que, por ocasião da fundação do Tribunal de Goa, já ocorria no
Oriente um processo de cristianização que passara por dois momentos distintos: o
período inicial de tolerância religiosa da política de Afonso de Albuquerque e a viragem
da intolerância no início da década de 1540, que coincide com a chegada dos jesuítas na
Índia. A instalação da Inquisição no Oriente vinte anos depois significa um
recrudescimento desse segundo momento, pois pode-se verificar um aumento das
perseguições às diferentes religiões existentes nos domínios portugueses na região.
Portanto, a Companhia de Jesus e a Inquisição de Goa vivenciaram o mesmo contexto
de alteração de postura diante dos contatos com outras culturas ocorrido na Índia
portuguesa, com o aumento da intolerância religiosa. Cada uma dessas instituições tinha
alvos e estratégias que as distinguiam. O maior esforço dos jesuítas era a conversão dos
gentios, para o que utilizavam diferentes procedimentos evangelizadores. Já a
Inquisição tinha a preocupação precípua com a repressão aos cristãos-novos e a
vigilância da ortodoxia, ao menos no início de sua instalação na Índia. Ou seja, os
inacianos pretendiam conquistar almas no ultramar, enquanto os inquisidores
pretendiam evitar que a heresia do reino “contaminasse” o posto avançado de Goa.
O primeiro pedido oficial de instalação da Inquisição em Goa foi feito pelo
vigário-geral padre Miguel Vaz, que fora responsável pelas primeiras conversões em
massa na costa da Pescaria, em carta ao rei datada de 1543:
nesta terra há muitos cristãos-novos, e [...] passam-se cá muito e agora
o fazem e hão de fazer muito mais. A mesma suspeita e rumor que
deles [...] suas coisas lá houve para honra de Deus se ordenar a Santa
Inquisição, para por ela se emendarem e purificarem cá erros e pelo
haver serviço de Deus e de V. A. a mandei logo pedir como soube que
já lá havia
36
.
Sem dúvida, o que motivou a criação do Tribunal de Goa foi a questão da
presença de cristãos-novos no Oriente, como fica evidente no pedido do vigário-geral.
Tanto que Antônio Baião, o primeiro historiador a estudar o santo tribunal no Oriente
destacou a questão da perseguição aos cristãos-novos como elemento-chave para sua
36
Antonio da Silva Rego. Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente
(Índia). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947. v. 2. p. 338-339.
instalação na região, colocando ainda em evidência o apoio dos jesuítas, não apenas a
solicitação feita por Francisco Xavier, mas também as cartas do padre Belchior Nunes
Barreto
37
.
Baião identifica ainda razões existentes no reino de Portugal que teriam
embasado a criação de um tribunal do Santo Ofício específico para o Estado da Índia e
deu privilégio à interpretação política, ao afirmar que:
D. João morreu em 11 de junho de 1557, deixando a Coroa a seu neto
D. Sebastião, uma criança de três anos, sob a regência da rainha viúva
D. Catarina, que a resignou, em 1562, em favor do Cardeal D.
Henrique. A Regência deu mais atenção às necessidades espirituais
das Índias que o último rei, e, em março de 1560, D. Henrique
mandou para Goa como inquisidor Aleixo Dias Falcão, que pelo fim
do ano, fundou um tribunal que com o tempo adquiriu um renome
sinistro como o mais desapiedado da Cristandade
38
.
A observação constante da última frase da citação acima também é um elemento
que recorrentemente surge ao fazer-se a descrição do Tribunal de Goa: a extrema
crueldade perpetrada por ele.
O historiador indiano Anant Kakba Priolkar é outro autor fundamental quando se
estuda o Santo Ofício no Oriente, embora, em geral, seu texto pouco avance além da
simples denúncia e de uma crítica apaixonada dos acontecimentos do passado. Para ele,
a história da Inquisição é um sombrio registro de insensibilidade e crueldade; de tirania
e injustiça; de espionagem e chantagem; de cobiça e corrupção; de repressão ao
pensamento e à cultura e desenvolvimento do obscurantismo
39
. Priolkar não renova em
nada a interpretação da instalação do Tribunal de Goa, reproduzindo as explicações de
Baião tanto para o contexto do reino de Portugal, quanto para o do Oriente. A
peculiaridade de suas explicações reside no tom acusatório que perpassa seu texto,
chegando por vezes ao paroxismo do exagero de afirmar o pleno poder dos inquisidores
de Goa, que, segundo o autor, em meio ao luxo dos grandes potentados da Ásia
olhavam com orgulho o arcebispo assim como o vice-rei submetidos ao seu poder
40
. Ou
ainda quando afirma que toda palavra deles era um sentença de morte e ao seu mais leve
37
Antônio Baião. Op. cit. v. 1. p 26.
38
Idem. p. 7.
39
A. K. Priolkar. The Goa Inquisition: a quartercentenary commemoration study of the Inquisition in
India. Bombay: The Bombay University Press, 1961. p. XI. Trata-se de uma tradução livre do texto.
40
Idem. p. XII. Trata-se de uma tradução livre do texto.
sinal transportavam para o terror vastas populações de todas as regiões asiáticas, cujas
vidas ficavam em suas mãos e sob o mais frívolo pretexto podiam ser metidos nas mais
fundas masmorras ou oferecidos como alimento para as chamas da pira
41
.
Por último Priolkar discute a questão da qualidade da conversão feita pela ação
da Inquisição e pelos jesuítas, acusando os últimos de perpetrarem toda sorte de
expedientes violentos para alcançar o batismo de hindus
42
.
Além dos trabalhos de Baião e Priolkar existem dois artigos importantes sobre a
instituição inquisitorial goesa. O primeiro, de Maria dos Remédios Castelo Branco e
Fernando Castelo Branco refere-se às impressões de viajantes do século XVII ao XIX
sobre Goa, de onde se pode extrair várias menções ao Tribunal do Santo Ofício goês
43
.
O segundo é um artigo de José Alberto Rodrigues da Silva Tavim na prestigiada revista
Mare Liberum. A maior preocupação do autor é a análise da massa documental gerada
pela Inquisição de Goa, e suas indicações são fundamentais para melhor explorar-se os
recursos documentais da Torre do Tombo
44
.
Dessa forma, foram localizados três núcleos documentais: a correspondência
entre a Inquisição de Goa e a mesa do Conselho Geral do Santo Ofício em Lisboa,
inclusive conjuntos das ordens e leis enviadas ao Oriente; os processados pela
Inquisição de Goa de origem goesa ou de outras regiões orientais, geralmente
relacionados aos crimes de “mouros” e, por último, e sem dúvida mais importante, uma
série de traslados de processos montados em Goa e que, por diversas razões, eram
enviados pelos inquisidores gerais para serem analisados em Lisboa. Esse conjunto de
fontes pode ser identificado a partir da leitura da correspondência entre Goa e Lisboa,
pois bastava anotar-se o nome do réu e buscar o processo correspondente na base de
dados do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Embora apenas uma parcela tenha sido
localizada, estes forneceram informações fundamentais, permitindo inclusive perceber a
lógica de funcionamento do Tribunal de Goa.
O trabalho mais recente que aprofunda a análise da fundação da Inquisição de
Goa sugerida por Baião é o de Ana Cannas da Cunha, onde se encontra uma minuciosa
41
Idem. p. 30. Trata-se de uma tradução livre do texto. Ao longo do presente trabalho tentar-se-á
demonstrar que o poder do Tribunal do Santo Ofício era muito grande, mas nunca dentro dos contornos
identificados por Priolkar.
42
Idem. Ver Capítulo V.
43
Maria dos Remédios Castelo Branco e Fernando Castelo Branco. Goa vista por alguns viajantes
estrangeiros (de seiscentos a oitocentos). In: Studia. v. 49, p. 139-160.
44
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. A Inquisição no Oriente (século XVI e primeira metade do
século XVII): algumas perspectivas. In: Mare Liberum, n. 15, 1998, p. 17-31.
apresentação da problemática judaica nas origens da instalação do santo tribunal no
Oriente. Segundo essa autora, a emigração dos cristãos-novos de Portugal para o Estado
da Índia e o Império Otomano entre a década de 1530 até a de 1560 foi numericamente
significativa e motivada pela discussão e decorrente criação do Tribunal do Santo Ofício
no reino e suas práticas persecutórias aos cristãos-novos
45
. A mesma autora destaca que
existia uma forte rede judaica de ligações entre o Índico e o Mediterrâneo, chegando
mesmo a influir no comércio de especiarias e de pedras preciosas
46
. Isso justificaria a
presença de judeus de origem ibérica no Estado da Índia. É importante notar também
que havia a significativa presença de uma antiga comunidade judaica, muito anterior à
própria chegada dos portugueses na costa ocidental da Índia, principalmente nas cidades
de Cranganor e Cochim
47
. Assim, o ambiente de perseguição aos judeus instalado no
Reino tinha elementos que reverberavam no Oriente, e a criação de um Tribunal que
atuasse exclusivamente no além-mar oriental estaria dentro da ambientação clássica da
fundação do Santo Ofício português: o combate aos cristãos-novos judaizantes.
Outra conhecida solicitação para a instalação da Inquisição em Goa analisada
por Ana Cannas da Cunha é a de Francisco Xavier. O jesuíta fez menção à necessidade
daquele tribunal em duas ocasiões: em uma carta ao padre Francisco Mansilhas (datada
de 1545) e em outra ao próprio rei de Portugal (de 1546)
48
. Nos dois casos a ênfase do
pedido recaía sobre a necessidade de reprimir aqueles que viviam na “lei mosaica e na
seita mourisca” e os que criavam obstáculos aos trabalhos de conversão.
Houve uma primeira criação do Tribunal do Santo Ofício de Goa em 6 de março
de 1554 feita pelo inquisidor-geral infante D. Henrique. No entanto, este nunca chegou
a ser instalado, uma vez que os responsáveis por essa iniciativa, o bispo D. Fr. João
Afonso Albuquerque e o vigário-geral Sebastião Pinheiro, morreram antes de colocá-lo
em funcionamento, adiando-se um pouco mais a presença da Inquisição no Oriente.
A instalação definitiva do Tribunal de Goa é precedida por um grande debate,
ainda mais amplo do que aquele verificado na década de 1540, sobre as questões
45
Ana Cannas da Cunha. A Inquisição no Estado da Índia - origens (1539-1560). Lisboa: Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo, 1995. p. 18-19.
46
Idem. p. 39.
47
Para um aprofundamento da questão da presença de judeus na Índia ver José Alberto Rodrigues da
Silva Tavim. Uma presença portuguesa em torno da «sinagoga nova» de Cochim. In: Oceanos: diáspora e
expansão os judeus e os Descobrimentos Portugueses. Lisboa, nº 29, jan-mar 1997. p. 108-117.
Também importante é o estudo de Ana Cannas da Cunha. Op. cit., principalmente o item 1 do Capítulo I.
48
Antonio da Silva Rego. Op. cit. v. 3. p. 163 e 351.
religiosas vividas na região
49
. Além da já destacada problemática da heresia judaica
havia a preocupação com os renegados e com os “desvios” morais recorrentes nos
domínios portugueses na Índia
50
. Associada a esses temas vinha também a discussão da
necessidade ou não de instalação da Inquisição no Oriente
51
.
Havia uma tendência majoritária que concordava com a fundação do Tribunal do
Santo Ofício no Oriente, apesar de existirem também opositores, nomeadamente os
cristãos-novos e alguns representantes da administração do Estado da Índia, com
destaque para o governador Francisco Barreto e o capitão de Cochim, Diogo Álvares
Teles
52
.
Mesmo entre aqueles que concordavam com a instalação do santo tribunal, havia
algumas preocupações fundamentais, principalmente as reservas com que os jesuítas
viam o tratamento que a Inquisição daria aos gentios recém-convertidos. Já Francisco
Xavier preocupava-se com o perigo de expor-se a obra de conversão à dureza dogmática
do Tribunal do Santo Ofício, no que foi acompanhado por outros irmãos da Companhia
de Jesus, tais como Belchior Carneiro, Baltazar Dias, Gonçalo da Silveira, entre outros.
Pode-se dizer que os inacianos conheciam os limites que a realidade indiana impunha
aos trabalhos de evangelização e constantemente enfatizavam a necessidade de
perseverar em mais esforços, mesmo diante das dificuldades, e transigir em pontos que
pudessem acirrar as tensões entre os recém-convertidos.
Bom exemplo disso encontra-se na carta do padre Nicolau Lanciloto a Inácio de
Loyola, onde reforçava o pedido anterior feito por ele para que o Geral da Companhia
de Jesus intercedesse junto ao papa a modo de obter uma licença especial para os
cristãos da terra comerciarem com os mouros e outros infiéis. Considerava que essa
permissão seria fundamental para a conversão de muitos ao cristianismo, uma vez que
notava que a gente da Índia era mais “fácil de persuadir a partir de coisas visíveis”, dos
interesses materiais
53
.
Por outro lado, às vésperas da instalação do Santo Ofício em Goa, o padre
jesuíta Gonçalo da Silveira escreveu para o cardeal infante D. Henrique recomendando
49
Ana Cannas da Cunha. Op. Cit. p. 129-130.
50
Idem. p. 90-91.
51
Ana Cannas da Cunha destaca que esses debates existiram, mas deve-se ter em mente que não eram
discussões abertas, pois os assuntos inquisitoriais tinham o peso do segredo. Idem. p. 126.
52
Idem. p. 126.
53
Antonio da Silva Rego. Op. cit. v. 4. p. 142-143. A carta feita em Goa é datada de novembro de 1548.
a criação da Inquisição, mas concentrando sua argumentação na perseguição aos
cristãos-novos e “maus cristãos”:
quanto aos judeus e maus cristãos, o remédio está chã, que é a
Inquisição. E é graça dizer que não ficará ninguém na Índia, porque
pública fama é que os judeus lançam a perder a Índia. E quanto aos
maus cristãos, porque em terras tão remotas e tão incultas, ao menos
poucos tempos antes necessariamente havia de haver muita soltura e
braveza na fé e religião, parece que se podia entrar com perdão geral
do passado até o introduzir a Inquisição
54
.
É interessante a sugestão para a proclamação de um perdão geral para os “maus
cristãos”, indicando que as culpas só deveriam ser analisadas a partir do momento que a
Inquisição se estabelecesse na Índia, numa clara demonstração de reconhecimento das
dificuldades que enfrentava a cristandade no Oriente, mesmo quando se tratasse de
populações de origem portuguesa e não apenas em relação aos gentios recém-
convertidos.
Pelos exemplos apresentados, nota-se que ao longo do tempo e a partir das
experiências de cada jesuíta, prevaleceu a posição em termos gerais de aprovação para a
instalação do Tribunal do Santo Ofício em Goa. Por outro lado, não se pode deixar de
perceber que também existia uma recorrente atitude de cautela por parte dos inacianos
em relação à ação da Inquisição, principalmente no que tange aos gentios convertidos.
Se até mesmo dentro da Companhia de Jesus foi possível detectar posições
diferentes em relação ao tema, é natural que houvesse discussões entre outros grupos
religiosos e políticos no Oriente. Essas controvérsias criaram sérios embates entre os
governadores do Estado da Índia, as autoridades eclesiásticas e as ordens religiosas,
destacando-se a Companhia de Jesus. O melhor exemplo encontra-se numa devassa
inquisitorial em 1557, assumida pelo Tribunal Eclesiástico de Goa, que instaurou vinte
processos completos (enviados para julgamento no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa)
envolvendo réus de Goa e Cochim, todos cristãos-novos, que tinham relações
econômicas com judeus brancos de Cochim e com outros vindos da Turquia, além de
laços com cristãos-novos de Lisboa, sendo, portanto, o alvo clássico da Inquisição
ibérica
55
.
54
José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1956. v. IV. p. 2-3.
55
Ana Cannas da Cunha. Op. cit. p. 226. Esses processos foram muito bem estudados por essa autora.
O estopim da questão foi o:
aparecimento de dois escritos de caráter provocatório, em Cochim, no
dia do Corpo de Cristo, 30 de abril de 1557. Um contendo blasfêmias
contra a Fé católica e contra os pregadores, encontrado na Sé, na arca
de esmolas do Santíssimo Sacramento, pelos mordomos da respectiva
confraria. Outro denunciando hereges recolhido na caixa de esmolas
na igreja do Convento de São Domingos
56
.
Reuniram-se para debater a denúncia e o ato de blasfêmia representantes da
Companhia de Jesus, dos franciscanos, da ordem de São Domingos e o capitão de
Cochim, Diogo Álvares Teles. De um lado ficaram os dominicanos, que sugeriam que
fossem presos os denunciados, e de outro os jesuítas, que defendiam uma ação mais
profunda, uma devassa. Para agravar a situação, a Sé de Goa estava vacante desde 1553,
e isso suscitava questões de competência jurisdicional para a consecução do
procedimento eclesiástico sugerido pelos inacianos. Além disso, o representante da
Coroa portuguesa, Diogo Álvares Teles, não apoiava a devassa. Mas apesar dos
problemas, os jesuítas conseguiram iniciar alguns procedimentos antes mesmo da
devassa ser publicada, sendo o mais polêmico deles o interrogatório dos escravos dos
cristãos-novos detidos a partir da denúncia. O capitão de Cochim não concordou com os
interrogatórios e solicitou que fossem suspensos, entrando em conflito direto com o
jesuíta a cargo dessa tarefa, Belchior Carneiro, que ameaçou inclusive o capitão de
excomunhão. Alegando ser a instância superior do poder em Cochim, Diogo Álvares
Teles dissolveu os trabalhos de devassa. A questão foi encaminhada ao governador
Francisco Barreto que cedeu à argumentação do jesuíta Gonçalo da Silveira, que
afirmara que o crime ali analisado era de heresia, portanto, da alçada da justiça
eclesiástica. Os cristãos-novos tentaram articular uma reação, procurando o apoio das
autoridades civis do Estado da Índia, mas apesar da simpatia discreta do governador, a
devassa foi levada adiante. A historiadora Ana Cannas da Cunha identifica nesse
episódio um embate que tentava definir as hierarquias e instâncias de poder entre as
autoridades régias e eclesiásticas no Oriente, além de ser uma demonstração das
próprias diferenças entre as ordens religiosas lá existentes
57
.
56
Idem. p. 132.
57
Idem. p. 132-147.
É ainda nesse quadro de tensões suscitadas pela devassa de 1557 que o Tribunal
do Santo Ofício de Goa foi finalmente fundado por ordem régia, em 2 de março de
1560
58
, tornando-se responsável pelos domínios portugueses desde o cabo da Boa
Esperança até as possessões mais orientais, tal como Macau
59
. Como registrado na
minuta da criação:
Nós o Cardeal Infante Inquisidor Geral em todos os Reinos e
Senhorios de Portugal [...] fazemos saber ao [...] Arcebispo da cidade
de Goa na Índia [...] da Santa Inquisição que ora criamos e pelo tempo
forem vindo nos prover como Santo Ofício da Inquisição se faça nas
[...] partes como mais cumpra a glória e louvor de Nosso Senhor e
aumento de nossa Santa Fé católica [...]
60
.
O Cardeal Infante D. Henrique solicitou aos primeiros inquisidores de Goa,
Aleixo Dias Falcão e Francisco Marques Botelho, que na fundação da Inquisição do
Oriente primeiramente se montasse a estrutura administrativa do tribunal antes de
começar a ação de perseguição, e enfatizou a necessidade de repressão aos cristãos-
novos.
Desde que começou a agir na repressão aos desvios da fé em geral, o Tribunal
do Santo Ofício de Goa registrou 16.172 casos, em todo o período de seu
funcionamento, até o século XIX
61
.
É verdade que a população não-cristã não estaria, pelos princípios regimentais,
submetida à autoridade inquisitorial; no entanto, os infiéis poderiam ser envolvidos nos
processos se ficasse provado que haviam influenciado no retorno a práticas religiosas
hindus, por exemplo. Deve-se destacar que, apesar de numerosas, inúmeras conversões
58
Mesmo depois da instalação da Inquisição em Goa houve críticas ao seu funcionamento no Oriente. O
embaixador português em Roma, Lourenço Pires de Távora em cartas ao Rei recomendava uma atuação
menos rigorosa no Estado da Índia em questões religiosas. Idem. p. 146-148.
59
Francisco Bethencourt. Op. cit. p. 281 enfatiza que “o tribunal de Goa tem uma jurisdição religiosa
difusa em todo o Império português da África oriental e da Ásia, caracterizado por uma vasta rede de
entrepostos e de fortalezas com escasso domínio territorial” destacando também o aspecto de fronteira
entre civilizações.
60
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Provisões que vão para fora (1550-1570). Liv. 840. Anexo fl.
5.
61
M. N. Pearson. Os portugueses na Índia. Lisboa: Teorema, 1990. p. 133. O autor está repetindo o
número dado por Baião que se refere ao total de sentenciados do Tribunal de Goa contestando cálculos de
Fortunato de Almeida: contra 16.172 processos há os 4.167 listados pelo segundo. Ver: Antônio Baião.
Op. cit. v. 1. p. 48 e Fortunato de Almeida. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense Editora,
1971. Tomo IV, parte III. Creio que a razão para as diferentes contas reside na periodização que cada
autor utilizou, pois Fortunato de Almeida claramente fundamenta-se nos dados dos séculos XVI e XVII, e
Baião amplia a contagem até o século XIX.
ocorridas nas décadas de 1540 e 1550 tinham sido superficiais, provocando graves erros
de doutrina, o que dava margem a muitas apostasias e, conseqüentemente, à grande
proliferação persecutória do Tribunal goês. Toda essa atividade da Inquisição gerou
ainda uma dramática migração de parte da população goesa para regiões distantes do
domínio português, principalmente nas conjunturas em que aumentavam as
perseguições. Segundo Antônio Baião:
à atividade do tribunal foi grandemente atribuída a decadência das que
haviam sido florescentes possessões indianas de Portugal. Depois de
ter esgotado os cristãos-novos, voltou a atenção para os cristãos
nativos, que recompensavam tão abundantemente os labores
missionários dos Jesuítas, porque Portugal não seguiu o sábio exemplo
de Espanha de isentar da Inquisição os novos convertidos. Era
impossível a esta pobre gente abandonar completamente as práticas
supersticiosas dos seus antepassados, e qualquer reincidência ainda
que fútil, era analisada com rigor com que eram tratados lapsos
similares pelos conversos da península
62
.
Analisar o funcionamento do Tribunal do Santo Ofício de Goa permite, assim,
preencher uma importante lacuna na investigação da construção do domínio colonial
português, a partir de um enfoque que pretenda mostrar as contradições desse processo,
inclusive entre os agentes que atuaram na sua consecução, visto que nem sempre,
Inquisição e Companhia de Jesus compartilhavam as mesmas estratégias em matéria de
fé. Como exemplo, podemos lembrar que os jesuítas transigiram em relação ao sistema
de castas da sociedade hindu, conseguindo assim apoio de camadas importantes da
população, prática que não foi seguida pela Inquisição. Além disso, deve-se destacar a
originalidade do tribunal, por ter sido a única instituição dessa natureza a funcionar no
ultramar português.
De todo modo, cabe examinar mais de perto a questão das razões para a criação
de um tribunal do Santo Ofício no Oriente, o que a Coroa portuguesa não tinha feito em
relação aos seus domínios americanos. Até onde foram estudados neste trabalho, pode-
se perceber que os debates religiosos foram muito importantes para a fundação da
Inquisição de Goa, mas somente eles não justificariam a iniciativa, uma vez que
existiam outros instrumentos que tornavam possíveis perseguições aos erros de
doutrina. Neste sentido, basta analisar o exemplo da devassa de 1557, e até mesmo os
62
Antônio Baião. Op. cit. v. 1. p. 8.
próprios procedimentos desenvolvidos na América portuguesa. Com certeza, as
angústias dos representantes do clero regular e secular no Oriente, assim como de
alguns zelosos funcionários da Coroa portuguesa, foram importantes para a instalação
do Tribunal, mas outros aspectos têm de ser levados em conta.
Outra explicação que facilmente poderia ser dada é a da distância geográfica
entre o Oriente e o reino de Portugal. A necessidade de se agir rápida e prontamente aos
desafios representados pelos gentios, mouros, judaizantes e “maus cristãos” que se
espalhavam nos domínios portugueses orientais tornava urgente a fixação de
inquisidores em Goa. Ao lembrar-se que a alçada do Santo Ofício goês não se restringia
à capital do Estado da Índia, mas estendia-se a toda a área geográfica que compreendia
a extensíssima região de Moçambique a Macau, percebe-se que esse argumento, se não
pode ser descartado, com certeza não é suficiente para justificar a fundação da
Inquisição goesa. Os espaços a serem cobertos eram tão díspares e distantes entre eles
que a agilidade pretendida ficava desde logo comprometida. Pode-se argumentar que
tais dificuldades seriam superadas se houvesse a iniciativa de se instalar outros
tribunais no Oriente, a exemplo do que acontecia no reino, mas essa hipótese só foi
levemente aventada no momento da fundação do Tribunal de Goa em 1560 e, mesmo
assim, apenas para a cidade de Cochim (região onde havia uma grande e diversificada
população de cristãos-novos e judeus), nunca passando de uma proposição abortada
63
.
O argumento geográfico estaria associado a uma explicação comumente dada à
própria instalação da estrutura administrativa do Estado da Índia, pois as necessidades
emergenciais de governo de tão vasto território e ao mesmo tempo tão distanciado do
centro de decisões da monarquia lusitana tornavam urgente a presença de toda uma
máquina burocrática que se responsabilizaria pelas decisões imediatas, e posteriormente
sofreriam o julgamento do monarca. Daí a transposição para o Oriente de títulos, cargos
e funções de alta dignidade: vice-rei, governador-geral, vedor da fazenda, juízes dos
tribunais da Alçada, da Mesa de Consciência e Ordens, entre outros, inclusive os
próprios inquisidores.
Na própria motivação para a existência da figura do Vice-rei pode ser
encontrada justificativa para tal argumentação. Sabe-se que o cargo administrativo
ocupado pelo responsável pelo Estado da Índia era o de capitão geral, sendo que a
designação “Vice-rei” correspondia apenas a um título. A explicação para isso pode
estar, por exemplo, no fato de que a representação do rei de Portugal no Oriente tinha
um forte caráter de embaixada, pois sempre estava a estabelecer contatos com os vários
reinos e principados de origens diversas. A necessidade de rivalizar-se com a pompa e a
grandeza dessas culturas tinha como resposta a formação de uma corte em Goa e de
uma ostentação do poderio de Portugal. Não é pouco provável que essa mesma
necessidade estivesse também associada à fundação da Inquisição em Goa. Afinal,
mesquitas e pagodes eram símbolos grandiosos da religiosidade dos muçulmanos e dos
hindus. Os autos-de-fé organizados em Goa tinham a necessidade de ser ainda mais
grandiosos. A Inquisição tinha que enfrentar muitos inimigos e precisava da
concentração de esforços na região, uma questão que de certo também não pode ser
descartada, embora seja também ela insuficiente.
O historiador Jorge Borges de Macedo indica esse caminho de reflexão. Para ele
“o Santo Ofício em Goa, num outro «clima», distante e governado em poder delegado,
é sobretudo, para isso, uma garantia política”
64
; garantia para o poder militar, político e
religioso com objetivo de consolidar a presença portuguesa na Índia. A necessidade de
vigiar e controlar essa sociedade que se formava na convivência com outras
civilizações e que não possuía o ambiente protegido do reino, mas sim a constante
consciência da fronteira por onde poderiam circular pessoas, idéias e principalmente
crenças e práticas religiosas muito diferentes e ameaçadoras é um interessante
elemento de explicação para a instalação da Inquisição em Goa. Mais uma vez pode-se
aqui perceber a consciência de uma cristandade sitiada, sob o cerco dos inimigos da fé,
que aparece em muitas fontes da época.
Assim, a riqueza e a grandeza de muitos dos reinos hindus e muçulmanos com
os quais os portugueses se defrontaram na Índia geraram a necessidade de se construir
uma instituição que rivalizasse com a força dessas civilizações. De modo que a
transposição para a Índia de todo o aparato administrativo, militar e religioso servia
como ostentação do poder lusitano. A Inquisição e os seus autos-de-fé espetaculares
foram mais uma dessas demonstrações, juntamente com a construção de grandes e ricas
igrejas e de palácios que atendessem às necessidades dos representantes da Coroa
portuguesa. Essas marcas distintivas cumpriam uma importante função política de
afirmação do poder lusitano, e eram bem compreendidas pelas outras culturas em
63
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Provisões que vão para fora (1550-1570). Liv. 840. Anexo fl.
5 v.
64
Jorge Borges de Macedo. Uma opinião em forma de prefácio. In: Ana Cannas da Cunha. Op. Cit. p. 13.
contato que, ao menos nesse aspecto, apresentavam algumas semelhanças, ainda que
superficiais.
3. Santo Ofício de Goa: estrutura e funcionamento
O Tribunal de Goa começou efetivamente a funcionar com a chegada dos dois
primeiros inquisidores, Aleixo Dias Falcão e Francisco Marques Botelho, no início de
1561. A estrutura administrativa do tribunal goês obedecia ao modelo do reino
definido pelos regimentos correspondentes , com seus funcionários tradicionais:
alcaides, promotores, notários, cirurgiões. Havia algumas diferenças, tal como o número
de inquisidores: em Goa eram dois, ao contrário do que acontecia nos tribunais do reino
que possuíam três. No Oriente havia uma hierarquia entre os inquisidores, pois existia o
cargo de primeiro inquisidor
65
. Os deputados do Santo Ofício eram arregimentados
entre as ordens religiosas existentes no Oriente, inclusive a Companhia de Jesus
66
, e
geralmente eram em número de seis ou sete.
Outra atividade em que houve colaboração entre a Inquisição e as ordens
religiosas foi a de visitas às livrarias dos revisores do Santo Ofício, ou seja, a censura à
circulação e publicação de livros uma vez que em Goa havia a impressão de muitas
obras. Para tanto havia a recomendação de designar-se para esse cargo, clérigos
regulares letrados
67
.
65
Graças ao orçamento de 1581 pode-se saber quanto era o ordenado do Inquisidor: 400 mil réis. Para
termos de comparação: o do vice-rei era de 7 contos, 339 réis; o arcebispo de Goa recebia 5 mil cruzados
entre ordenado e dote; o ouvidor-geral recebia 300 mil réis; o capitão de Goa 600 mil réis; o vedor, 400
mil réis; o provedor-mor, 200 mil réis. Entre os funcionários da Inquisição o alcaide do cárcere recebia
100 mil réis; o escrivão, 30 mil réis. Ver Artur Teodoro Matos. O Estado da Índia nos anos de 1581-
1588: estrutura administrativa e econômica alguns elementos para seu estudo. Ponta Delgada:
Universidade dos Açores, 1982. p. 44. Não se conhece um Regimento específico para o Tribunal de Goa,
provavelmente utilizavam os do reino (datados de 1552, 1613, 1640) com a exceção para o de 1778 que é
exclusivo de Goa e encontra-se publicado por Raul Rêgo (editor). O último regimento e o regimento da
economia da Inquisição de Goa. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983.
66
O Geral da Companhia de Jesus Lainez havia recomendado aos jesuítas que não participassem da
máquina inquisitorial e o visitador Valignano incluiu nas regras elaboradas em 1588: “deve o provincial
proibir que os nossos assistam aos atos da Inquisição como inquisidores ou agentes ou comissários do
Santo Ofício, ainda que nestas partes se concede que sejam os nossos consultores do mesmo Santo Ofício,
sendo avisados que não se metam em mais do que convém e se lhe dá licença”, ver “Sumário das regras
para o provincial da Índia” In: José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis
Iesu, 1979. v. 14. p. 850. No entanto, é freqüente a presença de jesuítas entre os deputados e promotores
do Santo Ofício.
67
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Inquisição de Goa. 25, 1, 2 nº 10. Carta do Inquisidor Geral
Pedro de Castilho aos inquisidores de Goa. 10 de janeiro de 1606. Nessa carta fazia-se a recomendação da
convocação dos clérigos regulares para o cargo de revisores do Santo Ofício. Doravante utilizar-se-á a
abreviatura BNRJ para documentos dessa instituição.
Gradativamente desenvolveu-se também uma rede de comissários nas principais
fortalezas do Estado da Índia que, junto à prática de visitas regulares ordenadas pelos
inquisidores, garantiam a abrangência da ação inquisitorial
68
.
O Tribunal foi instalado no Palácio do Sabaio, como era denominado pelos
portugueses o palácio que pertencera ao governante Adil xá, Adil Kan ou Idalcão (são
as denominações dadas nas fontes ao senhor de Goa) até ser derrotado por Albuquerque
em 1510, sendo desde então a residência dos governadores e vice-reis do Estado da
Índia até 1554, quando a idade avançada e a saúde frágil do vice-rei D. Pedro de
Mascarenhas impediu-o de percorrer suas amplas escadarias, obrigando-o a procurar
outro prédio na cidade para ser a sede do vice-reinado.
Assim, na altura da chegada dos inquisidores a Goa, o palácio estava
abandonado e pôde ser utilizado para abrigar a instituição inquisitorial. Foram feitas
várias obras para adaptar o prédio a suas novas funções: a construção de capela, salão de
entrada, sala de audiências, casa de despacho, residência do inquisidor; casa do secreto;
casa da doutrina e de cárceres, entre outras modificações. O palácio encontrava-se em
área nobre da cidade e com isso mantinha-se como uma referência visual citada muitas
vezes por inúmeros viajantes. Em frente localizava-se o terreiro do Sabaio, praça bem
ampla, que acentuava a imponência do prédio.
Desde o início das atividades do tribunal oriental havia uma recomendação de
agir com relativa brandura quando se tratasse dos “novamente convertidos”, para não
causar escândalos entre os gentios e com isso dificultar a conversão. Mas a insistência
na repetição dessa recomendação enviada pelo Conselho Geral da Inquisição a Goa e o
número de recém-convertidos envolvidos em sentenças fazem supor que nem todos os
inquisidores agiam conforme solicitado.
É importante reafirmar que apesar de não serem da alçada do tribunal, muitos
“infiéis” foram condenados às galés, ao exílio e ao açoite “quando tentassem arrastar os
cristãos para sua seita, pois estes estavam proibidos de assistir à pregação dos brâmanes
ou outras cerimônias gentílicas”
69
. Isso demonstra que o Santo Ofício oriental muitas
vezes extrapolou suas atribuições regimentais e com certeza essa prática contribuiu para
68
Francisco Bethencourt. A Igreja. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.). História da
expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores e Autores, 1998-99. v. 1. p. 383.
69
José Miguel Ribeiro Lume. Portugueses em cargos, ofícios e funções no Estado Português da Índia
(1580-1640). Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dissertação (Mestrado), 1994. v. 1. p.
CXIII.
a construção da imagem de uma justiça implacável e cruel que está associada a esse
tribunal.
Um estudo sobre os delitos perseguidos pela Inquisição de Goa enfrenta sempre
uma dificuldade básica: as listas de autos-de-fé para os séculos XVI e XVII são
descontínuas, além de não serem homogêneas, pois não fornecem sempre os mesmos
dados (por vezes há o registro detalhado sobre o réu, outras só o nome e a sentença),
inviabilizando a construção de séries confiáveis. Esse quadro se modifica no que se
refere às duas últimas décadas do século XVII, e ao século XVIII
70
. Ao analisar a
tipologia dos crimes perseguidos pelo Tribunal de Goa, Francisco Bethencourt informa
que:
embora o judaísmo seja o “delito” com percentagem mais importante
no número de detidos até 1582 261 num total de 761, ou seja, 34 por
cento , nunca chegou a ser maioritário. O islamismo já nessa época
representava uma percentagem importante das acusações 214, ou
seja, 28 por cento do total , encontrando-se valores significativos
para proposições heréticas (11 por cento), atos contra o Santo Ofício
(9 por cento), gentilidade (6 por cento), protestantismo (4 por cento) e
bigamia (4 por cento), sendo os restantes “delitos” residuais. O
judaísmo desaparece praticamente desde 1583, mantendo-se com
valores percentuais muito baixos durante as primeiras décadas do
século XVII. O islamismo manteve-se estável durante a segunda fase,
enquanto a “gentilidade” cresceu extraordinariamente, passando os
hindus convertidos a ser o alvo preferido da atividade inquisitorial nos
séculos XVII e XVIII
71
.
É importante notar que as penas mais pesadas, ou seja, os relaxados ao braço
secular, recaíram em sua maioria, até a década de 1580, sobre os judaizantes. Esse
quadro se altera ao longo do século XVII pois, num universo total de 549 sentenciados,
70
Um bom exemplo é o estudo sobre a Inquisição de Goa no século XVIII realizado por Maria de Jesus
dos Mártires Lopes. Goa setecentista: tradição e modernidade. Lisboa: Centro de Estudos dos Povos e
Culturas de Expressão Portuguesa/Universidade Católica Portuguesa, 1996. p. 229-238.
71
Francisco Bethencourt. A Igreja... p.384. O autor identifica ainda dois momentos de aumento de
perseguições aos cristãos-novos no Oriente 1632 a 1634 e 1644 a 1649, mas nunca com os mesmos
índices do início das atividades do Tribunal de Goa. p. 385; para confirmar essa afirmação ver na BNRJ.
Inquisição de Goa. 25,1,4 nº 18 onde há uma carta de 1640 do inquisidor de Goa ao Conselho Geral do
Santo Ofício com comentários sobre a prisão de cristãos-novos. Os dados para os séculos XVI e XVII
podem ser encontrados na Biblioteca Nacional de Lisboa. Secção de Reservados. Coleção de listas
impressas e manuscritas dos autos de fé públicos e particulares. Códice 866. Microfilme F. 5173 e
Repertório Geral de três mil e oitocentos processos despachados pelo Santo Ofício de Goa desde a sua
constituição até 1623 de João Delgado Figueira. Microfilme F. 2545. Para o século XVIII, há
informações mais sistemáticas das fontes e possibilitaram a contagem de 1290 casos de gentilismo,
equivalendo a 74% do total segundo Maria de Jesus dos Mártires Lopes. Op. cit. p. 234.
o número de relaxados por gentilismo (18) e apostasia (24) cresce significativamente
nesse período. Para as penas mais leves as abjurações de leve, forma e veemente , o
número contabilizado de gentilismo é de 314 (equivalente a cerca de 57%), seguido
pelos casos de islamismo, que alcançam 91 (16,5%). Além desses réus contabilizados,
procedeu-se a contagem de 281 infiéis que foram sentenciados pelo Tribunal de Goa ao
longo do século XVII, mas esse número não foi incluído nos cálculos feitos acima
72
.
Apesar de se poder verificar essa mudança de orientação da ação inquisitorial
para o século XVII, quando se faz o cruzamento desses dados obtidos a partir das listas
de autos-de-fé com as denúncias apuradas nos Cadernos do Promotor da Inquisição de
Lisboa, encontra-se uma interessante contradição
73
. Em seis cadernos, referentes ao
período de 1605 a 1696, foram localizadas dezessete denúncias no âmbito de Goa e do
Oriente
74
. Dessas, oito referiam-se a culpas de cristãos-novos. As outras nove
denunciações dividiam-se em outros diferentes temas: falar mal do Santo Ofício;
duvidar da virgindade de Maria; afirmação de que Deus é homem verdadeiro; fuga para
terra de mouros de um cafre batizado; feitiçaria; bigamia; proposição desedificante e
sodomia (2). Ou seja, em termos de denúncias, os judaizantes aparecem como tema
predominante, o que destoa dos números registrados para os sentenciados nas listas de
autos-de-fé. Apesar desta constituir-se em uma pequena amostragem, em termos
absolutos, e do fato dos Cadernos do Promotor serem da jurisdição do Tribunal de
Lisboa (o que faz imaginar como seriam ricos os cadernos do promotor do Tribunal de
Goa), ainda assim é possível fazer algumas reflexões. A primeira delas é que todas as
denúncias contra cristãos-novos partiram de pessoas presas pela Inquisição de Goa,
acusadas de judaizar, e que apontavam familiares, amigos e conhecidos de práticas
judaizantes no Estado da Índia, em Portugal e até mesmo em Flandres. Nesses casos é
possível detectar o padrão usual de procedimentos dos processos de cristãos-novos das
72
José Miguel Ribeiro Lume. Op. cit. v. 1. p. CLXVIII e BNL. Secção de Reservados. Coleção de listas
impressas e manuscritas dos autos de fé públicos e particulares. Códice 866. Microfilme F. 5173.
73
Há ainda um processo nos arquivos da Torre do Tombo que reúne em 20 maços uma série de culpas
remetidas da Índia para Lisboa. Há o pedido de investigação sobre casamentos de réus acusados de
bigamia (2); o relato da tentativa de fuga de um sentenciado por protestantismo; uma notícia sobre um
falsário que tinha uma lista de crimes: nefando, gentilidade, feitiçaria, busca de tesouros; denúncia de
proposição errônea; os outros 15 maços referem-se a culpas de judaísmo datadas no período entre 1615 a
1645. ANTT. Inquisição de Lisboa. Proc. 15.086.
74
ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor. nº 4, Livro 205, fls. 100-109; nº 8, Livro 209, fls.
409-409v, fls. 431-432, fls. 437-460, fls. 467-472, fls. 473-482, fls. 409-415, fls. 527-528,fls. 535-539 e
fls 552-555v; nº 13, Livro 214, fls. 402-402v, fl. 420, fls. 486-502 e fls. 504-511; nº 60, Livro 257, fls.
262-264; nº 68, Livro 262, fls. 300-302; nº 85, Livro 278, fls. 436-444. Ao cruzar as denúncias desses
cadernos com as culpas reunidas no ANTT. Inquisição de Lisboa. Proc. 15.086 foram apenas
identificados dois réus em comum citados nas duas fontes.
inquisições do reino, onde o réu era instado a denunciar aqueles que haviam praticado
com ele tais “desvios”.
As outras modalidades de denúncias foram feitas por homens que viviam em
liberdade, com a exceção de uma (falar mal do Santo Ofício), e que testemunharam
pessoalmente os “delitos” que denunciavam, principalmente na cidade de Goa e
adjacências. É notável que nenhum deles tenha referido-se a práticas judaizantes. No
entanto, também não se pode deixar de destacar que não se fez menção ao gentilismo,
“crime” que pelas listas de autos-de-fé cresceu significativamente no século XVII,
apesar de haver relatos sobre a convivência de portugueses com hindus. Exemplo disso
encontra-se na denúncia de feitiçaria, datada de 1615. Melchior do Vale Cerqueira,
cristão velho, soldado português, 37 anos de idade, apresentou-se ao Santo Ofício de
Goa acusando Francisco de Lira, também soldado português e morador de Goa, filho de
Antônio de Lira, provedor-mor dos Contos. Melchior do Vale Cerqueira afirmava ter
visto o acusado contratar cerca de cinco feiticeiros hindus, curumbins, de Bardez e da
terra firme de Salcete, para que curassem seu pai, Antônio de Lira, que estava muito
doente e acreditava-se que seu mal procedia de feitiços. Francisco de Lira pagou os
serviços dos gentios com dinheiro e ofertando ao pagode “um galo e um bode e certos
cocos”. Além disso, Melchior do Vale Cerqueira relatou que diante das hesitações de
dois dos feiticeiros em fazer a cura por receio de serem punidos, Francisco de Lira teria
dito que “não temessem porquanto para eles fazerem aquela cura e curassem de seus
feitiços tinham licença do Santo Ofício, do físico-mor e do Arcebispo [...]”
75
. Na
denúncia sobre duvidar da virgindade de Maria, feita em 1610, por Gaspar Borges da
Fonseca, cristão velho, soldado português, de idade de vinte e três anos, contra frei
Antônio de Leiria, franciscano, verifica-se novamente a convivência entre gentios e
portugueses. Segundo o soldado, estando homiziado em terras de mouro:
foi ele denunciante um dia em companhia do dito frei Antônio de
Leiria e de José Pereira de Sampaio a casa de um gentio brâmane, que
é o da casta, a verem tanger um instrumento de muitas cordas e
estando todos três ouvindo-o, disse o dito frei Antônio de Leiria, que
aquele gentio era grande letrado e grande músico e que tinha em casa
Narane que era filho de Santa Maria e este Narane é o que os gentios
tem por maior Deus de Todos e é a figura dele de um negro de Guiné,
nu, e está com um pau em uma mão e com uma tigela em outra e
chamam-lhe pagode
76
.
75
ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor. nº 8, Livro 209, fl. 432.
76
Ibidem. fl. 527.
Complementando a denúncia de Gaspar Borges da Fonseca, foi convocado a
testemunhar também José Pereira de Sampaio, soldado “filho de Goa” e “que está na
terra firme em Vicholim homiziado” de vinte anos de idade. Ele declarou que “o dito
frei Antônio era muito amigo de ir à casa dos pagodes quando se faziam suas festas e
invitava a ele testemunha muitas vezes para irem a elas”
77
. Apesar de se tratar de apenas
dois registros, os relatos apresentados servem como exemplo da fragilidade das
fronteiras que cercavam os domínios portugueses na Índia.
Entretanto, mesmo com essa ressalva de prudência, pode-se afirmar que o centro
das preocupações e o alvo da perseguição por parte do Tribunal do Santo Ofício de Goa,
a partir das duas últimas décadas do século XVI, passam a ser os cristãos recém-
convertidos de origem hindu. Deve-se lembrar que é também nesse exato período que
uma expansão do esforço de cristianização por parte dos jesuítas, especialmente nas
terras de Salcete, acompanhado pelo aumento significativo do número de cristãos.
Adicionando-se a isso as fórmulas de conversão utilizadas e as dificuldades de
manutenção da ortodoxia católica entre essas comunidades, percebe-se porque os
cristãos da terra transformar-se-iam no principal foco da inquisição oriental. No século
XVII, do total de 549 sentenciados que puderam ser identificados, 313 pertenciam a
castas inferiores, sudras; 107 eram chardós e 55 eram brâmanes. Interessante notar que
as condenações máximas recaíam sobre os brâmanes, enquanto as outras castas
recebiam as penas menores
78
. Tudo isso comprova o processo de adaptação do Santo
Ofício de Goa à realidade indiana.
Réus à parte, para um melhor entendimento do funcionamento do tribunal do
Oriente, faz-se necessária uma análise sobre os inquisidores que levaram a cabo a ação
inquisitorial. O quadro abaixo sistematiza as informações sobre as experiências que
tiveram antes de assumirem o cargo na Índia:
77
Ibidem. fl. 530 v.
78
José Miguel Ribeiro Lume. Op. cit. v. 1. p. CXVI e BNL. Secção de Reservados. Coleção de listas
impressas e manuscritas dos autos de fé públicos e particulares. Códice 866. Microfilme F. 5173.
QUADRO II: Inquisidores de Goa (1560-1682)
NOME NOMEAÇÃO CARREIRA
Aleixo Dias Falcão 1560 Bacharel em cânones (Universidade de Coimbra)
Francisco Marques Botelho 1560 Desembargo do Rei
Bartolomeu da Fonseca 1572 Deputado tribunal de Coimbra
André Fernandes 1582 Deputado Mesa da Inquisição
Gaspar de Melo 1583 Vigário-geral dominicano na Índia
Rui Sodrinho de Mesquita 1584 Deputado tribunal de Lisboa
Tomás Pinto 1586 Mestre em teologia
Antônio de Barros 1593 Sem informação
Marcos Gil Frazão 1596 Promotor tribunal de Évora
Jorge Ferreira 1603 Deputado tribunal de Lisboa
Gonçalo da Silva 1605 Sem informação
Francisco Borges de Sousa 1612 Desembargador da Relação do Porto
João Fernandes de Almeida 1613 Desembargador da Casa de Suplicação - Lisboa
João Delgado Figueira 1626 Promotor tribunal de Lisboa e Goa
Antônio de Faria Machado 1630 Sem informação
Antônio de Vasconcelos 1632 Deputado tribunal de Évora
Jorge Seco de Macedo 1635 Desembargador da Casa de Suplicação - Lisboa
João de Barros de Castelo Branco 1641 Promotor tribunal de Goa
Domingos Rebelo Lobo 1646 Sem informação
Paulo Castelino de Freitas 1649 Promotor tribunal de Coimbra
Lucas da Cruz 1651 Deputado tribunal de Goa
Francisco Delgado de Matos 1666 Promotor tribunal de Goa
Tomé de Macedo 1665 Deputado tribunal de Coimbra
Lopo Álvares de Moura 1677 Deputado tribunal de Lisboa
Fontes: Antônio Baião. A Inquisição de Goa: tentativa de história da sua origem, estabelecimento,
evolução e extinção e José Miguel Ribeiro Lume. Portugueses em cargos, ofícios e funções no Estado
Português da Índia (1580-1640).
No período compreendido desde sua criação, em 1560, até o limite cronológico
do presente trabalho, 1682, foram nomeados vinte e quatro inquisidores para o tribunal
de Goa, acerca dos quais dez ocuparam anteriormente cargos de promotores e deputados
dos tribunais no reino. Há ainda quatro casos em que os titulares acumulavam
experiência no próprio tribunal de Goa (sendo que um deles também tinha participado
de um tribunal do reino), perfazendo assim um total de treze inquisidores com alguma
prática anterior nos tribunais inquisitoriais. Há ainda quatro casos de inquisidores que
tinham trabalhado na justiça do rei. Para outros quatro casos não foi possível localizar
as atividades que exerciam antes da nomeação ao cargo.
Se por um lado isso sugeria algum tipo de estratégia, pois mandava-se para Goa
um funcionário já treinado nas lides do Santo Ofício, em contrapartida pode-se
perceber, pela quantidade de dúvidas enviadas pelos inquisidores de Goa ao Conselho
Geral do Santo Ofício, que a realidade do Oriente deixava a maioria deles muito
perplexa, uma vez que as possibilidades de heresia eram ali variadíssimas e não se
encaixavam no objetivo principal da inquisição lusitana de combater a heresia judaica
79
.
Outra interessante fonte que pode ser utilizada para estudar-se o tribunal oriental
é a coleção de consultas feitas pelos inquisidores de Goa ao Conselho Geral do Santo
Ofício. Algumas das consultas são muito ilustrativas das dificuldades por eles
enfrentadas: se um infiel que estava preso pedia para se converter à fé católica devia ser
posto em liberdade; o que se deve fazer diante de um convertido casado cujo cônjuge
não quisesse se converter; se os lavatórios e outras práticas dos hindus eram sinais de
idolatria
80
. Esta última questão, aliás, está na base das discussões entre a Inquisição de
Goa e a Companhia de Jesus.
Também havia muita preocupação com a questão dos casamentos dos gentios.
As festas que os hindus comumente faziam relacionadas a esse evento social, além de
durarem muitos dias, reproduziam uma série de ritos considerados ameaçadores à fé
católica. Algumas denúncias chegavam ao Conselho Geral do Santo Ofício prometendo
detalhes, pois “com que vai nestes papéis poderá V. Ilma. ter plena notícia dos ditos
casamentos que se fazem com as maiores indecências e escândalo da cristandade, que
até hoje se viram além das muitas idolatrias que neles cometem”
81
. Esse interessante
documento registra, entre outras coisas, a questão dos casamentos, assim como
demonstra que a vizinhança com o “outro mundo”, ou seja, com as terras onde
habitavam os infiéis, trazia também grande desconforto àqueles que se preocupavam
com as questões da fé. Nesse sentido, faz o seguinte alerta:
E quando dizerem que é prejuízo dos ditos gentios virem a terra de
Mouros fazer os ditos casamentos é falso, porque eles comumente lá
nadam com fazendas e seus pagodes e contratos e a distância de
passarem não é mais que passar um rio, e o muito que lhe custa é seis
ou sete tostões por cada cabeça. E nessa Ilha de Goa tudo são cristãos
misturados com gentios, nem nela há lugar acomodado para se
poderem fazer sem escândalo e perversão de cristandade os tais
79
Fez-se aqui um breve levantamento sobre as carreiras dos inquisidores do Oriente, não havendo a
pretensão de um estudo prosopográfico, forma pela qual foi feita a análise dos inquisidores gerais por
Pedro Marcelo Pasche de Campos. Entre a Cruz e a Coroa - relações entre Inquisição e Estado em
Portugal na Idade Moderna. Niterói, 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense. mimeo. p. 74-86.
80
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Consultas da Inquisição de Goa (1572-1620). Liv. 207. fl. 28-
52.
81
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Pareceres em matéria do Santo Ofício. Liv. 213 (1622-1623).
fl. 281.
casamentos e a muita gente que se ajunta as festas e gritos que nelas
fazem
82
.
Fronteiras frouxas, circulação intensa, numerosa, ou seja, um verdadeiro
universo de dificuldades para manter a unidade da fé, justificando a ação do Tribunal de
Goa, de onde provinha a recorrente queixa dos inquisidores de que experimentavam
uma grande quantidade de trabalho, sendo que muitos pediam para retornar ao reino.
Um bom exemplo pode-se encontrar em carta que o inquisidor Jorge Ferreira escreveu
ao Conselho Geral do Santo Ofício, onde dizia: “[..] confesso assim que me causa já
estudar e mandar a memória semelhantes coisas e tão compridas; que são mais próprias
para mancebos, que para velho e tão enfermo quanto eu”
83
.
Outra comprovação dessa pressão pode ser encontrada no pedido que o
Conselho Geral do Santo Ofício encaminha ao rei para que aumentasse para três o
número de inquisidores em Goa, datado de 1651:
sendo instituído o tribunal do Santo Ofício na cidade de Goa para todo
o Estado da Índia lhe foram assinados somente dois inquisidores; e
havendo então que seriam bastantes para tratar da conservação e
pureza da fé naquele Estado, como em efeito foram naqueles
princípios. Cresceram porém tanto as cristandades e com elas os
negócios por razão de pouca firmeza dos novamente convertidos,
cercados por uma parte do gentio da terra e por outra dos mouros seus
vizinhos, maiormente depois de entrarem naquele Oriente, hereges do
Norte, que onde quer que se acham, procuram introduzir sua falsa
doutrina, que veio a mostrar a experiência, não ser possível que os
dois inquisidores dêem o expediente que convém a multidão de causas
que se oferecem
84
.
Dessa forma, pode-se constatar que o esforço de controle era enorme, e muitas
vezes o problema instalava-se dentro do próprio tribunal. No texto acima, mais uma vez
fica claro o sentido da pressão dos inimigos que cercam a cristandade em Goa.
Por outro lado, a carreira do inquisidor no Oriente não era uma forma de
ascensão para outros cargos eclesiásticos no reino. Francisco Bethencourt destaca que
“a carreira dos inquisidores no tribunal de Goa é limitada, na maior parte dos casos, aos
82
Ibidem. fl. 281.
83
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Consultas da Inquisição de Goa (1572-1620). Liv. 207. fl. 8.
84
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Maço 39. doc. 14 (1651).
postos eclesiásticos nas Índias Orientais”
85
. Naturalmente houve exceções, como, no
século XVI, a exemplo de “Bartolomeu da Fonseca, designado sucessivamente, depois
de seu regresso de Goa, inquisidor de Lisboa (1583), inquisidor em Coimbra (1587),
membro do Conselho Geral (1598), conselheiro real e agente da Inquisição portuguesa
na corte de Filipe III”
86
. No século XVII, quando João Delgado Figueira voltou para o
reino, foi designado inquisidor de Évora em 1635, depois da Inquisição de Lisboa, em
1641, e por último deputado desse mesmo tribunal, em 1643
87
. Apesar dessas exceções,
ainda assim, segundo Bethencourt isto marcaria uma tendência comum na Inquisição
ibérica de promoção restrita ao sistema colonial, no caso dos cargos inquisitoriais.
Os cargos de deputados e promotores do Santo Ofício de Goa eram
freqüentemente ocupados por clérigos das ordens religiosas instaladas na capital do
Estado da Índia, principalmente dominicanos e jesuítas
88
. Havia também a possibilidade
desses quadros terem origem no próprio reino e não estarem vinculados a essas ordens
religiosas. Um bom exemplo disso é, mais uma vez, o de João Delgado da Figueira, que
antes de atingir o cargo de inquisidor de Goa fora nomeado como promotor da
Inquisição oriental em 1617
89
. Do total de setenta e seis deputados e promotores,
sessenta e um pertenciam a ordens religiosas, enquanto os outros quinze eram
funcionários de tribunais e outras repartições do rei (nove) e do clero secular (seis)
90
.
Quadro III:
Ordens a que pertenciam deputados e promotores de Goa
(1560-1682)
ORDEM Número
Dominicanos 20
Jesuítas 17
Agostinianos 11
Franciscanos 10
Outras 3
TOTAL 61
Fonte: Antônio Baião. A Inquisição de Goa. v. 1.
85
Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 130.
86
Idem. p. 130.
87
Idem p. 195. O autor alerta que não se tratou de um rebaixamento, como à primeira vista pode parecer,
mas sim uma manutenção do vínculo com a Inquisição ao ter sido designado “como conselheiro do
recém-criado Conselho Ultramarino, uma das mais importantes estruturas do Estado reorganizado depois
da revolução de 1640”.
88
Segundo Antônio Baião. Op. cit. v. 1. p. 178, no início da Inquisição eram os notários que ofereciam os
libelos, depois os deputados assumiram também o papel de promotores, portanto não se fazia distinção
destes cargos na Índia.
89
José Miguel Ribeiro Lume. Op. cit. v. 2. p.446-448.
90
Antônio Baião. A Inquisição de Goa... v. 1. p. 167-175.
Diante desse levantamento é possível perceber a importância das ordens religiosas de
Goa no que tange ao provimento das necessidades de auxiliares qualificados em direito
canônico e teologia do Tribunal do Santo Ofício da Índia.
O cargo de notário também era de vital importância para o funcionamento da
Inquisição de Goa. No período estudado foram designados para essa função vinte dois
clérigos, todos seculares e de origem portuguesa
91
.
Outra importante nomeação que marcou o funcionamento dos tribunais
inquisitoriais do reino, a dos familiares do Santo Ofício, acompanhou a tendência geral
que ocorreu no primeiro momento de consolidação da Inquisição e, por isso,
inicialmente, eles não eram muito numerosos no Oriente. Francisco Bethencourt indica
que houve:
uma fase inicial de organização muito lenta da rede e com débeis
resultados, um progresso das nomeações que se torna mais vivo a
partir dos anos de 1620 e uma mudança radical nos anos de 1690 para
um novo modelo de enraizamento de massas da Inquisição que se
prolonga até os anos de 1770. A situação nos territórios do Império
português corresponde, grosso modo, a essas tendências. Em uma
carta dos inquisidores de Goa, de 1618, diz-se que o número de
familiares no distrito não atingia uma vintena
92
.
Não há dados precisos sobre períodos posteriores a 1618, mas pode-se afirmar
que o número de familiares também deve ter crescido no Oriente, acompanhando não só
a própria tendência verificada no reino como também nos domínios da América
portuguesa.
Fazia parte da rotina dos tribunais inquisitoriais a troca de correspondência, além
das consultas e pareceres produzidos. A Inquisição de Goa produziu uma significativa
correspondência com o Conselho Geral da Inquisição em Lisboa:
conservaram-se as cartas expedidas para o inquisdor-geral abrangendo
o período de 1569 a 1630. Trata-se de longas cartas, como se a
distância tivesse um efeito de amplificação da comunicação escrita (as
cartas dos tribunais de distrito da península Ibérica são muito mais
regulares e circunspectas). Naturalmente, é necessário esclarecer que o
correio entre Lisboa e Goa se fazia normalmente uma vez por ano,
91
Idem. p. 178-180.
92
Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 58-59.
aproveitando o ritmo das monções, embora pudessem acumular
diversas cartas, que se seguiam na mesma viagem. Todos os
problemas que diziam respeito ao tribunal eram inventariados e
analisados, acrescentando-se importantes (e extensas) observações
sobre a situação religiosa e política do território [...]
93
.
Os autos-de-fé de Goa tinham a solenidade e grandiloqüência da encenação que
o espetáculo inquisitorial exigia. No auto-de-fé de 17 de outubro de 1610 “foram os
penitentes pelas ruas públicas e não se esqueceram os inquisidores de mandar colocar na
Sé os retratos dos onze réus queimados no seu tempo por heresia”
94
. O auto-de-
realizado em praça pública de Goa, de 7 de fevereiro de 1630 foi descrito pelos
inquisidores que “mandaram fazer um teatro muito grande e aparatoso em um terreiro
junto ao Santo Ofício, encostado de um lado às paredes dele. Foi o auto mais célebre
dos que na Índia tem havido”
95
.
Era também um importante espaço de afirmação de hierarquias e dignidades, a
exemplo do que acontecia no reino, mas talvez em Goa seu valor fosse ainda maior,
principalmente diante dos freqüentes atritos causados por dificuldades de
reconhecimento da importância social que tinha cada funcionário eclesiástico ou do rei.
Exemplo desses pontos de tensão podem ser vistos na correspondência do inquisidor
Rui Sodrinho queixando-se ao Conselho Geral do Santo Ofício:
os deputados da mesa e eu estivemos no auto assentados todos em um
banco e descarapuçados por estar o Vice-rei presente; não faltaram
pessoas graves que o estranharam, mas, se nisso vai alguma coisa a V.
Mercês pertence determiná-la
96
.
Em sua resposta, o Conselho Geral insistiu em que os inquisidores deviam se
manter cobertos, pois era como se verificava nos autos-de-fé do reino, onde os
inquisidores assim permaneciam mesmo na presença do próprio rei, que dirá do vice-rei.
Por vezes o peso dos símbolos do poder no Oriente era ainda maior do que no reino,
espécie de reverberação da necessidade de afirmação da autoridade de diversos níveis
93
Idem. p. 39-40. A correspondência da Inquisição de Goa está sob a guarda do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, mas é recomendada a consulta dessas cartas na obra de Antônio Baião. A Inquisição de
Goa. Correspondência dos inquisidores da Índia (1569-1630). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930.
v. II.
94
Antônio Baião. A Inquisição de Goa... v.1. p. 275.
95
Idem. p. 276.
96
Idem. p. 266.
da estrutura administrativa do Estado da Índia de ordem política, militar e religiosa, que
muitas vezes entravam em rota de colisão.
Em setembro e em novembro de 1562 ocorreram os primeiros autos-de-fé em
Goa
97
. Mas a prática de dois autos por ano não se tornou norma. Houve mesmo períodos
prolongados de interrupção, como entre 1587 e 1596, alegando-se como justificativa da
ausência da encenação inquisitorial o fato de “os sentenciados serem todos negros e
homens da terra de pouca autoridade”
98
.
Para o século XVII há dois levantamentos de datas de autos-de-fé, feitos por
Fortunato de Almeida, José Lourenço de Mendonça e Antônio Joaquim Moreira, que
indicam também intervalos bastante largos entre os anos, como ocorrera no século XVI,
havendo maior regularidade somente a partir de 1685. Mas esses dados não espelham
bem a existência de autos-de-fé, uma vez que ao serem cruzados os dados cotejados por
aqueles autores com as descrições dessas cerimônias feitas nas cartas dos inquisidores
de Goa ao Conselho Geral, notam-se algumas discrepâncias
99
.
Francisco Bethencourt fez um estudo comparativo dos tribunais portugueses e
elaborou um quadro reproduzido aqui de forma mais simplificada com o intuito de
indicar a atividade do Santo Ofício de Goa.
QUADRO IV
Número de processos nos Tribunais de Lisboa,
Coimbra, Évora e Goa
(1536-1767)
Lisboa Coimbra Évora Goa Total
Período Nº Processos Nº Processos Nº Processos Nº Processos Nº Processos
1536-1605 3376 2248 2739 1831 10194
1606-1674 3210 4877 6703 7691 22481
1675-1750 2844 3079 1281 3347 10551
1751-1767 296 170 327 798 1591
Total
9726 10374 11050 13667 44817
Fonte: Francisco Bethencourt. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália séculos XVXIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 315.
A simples comparação dos dados demonstra que o Santo Ofício de Goa é com
certeza o mais ativo dentre os tribunais portugueses em termos de números de casos.
97
Há um registro feito por Gaspar Correia, nas Lendas da Índia, de um auto-de-fé celebrado no ano de
1543, onde ardera na fogueira um médico cristão-novo chamado Jerônimo Dias. Mas como está fora do
âmbito da alçada da Inquisição de Goa, não está sendo considerado. Idem. p. 263.
98
Idem. p. 569.
99
Cf. Fortunato de Almeida. Op. cit. v. IV. p. 315-318 e José Lourenço D. de Mendonça e Antonio
Joaquim Moreira. Op. cit. p. 270-279.
Mesmo para o primeiro período, único em que há registros em quantidade inferior aos
dos outros tribunais, é já muito elevado o número de processos se lembrarmos que o
tribunal fora fundado em 1560, e ainda demorou algum tempo para ajustar as estruturas
necessárias para a execução das ações inquisitoriais.
Na verdade, tanto para o século XVI quanto para o XVII, as listas de autos-de-
da Inquisição de Goa não apresentam regularidade de informações em termos de
conteúdo e características dos réus e das sentenças, o que sempre prejudica a, como já
disse, construção de séries totalmente confiáveis das tendências existentes. Portanto, por
vezes é necessário fazer algumas extrapolações, desde que cautelosas
100
.
É interessante notar que, a despeito da imagem suscitada pela intensa atividade
denunciada pelos números de processados pela Inquisição de Goa, percebe-se que havia
muitos problemas estruturais para o seu funcionamento. O elevado número de processos
provavelmente decorria mais do fato de tratar-se de um mundo de fronteira, de uma
cristandade sitiada na qual o Santo Ofício goês estava inserido, do que propriamente na
sua capacidade de ação persecutória. Configurava-se, portanto, em um tribunal de
muitas causas, mas pouco eficiente para dar conta da religiosidade multifacetada da
região que, por vários caminhos, minava a ortodoxia católica que ali se pretendia em
vão implantar.
100
Cf. Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 315.
4. Inquisição versus Inquisição: a visitação ao Tribunal de Goa
A questão do controle era fundamental para a Inquisição, e a vigilância incorria
também sobre o próprio organismo inquisitorial. As visitas de inspeção em Portugal
promovidas para fiscalizar o funcionamento dos tribunais “foram muito mais
concentradas, menos regulares, mais dependentes da conjuntura política e institucional”,
do que a experiência espanhola
101
.
Para o caso do tribunal de Goa tem-se notícia de visitações em 1583, 1591, 1608
e 1632. Sobre as três primeiras não há muitas informações, exceto o nome dos
visitadores: Frei Gaspar de Melo, Padre Pedro Martins, bispo do Japão e o arcebispo D.
Aleixo, respectivamente. Já para a visita de 1632 existe uma documentação consistente
e muito rica
102
. O inquisidor geral, D. Francisco de Castro, estabeleceu a visitação,
constituindo como visitador Antônio de Vasconcelos, inquisidor de Lisboa, cavaleiro da
casa real. O secretário das sessões era o provincial da Companhia de Jesus na Índia, o
padre Antônio de Andrade. O maior alvo dessa visitação foi o inquisidor João Delgado
Figueira, contra quem pesaram muitas e graves acusações, das quais destacam-se:
[...] ele costuma se ausentar do Tribunal, deixando só o tribunal de 12
a 15 dias [...] que ele não permitia que se guardasse o Regimento,
entre outros abusos. [...] Com todos os vice-reis de seu tempo teve
quebras e pôs em risco por isso a Inquisição. [...] Sempre teve pouca
paz com os inquisidores seus companheiros e superiores. [...] Teve
trato com gente da costa da Pimenta
103
.
Contra o segundo inquisidor, Antônio de Faria, não foram registradas culpas,
mas outros funcionários também foram atacados. Os notários Mateus Gomes e Ângelo
Monteiro sofreram acusações, entre outras, a de quebrarem o segredo do Santo Ofício.
Familiares também foram acusados de abusos, assim como outros funcionários foram
101
Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 192. Além das visitas ao Tribunal de Goa
enviadas pelo Conselho Geral do Santo Ofício, havia também as visitas organizadas pelo Santo Ofício
goês para investigar várias regiões do Estado da Índia. Há notícias deste tipo de visitação nos anos de
1596, 1610, 1619-21, 1636 e 1690, além de a Malaca e Macau, sem a informação de datas. Idem. p. 215.
102
O texto da visitação encontra-se no ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Visita a Inquisição de
Goa de D. Francisco de Castro. Liv. 184. Mas não há as conclusões finais do Conselho Geral nessa
documentação.
103
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Visita a Inquisição de Goa de D. Francisco de Castro (1632-
1633). Liv. 184. fl. 1-2v.
indiciados por se ausentarem das funções, particularmente o porteiro, o alcaide e o
meirinho.
No processo de investigação (o inquérito prolongou-se de 29 de outubro de 1632
até 7 de fevereiro de 1633) o visitador ouviu várias testemunhas. Uma das primeiras foi
o próprio inquisidor acusado, que se calou na maioria das perguntas. Nas poucas vezes
em que falou, fez graves acusações ao meirinho Luís Cardoso e ao notário Mateus
Gomes, dizendo que tinham maus procedimentos para serem funcionários do Santo
Ofício. Defendeu-se da acusação de estar muito ausente, o que propiciava fraudes sobre
os pertences dos presos, dizendo que:
os presos naturais da terra de ordinário são muito pobres, algumas
vezes acontece trazê-los o alcaide até estar presente o notário e depois
lhe dá conta do que achou ao dito preso, entregando-lhe juntamente o
que lhe achou. No que não pode haver fraude alguma porquanto
depois se pergunta aos ditos presos e se lhe dá satisfação
104
.
Outro a ser ouvido foi o inquisidor Antônio de Faria que:
disse que tem ao Inquisidor João Delgado, por pessoa incapaz de
servir ao Santo Ofício [...] por sua má natureza contumácia e
descabimento que tem com as pessoas que servem em sua companhia
ao Santo Ofício. [...] o dito João Delgado é parcial e respectivo que
havendo concordado com ele testemunha que servisse o cargo de
Deputado desta Inquisição o padre Antônio de Andrade provincial da
Companhia e sucedeu de ser o dito religioso juiz na segunda instância
de uma causa do doutor Paulo Rebelo e votando o que entendia,
acertou de ser contra o voto de João Delgado depois do que haverá
cinco ou seis meses sucedeu sendo necessário perfazer o número de
cinco votos na mesa desta Inquisição, digo sendo necessário para o
dito [...] chamar-se o dito religioso Antônio de Andrade, disse ele
testemunha ao dito João Delgado que o elegesse deputado, conforme
entre ambos se tinha resolvido. Ao que o dito João Delgado respondeu
havia para isso inconveniente, o qual era que o dito religioso havia
sido parte em uma coisa que havia entre alguns padres da Companhia
e do Santo Ofício
105
.
104
Ibidem. fl. 5.
105
Ibidem. fl. 6 v 8 v. Note-se que nesse trecho há uma clara rivalidade entre os inquisidores. Isso
parece ser algo comum, se basear-nos em uma carta de 1595 do Conselho Geral do Santo Ofício aos
inquisidores de Goa, ordenando que não houvesse diferenças particulares entre eles. BNRJ. Inquisição de
Goa. 25, 2, 1 nº 212-213.
Depreende-se do testemunho do Inquisidor que havia grave conflito entre o
Provincial da Companhia de Jesus e o Inquisidor João Delgado Figueira. Mas o que
poderia ser definido como rusga entre os inquisidores, na verdade assume o peso e
gravidade de acusações vindas de outras pessoas. Frei Diogo de Santa Ana, que era o
deputado do Santo Ofício mais antigo naquela altura, Provincial da Ordem de São
Francisco, também o acusou de negligente nas suas funções, pois não assistia às sessões
de tormento. Outro franciscano, frei João de Abrantes, declarou que ele não tinha
talento nem capacidade para exercer o cargo. O jesuíta José Álvaro Tavares, reitor do
Colégio de São Paulo e deputado do Santo Ofício, reafirmou a incompetência de João
Delgado dizendo que “não tem a paz e concórdia que se requer”
106
. Ou seja, havia um
consenso em considerar João Delgado um inquisidor que não cumpria suas obrigações
regimentais e, muito pior, useiro em criar instabilidade da cristandade na Índia.
Francisco Bethencourt resume assim os registros dos interrogatórios:
João Delgado Figueira é acusado de mais de cem infrações,
nomeadamente de abuso de poder para com os presos e para com os
funcionários, de retirar indevidamente dinheiro do fisco, de possuir
documentos secretos do tribunal em sua casa, de prender
arbitrariamente inimigos pessoais, de provocar conflitos constantes
com autoridades civis e de interferir nas eleições dos provinciais das
ordens religiosas. A concentração de acusações no primeiro inquisidor
revela-nos um caso significativo de uma rede de clientelismo em que
estão envolvidos cristãos-novos e religiosos
107
.
A maior parte das acusações foi confirmada pelo próprio visitador que
encaminhou o interrogatório para o Conselho Geral do Santo Ofício.
Em contrapartida, vale lembrar que foi justamente João Delgado Figueira,
quando ainda promotor e deputado do Santo Ofício de Goa, o responsável pela
publicação em 1624 de um repertório dos sentenciados da Inquisição oriental
108
, algo
que havia sido recomendado regimentalmente, mas que nunca fora cumprido até então.
É também de sua autoria o documento enviado à Santa Sé, em 1619, contra os ritos
106
Ibidem. fl. 20 v 25 v.
107
Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 194-195.
108
Este documento encontra-se na BNL. Repertório Geral de três mil e oitocentos processos
despachados pelo Santo Ofício de Goa desde a sua constituição até 1623 de João Delgado Figueira.
Microfilme F. 2545.
gentílicos e as práticas defendidos pelo jesuíta Roberto de Nobili
109
. Da mesma forma,
participou de uma junta de teólogos formada pelo governador Fernão de Albuquerque,
na qual se discutiu os ritos gentílicos e de onde resultou a decisão de se proibirem as
festas de casamentos dos hindus em Goa.
Portanto, se as acusações eram verdadeiras ou resultado de manobras de caráter
político não se pode precisar, mas com certeza era um homem que não estava afinado
com as visões dos jesuítas
110
. Sabe-se que, após esse episódio da visitação, João
Delgado Figueira foi obrigado a voltar para o reino (o que o próprio inquisidor já havia
solicitado, ou seja, não foi propriamente uma punição), onde assumiu diversos cargos de
destaque na Inquisição e na estrutura administrativa do reino, como já dito
anteriormente. É justamente por causa da brilhante carreira que percorreu após seu
retorno a Portugal que se pode supor que, ao fim e ao cabo, ele não devia ser tão
displicente funcionário como foi descrito pelo visitador. A própria presença como
secretário dos trabalhos da visitação de um jesuíta do porte de Antônio de Andrade
também alimenta a suspeita de que se tratava de uma espécie de revanche de alguns
membros da Companhia de Jesus, em função da oposição cerrada que Delgado Figueira
fez às proposições de Roberto Nobili e até mesmo a sua rigidez diante das práticas
gentílicas dos cristãos da terra.
De resto, é interessante notar que os usuais procedimentos de investigação
inquisitorial foram colocados em prática nessa visitação, e percebe-se pelas respostas
que João Delgado Figueira não forneceu ao visitador a real proporção que alcançou o
embate que se travou nesse episódio.
Mas o trauma foi digno de nota; tanto que em carta enviada pelo Inquisidor
Geral ao Santo Ofício de Goa, em 1636, lê-se uma forte recomendação de conduta aos
inquisidores:
com os padres da Companhia terão sempre toda boa correspondência
por ser a sua religião tão benemérita da igreja, como é notório,
advertindo porém que se alguém particular se esquecer da obrigação
de venerar e respeitar o Santo Ofício dê essa mesa proceder na matéria
109
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Parecer de João Delgado Figueira, promotor e deputado da
Inquisição de Goa sobre os sinais gentílicos (1619). Liv. 474.
110
Antônio Baião. A Inquisição de Goa... v.1. p. 329, também se coloca em dúvida sobre a veracidade
das acusações e depoimentos arrolados pela visita de 1632.
de maneira que não excedendo no modo faça com que o respeito e a
veneração do Santo Ofício inviolavelmente se conserve
111
.
Ou seja, uma recomendação de caráter político, até mesmo diplomático, mas que
visava manter a grandeza do tribunal.
111
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Livro de registros das cartas para os inquisidores de Goa
(1631-1684). Liv. 101. fl.83 v.
5. O relato dos viajantes: a “lenda negra” da Inquisição goesa
A visitação de 1632 produziu uma visão institucional do funcionamento da
Inquisição de Goa, revelando problemas de abuso de poder e corrupção, além de indicar
as disputas políticas nas quais estavam inseridos os funcionários do Santo Ofício, mas a
lógica do segredo, inerente aos assuntos inquisitoriais, também prevaleceu no caso goês,
de modo que os detalhes da investigação só chegaram ao conhecimento do Conselho
Geral. Mesmo que os murmúrios e as intrigas se espraiassem pelas ruas de Goa, não
ecoariam muito além dos limites da cidade, reduzindo-se à escala dos mexericos e
insinuações veladas.
Em contrapartida, houve uma série de registros que revelaram as impressões
sobre o santo tribunal de Goa a um público mais amplo: os relatos dos viajantes. É
sempre uma fonte que deve ser vista com muito cuidado, pois geralmente contêm
impressões feitas a partir de permanências rápidas, olhares por vezes superficiais sobre
uma realidade muito diversificada. Mas também apresenta a grande vantagem de
destacar aspectos inusitados que aquelas pessoas mais habituadas e adaptadas àquele
mundo já nem notam
112
; como diz Marc Bloch: “os objetos mais familiares [...] estão
em geral entre aqueles sobre os quais é mais difícil obter uma descrição correta: pois a
familiaridade traz, quase necessariamente, a indiferença”
113
.
Considera-se aqui como um “viajante” o europeu que não é português e que teve
a oportunidade de viajar até Goa ou passar por ela em um trajeto maior de viagem, e que
como resultado dessa experiência fez registros sobre a realidade local
114
.
A partir desse critério, foram escolhidos três viajantes cujo relato relaciona-se
direta ou indiretamente à Inquisição de Goa. São eles: Jan Huygen van Linschoten;
François Pyrard de Laval e Charles Dellon.
112
Ver a reflexões feitas por Maria dos Remédios Castelo Branco e Fernando Castelo Branco. Op. cit. p.
139-140. Nesse artigo, os autores só estudam um viajante do século XVII, Charles Dellon, os outros
relatos analisados são de viajantes do século XVIII.
113
Marc Bloch. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001. p. 104.
114
Se tomado ao pé da letra, o conceito de registro de viajantes deveria incluir aqui as impressões feitas
pelos jesuítas, principalmente naquelas primeiras cartas que escreviam aos seus irmãos na Europa, onde
somavam-se as dificuldades da viagem ao atordoamento da identificação de uma cidade rica em
contrastes, em sons, em cheiros, em cores. Mas como o olhar dos jesuítas era treinado para observar
determinados aspectos, não se pode qualificá-los como viajantes, simples e exclusivamente.
Manuel Cadafaz de Matos alerta que “a maioria destes viajantes eram
portadores, como não podia deixar de ser, de uma ideologia reformadora hostil ao
dogmatismo fechado e exacerbado” das autoridades dos domínios portugueses
115
. Por
outro lado, os livros de Linschoten e de Pyrard de Laval foram publicados no período da
união das duas coroas ibéricas (o primeiro por volta de 1596, o outro em 1611), em
países que tinham fortes rivalidades com Espanha, tais como Holanda, Inglaterra e
França, e serviram para construir uma visão que enfatizava o obscurantismo ibérico. O
livro de Dellon é de um período posterior, 1687, mas pode ser associado ao contexto de
questionamentos das práticas do tribunal inquisitorial que já havia possibilitado o
aparecimento das Notícias Recônditas que causou impacto entre as autoridades de
Roma
116
. Tudo isso foi responsável por criar uma imagem sobre a Inquisição de Goa,
misturando elementos verídicos com outros pouco comprovados, mas sempre com
ênfase na crueldade e truculência desse tribunal, num esforço de difamação do Tribunal
oriental, originando a “lenda negra” que o envolve. Apesar de todas as ressalvas
apresentadas esses livros são importantes registros para analisar o Santo Ofício goês.
O holandês Jan Huygen van Linschoten, nascido em 1562 na cidade de Haarlem,
viveu em Goa no período de 1583 a 1588, atuando como secretário particular do
arcebispo D. Vicente da Fonseca
117
. Desde jovem estivera em contato com as narrativas
de viagens marítimas tanto por ouvir contar (o pai era dono de uma taberna, local
privilegiado para a difusão desse tipo de relato) quanto por leituras de livros sobre o
tema e, ainda muito jovem, foi para a Espanha e depois para Portugal. Seguiu para a
Índia em 1583 a serviço do arcebispo de Goa, recentemente nomeado pelo rei. Em Goa
ganhou a confiança de D. Vicente da Fonseca, chegando mesmo a ficar encarregado das
cobranças das suas rendas e da manutenção da sua casa quando o arcebispo voltou ao
reino para resolver questões de conflitos com os governadores e o vice-rei. Após ser
informado do falecimento do arcebispo na sua viagem para Portugal, deixou Goa em
1588:
é provável que na sua decisão de abandonar Goa na primeira
oportunidade tenham pesado outras razões. A morte do seu amo fazia
dele um desempregado, ao mesmo tempo que as desavenças entre o
115
Manuel Cadafaz de Matos. Um voto de peregrinar a Santiago de Compostela... p. 601.
116
Para a análise das Notícias Recônditas ver Antônio José Saraiva. Op. cit. p. 77-84.
117
Jan Huygen van Linschoten. Itinerário, Viagem ou Navegação para as Índias Orientais ou
Portuguesas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
arcebispo e o poder temporal na Índia podiam complicar as suas
possibilidades de encontrar outra colocação. Entretanto, a Inquisição
em Goa, por ordem de Filipe II, ia apertando a perseguição a
holandeses e flamengos na Índia
118
.
O Itinerário, Viagem ou Navegação para as Índias Orientais ou Portuguesas,
com as impressões sobre o Oriente português e as viagens marítimas de Linschoten, foi
publicado por volta de 1596, na Holanda, e traduzido para o inglês (1598), alemão
(1598-1600), latim (1599) e francês (1610)
119
.
A descrição física e institucional da Inquisição é quase inexistente no texto do
Itinerário. Há uma referência rápida à residência do Idalcão, também chamado de
Sabaio, onde diz que: “a sua casa ou palácio ainda hoje existe em Goa, ali estando agora
instalada a Inquisição, enquanto que uma praça que está situada entre a igreja grande e a
mesma casa ainda hoje se chama o terreiro de Sabaio”
120
.
São as informações sobre a diversidade cultural e religiosa que conviviam e
circulavam em Goa que servem para perceber um pouco da realidade enfrentada pelo
Santo Ofício na Índia. Linschoten, como homem que tinha acesso à dinâmica da
administração eclesiástica, teve condições de informar a jurisdição das instâncias do
direito instalado no Oriente, afirmando que:
no que diz respeito à justiça e ao domínio dos portugueses, com as
suas ordenações, tanto temporais quanto espirituais, é como em
Portugal. Vivem na cidade, misturados com indianos, gentios, mouros,
judeus, armênios, guzerates, baneanes, brâmanes e todas as nações e
povos indianos, os quais lá vivem e traficam todos, cada qual na sua
lei e religião, sem que ninguém seja forçado a fazer nada contra a sua
vontade. Apenas as suas cerimônias de queima dos mortos e vivos, de
casamentos e de outras superstições e invenções diabólicas, são
proibidas pelos bispos, tanto em público como na ilha; mas são
admitidas livremente na terra firme e, às escondidas nas suas casas,
para evitar todo o escândalo e irritação que possam causar entre os
cristãos recém batizados. Mas no que diz respeito à justiça temporal,
aos procedimentos e à boa polícia, os que moram na ilha são todos
sujeitos ao direito português. Da mesma maneira, alguém que tenha
sido batizado cristão, e depois seja encontrado praticando quaisquer
118
Rui Manuel Loureiro. Introdução. In: Jan Huygen van Linschoten. Op. Cit. p. 15. Loureiro produziu
uma detalhada biografia de Linschoten na introdução dessa publicação do Itinerário.
119
Idem. p. 9.
120
Jan Huygen van Linschoten. Op. Cit. p. 144.
erros ou superstições gentias, é sujeito à Inquisição, seja quem for e
qualquer que sejam as acusações ou erros
121
.
Interessante notar que Linschoten define com grande segurança o alvo da ação
inquisitorial, incluindo numa só categoria toda a diversidade de povos e religiões, pois
discrimina apenas um critério: os batizados que por ventura cometessem “erros ou
superstições gentias” seriam perseguidos pela inquisição. Não há nenhum destaque à
heresia judaica, podendo isso ser sinal ou do afrouxamento da perseguição aos cristãos-
novos, ou de uma visão distorcida desse viajante, que não conseguia perceber a
amplitude da ação inquisitorial. Se for lembrada a afirmação de Francisco Bethencourt
de que nas duas últimas décadas do século XVI os casos de judaizantes desaparecem
dos registros do Santo Ofício de Goa, então pode estar justificada a impressão que dele
teve Linschoten
122
.
Há ainda um registro sobre as fronteiras tênues que separavam Goa da
circunvizinhança, quando o autor descreve a circulação das pessoas para fora dos
limites da cidade:
para a proteção da ilha servem três ou quatro passagens ou portas do
lado leste, situadas na margem do rio, na extremidade da ilha, em
frente da terra firme de Salcete e Bardez. Cada porta tem um capitão e
um escrivão, os quais zelam para que ninguém possa sair para o outro
lado sem autorização. E os indianos, decanins e os outros mouros e
gentios que residem em Goa, quando vão a terra firme para buscar
todo gênero de mercadorias e mantimentos, recebem nessas portas,
que são chamadas passos, uma marca (que é impressa no braço nu), e
a seguir vão para o outro lado; e no regresso devem mostrar a mesma
marca, com a qual podem passar livremente e pela qual pagam uns
bazarucos [...]. Este pagamento reverte a favor do capitão e do
escrivão do mesmo passo. E à noite tem um rapaz que é encarregado
de badalar um sino pequeno que está por cima da porta ou torre.
Muitas vezes se deita e ata a corda do badalo ao pé, ficando assim
deitado e tocando ou badalando, em sinal de que está a vigiar. E esta é
a única vigia e proteção que existe em toda ilha
123
.
Talvez haja na expressão da última frase da citação algum exagero, pois sabe-se
que Goa possuía um sistema de fortes que assegurava a defesa portuguesa da cidade,
121
Idem. p. 147.
122
Francisco Bethencourt. A Igreja... p.384.
123
Jan Huygen van Linschoten. Op. Cit. p. 146. O autor explica que Bazaruco era uma moeda indiana.
descrito e elogiado por funcionários do rei e por outros viajantes
124
. Descontando-se
isso, a descrição acima ilustra a mobilidade dos homens para dentro e para fora da
cidade. O autor dá ênfase ao aspecto da circulação de mercadorias, mas a partir dessa
informação pode-se perceber o quanto seria fácil a troca de informações culturais, o
intercâmbio de conhecimentos religiosos, a possibilidade de fuga para a “terra dos
infiéis”, e o quanto estavam suscetíveis à apostasia, que tanto preocupava a Inquisição
de Goa.
O próprio Linschoten, com permissão das autoridades locais, protagonizou uma
viagem à terra firme fora da cidade de Goa, cerca de cinco ou seis léguas para o interior,
onde travou conhecimento com as práticas gentílicas em pagodes. O que motivara a
jornada era a curiosidade de testemunhar um sati, ou seja, a queima dos restos mortais
de um brâmane e de sua viúva. O objetivo não foi alcançado, mas ele pode testemunhar
algumas práticas religiosas e visitar um pagode, a tudo descrevendo com detalhes. No
fim agradeceu a Deus por “não ter nascido entre estes gentios e no meio de semelhantes
enganos satânicos”
125
, demonstrando sua repulsa às práticas religiosas dos hindus.
Outro viajante que fez anotações sobre Goa e a Inquisição foi o francês François
Pyrard de Laval, que passou dez anos em viagens pelo Oriente, de 1601 a 1611
126
. Aos
trinta anos de idade Pyrard de Laval embarcou para as Índias Orientais, e o navio em
que viajava perdeu-se nas ilhas Maldivas. O náufrago tornou-se prisioneiro do rei local
por cinco anos. Após ser aprisionado por piratas bengaleses que saquearam a capital do
reino, conseguiu libertar-se e viajou até Cochim em busca de embarcação que o levasse
de volta, mas lá foi preso pelos portugueses e conduzido a Goa, em junho de 1608,
depois libertado e alistado nas armadas. O viajante resume suas aventuras dizendo que:
“estive, pois, em Goa com os portugueses no espaço de dois anos, recebendo paga de
soldado, e indo a várias partes em suas expedições”
127
. Foi repatriado em janeiro de
1610, aparentemente através de intervenções feitas por jesuítas de origem francesa. Em
124
Ver descrição dos aspectos urbanísticos de Goa em Walter Rossa. Cidades indo-portuguesas. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997. p. 41-53
125
Jan Huygen van Linschoten. Op. Cit. p. 193.
126
François Pyrard (De Laval). Viagem de Francisco Pyrard, de Laval contendo a notícia de sua
navegação às Índias Orientais, Ilhas de Maldivas, Maluco e ao Brasil, e os diferentes casos que lhe
aconteceram na mesma viagem nos dez anos que andou nestes países (1601 a 1611), com a descrição
exata dos costumes, leis, usos, polícia e Governo; do Trato e Comércio que neles há; dos animais,
árvores, frutas e outras singularidades que ali se encontram. Ed. Joaquim Helidoro da Cunha Rivara.
Porto: Livraria Civilização, 1944. 2v.
127
Idem. v. 2. p. 25.
1611 publicou na França seu livro, reeditado diversas vezes no século XVII, em francês
e com traduções para o inglês e o italiano.
Quando chegou a Goa como prisioneiro estava com a saúde muito debilitada e
foi encaminhado para o Hospital Real, administrado pelos jesuítas. Pyrard de Laval
ficou vivamente impressionado com a qualidade do atendimento, a organização e
limpeza do estabelecimento, e é sobre ele que registra uma série de considerações
inicialmente. O tempo de permanência desse viajante em Goa e a condição na qual se
encontrava ditam a direção do seu olhar sobre a cidade. A princípio descreve as prisões
de Goa, distinguindo-as cuidadosamente:
há quatro prisões gerais em Goa, afora outras particulares. A 1ª é a da
Santa Inquisição; a 2ª a do arcebispo, próxima à sua residência; a 3ª o
Tronco que é junto ao palácio do vice-rei, a maior e principal de todas;
tem vasto alojamento para toda a sorte de presos. Há nela todos os
meses uma audiência geral, a que a maior parte das vezes assiste o
vice-rei. É como entre nós a Conciergerie. A 4ª é aquela aonde fomos
levados e serve como de auxiliar da antecedente. [...] A Inquisição e a
justiça eclesiástica são coisas separadas. Esta pertence ao arcebispo,
que tem poder sobre todo o clero. Os Jesuítas andam com ele em
litígio há longo tempo na Corte de Roma, porque não querem sobre si
outro superior mais que o Papa e o seu Geral. Os juízes e oficiais da
Inquisição são juízes privativos. Todavia o arcebispo não deixa de ter
muito poder na Inquisição, mas não toma conhecimento dos negócios
que a ela tocam; porque os inquisidores têm o seu cargo de el-rei; mas
se fizerem o que não devem, é o Arcebispo que lhes toma conta do seu
procedimento
128
.
Nesse trecho é notável o esforço que Pyrard de Laval faz para definir e
hierarquizar as jurisdições de cada um dos braços da justiça em Goa. Seu relato também
demonstra que os atritos eram identificados por qualquer observador mais atento, já que
ele em um parágrafo aponta conflitos entre os jesuítas e o arcebispo, e deste com a
Inquisição, mesmo que as razões não sejam muito bem entendidas por ele.
Pyrard de Laval também descreve o prédio da Inquisição ao apresentar a
importância da Rua Direita:
esta grande Rua Direita é também chamada dos leilões [...]. A meio
caminho do comprimento desta rua está um dos maiores e mais
128
Idem. v. 2. p. 21-22.
antigos edifícios da cidade, a que chamam Casa da Santa Inquisição,
na qual residem todos os oficiais da dita Inquisição, e se guarda a
mesma ordem que na de Portugal, com a diferença que aqui a justiça é
ainda mais severa para com os ricos. [...] O palácio da Inquisição é um
edifício mui amplo, com uma sala mui bela e grande, com grandes
escadarias mui compridas e fabricadas de mui boa pedra; e não há
casa de rei que tenha uma sala tão bela
129
.
Para além de uma simples descrição do palácio da Inquisição, Pyrard de Laval
também tece considerações sobre a atividade do santo tribunal, fazendo inclusive
algumas comparações:
a justiça deste tribunal é ali muito mais severa que em Portugal, e
queimam mui freqüentemente judeus, a que os portugueses chamam
cristãos-novos. Quando estes são presos pela justiça do Santo Ofício,
todos os seus bens são também confiscados, e não prendem senão os
ricos. [...] É esta justiça a mais cruel e impiedosa coisa do mundo;
porque a menor suspeita, a mais leve palavra, seja de uma criança ou
de um escravo que quer ser molesto a seu senhor, fazem logo
condenar um homem à pena última; e dá-se ali crédito a qualquer
criança por mui pequena que seja, contanto que saiba falar. [...] É
horrível e espantosa coisa ser alguma vez ali preso; porque não há
nem procurador, nem advogado que fale pelo pobre encarcerado;mas
os ministros daquele tribunal são juízes e partes ao mesmo tempo
130
.
É importante notar que há nessa citação muitos elementos que fundamentaram a
“lenda negra” sobre o tribunal de Goa, particularmente a sua truculência, rigidez e
crueldade. Ao contrário do que sugeriu Linschoten, Pyrard de Laval reforça a noção de
que o alvo principal da Inquisição do Oriente é o cristão-novo e rico, pois indica
claramente ser esse o interesse fundamental do santo tribunal, chegando inclusive a
descrever as acusações mais freqüentes, as famosas práticas judaizantes:
ora são acusados de por crucifixos nas almofadas sobre que se
assentam ou ajoelham, ora que açoitam imagens e não comem
toucinho; enfim, que guardam ainda secretamente sua antiga lei, sem
embargo de fazerem publicamente obras de bons cristãos, e
verdadeiramente creio que a maior parte das vezes provam contra eles
129
Idem. v. 2. p. 43.
130
Idem. v. 2. p. 73-74.
o que querem, porque não condenam à morte senão os ricos, e aos
pobres dão somente alguma penitência
131
.
Possivelmente, a recomendação de brandura com os recém-convertidos e a
dureza da perseguição à heresia judaica poderiam ser os fundamentos da impressão
colhida por Pyrard de Laval, ainda no início do século XVII, o que o leva a insistir no
fato de que o principal foco de atenção da Inquisição de Goa eram os ricos. Talvez isso
sirva mais uma vez para reforçar a idéia de que os escritos de Pyrard de Laval mais
atendiam aos moldes da “lenda negra”, identificando uma característica típica dos
tribunais reinóis, do que descreviam a atuação do Santo Ofício goês.
Outro aspecto que Pyrard de Laval registrou sobre a presença da Inquisição em
Goa foi a sua ação deletéria na convivência social:
e o que é mais cruel e iníquo é que um homem que quiser mal a outro,
por se vingar o acusará deste crime; e sendo preso não há amigo que
ouse falar por ele, nem visitá-lo, ou procurar por suas coisas, como em
semelhante caso acontece aos criminosos de lesa majestade. O povo
em geral não ousa falar desta Inquisição, salvo com grande
acatamento e respeito, e se pela ventura escapasse alguma palavra que
de algum modo lhe tocasse, é mister ir logo logo acusar-se e
denunciar-se a si a própria pessoa, se desconfia que alguém a ouviu;
porque aliás se outrem a denunciasse, ficaria logo perdida
132
.
Pyrard de Laval retratou o medo que imperava e alimentava o funcionamento do
santo tribunal, indicando também a situação de insegurança e desconfiança entre as
pessoas que moravam na cidade e que incentivavam as denúncias e as confissões, ótima
ilustração da “pedagogia do medo” que Bartolomé Bennassar enfatiza em seus estudos
sobre a Inquisição
133
. Pyrard de Laval chegou mesmo a comparar tribunais, afirmando
que o tribunal de Goa procedia da mesma maneira que as outras inquisições na Europa
(Espanha, Itália e Portugal), ressaltando o procedimento do segredo e total isolamento
aos quais estavam sujeitos seus prisioneiros. Mas apesar do medo e da recomendação do
silêncio sobre os assuntos do Santo Ofício, muitas das reflexões de Pyrard de Laval
131
Idem. v. 2. p. 73.
132
Idem. v. 2. p. 73. Para uma maior reflexão sobre a ação deletéria da Inquisição ver Ronaldo Vainfas.
Op. cit. e Bartolomé Bennassar (org). Inquisición española: poder politico y control social... passim.
133
Bartolomé Bennassar (org). Inquisición española: poder politico y control social... p. 94-95.
devem estar baseadas nas “murmurações” que ouvira tanto na Europa quanto no
Oriente.
Percebeu claramente que havia uma atitude mais condescendente em relação aos
gentios, pois o Santo Ofício cedia em pontos que não fossem essenciais no processo de
conversão, como destaca no trecho a seguir:
os gentios e mouros indianos, de qualquer religião que sejam, não são
sujeitos à Inquisição, salvo se se houverem feito cristãos; mas assim
mesmo não são castigados tão rigorosamente como os portugueses ou
cristãos-novos vindos de Portugal, e os outros mais cristãos da
Europa. Mas se pela ventura um índio, mouro ou gentio, tiver
divertido ou impedido outro, que mostrasse vontade de se fazer
cristão, e que isso se provasse contra ele, seria castigado pela
Inquisição; como também aquele que tivesse feito a outro deixar o
cristianismo, como mui freqüentes vezes acontece. A causa porque
não tratam estes índios tão rigorosamente é porque entendem que eles
não podem ser tão firmes na fé como os cristãos-velhos; e também
porque assim se impediria a conversão dos outros: de sorte que se lhes
deixam ainda algumas pequenas superstições gentias, como não comer
carne de porco ou de vaca, ou não beber vinho; e igualmente o seu
antigo modo de vestir e adornos, assim aos homens como às mulheres
cristãs
134
.
Percebe-se ainda o registro das sentenças contra os “infiéis” que não deveriam
ser alvo da Inquisição, o que confirma os dados encontrados nas listas de autos-de-
para o século XVII. Além disso, Pyrard de Laval insinua uma certa flexibilidade por
parte dos inquisidores ao deixar algumas sobrevivências culturais entre os grupos
cristianizados na região.
Por fim, disse não ser capaz de informar o “número de pessoas esta Inquisição
faz morrer ordinariamente”
135
, mas descreveu os autos-de-fé:
é nas festas principais do ano que se fazem as execuções, e nestes
autos todos os pobres condenados marcham juntos com camisas
breadas e pintadas de chamas de fogo; e a diferença que os que são
condenados a pena última têm dos outros, é que as chamas destes
correm para cima, e as daqueles correm para baixo. São levados a
igreja principal ou Sé, que é mui perto da prisão, e ali assistem à missa
e sermão; no qual se lhes fazem grandes admoestações; depois são
134
Francisco Pyrard (De Laval). Op. cit. v. 2. p. 74.
135
Idem. v. 2. p. 73
levados ao Campo de S. Lázaro, e ali os queimam em presença dos
outros, que assistem ao auto
136
.
Nessa rápida descrição o foco da narrativa recai sobre os acusados, não havendo
menção às autoridades, nem sequer à localização de cada uma delas na procissão e na
cerimônia do auto-de-fé.
Charles Dellon foi certamente quem legou a visão mais difundida por toda a
Europa do que seria a Inquisição de Goa. De todos os viajantes teria sido o único a olhar
para o santo tribunal não apenas como mero observador de fora, anotador de algumas
manifestações exteriores ou mesmo de “ouvir dizer” sobre o seu funcionamento.
Experimentou, como réu, todo o trâmite do processo inquisitorial, e deixou um relato
sobre sua experiência em livro publicado pela primeira vez em 1687, em francês, tendo
traduções em inglês, alemão, holandês e português, nos séculos XVIII e XIX
137
:
o sucesso desse livro é surpreendente: duas novas edições francesas
em 1688; uma edição inglesa e outra alemã nesse mesmo ano; uma
edição holandesa em 1697. No total, pudemos contar 28 edições desse
livro até meados do século XIX, a maior parte publicada entre o final
do século XVII e o início do século XVIII. As edições de língua
inglesa registraram uma maior longevidade, com um novo conjunto de
impressões entre 1812 e 1819, tanto na Inglaterra como nos Estados
Unidos [...]
138
.
Sobre a veracidade da narração de Dellon pairaram dúvidas provenientes
principalmente da historiografia comprometida com a visão da “Goa Dourada”, segundo
o historiador indiano Priolkar, que identifica três nomes responsáveis pelo
questionamento da presença de Dellon na Índia e da veracidade de sua narrativa: Gerson
da Cunha, o jesuíta H. Heras e Braz A. Fernandes
139
. Em uma habilidosa investigação,
136
Idem. v. 2. p. 75. Segundo D. Raphael Bluteau. Vocabulário Portuguez e Latino Rio de Janeiro:
UERJ, 2000. [cd-rom] breadas significa coberta de breu.
137
Para o presente trabalho estão sendo usadas duas publicações da narração, uma portuguesa: Charles
Dellon. Narração da Inquisição de Goa. Lisboa: Antígona, 1996 e outra francesa: Charles Amiel e Anne
Lima. L’Inquisition de Goa: La relation de Charles Dellon (1687). Paris: Editions Chandeigne, 1997. Há
ainda uma outra publicação anterior (1685) de Dellon chamada Relation d’un Voyage fait aux Indes
Orientales, mas não foi utilizada nesse estudo.
138
Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 349-350.
139
Ver A. K. Priolkar. Op. cit. p. 37-38. O autor cita os artigos de cada um dele: J. Gerson da Cunha. M.
Dellon and the Inquisition of Goa. J. B. Br. of the Royal Asiatic Society, v. XVIII, Part II (1887-1889).
Bombay, 1889. p. 52; H. Heras. The Decay of the Portuguese Power in India. Journal of the Bombay
Historical Society. v. I, Bombay, 1928. p. 35; Braz A. Fernandes. Dellon and the Inquisition of Goa.
Bombay, 1936. p. 63.
Priolkar promoveu um cruzamento de fontes. Na Narração da Inquisição de Goa
uma rápida referência a uma visita que o Abade Carré teria feito a Dellon quando este
ainda estava preso em Damão. Este religioso francês tinha sido enviado ao Oriente pelo
ministro Colbert e, por sua vez, também publicou um livro relatando suas viagens ao
Oriente
140
, no qual Priolkar encontrou a descrição da visita a Dellon feita pelo religioso.
Dessa forma, o historiador afirmou a veracidade do relato feito pelo viajante na
Narração da Inquisição de Goa
141
. A par disso, Antônio Baião localizou na Biblioteca
Nacional de Lisboa uma lista de auto-de-fé do dia 12 de janeiro de 1676, onde aparece
nome de Dellon. Pode-se ainda acrescentar que pela riqueza da descrição dos
procedimentos inquisitoriais feitas pelo cirurgião francês, o livro de Dellon deve ser
considerado como uma importante fonte para o estudo da Inquisição de Goa e sua
autenticidade consolidada.
Charles Dellon nasceu em 1649; foi para Índia em 1668 como cirurgião num
navio da Companhia Francesa das Índias Orientais, e permaneceu em viagens pela costa
do Malabar a seu serviço, estabelecendo-se em 1673 como médico na cidade de Damão
a convite do governador Manuel Furtado de Mendonça. O próprio governador, cerca de
seis meses mais tarde, denunciou o cirurgião francês com a acusação de protestantismo,
promovendo sua prisão e posterior envio para a Inquisição de Goa, no início de 1674.
Preso por dois anos, Dellon foi condenado a cinco anos nas galés de Portugal e enviado
para Lisboa, onde chegou em janeiro de 1676. Após uma série de petições, em junho do
ano seguinte conseguiu a liberdade sob a condição de que partisse para a França. Nesse
país, após muitas hesitações, acabou publicando sua experiência como réu do Santo
Ofício goês, tomando a precaução de não revelar seu sobrenome, por receio de quebrar
o silêncio ao qual estavam submetidos todos os que passavam pelos processos
inquisitoriais
142
.
As razões da acusação feita pelo governador Manuel Furtado de Mendonça não
são claras. Segundo Dellon, a verdadeira causa de sua prisão teria sido o ciúme que o
140
O livro citado por Priolkar é The Travels of the Abbé Carré in India and the Near East - 1672 to 1674
- From France through Syria, Iraq and the Persian Gulf to Surat, Goa, and Bijapur, with an account of his
grave illness. Translated from the manuscript journal of his travels in the India Office by Lady Fawcett,
and Edited by Sir Charles Fawcett with the assistance of Sir Richard Burn. 1947. v. 1.
141
Ver A. K. Priolkar. Op. cit. p. 39-49. Como Dellon foi encaminhado à Inquisição de Lisboa seria de se
esperar encontrar uma cópia do seu processo no ANTT, mas nunca foi localizado.
142
Para a biografia de Charles Dellon utilizaram-se as informações de A. K. Priolkar. Op. cit. p. 35; a
introdução do tradutor Ada Mastor da edição portuguesa de 1996 da Narração da Inquisição de Goa. p. 9
e o estudo de Charles Amiel e Anne Lima em L’Inquisition de Goa: La relation de Charles Dellon (1687).
Paris: Editions Chandeigne, 1997.p. 41-50.
governador de Damão e um religioso, secretário do Santo Ofício, sentiram pela atenção
que certa dama deu ao médico francês. Mas ele mesmo narra uma série de
procedimentos e discursos que fizera em vários locais da cidade, suficientes para
incriminá-lo aos olhos da Inquisição.
Primeiramente ele teria conversado com um dominicano sobre o batismo e havia
negado o efeito do batismo de flaminis
143
, chegando mesmo a citar o evangelho de João,
capítulo 3, versículo 5: “aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no
reino de Deus”. Demonstrou publicamente várias vezes que tinha restrições ao culto das
imagens, proferindo inclusive opiniões sobre isso e citando a “sessão 25” do Concílio
de Trento, que recomendava o culto apenas às imagens de Jesus Cristo. Recusava-se a
levar o rosário ao pescoço e, mais grave, desqualificou os juízes da Inquisição em uma
discussão sobre a justiça dos homens, pois segundo Dellon:
disse eu que ela não me merecia este nome, mas antes o de injustiça;
porque os homens, não julgando senão por aparências, que freqüentes
vezes enganam, eram sujeitos a mui poucas vezes fazerem juízos
retos, e sendo Deus o conhecedor das coisas tais como elas em si são,
também não havia outro, afora ele, que se pudesse chamar
verdadeiramente justo. Então um destes diante de quem eu falava
tomou a palavra e disse-me que, falando genericamente era exato o
que eu afirmara; mas que em fim cumpria fazer esta distinção, que se
em França não havia verdadeira justiça, tinham eles os portugueses
esta vantagem sobre nós, porque tinham no seu seio um tribunal cujas
sentenças eram tão justas e tão infalíveis como as de Jesus Cristo.
Conhecendo eu logo que aludia à Inquisição, repliquei-lhe nestes
termos: Acaso pensais vós que os inquisidores são menos homens e
menos escravos das suas paixões que os outros juízes? Não digais
tal, me replicou este zeloso defensor do Santo Ofício. Se os
inquisidores, juntos em tribunal, são infalíveis, é porque o Espírito
Santo preside sempre às suas decisões
144
.
Com certeza o jovem médico francês tinha conseguido acumular, em cerca de
seis meses de convivência com a comunidade da cidade de Damão, muitas
possibilidades de denúncias que provocariam a sua prisão. Além disso, também
informou que gostava de debater com os infiéis e gentios sobre temas religiosos, e que o
143
Existem três tipos de batismo: o da água, o do desejo (flaminis) perfeita contrição no coração e
sincero desejo de batismo - e o de sangue obtido através do martírio. Apesar de só o primeiro ser
considerado sacramento, existe flexibilidade em relação aos outros dois dentro da Igreja católica. William
Fanning. Baptism. In: New Advent Catholic Encyclopedia. www.newadvent.org/cathen/02258b.htm.
144
Charles Dellon. Op. cit. p. 38.
fazia motivado por suas leituras e curiosidades em relação às questões de fé, um terreno
perigoso que o colocou em situação dramática.
Dellon informa que foi avisado de que havia denúncias no santo tribunal contra
ele, de modo que tomou a iniciativa de procurar o comissário da Inquisição
145
de
Damão, que considerava seu amigo, e contou-lhe suas apreensões. Este teria apenas
confirmado que havia muitos comentários sobre ele, e aconselhou-o a amoldar-se mais
“aos usos do povo”
146
. Mesmo assim acabou preso, para sua surpresa, permanecendo
primeiro na prisão de Damão (que descreve como uma das mais horrendas que
existiam) e depois sendo transferido para Goa, onde conheceu os “limpos e alumiados
cárceres da santa Inquisição”
147
. Descreveu também o próprio prédio no qual
funcionava o santo tribunal e as celas dos prisioneiros:
é situada num dos lados da grande praça fronteira à catedral, dedicada
a Santa Catarina. Este edifício é grande e majestoso; tem na frente três
portas, a do centro é maior que as dos lados e por ela se entra para a
sala, de que falei [a antecâmara da sala da Mesa do Santo Ofício],
subindo uma escadaria. As portas laterais dão direção para os
aposentos dos inquisidores, cada um com capacidade de acomodar
sofrível mobília. Além destes aposentos há muitos outros quartos para
os oficiais da casa. Internando-se mais para dentro, se entra num
grande edifício, dividido em muitas repartições de dois andares,
separadas por pátios, e tendo cada andar uma galeria em forma de
dormitório de sete ou oito cubículos, de dez de quadrado cada um. O
total de cubículos subirá a duzentos. As celas dum destes dormitórios
são escuras, porque não têm fresta; são baixas e mais pequenas que as
outras; mostraram-nas, num dia do meu queixume de ser tratado com
demasiado rigor, para me fazerem sentir que podia estar pior do que
estava. As outras celas são quadradas, abobadadas, caiadas de branco
e limpas, entrando-lhes a luz por uma pequena fresta engradada, sem
porta, e numa elevação a que a mão do homem mais alto não pode
chegar
148
.
Relatou com detalhes as condições a que cada preso era submetido: o material
existente na cela (vasos de barro, uma vassoura, uma grande bacia e uma vasilha de
145
Em toda fortaleza portuguesa e nos territórios em volta de Goa havia a presença de um comissário da
Inquisição, figura da administração eclesiástica designada desde a fundação do Tribunal de Goa, em
1560. Ver Catarina Madeira Santos. «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado
da Índia (1505-1570). Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1999. p. 312.
146
Charles Dellon. Op. cit. p. 61.
147
Idem. p. 74.
148
Idem. p. 77-78.
cobre, dois estrados, uma esteira e uma colcha); a alimentação (comem três vezes ao
dia, boa comida, mas não se serve nunca carne); os cuidados médicos com os doentes e
a confissão para os moribundos, embora não os sacramentos do viático e da santa
unção; a não ocorrência de missa; a proibição de ler livros e a falta de iluminação à
noite; o costume de se manter um preso em cada cela, embora houvesse casos de dois
ficarem juntos
149
.
Dellon descreveu também a estrutura do Tribunal do Santo Ofício de Goa,
cometendo aí algumas imprecisões, mas nada que desabone seu relato. Enfatiza que
existia uma dura disciplina com os presos, com o uso de violência intimidante
150
.
Explicou também os trâmites do processo, com suas várias etapas: a denúncia, as
audiências, os tipos de crimes (com destaque para a questão dos cristãos-novos e dos
gentios recém-convertidos), e as condenações, informando ainda que a freqüência de
autos-de-fé era de dois em dois anos, ou de três em três
151
.
No trecho abaixo pode-se perceber uma grande sensibilidade comparativa por
parte do médico francês:
[...] cumpre advertir que os gentios observam no paganismo um
grande número de superstições ridículas; para saber, por exemplo, o
êxito dum negócio ou duma doença, para conhecer o ladrão de alguma
coisa que tenha desaparecido e por outros motivos semelhantes. Ora
estes gentios não podem tão depressa olvidar os seus hábitos antigos,
sem que ainda depois de batizados os pratiquem muitas vezes; o que
será menos estranhável se se souber que na França, onde a religião
[cristã] foi estabelecida há tantos séculos, ainda se encontram
indivíduos imbuídos dessas idéias insensatas, que acreditam e
praticam semelhantes impertinentes cerimônias que o decurso de tão
longo tempo ainda não foi capaz de desarraigar. Demais, os gentios
novos convertidos passaram a melhor parte da sua vida no paganismo,
e os que vivem na Índia portuguesa são escravos ou servidores, que no
intuito de melhorarem de condição em casa dos seus amos, mudam de
religião; por tais culpas, esses homens ignorantes e rudes mereceriam,
na minha opinião, antes a pena de açoites que a do fogo
152
.
149
Idem. p. 79-81.
150
Idem. p. 82-83.
151
De acordo com as listas de autos-de-fé apresentadas por Fortunato de Almeida. Op. cit. v. IV. p. 315-
318 e José Lourenço D. de Mendonça e Antonio Joaquim Moreira. Op. cit. p. 270-279, esta informação
não parece passível de confirmação.
152
Charles Dellon. Op. cit. p. 97.
Dellon fez, portanto, uma crítica à prática do Tribunal do Santo Ofício de Goa,
relativa à prisão e condenação também de gentios e muçulmanos não convertidos ao
cristianismo, vendo nisso um entrave à cristianização dos povos, pois incutia o profundo
medo de morrer na fogueira, o que os afastava da fé católica. Mas ao enfatizar o uso da
pena máxima para os casos de gentilismo, não confirma o que se pode constatar nas
listas de autos-de-fé do século XVII, que indicam uma esmagadora maioria de sentenças
leves para esse tipo de crime, apesar dos processos serem numerosos
153
.
Para além dos relatos e críticas genéricas, a Narração da Inquisição de Goa
também apresenta uma detalhada descrição de todas as etapas dos procedimentos
inquisitoriais pelas quais passou o cirurgião francês, desde de suas audiências com o
primeiro inquisidor Francisco Delgado de Matos até os momentos de grande
desesperança e aflição pelos quais passou nos dois anos em que esteve preso. A
narrativa aqui adquire tons ainda mais dramáticos, mas pode-se perceber também uma
postura crítica por parte de Dellon
154
.
Nas primeiras audiências foi instado a dizer, como de praxe, se sabia das causas
de sua prisão. Relatou as questões debatidas em Damão, mas se esqueceu das invectivas
que fizera contra os inquisidores, só declarando essa culpa na terceira audiência com o
inquisidor. Depois de certo tempo, perdeu as esperanças de sair daquela situação e,
usando o seu conhecimento médico, lançou mão de um estratagema para tirar a própria
vida. Dissimulou doença e um médico gentio começou a tratá-lo com sangrias. Quando
este saía, Dellon desfazia os serviços de seu colega de profissão e vertia ainda mais
sangue. Muito fraco, quando foi considerado à beira da morte, deram-lhe um confessor
a quem contou o que fizera e, exortado por este, Dellon permitiu que o inquisidor fosse
informado. Passaram, então, a cuidar dele mais detidamente, dando-lhe um
companheiro de cela por algum tempo, mas ainda assim, quando voltou a estar só,
atentou contra a própria vida outras vezes. Depois acalmou-se.
Mesmo diante de todo esse desespero, na quarta audiência, onde o promotor leu
o libelo acusatório, Dellon demonstrou, ou pelo menos diz ter demonstrado, que em
termos de boa formação cristã ele estava em melhor posição do que o próprio primeiro
inquisidor. Diante dele justificou suas opiniões sobre o batismo e a adoração de imagens
citando o evangelho de João, capítulo 3, versículo 5 e a sessão 25 do Concílio de
153
José Miguel Ribeiro Lume. Op. cit. v. 1. p. CLXVIII e BNL. Secção de Reservados. Coleção de listas
impressas e manuscritas dos autos de fé públicos e particulares. Códice 866. Microfilme F. 5173.
154
Charles Dellon. Op. cit. p. 110.
Trento. Segundo Dellon, essa atitude deixou o inquisidor muito impressionado, a ponto
de mandar vir o Novo Testamento e o texto do Concílio de Trento para verificar o que o
réu dizia, demonstrando o inquisidor que desconhecia ou não se lembrava de suas
citações; desse episódio, faz o seguinte comentário:
na verdade custa a compreender este grau de ignorância em pessoas
que se metem a julgar os outros em matéria de fé, e confesso que eu
dificilmente acreditaria nestes fatos, não obstante havê-los
presenciado e tê-los bem presentes
155
.
Parece claro, porém, que Dellon, nesse comentário e na descrição de seu
“debate” com o Inquisidor, assumindo uma bravata a posteriori, pois escrevia quando já
se encontrava a salvo dos rigores da Inquisição goesa.
Outro momento muito rico da Narração da Inquisição de Goa é o da descrição
do auto-de-fé de 12 de janeiro de 1676, no qual saiu Dellon. Tanto os aspectos formais
quanto os psicológicos podem aí ser encontrados. Percebem-se o medo, a insegurança, a
ignorância de qual seria seu próprio destino, a confusão promovida pela alteração da
rotina do dia a dia do preso, a necessidade de entender o que estava acontecendo a partir
de pequenas pistas deixadas pelas roupas que seriam usadas, pelas recomendações que
eram feitas e pelo lugar em que cada um se encontrava, como pode ser visto no seguinte
trecho:
como ignorava as formalidades do Santo Ofício, apanhei grande susto
que eu fosse vítima condenada à fogueira, por maior que fosse o
desejo que antes houvesse tido de morrer, mas refletindo no meu
vestuário nada tinha distinguindo-me dos outros, e não sendo crível
que devessem morrer tantos quantos estavam vestidos como eu, fiquei
um tanto sossegado. Todos que estávamos rente à parede deste
corredor tivemos uma tocha de cera amarela, trouxeram depois
pacotes de hábitos da feição de dalmáticas ou grandes escapulários de
pano amarelo com cruzes de Santo André, pintadas de vermelho por
diante e por detrás. [...] Estes grandes escapulários com estas cruzes
de Santo André chamam-se sambenitos. Os que se têm por convictos,
e persistem em negar os fatos de que são acusados, ou que são
relapsos, levam outra espécie de escapulário, que tem o nome de
samarra, cujo fundo é pardo. Nele está representado ao natural, por
diante e por detrás, o retrato do paciente posto sobre tições abrasados
em chamas, que se elevam, e todo cheio de demônios, e por baixo
155
Charles Dellon. Op. cit. p. 114.
deste retrato estão escritos seus nomes e seus crimes. Mas os que se
acusam, depois de pronunciada a sentença e antes da sua saída, e que
não são relapsos, levam sobre as samarras chamas viradas por baixo, o
que se chama fogo revolto. [...] Depois de repartidos os sambenitos,
vieram cinco barretes de cartão pontiagudos, que têm o feitio de um
pão de açúcar, cobertos todos de pinturas de demônios e chamas com
um letreiro em roda que dizia: feiticeiro. Estes barretes têm o nome de
carochas, e puseram-nos nas cabeças de outras tantas pessoas,
acusadas de magia [...]
156
.
Daí em diante Dellon descreve o desenrolar do auto-de-fé desde a designação
dos padrinhos que acompanhavam cada preso (o seu era o general da armada das
Índias), a ordenação da procissão atrás do estandarte da inquisição (o qual descreve com
detalhes), o caminhar nas ruas de Goa (andavam descalços por mais de uma hora em um
calçamento de seixos cortantes que fizeram seus pés sangrarem), e a chegada à igreja de
S. Francisco, que havia sido preparada para o evento. Já instalado em seu lugar dentro
da igreja, reparou que por último estavam os condenados que carregavam as carochas, e
diante deles havia um crucifixo voltado para eles, mas de costas para dois outros réus
vivos e quatro estátuas de tamanho natural. Explicou, então, que:
a face do crucifixo voltada para aqueles que o precedem denota
misericórdia que se usou com eles, livrando-os da morte, embora
justamente merecida; e o mesmo crucifixo voltando as costas para
aqueles que o seguem, significa que estes desgraçados não têm mais
graça a esperar. É assim tudo misterioso no Santo Ofício!
157
Dellon conta também que o inquisidor sentou-se num trono do lado direito do
altar, enquanto o vice-rei Luís de Mendonça Furtado de Albuquerque e a corte
colocaram-se do à esquerda diz que houve o sermão e a leitura dos processos de todos
os culpados, e no meio da galeria, com uma tocha acesa na mão, ouviu sua sentença. Foi
acusado de:
1º, o ter sustentado a invalidade do batismo flaminis; 2º, o haver dito
que se não deviam adorar as imagens e ter blasfemado contra a dum
crucifixo, dizendo ser um pedaço de marfim; e 3º, o ter falado com
desprezo da Inquisição e dos seus ministros; e sobretudo pela má
156
Idem. p. 122-123.
157
Idem. p. 133.
intenção que tivera quando todas estas coisas proferi, por cujos crimes
era declarado excomungado, sendo para reparação deles confiscados
os meus bens para o fisco e eu desterrado da Índia e condenado a
servir por cinco anos nas galés de Portugal, cumprindo, além disto, as
outras penitências que em particular me fossem impostas pelos
inquisidores
158
.
Depois de lidas todas as sentenças de todos que seriam reconciliados, o
inquisidor, acompanhado de seus auxiliares, ia até onde estavam os réus e batia neles
com umas varinhas, simbologia para a absolvição da excomunhão. Depois disso,
vinham os réus que condenados e relaxados ao braço secular, seis ao todo, dois vivos e
quatro em estátua, acusados de magia (4) e de judaísmo (2). Dellon concluiu:
assim terminou para nós a célebre cerimônia do auto-de-fé, e enquanto
esses pobres miseráveis foram conduzidos à margem do rio onde já se
haviam reunido o vice-rei e sua corte, e onde estavam já preparadas do
dia antecedente as fogueiras em que haviam de ser imolados, fomos
nós outros reconduzidos aos cárceres da Inquisição pelos nossos
padrinhos sem observar no regresso ordem alguma
159
.
Mesmo sem ter presenciado a execução na fogueira, o médico francês
descreveu-a e ao procedimento posterior de colocar os retratos dos executados com seus
nomes e a descrição de seus crimes na igreja
160
. Os elementos presentes na descrição de
sua experiência demonstram que Dellon era um homem bem informado e capaz de
observar diversas peculiaridades da Inquisição de Goa. Trata-se de um relato rico em
pistas para conhecer-se a dinâmica do santo tribunal no Oriente, fonte que se torna ainda
mais importante se colocada em confronto com os poucos registros que sobreviveram
sobre o Santo Ofício goês, uma vez que não é possível trabalhar-se com os processos
como ocorre com os estudos sobre os tribunais que funcionaram no reino de Portugal.
Por outro lado, a Narração da Inquisição de Goa, por ter sido um sucesso
editorial, a julgar por suas várias edições, tornou-se referência para os debates de
tempos posteriores sobre o Santo Ofício, servindo de base para muitas impressões que
se propagaram, inclusive do ponto de vista da difusão da emblemática inquistorial,
graças às gravuras inseridas no livro desde a segunda edição, especialmente a
158
Idem. p. 136.
159
Idem. p. 139.
160
Idem. p. 140-141.
representação do estandarte da Inquisição de Goa: a imagem de São Pedro Mártir com
um ramo de oliveira na mão esquerda e uma espada na mão direita, tendo aos seus pés
uma esfera imperial com a cruz e um cão que abocanha uma vela acesa, com uma divisa
Justitia et Misericordia.
Dessa forma, o livro de Charles Dellon pode ser visto como mais um dos
responsáveis pela construção da imagem da Inquisição de Goa, servindo de alimento
para a consolidação da “lenda negra” que marcou esse tribunal.
6. O Santo Ofício de Goa na finisterra da fé
Se inicialmente houve uma certa tolerância com as práticas religiosas dos hindus
em Goa, gradativamente essa postura foi sendo modificada e a ação da Inquisição
endureceu tanto em relação aos recém-convertidos, como até mesmo com os gentios
que resistiam à conversão e praticavam seus antigos ritos
161
. É possível identificar um
núcleo de procedimentos do Tribunal do Santo Ofício contra as práticas cotidianas das
comunidades indianas de Goa e adjacências. Dentre eles destacam-se a repressão aos
ritos e cerimônias hindus, a conversão dos órfãos dos indianos e a passagem de cristãos
recentemente convertidos às terras de mouros e gentios.
Francisco Bethencourt destaca “a capacidade de adaptação dos tribunais da
Inquisição a contextos religiosos, culturais, sociais e políticos bastante diferentes”
162
, o
que significa dizer que o Tribunal do Santo Ofício de Goa estava diante de uma
realidade religiosa, social, cultural e política muito diferente da portuguesa, mas
procurou logo ajustar-se aos problemas locais, mesmo não deixando completamente de
lado a questão do judaísmo, que aliás também fazia parte desse universo, com matizes
ainda mais complicados devido à existência dos judeus brancos e os judeus pretos da
região de Cochim. Deve-se entender essa “adaptação” não como tolerância, mas sim
como um ajuste na perseguição a modalidades diferentes de crimes. Bethencourt
ressalta que “na Índia, o modelo de repressão dirigida contra os hindus convertidos
‘desviantes’ foi de tal maneira sistemático (o número total de processos é o mais
importante de todos os tribunais) que pôs em causa a política colonial das autoridades
civis”
163
. Esse quadro refere-se principalmente à fuga dos brâmanes da cidade de Goa
para as terras fora dos domínios portugueses, o que causou problemas econômicos para
o Estado da Índia.
Em relação à realidade indiana complicada e repleta de conflitos experimentada
pelos juízes do santo tribunal, houve a necessidade de fazer-se uma série de consultas ao
Conselho Geral do Santo Ofício, gerando discussões entre este e os inquisidores de Goa.
161
Ver Anne Lima. Justice et miséricordie. In: Michel Chandeigne (org). Goa 1510-1685: l’Inde
portugaise, apostolique et commerciale. Paris: Autrement, 1996. p. 143.
162
Francisco Bethencourt. História das Inquisições... p. 323.
163
Idem. p. 323.
Assim, quanto à repressão dos ritos e cerimônias hindus, em 1603 os
inquisidores tinham algumas orientações gerais:
os cristãos da terra se não achem presentes aos conventículos e
pregações dos gentios e dos seus brâmanes, proibindo-lhe com as
penas e censuras que lhes parecer e contra os gentios, não procederão
senão em caso que lhes conste que persuadem ou quer persuadir a sua
seita aos ditos cristãos e tratando os perverter e fazer idolatrar
164
.
A idéia era evitar que houvesse contatos entre os recentemente convertidos e as
práticas ritualísticas da tradição hindu. Interessante contraponto a esta restrição pode ser
registrado na obrigatoriedade que os hindus tinham de assistir aos serviços religiosos
dos cristãos aos domingos em Goa. A estratégia, nesse último caso, era fazer com que
paulatinamente as populações locais se familiarizassem com a crença católica e, em
última instância, obter conversões.
No entanto, se os cristãos da terra insistissem na convivência com os ritos
gentílicos, podiam ser presos. Depois de capturados, o Conselho Geral, em 1604,
recomendava que “os gentios batizados que idolatraram e negam atenção devem ser
sobre isso mais examinados, e persistindo em a negar, o promotor os acuse e forme-se
seu processo na formado estilo e regimento e no sentenciar segundo disposição do
direito [...]”
165
.
Outro ponto muito discutido entre os inquisidores era a questão dos órfãos
hindus. A ação das autoridades portuguesas em relação a esses é comparável às
modalidades usadas ao tempo da conversão em massa de judeus, ocorridas no reino de
Portugal. A ordem de captura dos hindus que por ventura ficavam órfãos tinha sido
lavrada pelo:
Rei D. Sebastião por seu Alvará em corroboração de outro do senhor
Rei D. João o 3
o
que os filhos dos gentios que ficassem órfãos fossem
tomados e levados nos colégios da Companhia, onde os instruíssem
nos mistérios da nossa Santa Fé, e os batizassem, declarando que se
164
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Ordens para a Inquisição de Goa (1576-1624). Liv. 298. fl.
223. É importante destacar que muitas das determinações do Tribunal do Oriente reforçava deliberações
dos reis, como por exemplo o caso da ordem datada de 1581 de Felipe II proibindo a presença de pagodes
e cerimônias gentílicas e de mouros nas terras pertencentes ao reino. BNRJ. Inquisição de Goa. 25, 1, 3.
nº 79.
165
Ibidem. fl. 249.
teria por órfão aquele que não tivesse pai, nem mãe, nem outro algum
ascendente [...]
166
.
Para protegerem seus parentes, muitos hindus acabavam enviando esses jovens
para a terra dos mouros, e a partir daí passavam a ser objeto da ação do Santo Ofício,
pois criavam um obstáculo à propagação da fé católica, caso que, mesmo perpetrado por
não cristãos, era passível de punição pelo Santo Tribunal da fé. Mas essa questão foi
muito polêmica, e resultou em graves conflitos com autoridades civis de Goa.
Uma das consultas mais recorrentes dos inquisidores de Goa referia-se à questão
da fuga dos recém-convertidos e mesmo de portugueses para as terras de mouros e de
gentios. Em relação a esse problema, os inquisidores gerais concederam sucessivamente
até o fim do século XVI uma série de Editos da Graça para visitações que se fizessem
nos domínios orientais (que variavam de 30 dias, o que era regulamentar, chegando até
mesmo a 6 meses, com a alegada justificativa da vastidão do Estado da Índia). Assim,
em uma carta do Inquisidor geral de 1585 lê-se: “fui informado [...] que eram passados
aos mouros e gentios alguns cristãos assim naturais da terra como portugueses e que
andavam apóstatas e faziam suas cerimônias, pelo que me pareceu resolver [...] o edito
da graça que se concede nas visitações deste Reino”
167
.
Para melhor ilustrar esse problema, conseguiu-se localizar o traslado de um
processo de Goa enviado para Lisboa. Trata-se do processo do ano de 1587 contra
Francisco Toscano, mestiço, natural e morador de Goa, filho de Mateus Toscano e Ana
Vella [?], de 21 anos
168
. Foi denunciado em Ormuz por um certo Gaspar Carvalho que
ouvira dizer que muitas pessoas tinham visto Toscano “ser circuncidado e depois de
estar dias no dito Cananor quebrou um tronco donde estava preso e levou consigo dois
mouros de resgate que estavam presos no dito tempo”
169
. Outro a denunciar Toscano foi
Álvaro Rodrigues:
disse ele testemunha que o dito Francisco Toscano veio de Cunhale e
logo disseram muitas pessoas das que vieram do cativeiro que ele se
fizera mouro e fora fanado, e assim ouviu dizer muitas pessoas, que
166
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Carta do Vice-rei Antônio de Melo e Castro ao Conselho
Geral do Santo Ofício Goa, 31 de janeiro de 1664. Maço 36. Doc. 4.
167
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Ordens para a Inquisição de Goa (1576-1624). Liv. 298. fl.
96.
168
ANTT. Inquisição de Goa. Proc. 8450. (1587)
169
Ibidem. fl. 2 v.
andando nadando lhe viram o membro fanado e sabe que estando o
dito Francisco Toscano preso por outro caso em Cananor quebrou o
tronco em que estava e levou consigo dois mouros de Resgate e fugiu
outra vez para os mouros e ouviu dizer que de lá passara a Meca e não
sabe como veio a esta cidade [...]
170
.
Logo na primeira sessão com o inquisidor Rui Sodrinho, Francisco Toscano
confessou sua culpa, mas apresentou um atenuante, pois quando viajava de Manar ao
Ceilão:
foi cativo no caminho pelos malabares que o levaram dali ao porto de
Colombo [...] e em chegando ao dito porto perante ele réu mataram
outro português que também tinha sido capturado em outra
embarcação por dizerem que era enfermo de mal contagioso, dizendo-
lhe a ele réu que se fizesse mouro ou senão que lhe fariam outro tanto
a ele réu então com medo que o matassem e por ser de pouca idade
respondeu que ser mouro [...]
171
.
Uma das alegações geralmente aceitas para inocentar os réus de tais práticas era
a circunstância de estar o acusado sob risco de vida ao cometer seus erros de fé. No
entanto, para o inquisidor Rui Sodrinho, não era o caso deste acusado, que acabou sendo
condenado a três anos nas galés do reino.
Outro processo do ano de 1599 enviado para Lisboa foi o de Antônio da
Trindade, subdiácono, padre professo da ordem de São Francisco (da qual foi expulso),
natural de Alenquer, Portugal, de idade de cerca de vinte e quatro anos. O padre foi
denunciado por Antônio Matoso, cristão velho, português, morador em Cananor, de
cinqüenta e seis anos. Matoso informou que “estando ele por embaixador nas terras do
Samorim” ficou sabendo da existência de um jovem português que viera fugido de
Cunhale, do qual diziam ser frade de São Francisco. Procurou conhecê-lo e identificou
nele uma série de comportamentos mouriscos
172
. Depois disso o jovem fez confissão de
seus erros ao arcebispo de Cranganor:
disse que vivendo no mosteiro de Cochim por leviandade de ânimo e
tentação do Demônio se aconselhara com outro religioso por nome
170
Ibidem. fl. 3.
171
Ibidem. fl. 4.
172
ANTT. Inquisição de Goa. Proc. 5330. (1599). fls 7-13.
frei Francisco de Santa Maria de fugirem com tenção de andar para da
onde até se ir para Portugal por via das Filipinas [...]. E fugindo ambos
[...] acabaram indo para Cunhale e ainda que não determinadamente
de se fazer mouro, contudo levava tenção de deixar fazer de si tudo o
que quisessem
173
.
Segundo Trindade, o Marcá de Cunhale perguntou em malabar se queriam se
tornar mouros; o outro concordou e levou-o a fazer o mesmo. Já preso em Goa, na
primeira sessão, no dia quatro de novembro de 1599, complementou o relato referindo-
se à primeira fuga três anos antes, motivada porque “se afeiçoou a certa mulher, se
vestiu de secular e foi a casa da moça, onde esteve em pecado. Como perdeu a hora e
não podia mais voltar ao Convento, se mandou pela barra a fora”
174
. Chegou a
Vicholim, onde acabou sendo preso por ordem do vice-rei, permanecendo no convento
em Cochim, de onde fugiu com Francisco de Santa Maria, na véspera do Natal.
Na sentença há a afirmação de que Trindade aprendera orações de mouro e que
rezava seis vezes por dia, sendo sentenciado com abjuração de veemente, deposto de
suas ordens, tendo que ficar recluso por três anos em Lisboa, onde deveria fazer
penitência de grave delito. Ao fim, há uma recomendação de que fosse despachado de
forma discreta para o reino, obedecendo à determinação do Conselho Geral do Santo
Ofício, o que aconteceu em 16 de agosto de 1600
175
.
Esses dois processos são bons exemplos da facilidade com que os homens e
mulheres podiam circular entre os mundos em contato na realidade de Goa, estimulando
uma série de medidas de repressão do Tribunal.
Por outro lado, não se deve supor que outras questões não fossem tratadas por
esse Tribunal. Judaizantes, sodomitas
176
, bígamos e feiticeiros estavam sempre muito
presentes nas condenações da Inquisição de Goa, para além das condenações que
173
Ibidem. fl. 15.
174
Ibidem. fl. 8. Marcá é uma dignidade entre os pescadores e os maometanos do Malabar, significa
chefe, comandante. Ver Sebastião Rodolfo Dalgado. Glossário luso-asiático. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1919. v. 2, p. 38.
175
ANTT. Inquisição de Goa. Proc. 5330. (1599). fl.11.
176
Foi possível localizar um processo de caso de sodomia do padre João da Costa, português, natural de
Lisboa, da província de Madre Deus dos capuchos, de 44 anos de idade. O padre fez em 1666 uma
confissão à mesa do Tribunal, onde relatou que tivera intercurso sexual com seis meninos entre os 10 e 13
anos. Em 1670 foi preso após uma série de denúncias feitas por pais de meninos ou por eles mesmos ao
tribunal relatando novos atos e novas tentativas perpetradas pelo religioso. João da Costa confessou tudo
e foi relaxado à justiça secular, mas com a ressalva de ser enviado ao Conselho Geral do Santo Ofício
(obedecendo o critério de não causar escândalo no Oriente) e só em Lisboa a sentença foi completada:
“ele está convicto no crime nefando de sodomia contra naturam, e como tal, convicto, confesso, devasso,
relapso, escandaloso e incorrigível” é condenado em 1672. ANTT. Inquisição de Goa. Proc. 12.197.
envolviam as práticas de gentilismo, apostasias e fugas para a terra dos mouros. Mas em
termos de quantidades de consultas, de dúvidas e debates suscitados entre o Conselho
Geral e os inquisidores de Goa, as questões aqui destacadas eram as mais freqüentes no
funcionamento cotidiano do tribunal inquisitorial do Estado da Índia.
CAPÍTULO IV
Goa: cidadela cristã no Oriente
“Alexandre antigamente
desatou com uma espada
um nó com que estava atada
a conquista do Oriente
A nossa ainda é mais valente
pois vemos que desta vez
desatou, cortou, desfez
não do Bramanismo um só
como o outro Alexandre um nó
mais nós três nós, três”
In: João da Cunha Jaques. Espada de
David contra o Golias do Bramanismo
Péssimo inimigo de Nosso Senhor
Jesus Cristo, verdadeiro Deus e
verdadeiro Homem. (século XVII)
216
1. O estado da Índia no século XVII
Ao longo do século XVI, Goa a capital do Estado da Índia, seu centro
administrativo, econômico, militar, político e religioso consolidou sua imagem de
pólo da cristianização da Ásia e da África oriental, chegando a ser definida como a
“pequena Roma do Oriente”. De fato, como já foi visto nos capítulos anteriores, era ali
que se concentravam o arcebispado, as bases das principais ordens religiosas, um grande
número de clérigos seculares, igrejas, confrarias e o Tribunal do Santo Ofício. Além
disso, a cidade assistiu a instalação de cinco concílios provinciais (1567, 1575, 1585,
1592 e 1606), onde foram discutidas diversas questões relativas à conversão dos
gentios. Portanto, sua identificação como sede da cristandade no Oriente não é difícil de
ser aceita
1
.
Em contrapartida, é verdade que também persistiam traços de orientalização, ou
de indianização, como define George Davison Winius, resultado dos contatos
constantes entre as culturas portuguesa e hindu. Para esse autor, “o império da Ásia
Portuguesa era literalmente meio indiano, isto é, mestiço”
2
. Um bom exemplo é a
difusão do uso do palanquim (espécie de liteira usada na Índia) pelos membros da corte
e pelo próprio vice-rei até finais do século XVI, quando ocorreu uma limitação de seu
uso, como sinal de distinção social.
Mesmo assim, sua caracterização como uma cidade cristã era muito visível e
predominante, o que foi notado por diversos viajantes, especialmente pelo italiano
1
O processo de ocidentalização cultural de Goa intensifica-se a partir da chegada dos jesuítas segundo
Catarina Madeira Santos. «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da Índia
(1505-1570). Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
p. 224.
2
George Davison Winius A lenda negra da Índia Portuguesa: Diogo do Couto, os seus contemporâneos e
o Soldado Prático. Contributo para o estudo da corrupção política nos impérios do início da Europa
moderna. Trad. Ana Barradas. Lisboa: Edições Antígona, 1994. p. 185.
217
Pietro Della Valle
3
,que registrou a seguinte impressão sobre o cotidiano religioso da
capital do Estado da Índia em uma de suas cartas:
creio que não há país algum no mundo onde se façam tantas
procissões no ano, como em Goa. Isto é motivado pelo número de
ordens religiosas, muito maior do que a cidade carece; essas ordens
gozam também de grande autoridade e são muito ricas; o povo
naturalmente ocioso e ávido de espetáculos, desprezando outros
cuidados de mais peso e certamente mais proveitosos, aplicam-se
prontamente a semelhantes coisas. Embora isto seja bom sob o ponto
de vista religioso, contudo parece improfícuo numa cidade que confina
com inimigos, e é metrópole de um reino situado entre os bárbaros,
que está sempre em guerras, e onde se não deve pensar mais que em
armas e esquadras; um tão grande número de eclesiásticos e religiosos
é incômodo ao Estado e nocivo à milícia
4
.
Della Valle demonstra nesse trecho não só ter entendido o peso do aparato
religioso que existia em Goa, como também a contradição dele decorrente, pois no
contexto do início do século XVII existiam sérias ameaças à integridade física dos
domínios lusitanos na Ásia, nomeadamente da crescente presença holandesa e inglesa
no Oriente, associada ao processo de fortalecimento dos reinos hindus e muçulmanos da
região. Além da questão da defesa havia ainda significativos problemas econômicos
enfrentados pelos administradores do Estado da Índia. Todas essas complicações
ampliaram as dificuldades enfrentadas na ação de cristianização desenvolvida em Goa
no período seiscentista.
3
José Antônio Ismael Gracias. A Índia em 1623 e 1624: excertos das memórias do viajante italiano Pietro
Della Valle. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1915. Nesse trabalho há uma biografia de Pietro Della Valle
e o autor faz uma seleção de trechos das oito cartas que o italiano escreveu da Índia para um amigo em
Roma. Há ainda uma outra publicação de Edward Grey (editor). The travels of Pietro Della Valle in
India: from the old english translation of 1664. New Delhi: Asian Educational Services, 1991. 2 v. que
possui a íntegra dessas cartas, mas todas em inglês. Os originais das cartas perderam-se. Della Valle
possui uma das histórias mais fantásticas que se pode ler sobre os homens aventureiros do século XVII e
merece ser aqui registrada. Nasceu em Roma, em 1586 e pertencia a uma antiga e nobre família romana.
Teve um desapontamento amoroso e passou a chamar-se o “Peregrino”, seguindo para o Oriente, por
sugestão de um amigo. Foi de Nápoles a Constantinopla em 1614. Depois foi para a Ásia Menor, Egito,
Palestina, vale do Eufrates e em 1616 casou-se em Bagdá com uma cristã armênia. O casamento não o
impediu de continuar as viagens, agora acompanhado pela esposa. Foram para a Pérsia e por seis anos
viajaram pelo país. No meio da jornada uma mocinha georgiana foi adotada por sua esposa e também
acompanhava-os. Próximos a Ormuz a mulher faleceu em 1622. Embalsamou-a e carregou-a para a Índia,
chegando a Goa. Permaneceu nesta cidade por um ano e meio. Em 1624 voltou para a Europa, mas só
chegou a Roma em 1626. Della Valle então colocou sua esposa embalsamada no mausoléu da família e
casou-se com a jovem georgiana com quem teve quatorze filhos. Morreu em 1652. Era músico e inventou
dois instrumentos: um tipo de cimbalo e de violino.
4
José Antônio Ismael Gracias. Op. cit. p. 152-153.
218
No entanto, não foi apenas um viajante como Della Valle que notou problemas
no Ásia portuguesa. Já desde o último quartel do século XVI alguns portugueses faziam
duras apreciações ao que definiam como os desmandos dos funcionários da Coroa
portuguesa que atuavam no Oriente. Diogo do Couto desponta como um dos melhores
exemplos de crítica a esse estado de coisas, assim como Francisco Rodrigues Silveira. O
primeiro é autor do livro O soldado prático, e o segundo, do Reformação da Milícia e
Governo do Estado da Índia Oriental; os dois viveram no Oriente e serviram como
soldados na região, e é a partir dessa experiência que escreveram seus trabalhos
5
. A obra
de Diogo do Couto é anterior, redigida ainda no tempo de D. Sebastião. Já Francisco
Rodrigues Silveira escreveu nas primeiras décadas do século XVII, mas sua experiência
na Índia durou de 1586 a 1598.
Maria Leonor García da Cruz enfatiza que as críticas feitas por esses autores
“não transmitem necessariamente um espírito pessimista”, mas constituíam julgamentos
incisivos da administração portuguesa na Índia
6
. A autora destaca ainda que Couto
atribuiu as responsabilidades pelos desmandos no Oriente ao monarca, enquanto que
Silveira não é tão explícito quanto a isso, mesmo assim não deixou de denunciar os
abusos e erros que ocorriam na Índia
7
. Em uma passagem apontou os mesmos
problemas que Della Valle registrou de forma mais ácida:
pois tantos clérigos, tantos frades, tantos mosteiros e conventos, tantas
casas de prazer, quintas e jardins para recreação de religiosos, em
partes tão pouco firmes e seguras, de que servem? Quanto mais
acertado fora converterem-se algumas delas em armazéns de armas.
[...] Se querem os portugueses sustentar o que têm na Índia e adquirir
de novo alguma coisa, de nada devem fazer tanto cabedal como do que
hoje não fazem algum, que é da ordem e disciplina militar. Esta é só a
com que poderão assegurar seu domínio: e sem ela tenham por
averiguado que em breve se lhes resolverá tudo em fumo ou vento
8
.
5
Está sendo utilizada aqui a edição de Diogo do Couto. O soldado prático. Lisboa: Sá da Costa, 1980. Já
para o texto de Francisco Rodrigues Silveira utiliza-se a antologia organizada por Maria Leonor García da
Cruz. Os «Fumos da Índia»: uma leitura crítica da expansão portuguesa. Com uma antologia de textos
dos séculos XVI-XIX e uma cronologia da expansão portuguesa e do império ultramarino (c. 1336-1899).
Lisboa: Cosmos, 1998. p. 261-270. As biografias dos autores aqui apresentadas também estão baseadas
nessa autora, p. 409-410.
6
Idem. p. 29
7
Idem. p.52-53.
8
Francisco Rodrigues Silveira. Reformação da Milícia e Governo do Estado da Índia Oriental. In: Maria
Leonor García da Cruz. Op. cit. p. 265.
219
Outro historiador, George Davison Winius, ao analisar a obra O soldado prático
de Diogo do Couto e outros registros de seus contemporâneos, tal como o de Francisco
Rodrigues Silveira, recomenda a separação das afirmações críticas desses autores do
conceito de decadência “que se formou muito mais tarde, em volta das descrições neles
contidas” por parte da historiografia portuguesa
9
. Destaca que Couto e Silveira eram
críticos que discutiam as bases morais das ações de muitos funcionários da Coroa
portuguesa e que muitas das suas observações serviram de referência para uma posterior
reflexão dos historiadores sobre a decadência do Estado da Índia.
Um certo pessimismo da interpretação historiográfica portuguesa do século XIX
reforçou a tese da decadência. Para tanto contribuíram nomes do porte de Alexandre
Herculano, Antero de Quental e Oliveira Martins
10
. No século XX as reflexões sobre a
questão da decadência permaneceram em pauta, e há muita discussão sobre o tema.
Antônio Sérgio responsabilizou a “ferocidade” da Inquisição oriental e a
presença dos jesuítas em Portugal como as causas da “ruína econômica” e da destruição
da “cultura mental” portuguesa. Vê também outra razão para a decadência: a união das
coroas ibéricas, que “fez cair sobre nós a Holanda e a Inglaterra”
11
. Dessa forma, as
posições portuguesas do além-mar foram atacadas e os lucros oriundos das atividades
comerciais prejudicados pelas disputas entre as nações européias.
De maneira mais sofisticada, o historiador Jaime Cortesão identificou o início do
processo de decadência do Estado da Índia no ano de 1557, ano da conquista de Macau,
ou seja, da expansão territorial máxima dos portugueses no Oriente. A partir daí,
segundo Cortesão, a contradição fundamental do plano de Afonso de Albuquerque “a
desproporção entre a sua grandeza e as minguadas possibilidades dos portugueses”
12
seria o alimento para a desestruturação do Império português no Oriente. Com isso, o
historiador português colocou-se em oposição a uma tendência historiográfica que
responsabilizava exclusivamente a administração do período da União Ibérica pelo
declínio do Estado da Índia:
9
George Davison Winius. Op. cit. p. 179.
10
No presente estudo concentraremos a discussão da noção de decadência a alguns autores do século XX.
Para aprofundamento da discussão para o século XIX ver o estudo de Maria Leonor García da Cruz. Op.
cit. p. 11-93.
11
Antônio Sérgio. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1988. p. 99 e 106.
12
Jaime Cortesão. História da expansão portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993. p.
182.
220
entre a história do Estado da Índia, desde 1557 a 1580, e a do período
que vai deste último ano a 1640, ou seja, durante a união de Portugal a
Castela, não há contraste profundo ou variação brusca que permita
sepa-los. Bem ao contrário. Um processo de decadência, que vinha
já do reinado de D. João III, prossegue através destes dois períodos a
sua marcha aluidora até destruir os alicerces do nosso império no
Oriente, que desaba subitamente, teatralmente, entre os anos de 1637 e
1641
13
.
Ao afirmar a decadência como processo longo, Cortesão não isenta de
responsabilidade a administração filipina, mas ajusta melhor a análise, ao reconhecer
que a política externa que lançou Portugal no cenário das disputas territoriais das
monarquias européias se revelou um desastre para o equilíbrio do domínio português no
Oriente. Associada a esse contexto de pressões de origem européia, Cortesão agrega a
questão dos conflitos com os reinos locais da Índia, nomeadamente a expansão do
Império Mogol de finais do século XVI, que ameaçava diretamente a própria capital do
Estado da Índia, além dos persas, que tomaram Ormuz em 1622, com o apoio dos
ingleses
14
. Ademais, Cortesão acrescenta outros aspectos para a decadência, já
sobejamente conhecidos, a exemplo da corrupção dos funcionários da administração
lusitana e o enfraquecimento naval português.
Através de uma abordagem econômica, se João Lúcio de Azevedo concorda com
Cortesão e identifica o agravamento da crise a partir do período de governo castelhano,
não esquece, porém, de frisar as razões profundas da decadência portuguesa no Oriente.
Para isso ressalta que somente na época da conquista a Índia pagava o seu custo, uma
vez que as guerras e conquistas proporcionavam largos lucros. Quando foi “estabelecido
o domínio, a ilusão dos primeiros tempos dissipou-se, e Portugal, acorrentado à sua
obra, foi-se dessangrando de homens e cabedais em proveito dos ávidos aventureiros
que exploravam a conquista”
15
.
A. R. Disney é outro estudioso que defende a idéia da decadência do Império
português oriental. Ele considera que nas quatro primeiras décadas do século XVII
houve um claro declínio do comércio português na Ásia, com algumas exceções,
13
Idem. p. 187.
14
Antônio da Silva Rego considera o ano de 1622 como “dramático” pois além da tomada de Ormuz,
nesse mesmo ano aconteceram o ataque holandês a Macau e o “grande martírio” de Nagasaki, onde as
autoridades japonesas prenderam 55 cristãos que foram executados, 30 deles decapitados, 25 queimados.
Antônio da Silva Rego. 1622: ano dramático na História da expansão portuguesa no Oriente e Extremo-
Oriente. In: Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa, 1977. t. XVIII. p. 39.
15
João Lúcio de Azevedo. Épocas de Portugal econômico: esboços de história. Lisboa: Clássica Editora,
1988. p. 151.
221
principalmente para a rota Macau-Nagasaki. Concentrando sua análise nas variações
entre receitas e despesas, Disney afirma a crise econômica do Estado da Índia, agravada,
segundo o autor, pela corrupção dos funcionários portugueses, as crescentes despesas
com as campanhas militares e o enfraquecimento do poderio naval português
16
.
Mais recentemente, a explicação da crise do Estado da Índia foi apresentada por
Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri na obra de síntese História da Expansão
Portuguesa, até mesmo na divisão cronológica dos volumes, já que o primeiro termina
em 1570, ano que, segundo os autores, marca o início das dificuldades dos portugueses
no Oriente
17
. Complementarmente, no capítulo sobre o comércio português no século
XVII, Chaudhuri divide o desempenho econômico do Estado da Índia em três períodos:
na primeira década houve uma continuidade do sistema de comércio de carreira; nas
décadas de 1620 e 1630 detecta-se uma crescente crise e escassez financeira; somente
nas últimas décadas do século XVII houve uma recuperação, mas nunca no mesmo
nível dos períodos anteriores
18
.
No entanto, vale dizer que não há unanimidade entre os historiadores atuais
sobre a questão do declínio do Estado da Índia. João Paulo Oliveira e Costa não
considera que o último quartel do século XVI tenha sido de decadência e crise no
Oriente português. Para ele o que houve foi a perda de hegemonia, decorrente da União
Ibérica, que colocou Portugal no jogo da política européia que a Espanha praticava, o
que fragilizou o poderio lusitano nas partes orientais
19
. Contra o argumento do aumento
da importância do Brasil e do Atlântico para Portugal, o que para muitos é um indicador
da crise no Oriente, esse autor sugere uma outra interpretação, dizendo que D. João III
transformou “um império unipolar, praticamente centrado no Oriente, para um bipolar,
em que a Coroa se empenhava ao mesmo tempo nos seus domínios asiáticos e na sua
colônia americana”
20
. Sendo assim, para João Paulo Oliveira e Costa o que ocorreu no
século XVII foi uma reestruturação da presença portuguesa na Ásia, e não um processo
de decadência.
16
A. R. Disney. A decadência do Império da pimenta: o comércio português na Índia no início do século
XVII. Trad. Pedro Jordão. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 67-89.
17
Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores e Autores, 1998. v. 1. p. 9.
18
Kirti Chaudhuri. O Comércio Asiático. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dir). Op. cit. v. 2.
p. 212.
19
João Paulo Oliveira e Costa. A diáspora missionária. João Francisco Marques e Antônio Camões
Gouveia (coord). História religiosa de Portugal. Humanismos e Reformas. Lisboa: Círculo de leitores,
2000. v. 2. p. 286.
20
Idem. p. 285.
222
Outro historiador que defende esse princípio é Artur Teodoro de Matos
21
. Ao
estudar os orçamentos do Estado da Índia para os anos de 1581 e 1587-88, o autor refuta
a “tese decadentista” do Oriente português para o último quartel do século XVI.
Ressalta que não se pode deixar de distinguir dois ramos de atividades comerciais
exercidas pelos portugueses na região: o comércio regional, de cabotagem, feito no
Índico e em direção ao Extremo Oriente, e a rota entre a Índia e Portugal, atividade de
grande porte e de longa distância. Apesar dos reveses causados pelos atritos com
holandeses e ingleses e as pressões dos reinos orientais, a dinâmica e importância dessas
atividades econômicas sobreviveram. Conclui afirmando que:
será pois de abandonar a idéia de decadência do império oriental
português nos anos que imediatamente sucedem à união dos dois
reinos ibéricos e que teve em Jaime Cortesão e Lúcio de Azevedo os
seus mais ilustres defensores. Mesmo nas três primeiras décadas
seiscentistas, quando já o Oriente português acusava um real e
progressivo declínio financeiro e econômico, os carregamentos da
pimenta continuavam a chegar regularmente a Lisboa [...]. O período é
de estabilidade econômica e financeira não acusando os sintomas de
degradação que por vezes se lhe atribui
22
.
Sanjay Subrahmanyam concorda com a constatação de que as receitas do Estado
da Índia “não tenham caído de forma apreciável entre os finais do século XVI e os finais
do século XVII”, além de perceber a permanência de oscilações nos orçamentos que
indicavam dúvidas sobre sua viabilidade financeira
23
, utilizando o termo “recuo do
Império” para definir os acontecimentos na Ásia portuguesa ao longo do século XVII. O
historiador indiano mais uma vez contribui ao analisar detidamente as pressões dos
reinos orientais associadas ao conflito luso-holandês, destacando o caráter
multidimensional do tema.
Para Subrahmanyam o período mais crítico do século XVII foi o de 1610 a 1665,
especialmente a década de 1630, que afirma ter sido desastrosa para a Ásia portuguesa
em função de uma série de reveses colecionados pela “aposta de levar a guerra ao
campo inimigo”, do vice-rei D. Miguel de Noronha, conde de Linhares, cujo governo
21
Artur Teodoro de Matos. O Estado da Índia nos anos de 1581-1588: estrutura administrativa e
econômica alguns elementos para seu estudo. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1982.
22
Idem. p. 44.
23
Sanjay Subrahmanyam. O império asiático português 1500-1700: uma história política e econômica.
Lisboa: Difel, 1995. p. 267-268.
223
durou de 1629 a 1635
24
. No entanto, para o período de 1665 a 1700, o autor indiano
afirma que o Estado da Índia continuava a existir, apesar dos dramáticos problemas
enfrentados anteriormente, e cria, inclusive, uma condição de equilíbrio em relação aos
impérios holandês e inglês no Oriente, a ponto de possibilitar a expansão das Novas
Conquistas de Goa no século XVIII. Conclui dizendo:
deste modo, no último quartel do século XVII, quando o Estado da
Índia podia agora curar as suas chagas, havia diminuído
consideravelmente a sua dimensão comparado com a situação em
1600. Ainda incluía um conjunto de territórios dispersos, desde Timor,
na Insulíndia Oriental, até à África oriental, mas as suas posições na
Ásia do sul e do sueste haviam sido perdidas. Não era agora mais do
que um conjunto de nichos territoriais e de redes comerciais, estas
dominadas por mercadores geralmente ansiosos por manter o Estado à
distância
25
.
C. R. Boxer, por sua vez, apresenta uma posição intermediária nesse debate
historiográfico. Destaca a expansão holandesa no Oriente e, reconstituindo suas
conquistas em detrimento das posições portuguesas, sublinha a conquista de Tidore e
Amboíno em 1605, até a tomada de Cochim em 1663, afirmando assim que:
os holandeses haviam desalojado os portugueses da sua posição de
beneficiados com a parte de leão no comércio de transporte, nos mares
asiáticos, entre o Japão e a Arábia. [...] Os únicos locais de onde os
holandeses não conseguiram expulsar os portugueses foram Macau, na
costa sul da China e das ilhas mais afastadas de Sunda Menor (Timor,
Solor, Flores), na Indonésia
26
.
A vitória dos holandeses verificou-se, segundo o historiador inglês, graças à sua
superioridade em recursos econômicos, humanos e marítimos, favorecida pela
insalubridade de algumas posições portuguesas, especialmente a ilha de Moçambique e
Goa, o que complicava a situação em termos demográficos, devido à difusão de doenças
tropicais
27
. Sobre Goa, Boxer informa que as condições tinham piorado dramaticamente
desde o cerco que a cidade sofrera em 1570-71 e, ao longo do tempo, a insalubridade
24
Idem. p. 232-233.
25
Idem. p. 389.
26
C. R. Boxer. Império colonial português. Trad. Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70, 1977. p. 121. O
autor não se refere à permanência dos portugueses no Índico, em Goa e Diu, por exemplo.
27
Idem. p. 122.
224
aumentou progressivamente devido à natureza porosa do solo que permitiu que as águas
dos esgotos contaminassem os poços de água potável que abasteciam a população da
cidade, difundindo, assim, diversas doenças gastro-intestinais. Além disso, a existência
de águas estagnadas em fontes e tanques facilitava a proliferação de mosquitos
transmissores de malária, o que fez crescer os índices de pessoas infectadas por essa
doença. Além dessas, outras epidemias assolaram a cidade nos séculos XVI e XVII:
varíola, cólera, febres tifóides e outros tipos de febres malignas
28
.
Na sua análise, Boxer não esqueceu também de mencionar as pressões feitas
pelos inimigos orientais dos portugueses, dando especial atenção ao avanço dos Maratas
no último quartel do século XVII. O autor destacou ainda a questão da corrupção da
administração portuguesa, ponto salientado por todos os estudiosos do tema. Por fim,
Boxer aborda de maneira surpreendente a questão, pois não enfatiza o que se poderia
chamar de derrota dos portugueses, mas questiona como foi possível aos portugueses,
diante de tantas adversidades, conseguirem manter suas posições fundamentais no
Oriente, sugerindo que a resposta resida na sua tenacidade e a capacidade de
recuperação, oferecendo uma estimulante alternativa à discussão se houve decadência
do Império luso-oriental
29
. Boxer expõe bem a questão ao afirmar que:
finalmente, deve-se salientar que a «decadência» da Ásia portuguesa,
tão lamentada pelos contemporâneos ao tempo, e tão acentuada pelos
historiadores a partir de então, não foi igualmente evidente em todos
os momentos e locais e houve intervalos de relativa calma e
prosperidade. Tanto a época dourada dos conquistadores seiscentistas
como a penúria de muitos dos seus descendentes, têm a tendência para
ser exageradas retrospectivamente
30
.
Portanto, para uns, crise, decadência ou declínio; para outros, reestruturação ou
redefinição de linhas de força. Em todo caso, pode-se dizer que o século XVII assistiu a
algumas transformações na estrutura do Estado da Índia. Até mesmo a capacidade de
centralização das decisões em Goa viu-se abalada pelas pressões militares e perda de
posições estratégicas por parte dos portugueses, e também pelo aumento da importância
28
Idem. p. 138-139. O cerco a Goa de 1570-71 foi feito pelos príncipes do Malabar que se aliaram para
tentar expulsar os portugueses, atacando além de Goa, Chaul e Chale. O cerco a Goa começou em
dezembro de 1570 e durou sete meses. A insalubridade de Goa motivou a transferência da cidade para
Pangim, na foz do rio Mandovi, em 1760.
29
Idem. p. 150-151.
30
Idem. p. 153.
225
de outras regiões no Oriente, especialmente Macau. Catarina Madeira Santos afirma que
já na década de 1570 pode-se ver “a alteração das condições de governo no Estado da
Índia e a desatualização de Goa como centro de gravidade político”
31
. De todo modo, as
condições adversas do século XVII apenas consolidaram os problemas crônicos
enfrentados pela cidade. Mas apesar de todas essas vicissitudes, Goa continuou sendo
uma referência para o trabalho apostólico no Oriente, ainda que nesse aspecto uma nova
conjuntura tenha alimentado novos conflitos.
31
Catarina Madeira Santos. Op. cit. p. 24.
226
2. A Propaganda Fide versus Padroado: a intervenção de Roma
Todo o fluxo de religiosos que chegava ao Oriente por intermédio de Portugal no
século XVI e início do XVII estava submetido à lógica do padroado português que,
submetendo a Igreja ao Estado, associava estreitamente a expansão militar e comercial
portuguesa, fosse na Ásia, na África ou na América, à propagação da fé católica.
De uma maneira geral, toda a região oriental estaria sob a jurisdição do padroado
português, mas essa era uma suposição mais fictícia do que real, uma vez que o domínio
lusitano estava restrito a determinados pontos-chave das principais rotas comerciais no
Índico e no Pacífico. É verdade que a ação missionária dos jesuítas rompeu muitas
vezes esse limite geopolítico do Império português, do que não faltam inúmeros
exemplos: a missão do padre Antônio de Andrade no Tibete, entre 1624 e 1635, e
mesmo as experiências no Império Mogol, no Ceilão, no Japão e na China,
especificamente nas regiões fora dos limites das cidades e fortalezas com presença
portuguesa
32
.
Portugal não fazia restrições à nacionalidade dos clérigos que se dirigiam ao
Oriente, como prova a variedade de procedências dos jesuítas enviados à Ásia: além dos
portugueses, para ali foram espanhóis, ingleses, franceses, belgas, holandeses,
irlandeses, alemães, suíços, italianos e poloneses
33
; mas havia a obrigatoriedade de
todos, religiosos seculares ou regulares de qualquer nação, viajarem em embarcações
portuguesas, e o destino principal era quase sempre Goa
34
.
No entanto, desde fins do século XVI surgiram críticas a essa hegemonia
lusitana no Oriente proporcionada pelo padroado, tanto por parte do mundo católico,
32
Para aprofundamento dessa missão ver Hugues Didier (org). Les portugais au Tibet: les premières
relations jésuites (1624-1635). Paris: Editions Chandeigne, 1996.
33
José Wicki. Liste der Jesuiten-Indienfaher 1541-1758. In: Portugiesische Forschungen der
Gorresgesellschaft. Erste Reihe, Aufsatze zur portugiesischen kulturgeschichte, 7. Band 1967, Munster,
1969. p. 252-334.
34
Essa obrigatoriedade tinha sido decisão do rei, mas chegou a ser referendada pelo papado em 1600 pelo
breve Onerosa Pastoralis que obrigava todos os missionários que fossem para China e Índia a saírem de
Lisboa em navios portugueses. No entanto, pouco tempo depois, em 1608, houve uma alteração em
relação à exclusividade do porto e dos navios portugueses feita pelo breve Sedis Apostolicae do papa
PauloV para as ordens mendicantes; Urbano VIII ampliou esse direito às outras ordens religiosas em 1633
e, por fim, Clemente X estendeu-o aos clérigos seculares. Ver em Antônio da Silva Rego. O padroado
português do Oriente: esboço histórico. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1940. p. 67 e em Miguel de
Oliveira. História Eclesiástica de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1994. p. 141.
227
quanto de países protestantes
35
. Boxer destacou que “os portugueses tinham em grande
parte abandonado as atitudes e a mentalidade de conquistadores que os haviam
inspirado nas primeiras décadas da sua expansão na Ásia e encontravam-se
fundamentalmente interessados no comércio pacífico e em conservarem o que já tinham
conseguido”, o que alimentava a suspeita de que não estavam a serviço da propagação
da fé
36
.
Os ataques iniciais partiram dos frades espanhóis missionários das ordens
mendicantes nas Filipinas, que contestaram o monopólio jesuítico e o próprio padroado
no Oriente, alegando que nem o reino de Portugal, nem a Companhia de Jesus tinham
homens suficientes para levarem a cabo a evangelização da Ásia
37
. As queixas foram
encaminhadas a Roma e lá encontraram eco, pois o papado começava a rever sua antiga
posição de privilegiar as coroas ibéricas, em detrimento da autoridade papal.
Segundo Boxer, a supressão do patronazgo de Espanha e do padroado de
Portugal nas Américas não seria possível, uma vez que nessa região os reis ibéricos
desempenhavam todos os deveres e direitos que implicavam tais privilégios concedidos
pela Santa Sé. Mas no Oriente o caso era muito diferente, não apenas pelas críticas aos
portugueses, que chegavam a Roma, mas principalmente porque não havia uma efetiva
dominação territorial das conquistas lusitanas na Ásia e, ainda mais, uma fraca rede
episcopal fora montada na região
38
. Essa brecha foi aproveitada por um novo órgão
criado pelo papado, o qual traria mais elementos de tensão para o Oriente: a Sagrada
Congregação de Propaganda Fide.
Existem dois momentos na formação da Sagrada Congregação da Fé: um entre
os anos de 1572 a 1621, a Comissão Cardinalícia da Propaganda Fide; e o outro, a partir
de 1622, quando o papa Gregório XV instituiu a Sagrada Congregação de Propaganda
Fide (composta por treze cardeais e dois prelados, ajudados por um secretário e um
consultor). O papa Gregório XIII formou a primeira comissão com o objetivo de
promover a união entre Roma e os cristãos orientais (eslavos, gregos, sírios, egípcios,
35
Alguns pensadores como Hugo Grotius contestaram a pretensão de hegemonia nos mares dos
portugueses usando como justificativa o fato deles não terem obtido sucesso na tarefa de alargamento da
fé. Ver C. R. Boxer. Império colonial português... p. 93.
36
Idem. p. 92-93.
37
Ver Angel Santos Hernández. Los patronatos español y portugués: conflictos em zonas fronterizas. In:
Congresso Internacional De História: Missionação Portuguesa e encontros de culturas. Actas. África
Oriental, Oriente e Brasil. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa/Comissão Nacional Para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Fundação Evangelização e Culturas, 1993. v. III. p.
511-537.
38
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 228-229. A observação sobre a fragilidade da rede
episcopal é de João Paulo Oliveira e Costa. Op. cit. v. 2. p. 293.
228
armênios e abissínios). Esses primeiros esforços foram bem sucedidos principalmente
entre os cristãos sírios, tanto os do Líbano quanto os do Malabar. Mas a morte de
Gregório XIII em 1585 e um conturbado período de sete anos com a seguida sucessão
de quatro papas fizeram com que a Comissão Cardinalícia se enfraquecesse.
No entanto, em 1622, o papa Gregório XV revitalizou a instituição dando-lhe
nova estrutura, novo nome Sagrada Congregação de Propaganda Fide e novos
objetivos: a conversão dos hereges e incrédulos; a preservação da fé católica nas regiões
que ainda não haviam sido totalmente influenciadas pelo protestantismo; a criação de
obstáculos para o avanço de novas contestações à igreja de Roma; a difusão do
cristianismo nas regiões não católicas de todo o mundo, sendo o globo dividido em treze
regiões, das quais oito eram européias
39
. Mas no conjunto, a intervenção da Propaganda
Fide estimulou sérios atritos e conflitos entre a Santa Sé e a Coroa portuguesa em um
contexto extremamente delicado, marcado pelo não reconhecimento da independência
portuguesa por parte do Papado o que só ocorreria em 1669.
A intervenção de Roma na missionação em escala mundial, através da
Propaganda Fide, não se limitou à Ásia. Na África ocidental, como lembra Boxer, os
capuchinhos italianos “provaram ser os missionários mais eficientes de interior”, e a
Coroa portuguesa chegou a cooperar com os novos missionários para ali enviados, bem
como para Cabo Verde e São Tomé
40
. Porém, no caso do Congo em particular, as
tensões não tardariam a se fazer presentes, dado o empenho do rei manicongo D. Garcia
Afonso II em desatender o padroado português, incentivando a ida de capuchinhos
italianos e espanhóis sem passar por Lisboa, em um momento de deterioração das
relações luso-congalesas e da própria guerra de restauração portuguesa em face de
Espanha, deflagrada nos anos 1640
41
. Mesmo no Brasil, onde o domínio português se
reabilitou após a expulsão dos holandeses (1654) e onde o padroado era mais firme, a
Propaganda Fide se fez presente, como no caso dos capuchinhos franceses enviados ao
39
U. Benigni. Sacred Congregation of Propaganda. In: New Advent Catholic Encyclopedia.
www.newadvent.org/cathen/12456a.htm e João Paulo Oliveira e Costa. Op. cit. v. 2. p. 293.
40
C. R. Boxer. A Igreja e a expansão ibérica (1440- 1770). Lisboa: Edições 70, 1990. p. 104.
41
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 122. Desde finais do século XV os portugueses
mantinham contato com o reino do Congo. Os missionários conseguiram a conversão do rei Nzinga
Nkuwu que passou a chamar-se João I. As relações entre o reino do Congo e os portugueses alternaram-se
em alianças e desentendimentos. Na época de D. Garcia Afonso II chegou a haver uma aproximação com
os holandeses. Ver também Ronald Raminelli. Império da Fé: ensaio sobre os portugueses no Congo,
Brasil e Japão. In: João Fragoso et alli. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 230-232.
229
nordeste a partir dos anos 1670. Eduardo Hoornaert, comentando a atuação do célebre
frei Martinho de Nantes, definiu-o como “exemplo de missionário livre do Padroado”
42
.
O cerne da discussão repousava na seguinte questão: para a Propaganda, o
padroado português era um privilégio, e se porventura o rei não conseguisse cumprir
com os deveres que lhe eram inerentes, a Sé poderia revogá-lo. Já para Portugal, o
padroado era um direito que havia sido concedido por diversas bulas papais, e estava
diretamente associado à soberania do rei. Assim, o ponto central do problema era a
possibilidade de se retirar essa prerrogativa da monarquia lusitana
43
.
Boxer resume o litígio entre a Santa Sé e a Coroa portuguesa dizendo:
o papado defendia agora que os favores e os privilégios concedidos
anteriormente à Coroa de Portugal não podiam ser interpretados como
um contrato estritamente bilateral, e que o jus patronatum não era de
modo nenhum uma total alienação do direito superior e essencial da
Igreja. A Santa Sé, sob a pressão das circunstâncias, podia modificar,
retirar ou revogar os antigos privilégios do padroado, se interesses
mais elevados e o maior bem das almas postulassem uma tal ação
44
.
Ainda segundo Boxer, o primeiro secretário da Propaganda Fide, o prelado
italiano Francesco Ingoli, era antiportuguês e grande opositor dos jesuítas, e dedicou-se
à tarefa de reunir o máximo de acusações contra o padroado português, chegando a
enumerá-las da seguinte maneira:
[...] a nomeação real dos funcionários eclesiásticos; a equiparação dos
decretos reais aos breves pontifícios; o fornecimento de fundos
insuficientes para a manutenção das igrejas; o fato de se deixarem
bispados vagos; a relutância dos bispos em ordenarem os padres
asiáticos, mesmo quando estes possuíam todas as qualificações
necessárias, como acontecia com muitos dos brâmanes goeses; o
batismo de pagãos à força; a recusa dos jesuítas em colaborarem com
as outras ordens religiosas e as pressões por eles exercidas sobre os
seus convertidos no mesmo sentido. Algumas das sés eram tão vastas
em extensão que os bispos não podiam cumprir devidamente os seus
deveres espirituais, mesmo que tentassem fazer. Finalmente, outra
crítica feita vulgarmente aos portugueses era a de que eram
42
Eduardo Hoornaert et alli. História da Igreja no Brasil: ensaio e interpretação a partir do povo.
Petrópolis: Vozes, 1992. p. 116.
43
Antônio da Silva Rego. O padroado português...: p. 24.
44
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 232.
230
excessivamente devotos das formas e cerimônias exteriores da Igreja
mas negligenciavam o desenvolvimento espiritual de cada indivíduo
45
.
Na Ásia, o responsável pelas justificativas que embasavam os ataques do
secretário da Propaganda Fide era um clérigo goês, brâmane, de nome Mateus de
Castro. Nascido por volta de 1594, provavelmente ficou órfão ainda muito jovem e foi
levado para o colégio franciscano dos Reis Magos em Goa. Depois de estudar na cidade
por cinco anos, tivera sua ordenação impedida pela recusa do arcebispo de Goa,
Cristóvão de Sá, uma vez que este clérigo teria prometido que não ordenaria nenhum
padre brâmane, segundo o próprio Mateus de Castro. Agastado por essa decisão,
resolveu ir a Roma em 1621, ali chegando somente em 1625 após uma longa jornada
por terra. Protegido por Ingoli, fez os estudos teológicos no Collegium Urbanum e foi
ordenado em 1630. Enviado a Goa em 1633, suas credenciais não foram aceitas pelas
autoridades eclesiásticas portuguesas, que duvidaram de sua autenticidade. Retornou
então a Roma, convencido de que a presença portuguesa era um entrave ao
desenvolvimento do clero nativo goês, desencadeando uma série de denúncias contra o
padroado lusitano. Por iniciativa da Propaganda Fide, foi consagrado bispo de
Crisópolis em 1637 e enviado novamente para a Índia três anos depois, como vigário
apostólico no reino de Bijapur. Em 1653, fomentou um ataque a Goa ao incitar o sultão
muçulmano de Bijapur e os holandeses, além de informar sobre as fragilidades da
cidade a esses dois inimigos dos portugueses. Escreveu ainda uma carta aos brâmanes
de Goa intitulada O Espelho dos Brâmanes, conclamando um levante desse grupo
contra o domínio português. Seus planos falharam, uma vez que o ataque a Goa
fracassou e, pressionado mais uma vez, regressou a Roma em 1658, onde morreu em
1677. Por toda a vida, Mateus de Castro dedicou-se a criticar a política dos portugueses
de discriminação do clero goês, ansiando pela expulsão dos lusitanos da região, por
considerar ser esta a única maneira para a difusão do cristianismo na Índia
46
.
O eco dessas acusações e críticas, não raro exageradas ou injustas, embora
muitas vezes exatas, pode ser visto no texto de um breve papal de Alexandre VII em
1658 que, para justificar suas decisões, listava minuciosamente os problemas de
evangelização que ocorriam sob o padroado português no Oriente:
45
Idem. p. 230.
46
Idem. p. 132 e 247-248. Ver também uma breve, mas muito elucidativa biografia de Mateus de Castro
em Pratima Kamat. Some Protesting Priests of Goa. In: Teotônio R. de Souza. Essays in Goan History.
New Delhi: Concept Publishing Company, 1989. p. 104-108.
231
1º. O clero obriga os pobres a trabalhar na construção das Igrejas, sem
lhes dar salário algum;
2º. Este mesmo clero, em lugar de recorrer aos meios morais e
convenientes para atrair a mocidade e as crianças às instruções
religiosas, emprega a este fim pancadas e pauladas;
3º. Os eclesiásticos admitem nas escolas públicas ou recusam a
entrada nelas unicamente conforme o seu arbítrio e sem um motivo
razoável;
4º. Não consentem que os convertidos possam abraçar a vida religiosa;
5º. A pregação, confissão e administração dos sacramentos são
proibidos ao clero indígena, mesmo aqueles que apresentam as
condições necessárias: sendo o resultado desta proibição, ficarem
milhares de pessoas impedidas de receber os sacramentos;
6º. A comunhão é recusada aos pobres, ainda mesmo à hora da morte;
7º. Os catecúmenos são batizados sem receberem a devida instrução
religiosa, e até mesmo quando eles ainda são em parte pagãos;
8º. As conversões são a conseqüência, ora de promessas falazes, ora de
vexames e violências;
9º. Consente-se aos pagãos que façam sacrifícios nas Igrejas dos
cristãos;
10º. Recusa-se a sepultura aos pobres, a não haver quem pague o
enterro;
11º. A pregação é excessivamente rara, e mesmo quando haja, é na
língua portuguesa, a qual não é entendida pela maior parte do
auditório;
12º. O clero intervem nos negócios políticos
47
.
Um exemplo da dureza do julgamento consolidada no citado breve pode ser
percebido nas críticas aos negócios eclesiásticos numa Sé que estava vaga desde 1652, e
que o próprio papado não provia, recusando-se a consagrar bispos portugueses por não
reconhecer a independência de 1640, situação que se prolongaria até 1669
48
.
No Conselho de Estado, reunido em Lisboa nos dias 28 de março e 1 de julho de
1656, o rei de Portugal, ao fazer um balanço de sua ação de disseminar a fé católica
associada à extensão de seu império, explicitou suas preocupações com as inquietações
que fora informado existirem em Goa, resultado da vacância do arcebispado, e que
deixava “faltando a tantas almas as quais as tochas que as havia de encaminhar no
escuro e tormentoso dessa vida”
49
.
47
Theodore Bussierres. Historia do Scisma portuguez na India. Lisboa: Tipografia de L. C. da Cunha,
1854. p. 29-30.
48
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 230 e António Lourenço Farinha. A expansão da fé no
Oriente: subsídios para a História colonial. Lisboa: Agência geral das Colônias, 1943. p. 118.
49
Biblioteca da Ajuda. Conselho de Estado. 1 de julho de 1656. cod. 51-VI-43. fls. 15 v e 38-38 v.
232
Por outro lado, para evidenciar que muitas das críticas listadas no breve de
Alexandre VII eram de fato procedentes, vale lembrar alguns métodos violentos de
conversão usados pelos inacianos, a exemplo do caso ocorrido em Goa narrado pelo
jesuíta Francisco Cabral ao Geral da Companhia de Jesus, Claudio Acquaviva, em carta
de 1591, informando sobre a conversão dos gentios de aldeias vizinhas:
[...] estes gentios, além das mais superstições, têm para si que o serem
gentios consiste em 2 coisas, silicet, em conservarem e não lhes ser
cortada uma certa gadelha de cabelos que têm e que chamam sendin e
em lhe não entrar na boca coisa algum cristão. E tanto que se lhe
cortam o cabelo que digo ou lhe metem algum comer na boca, ainda
que seja por força, cuidam que já não ficam gentios e têm perdida a
casta, e que lhe é necessário torná-la a tomar de novo; e tem pela
maior injúria do mundo e o maior mal fazerem-lhe cada uma destas
coisas, porque cuidam que com isso deixam de ser gentios. Ora
suposto isto, a maneira que se tem em se fazerem aqui alguns batismos
é esta. Quando vem o tempo em que se hão de fazer, vão alguns
Irmãos do colégio de dois em dois pelas aldeias adjacentes e palmares
a buscar caça, silicet, gentios para serem cristãos. E alguns destes
Irmãos, que têm mais fervor do necessário, tomam alguns [...] e os
trazem com algum achaque, ou lhe metem o comer na boca contra a
sua vontade, por onde cuidam que têm perdida a casta; e a outros
cortam o sindin [sic] e depois, ou com afagos ou com ameaças, que os
farão meter nas galés, trabalham tanto com eles que, ou por vontade
ou em que lhes fez, vem a dizer que se farão cristãos e assim se
batizam muitos
50
.
Esse testemunho é irrefutável, pois continha denúncias de excessos de irmãos jesuítas,
ao que o Geral da Companhia de Jesus respondeu com repetidas recomendações de
moderação que, no entanto, nem sempre foram obedecidas.
Baseado em todas os ataques partidos de Roma, o esforço missionário nas
regiões que se encontravam fora dos domínios portugueses no Oriente foi então
assumido pela Propaganda Fide que, em 1658, estabeleceu os dois primeiros vigários
apostólicos, membros de uma nova sociedade missionária chamada de Sociétés des
Missions Étrangères: François Pallu, bispo de Heliópolis, e Pedro de la Motte Lambert,
bispo de Berito, para as missões de Tonquim e da Cochinchina, e países vizinhos; o
50
José Wicki. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1981. v. XV. p. 581.
Sendin, sendi, xenddi, xendim trata-se de um rabicho portado pelos hindus de muitas classes, segundo
Sebastião Rodolfo Dalgado. Glossário luso-asiático. Coimbra: Academia das Ciências, 1921. v. II, p.
302.
233
órgão também incentivou a fundação de várias missões francesas e italianas na África e
no Oriente
51
.
O rei de Portugal D. João IV reagiu em seguida, enviando ordens a Goa para que
fossem presos os vigários apostólicos que lá chegassem ou qualquer religioso que
não tivesse a autorização real , e em seguida deportados para Lisboa, com a ressalva
de se guardar o devido respeito ao hábito de religiosos
52
.
A crise estava estabelecida, e várias querelas sobre jurisdição eclesiástica
derivaram desse quadro geral aqui exposto. Em 1673 o papa Clemente X fez um breve
de conteúdo muito rígido, dirigido ao arcebispo de Goa, desligando os vigários
apostólicos de toda a jurisdição extra dominium temporale regni Portugallie,
ameaçando-o de privação do ofício, entre outras penas, caso não obedecesse esta
limitação de autoridade eclesiástica. Nesse mesmo ano, pelo breve Solli Citudo
Pastoralis, o mesmo papa declarou que a Inquisição de Goa não tinha nenhum poder
nos territórios não sujeitos à Coroa portuguesa. Em seguida, na bula Decet Romanum
Pontificem, renovou todos os privilégios concedidos anteriormente aos vigários
apostólicos, declarando-os absoluta e inteiramente independentes de Goa e do padroado
português
53
.
Rego considera este o início da “dupla jurisdição” no Oriente, que só serviu para
enfraquecer a ação de cristianização na região, por expor a divisão entre os católicos e
possibilitar maiores atritos
54
. No entanto, é possível se fazer outra leitura dos
acontecimentos afirmando, ao contrário, que as determinações de Clemente X apenas
cristalizaram uma divisão que já existia de fato, e tiveram como objetivo a afirmação da
autoridade papal e, como resultado, o enfraquecimento do padroado português.
Formalmente, os jesuítas aceitaram a bula de Clemente X no ano seguinte, mas
na prática alguns atritos continuaram existindo entre os missionários e as diversas
51
Antônio da Silva Rego. O padroado português... p. 39.
52
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 231. O autor informa que essas ordens repetiram-se no
tempo, mas variavam em termos de obediência, ao longo do tempo.
53
Antônio da Silva Rego. O padroado português... p. 49. Para a discussão de fatores endógenos e
exógenos do fim do padroado português ver Manuel Gonçalves Martins. O desaparecimento do Padroado
Português do Oriente e os agentes externos. In: Congresso Internacional De História: Missionação
Portuguesa e encontros de culturas. Actas. África Oriental, Oriente e Brasil. Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa/Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses/Fundação Evangelização e Culturas, 1993. v. III. p. 649-669.
54
Idem. p. 45.
234
ordens religiosas que se debruçavam sobre o trabalho de evangelização em terras não
dominadas pelos portugueses
55
.
Dessa forma, no final de todo esse processo de discussão acerca do padroado
português e das ações do papado, pode-se perceber que a partir do terceiro quartel
seiscentista, de um modo geral, coexistiam no Oriente três modelos de igreja
missionária:
- um de cariz tipicamente colonial, apresentado ou imposto aos
Orientais, sobretudo pelos religiosos das ordens mendicantes e
pelo clero diocesano, tanto do Padroado como do Patronato, em
que os fiéis asiáticos se enquadravam numa estrutura
predominantemente européia. A adaptação a alguns costumes
locais processou-se mais à revelia do programa missionário que
por força dele;
- um outro, também assaz ocidentalizante, era seguido pelos padres
da propaganda. Estes, embora não abdicassem das práticas
tradicionais latinas, procuravam criar uma hierarquia eclesiástica
asiática [...];
- finalmente, um terceiro, seguido apenas por algumas comunidades
jesuíticas, tinha por objetivo não a orientalização da hierarquia,
mas a da própria vivência cristã. Procurava-se nesses casos que os
clérigos europeus se adaptassem às civilizações asiáticas e não que
o clero nativo se tornasse em veículo do cristianismo europeu
56
.
Esses modelos entrariam em choque em diversas oportunidades, gerando
grandes tensões entre clérigos seculares e regulares em vários pontos do Oriente. As
diferenças de métodos no que se refere às práticas de missionação dos jesuítas, das
demais ordens religiosas e dos padres da Propaganda Fide, por exemplo, ficaram em
debate por longo tempo na querela dos ritos malabares e chineses, só definitivamente
condenados por volta da metade do século XVIII.
Para Boxer, em resumo:
qualquer estudo feito em profundidade da história do padroado durante
os séculos XVII e XVIII deve mostrar que foi muito mais vezes objeto
de críticas do que de elogios entusiásticos por parte dos estrangeiros,
55
Este posicionamento da Companhia de Jesus é compreensível se for lembrado que em 1585 por um
breve de Gregório XIII a ordem foi encarregada da evangelização da China e do Japão, com
exclusividade. Em 1600, outro breve permitiu que as ordens mendicantes pudessem entrar na China e no
Japão, mas essa decisão é mínima, se comparada com as ações de Clemente X em 1673, pois quebrava a
lógica do padroado português à qual os jesuítas estavam vinculados. Idem. p. 66-67.
56
João Paulo Oliveira e Costa. Op. cit. v. 2. p. 299.
235
quer estes últimos fossem franceses, espanhóis e italianos católicos
romanos, ou ingleses e holandeses, protestantes. [...]freqüentemente
estas críticas eram justificadas, mas é igualmente evidente que, mesmo
quando o padroado se havia tornado mais uma responsabilidade do
que um bem para a Igreja, havia algumas exceções muito honrosas
57
.
Para além da discussão sobre se as críticas ao padroado português eram
justificadas, deve-se perceber que o ambiente proporcionado por esse extenso debate
sempre reverberou em Goa, somando-se às ameaças dos inimigos infiéis, às
dificuldades econômicas, aos problemas políticos e sociais. Todos esses aspectos
reunidos reforçavam situação de cerco e insularidade que os habitantes da cidade
freqüentemente experimentavam.
57
C. R. Boxer. Império colonial português... p. 240.
236
3. Colaboração e conflito na cidadela cristã
A sociedade colonial na Ásia portuguesa era essencialmente militar e comercial,
segundo Boxer, mas não se pode esquecer que a cruz estava associada à espada e às
especiarias
58
. Goa possuía todas essas características, e tornou-se o espaço físico das
maiores colaborações, mas também de conflitos graves entre as regiões que compunham
a Índia portuguesa.
Segundo Raquel Soeiro de Brito a cidade de Goa tinha uma frente marítima de
cerca de 2 km, e toda a área urbana seria de 4 km
2
, sendo que o centro da cidade estaria
na faixa ribeirinha, contido em cerca de 1km de frente e 0,5 km de profundidade. As
principais ruas eram pavimentadas e as secundárias eram de terra batida. A via
principal, a rua Direita ou dos Leilões, estava ligada ao Cais dos Vice-Reis, entrada da
cidade para quem chegasse por via marítima, e onde se concentrava a maior atividade
comercial da cidade, com um mercado de pérolas, peças de ouro, pedras preciosas,
escravos, sedas, tapetes, cavalos, ou seja, mercadorias oriundas de todo o Oriente. A
principal entrada terrestre era a rua de São Pedro, localizada nas proximidades do
arsenal da cidade importante centro de construção naval no Oriente , instalado na rua
das Naus de Ormuz e onde se concentravam locais de venda de bebidas alcoólicas, pela
presença de grande número de trabalhadores. No centro de Goa situavam-se “dezesseis
das quarenta e uma ruas principais, cinco das dezessete igrejas mais importantes,
incluindo a Sé, cinco dos doze conventos”, além dos prédios da administração: o
Tribunal da Relação, o Tribunal da Inquisição, a Alfândega, a Misericórdia, o Hospital
Real, o Palácio dos Vice-Reis, o quartel. Na área central da cidade também havia os
principais largos e monumentos da cidade: o Terreiro dos Galos, a Praça do Sabaio e o
Arco dos Vice-Reis. Ou seja, tratava-se de “um verdadeiro centro político, religioso e
cívico”
59
.
Os dados sobre a população de Goa são muito imprecisos, vagos e sem
homogeneidade de informações, pois nem sempre há a discriminação entre portugueses
e naturais da terra. Russell-Wood informa que “em 1524 existiam na cidade
quatrocentos e cinqüenta chefes de família portugueses; em 1540, esse número para
58
Idem. p. 293.
59
Raquel Soeiro de Brito. Goa e as praças do Norte: revisitadas. Lisboa: Comissão Nacional Para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 99-100.
237
1.800, mas incluía tanto mestiços como portugueses da Europa”
60
. Francisco
Bethencourt refere-se ao registro de Diogo do Couto para o cálculo da população de
Goa no final do século XVI: sessenta mil cristãos
61
. As informações só se tornam mais
sistemáticas para o século XVIII, que indicam para meados desse século a população de
206.596 habitantes
62
. Sanjay Subrahmanyam utiliza-se dos dados de Antônio Bocarro
no seu Livro de plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia,
“compilado entre 1633 e 1635, com o auxílio do secretário do então vice-rei conde de
Linhares, Pedro Barreto de Resende”, para estimar a população da Ásia portuguesa, ao
menos em duas categorias usualmente utilizadas por autoridades e cronistas da época:
os casados moradores e os religiosos das quatro principais ordens existentes no Oriente
jesuítas, franciscanos, dominicanos e agostinianos
63
. O historiador indiano explica que
a categoria casado abrangia tanto os que eram portugueses por inteiro quanto mestiços e
até mesmo cristãos conversos asiáticos, motivo pelo qual Bocarro utiliza a distinção de
casados brancos e casados negros
64
. A cidade de Goa possuía 800 casados brancos e
2.200 casados negros, ou seja, um total de 3.000 casados. O total para toda a Ásia
portuguesa era de 4.903 casados brancos e 7.435 casados negros, somando-se 12.338
casados.
Outro grupo identificado por essa fonte é o dos clérigos regulares, que em Goa
totalizavam 599 pessoas, num universo para todo o Estado da Índia de cerca de 1.813
religiosos
65
. Subrahmanyam enfatiza o caráter parcial desses dados, ou seja, que eles
devem ser analisados apenas como indicadores de tendências gerais da população na
primeira metade do século XVII. Uma alternativa para complementar essa informação
poderia ser os registros dos jesuítas sobre os batizados, mas também aí os números
referiam-se à região de Salcete e, ainda assim, não há um registro continuado, o que
inviabiliza tal quantificação.
Deve-se entender que a capital do Estado da Índia e da cristandade no Oriente
possuía significativas referências arquitetônicas que correspondiam à necessidade de
60
A. J. R. Russell-Wood. A sociedade portuguesa no ultramar. In: Francisco Bethencourt e Kirti
Chaudhuri (dirs.). Op. cit. v. 1. p. 267.
61
Francisco Bethencourt. As Câmaras e Misericórdias. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(dirs.). Op. cit. v. 1. p. 358.
62
A. J. R. Russell-Wood. Comunidades étnicas. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.). Op.
cit. v. 3. p. 210. Para o século XVIII, ver o estudo de Maria de Jesus dos Mártires Lopes. Goa
setecentista: tradição e modernidade. Lisboa: Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão
Portuguesa/Universidade Católica Portuguesa, 1996, especialmente o capítulo II.
63
Sanjay Subrahmanyam. Op. cit. p. 309.
64
Idem. p. 311.
65
Idem. p. 312-315.
238
demonstração visual de sua grandeza. É importante lembrar que muitos templos hindus
e mesquitas muçulmanas eram ricos e grandiosos no Oriente, induzindo a uma
manifestação equivalente por parte dos cristãos portugueses, numa espécie de
“rivalidade visual”.
Desde os primórdios da ocupação lusitana até meados do século XVII quando
se começou a pensar na transferência da cidade para local com menos problemas de
insalubridade foram feitas construções que buscavam exprimir a fé professada e que
se pretendia expandir. As capelas de Santa Catarina, padroeira da cidade, de Santo
Antônio, de Nossa Senhora do Monte; as igrejas do Rosário, de Bom Jesus (erigida
pelos jesuítas), de Nossa Senhora da Graça dos Agostinhos; a Sé Catedral; o Colégio de
São Paulo; os conventos com suas respectivas igrejas dos franciscanos, dos teatinos e o
das Mônicas (primeiro mosteiro feminino da Ásia) são alguns dos prédios que
formavam impressionante expressão da devoção religiosa de Goa. O viajante italiano
Della Valle deixou sua apreciação sobre os edifícios da cidade dizendo que:
os melhores são as igrejas, pertencentes, na maior parte, a muitas
ordens religiosas agostiniana, dominicana, franciscana, de carmelitas
descalços e jesuítas com mui numerosos conventos para um e outro
sexo; e de fato, metade das ordens que existem aqui, bastariam para
uma cidade maior que Goa. Mas, além dessas igrejas, há igualmente
muitas outras de clérigos seculares, igrejas paroquiais e capelas; e por
fim, a sé ou catedral, que não é, porém, o melhor, nem o maior templo
da cidade, havendo muitos que o excedem. Durante a minha
permanência, a sé ainda não estava pronta, tendo as obras chegado a
pouco mais da metade; daí o parecer-me pequena e menos majestosa;
mas vi, há pouco, a planta geral do edifício e julgo que, em se
completando, será uma igreja magnífica
66
.
Além de igrejas e conventos, outra forma de manifestação da religiosidade em
Goa se encontra no grande número de confrarias que surgiram na cidade e nas regiões
vizinhas, como Salcete e Bardez. Essa forma de organização da população cristã
portuguesa e indiana também foi um importante elemento de difusão do cristianismo.
A primeira confraria fundada em Goa foi a de Nossa Senhora do Rosário em
1511, logo após a conquista, que ficou vinculada à Sé na Igreja de Santa Catarina a
partir de 1533. Na Sé também foram fundadas outras confrarias, com destaque para a de
66
José Antônio Ismael Gracias. Op. cit. p. 25.
239
S. Pedro (século XVI) e a do Santíssimo Sacramento (século XVII)
67
. Havia ainda as
confrarias dos regulares. Na igreja do convento dos franciscanos havia a Confraria do
Cordão de São Francisco, de 1592. Na igreja do convento dos dominicanos havia a
Confraria dos Cafres de Nossa Senhora do Rosário, de 1548 que, como o nome sugere,
era formada pelos cristãos naturais da terra; a de Jesus, de nobres portugueses; e a do
Espírito Santo, dos cortesãos e ministros. Na dos agostinianos existiam sete confrarias,
com destaque para a de Nossa Senhora de Assunção. Na Igreja da Cruz dos Milagres
dos oratorianos foi fundada a confraria de nossa Senhora do Bom Sucesso, em 1671.
Existiam também as confrarias das ordens terceiras: a Confraria da Madre de Deus
(1576); a da Imaculada Conceição; a do Santo Sepulcro e a de Nossa Senhora do
Cabo
68
. Em Bardez, região de missionação atribuída aos franciscanos, Leopoldo da
Rocha sugere o número de dez confrarias por volta de 1600, pois há poucos registros
69
.
Com certeza, a ordem religiosa que mais fomentou a instituição de confrarias foi
a Companhia de Jesus em Goa, mais especialmente em Salcete. A Confraria de
Conversão à Fé foi criada em 1541 pelo vigário-geral Miguel Vaz e pelo mestre Diogo
da Borba, teólogo e pregador, com o objetivo de espalhar o cristianismo através do
Seminário de Santa Fé para a formação de um clero nativo. Com a chegada de Francisco
Xavier, Miguel Vaz considerou que o seminário estaria em melhores mãos se
administrado pelos jesuítas; após alguma hesitação por parte de Xavier e de seus
superiores, a Companhia de Jesus ficou responsável pelo seminário, que passou a se
chamar “Colégio de São Paulo”, mantendo os vínculos com a Confraria de Conversão à
Fé, cuja sede ficava na capela do colégio. Também associada a essa instituição havia a
Confraria de Nossa Senhora da Anunciação, com o objetivo de animar os jovens
escolares a progredir na vida espiritual pela prática da vida sacramental, instituída pelo
padre Manuel da Veiga.
A Confraria das Onze Mil Virgens foi fundada em 1552 por idéia do jesuíta
Gaspar Barzeu, inspirado pela relíquia de “uma santa cabeça das onze mil virgens,
atribuída a Santa Geracina, trazida pelo também jesuíta P. Antônio Gomes em 1548”
70
.
67
Leopoldo da Rocha. As confrarias de Goa (séculos XVI-XX): conspecto histórico-jurídico. Lisboa:
Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973. p. 21-23. Trata-se de um estudo muito minucioso e
extenso das confrarias goesas. O autor nota que a longevidade das confrarias fundadas em Salcete é muito
maior das que surgiram na velha cidade de Goa. Até a data da autoria do trabalho muitas das confrarias de
Salcete ainda sobreviviam.
68
Idem. p.27-53. As informações cotejadas pelo autor nem sempre são completas, o que o obrigou a
muitas vezes não informar as datas de fundação de muitas das confrarias citadas.
69
Idem. p. 88.
70
Idem. p. 10-17.
240
Vinculadas à Casa Professa de Bom Jesus existiam três confrarias: a dos Naturais da
Terra, a Irmandade dos Portugueses e a de Cafres e outros moços da terra, cujo objetivo
era “ministrar doutrina cristã adaptada à inteligência da gente rude e boçal”
71
(as duas
primeiras fundadas em 1613 e a última em 1648). Note-se que os jesuítas tinham a
prática de instituir irmandades diferentes para portugueses e nativos, e mesmo entre os
últimos, também faziam distinções. De certa forma, tal procedimento adaptou-se bem à
realidade do sistema de casta hindu, uma vez que mesmo os convertidos ao cristianismo
“não abdicavam do enquadramento social que estas lhes destinavam”
72
.
Em Salcete, onde a missionação tinha ficado oficialmente ao cargo da
Companhia de Jesus desde 1555, houve uma verdadeira proliferação das confrarias, pois
os jesuítas geralmente fundavam três dessas associações onde se fixavam, “tendo como
invocações o Santíssimo Sacramento, as almas e um santo escolhido ao sabor das
circunstâncias locais ou do contexto da época, com forte incidência para a devoção da
Senhora do Rosário”
73
.
Leopoldo da Rocha afirma ser muito difícil precisar as datas de fundação de
todas as confrarias, mas localiza sua existência em diversos registros e menções feitos
mesmo que em épocas posteriores, como por exemplo uma relação de certidões
passadas pelos escrivães das confrarias datadas da metade do século XVIII
74
. Mesmo
que de forma imprecisa, é possível afirmar que era grande o número dessas instituições
em Salcete. O jesuíta Sebastião Gonçalves registrou em 1614 as igrejas fundadas pela
Companhia de Jesus, relacionando algumas de suas respectivas confrarias. Assim, sobre
a igreja em Rachol, informou que “a invocação da igreja é de Nossa Senhora das
Neves”, e que havia quatro “confrarias bem servidas”, a do Santíssimo Sacramento, da
Virgem, de Jesus, de Santa Ana. Sobre a igreja de Margão disse que ali havia três
confrarias, as do Espírito Santo, a de Nossa Senhora e a do Anjo Custódio
75
.
Não há o registro de todas as confrarias, portanto, mas são conhecidas aquelas
das freguesias de Salcete nos séculos XVI e XVII, ao todo 24, o que possibilita derivar
um número aproximado de irmandades, ao aceitar-se a média de três confrarias para
71
Idem. p. 19.
72
Caio Boschi. Sociabilidade religiosa laica: as irmandades. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(dirs.). Op. cit. v. 3. p. 386.
73
Idem. p. 356.
74
Leopoldo da Rocha. Op. cit. p. 111.
75
Sebastião Gonçalves. História dos religiosos da Companhia de Jesus e do que fizeram com a divina
graça na conversão dos infiéis a nossa santa fee catholica nos reynos e provincias da India Oriental.
Coimbra: Atlantida, 1957. v. 3. p. 90.
241
cada igreja. A título de ilustração, essas freguesias e os nomes de suas respectivas
igrejas foram colocados no quadro abaixo:
Quadro V:
Freguesias de Salcete (séculos XVI e XVII)
LOCALIDADE
IGREJA ANO
Assolnã N. S. dos Mártires 1616
Betalbatim N. S. dos Remédios 1635
Carmonã N. S. do Socorro 1607
Chandor N. S. do Belém 1645
Chicalim S. Francisco Xavier 1625
Chinchinim N. S. da Esperança 1590
Benaulim S. João Batista 1581
Colvã N. S. das Mercês 1635
Cortalim S. Filipe e S. Tiago Século XVI
Cuncolim N. S. da Saúde Século XVII
Curtorim Santo Aleixo 1597
Loutulim Salvador do Mundo 1581
Majordã N. S. Mãe de Deus 1588
Margão Espírito Santo 1564
Mormugão Santo André 1570
Navelim N. S. do Rosário 1597
Orlim S. Miguel Arcanjo 1568
Rachol N. S. das Neves 1576
S. Tomé São Tomé Século XVI
Saneale N. S. da Saúde Século XVII
Seraulim N. S. do Pilar 1635
Varcã N. S. da Glória 1635
Velsão N. S. da Assunção 1635
Vernã Santa Cruz 1568
Fonte: Leopoldo da Rocha. As confrarias de Goa (séculos
XVI-XX): conspecto histórico-jurídico. Lisboa: Centro de
Estudos Históricos Ultramarinos, 1973. p. 397-421.
O jesuíta Gomes Vaz, ao descrever uma cerimônia religiosa que ocorrera na
igreja de Cortalim, em carta aos companheiros em Portugal datada de 1567, resumiu de
maneira muito arguta a função que essas confrarias e as festas religiosas por elas
promovidas exerciam no processo de cristianização:
usa-se destas solenidades em semelhantes tempos porque servem
muito para crescimento destas novas plantas, as quais grandemente se
movem com as cerimônias e cultos exteriores e para confusão dos
gentios; para que vendo estes a diferença e vantagem que nossas festas
fazem às suas, fiquem envergonhados e confundidos
76
.
76
José Wicki. Documenta Indica... . v. II. p. 410.
242
Apesar dessa consciência da importância funcional e da profusão de confrarias
em Salcete, no início da instalação dessas instituições, na segunda metade do século
XVI, houve hesitações dos próprios jesuítas sobre se elas estariam na alçada da ordem a
qual pertenciam, pois:
[...] levantou-se, logo de início, um grave problema de ordem moral,
relativo à continuação destas associações de piedade sob a direção dos
religiosos Jesuítas. As confrarias, como corporações essencialmente
religiosas, implicavam a cura direta das almas, no caso, a formação
espiritual dos associados. Mas não seria alheio às constituições da
Ordem que os seus membros se empenhassem mais na missão de
converter as almas, lançassem as bases da cristandade, à maneira de
semeadores errantes do Evangelho, sem fincar raízes definitivas em
parte alguma? Depois, estaria dentro do espírito inaciano andarem os
Religiosos da Companhia de Jesus empenhados em negócios da
administração temporal, como exigem os patrimônios das confrarias?
Problemas como estes achavam-se em sério debate nas reuniões dos
casos da Moral no Colégio de São Paulo de Goa
77
.
Os Gerais da Companhia, Inácio de Loiola e Francisco de Bórgia, mostraram-se
reticentes e desconfiados em relação a essa questão, mas não atuaram claramente contra
as irmandades, permitindo algumas que estivessem adequadas às Constituições da
ordem. As dúvidas e questões permaneceram até a chegada do visitador Alexandre
Valignano que, com seu conhecido sentido pragmático, resolveu o problema, afirmando
a importância das confrarias no processo de evangelização e organizando uma consulta
aos superiores da Companhia de Jesus da Província da Índia. Em 1575, Valignano
promoveu a “Primeira Congregação Provincial da Índia da Companhia de Jesus”, onde
apresentou o assunto das confrarias, havendo quem defendesse sua supressão , e outros,
incluindo o próprio visitador, que não viam grandes problemas na sua existência. Após
os debates, concluiu-se pela sua manutenção, mas com as seguintes ressalvas:
a Congregação decidiu, portanto, que não obstava às Constituições a
existência destas corporações, mas guardando-se que os religiosos se
abstivessem de exigir delas emolumentos e ajudas para a celebração
das próprias festas. Não haveria inconveniente em aceitar dos
administradores das confrarias o que eles espontaneamente
77
Leopoldo da Rocha. Op. cit. p. 116-117.
243
oferecessem, não só para a celebração das festas próprias da confraria,
como também doutras do templo, e isso sem descaso da pobreza a que
está votada a Companhia e sem compromisso de pacto de estipêndio
ou obrigação
78
.
Ainda que tivessem sobrevivido certas reservas de consciência entre os inacianos sobre
o envolvimento da Companhia de Jesus com a fundação de confrarias, estas
provavelmente desapareceram em 1587, quando o papa Xisto V, através da bula
Romanum Decet Pontificem, delegou aos jesuítas a responsabilidade pela ereção de
irmandades na Índia.
O grande número de confrarias, em função da duplicidade de funções, por vezes
criava condições para que surgissem atritos. Um bom exemplo foi a censura imposta
pela Misericórdia de Goa à Irmandade dos Portugueses, associada à Casa Professa de
Bom Jesus, pois sua ação assistencial entrava em conflito com a da importante
instituição portuguesa, um dos pilares do mundo ultramarino, nos dizeres de Boxer.
Como resultado, a irmandade foi extinta em 1616
79
.
No último quartel do século XVII houve outra crise envolvendo as confrarias de
Salcete, relacionadas aos jesuítas, embora dessa vez a discussão estivesse associada à
questão de jurisdição. Quem promoveu o debate foi o próprio arcebispo Antônio
Brandão, que tomou posse em 1675, e enfrentava o problema de colocação do clero
nativo, cada vez maior em número e necessitando ocupar funções na hierarquia
eclesiástica
80
. A crise precipitou-se graças à inabilidade do Provincial da Companhia de
Jesus, Fernão de Queiroz, que não obedeceu a regra de pedir permissão ao arcebispo
para visitar as igrejas de Salcete. Leopoldo da Rocha acrescenta ainda que o superior
jesuíta utilizou nessa visita o cerimonial reservado aos arcebispos, tal como “repiques
de sinos, entrada com pálio, recepção com laudate, visita ao sacrário, exame dos livros
da fábrica e confrarias”. Para complicar ainda mais a situação, o Provincial retornou a
Goa para assistir à festa de Santo Inácio, quando promoveu outro episódio de
constrangimento, pois esqueceu-se de mandar colocar o baldaquim em cima do trono
78
Idem. p. 123. Os apontamentos feitos por Valignano sobre a Primeira Congregação Provincial da
Índia da Companhia de Jesus encontram-se transcrito por José Wicki. Documenta Indica... v. X. p. 589-
648.
79
Leopoldo da Rocha. Op. cit. p. 17.
80
Idem. p. 378.
244
reservado ao arcebispo, que viu o esquecimento como ato proposital do superior da
Companhia de Jesus na Índia
81
.
O arcebispo agiu então de maneira incisiva: iniciou uma visita pastoral às ilhas
de Pangim e Taleigão, entre outras, e despachou para Salcete a negação do direito dos
jesuítas fazerem visitas às igrejas da região, proibindo os párocos de atenderem às
solicitações do provincial da Companhia de Jesus, além de exigir vistas dos livros de
contas das irmandades. Em seguida, encaminhou sua visita para as terras de Salcete, e
tomou várias medidas para extinguir a autoridade dos jesuítas naquelas freguesias. O
atrito iria agravar-se na igreja de Majordã, onde o jesuíta Antônio Luís recusou-se a
mostrar os livros das confrarias requisitados pelo arcebispo, alegando estarem com o
reitor do colégio de Rachol. Irritado, o arcebispo exigiu que lhe fossem mostrados os
livros em tempo curtíssimo, no que não foi obedecido nem pelo padre Antônio Luís,
nem pelo reitor do colégio, o padre Paviziani. Os dois foram fulminantemente
excomungados pelo arcebispo. O episódio está registrado com cores muito fortes na
Memória para a História Eclesiástica do Arcebispado de Goa e seus sufragâneos, que
conta que o arcebispo chegou na:
Igreja de Majordã em que era vigário o Pe. Antônio Luís lhe pediu os
livros; não lhos quis dar, dizendo que era igreja isenta, por ser da
Companhia, foi monido; respondeu que o Padre Reitor do Colégio
Torquato Paviziani os levara; disse-lhe os mandasse vir; não o fez, foi
declarado excomungado e se retirou para o Colégio, no caminho o
meirinho geral o fez apear do andor dando busca se levava dinheiro ou
prata da Igreja; foi monido o P. Reitor a que desse os livros, não deu
cumprimento, foi declarado e fixa a excomunhão nas portas da Igreja,
donde o Reitor a mandou recolher, e fazer em pedaços. Sucedeu a
festa das Virgens, dia solene naquele colégio onde tem altar, saiu a
celebrar a Missa do dia o mesmo padre vigário excomungado
declarado; saiu-se a gente da Igreja e logo o padre Antônio de Barros a
acalmá-la, persuadindo que aquela excomunhão era irrisória, que não
podia o Primaz excomungar aos religiosos, respondeu um soldado de
uma das companhias que residem em Rachol que fosse isso dizer aos
turcos, que eles eram cristãos
82
.
O desacato era evidente, assim como a tentativa de contornar a tensão perante os
fiéis. A resposta do soldado de Rachol mostra que a situação era muito tensa. Em Goa, o
81
Idem. p. 380-381. Baldaquim é uma espécie de dossel sustentado por colunas.
82
Biblioteca Nacional de Lisboa. Memória para a História Eclesiástica do Arcebispado de Goa e seus
sufragâneos. Coletânea de textos do séculos XVII e XVIII. Cod. 176. fl. 38.
245
arcebispo exigiu os livros do provincial Queiroz, que os enviou, cedendo finalmente às
pressões. Por outro lado, o arcebispo atendeu à solicitação de absolvição dos padres
Paviziani e Antônio Luís, alegando o escândalo que essa censura causara entre os
gentios
83
. Mas tudo isso não findou o conflito. A situação ficou mais delicada e outras
instâncias de poder da cidade tentaram apaziguar a questão, a exemplo do vice-rei e do
Senado de Goa. Mas o Provincial da Companhia de Jesus, alegando as humilhações
sofridas, informou que os jesuítas sairiam das igrejas de Salcete em dezembro de 1677,
abrindo, assim, caminho para que o arcebispo pudesse prover esses cargos
eclesiásticos
84
.
O que parecia uma derrota, era provavelmente uma manobra dos jesuítas, pois
enquanto cediam na Índia, articulavam a reação no próprio reino. Em 1681 chegou à
cidade de Goa uma resolução real que devolvia Salcete aos jesuítas, fundamentada em
consultas ao Tribunal da Mesa de Consciência e a pessoas doutas sobre o tema e na
jurisdição que o rei tinha sobre Salcete, por ser ele o Grão Mestre da Ordem de Cristo.
Leopoldo da Rocha percebeu a influência dos jesuítas nessa resolução real afirmando
que, do ponto de vista jurídico, a premissa da jurisdição da Ordem de Cristo sobre
Salcete era errada, pois no momento da fundação do bispado de Goa esse direito teria
sido revogado
85
. Mas na época isso não ficou esclarecido, e houve partidários das duas
interpretações. A controvérsia arrastou-se até meados do século XVIII mas, ao menos
em 1681, a ordem real possibilitou o retorno dos jesuítas às igrejas de Salcete.
Essa crise é um bom exemplo dos conflitos que irrompiam em Goa, envolvendo
autoridades eclesiásticas e civis, clero secular e regular, justiça do rei e da Igreja. No
entanto, as confrarias não serviam apenas como combustível para alimentar tais
disputas. Também eram responsáveis por demonstrações de afirmação da fé, como já foi
destacado inicialmente na observação do viajante Pietro Della Valle: o número
impressionante de festas religiosas em Goa, especialmente de procissões. O viajante
italiano descreveu inclusive uma festividade promovida pela Inquisição:
a 29 [de abril], dia de S. Pedro mártir, os inquisidores, que o
consideram fundador da Inquisição, celebraram uma grande festa, que
acabavam de instituir em seu louvor, defronte da sua casa da
Inquisição. Na Igreja de S. Domingos foram cantadas vésperas no dia
83
Leopoldo da Rocha. Op. cit. p. 381-384.
84
Idem. p. 385-386.
85
Idem. p. 398-417.
246
28 e no dia 29 uma solene missa com assistência dos inquisidores in
pontificalibus. À tarde percorreu a cidade uma cavalgada de fidalgos
portugueses a pedido dos inquisidores e um ou dois dias depois houve
uma tourada à espanhola [...]
86
.
Para confirmar o que foi constatado por Della Valle, pode-se utilizar um
interessante documento, intitulado Memória para a História Eclesiástica do
Arcebispado de Goa e seus sufragâneos, onde estão registradas as principais procissões
que se faziam na cidade:
a primeira é no dia de Santa Catarina aos 25 de novembro, em
memória de ser nele a tomada aos Mouros a cidade de Goa de que é
padroeira, concorrem a ela muitas vezes os Vice-reis, e toda a nobreza,
em que os cavaleiros tomam os seus mantos, o Senado da Câmara que
leva sua bandeira, as comunidades de S. Domingos, Sto. Agostinho, de
S. Francisco com suas cruzes, todas as das freguesias da cidade e Ilha
de Goa e suas adjacentes com todo o seu clero com sobrepeliz, as
bandeiras dos Mesteres desta cidade e S. Jorge com outros modos e
danças que nesta terra se usam. [...] Corre as principais ruas da cidade,
centra em uma ermida de Santa Catarina levantada num dos lugares
[...] em que houve maior resistência e no altar da ermida descansa a
relíquia [um pedaço do queixo] da Santa que o sacerdote leva debaixo
do Pálio. [...] A outra procissão é no dia 1º de dezembro, aclamação de
D. João IV. Sai com uma relíquia de S. Francisco Xavier que todos os
anos trazem a Sé dois padres da Companhia antes de sair a procissão,
[...] sai pelas ruas públicas de Goa, centra na Casa Professa donde se
pões a tal relíquia no altar do dito Santo [...].
87
Informa ainda que participavam dela o Cabido, o Senado da Câmara, todas as
cruzes e clero das freguesias da cidade, ilha de Goa e adjacentes, e as comunidades
religiosas
88
. Havia ainda as procissões de 3 de dezembro, de S. Francisco Xavier; a de
São Sebastião contra doenças; outras em função dos êxitos militares dos portugueses; a
de S. Tomé, patrono e apóstolo de toda a Índia; a de Corpus Christi, “não no seu dia
próprio, 5ª feira depois da Dominica in Albis e se reza do sacramento neste dia com toda
solenidade do próprio em toda costa da Índia”; e por último uma procissão que saía da
Sé até a ermida da Cruz dos Milagres
89
.
86
José Antônio Ismael Gracias. Op. cit. p.159.
87
Biblioteca Nacional de Lisboa. Memória para a História Eclesiástica do Arcebispado de Goa e seus
sufragâneos. Coletânea de textos do séculos XVII e XVIII. Cod. 176. fl. 235.
88
Ibidem. fl.235.
89
Ibidem. fl. 235-236.
247
O viajante italiano teve a oportunidade de registrar algumas outras procissões
que não foram citadas no texto citado acima. Em 30 de setembro de 1623, por exemplo,
Della Valle anotou que:
os dominicanos com a irmandade do Rosário fizeram uma solene
procissão em Goa com muitos andores e imagens, vestidas à sua
maneira e adornadas com ricas jóias; todas as ruas do trânsito estavam
juncadas de folhagem verde e flores, e as janelas tendidas de custosos
tapetes e colchas. À festa do Rosário, que é anual, assistiu toda a
cidade. Essa procissão realiza-se depois das vésperas, e na manhã do
dia da festa há outra procissão, limitada ao adro da igreja, mas com
igual pompa e com Santíssimo Sacramento
90
.
Testemunhou, ainda, todos os festejos dos jesuítas relacionados à canonização
de Inácio de Loiola e Francisco Xavier, em fevereiro de 1624, descrevendo assim a
procissão do dia 19 que os encerrou:
[...] saindo da igreja de S. Paulo o Velho, seguiu pelas principais ruas
da cidade, e recolheu na do Bom Jesus; procissão que excedeu tudo o
mais em carros triunfais, navios e outras máquinas, cheias de gente
que representava diversas coisas com boa música e muita gente em pé
dançando. Também desta solenidade se imprimiu uma relação.
Seguiam os padres da Companhia, revestidos de pluviais conduzindo o
corpo de Xavier, encerrado num belo e rico caixão de prata, mui bem
trabalhado, e atrás de tudo a imagem do Santo. Vinham depois uns
padres levando um grande estandarte com os retratos dos Santos
(Inácio e Xavier) e por fim todas as cruzes das paróquias dos jesuítas
de Salcete, e apenas os frades de S. Francisco. Das outras
comunidades religiosas não apareceu frade algum, porque não
costumam ir às procissões dos jesuítas, desde que estes não vão às
daquelas
91
.
Devem ser destacadas duas observações do italiano: a participação das igrejas de
Salcete na procissão e a ausência de outras ordens religiosas, com exceção dos
franciscanos, em festas tão fundamentais para a identidade dos jesuítas. Mais uma vez
percebe-se aí que as tensões e conflitos no interior do clero regular eram grandes.
Já outro viajante, François Pyrard, registrou a festa da Páscoa, demonstrando
estranheza em relação ao que acontecia nas procissões:
90
José Antônio Ismael Gracias. Op. cit. p. 50.
91
Idem. p. 151.
248
quando chega a festa da Páscoa, toda a quinta e sexta-feira santas
fazem procissões gerais, como é uso em todas as terras de el-rei de
Espanha, e nas tais procissões vão grande cópia de penitentes de todas
as qualidades, que se disciplinam e marcham de joelhos com os braços
cruzados. Seria impossível representar todas as cerimônias e modos
estranhos e supersticiosos que nestes atos observam. Para estes
penitentes há lugares à maneira de hospitais, providos de grande
quantidade de vinagres, doces, pão, vinho e outras espécies de
refrescos e muitos panos brancos. O vinagre serve para lhes lavar as
feridas e o mais para os restaurar comendo e bebendo; e ainda os
panos para os limpar e curar
92
.
O francês demonstra nesse trecho que considerava as manifestações religiosas
dos fiéis goeses excessivas e exageradas, pois qualifica negativamente o que
testemunhou.
Portanto, as confrarias tiveram importante participação no trabalho de
evangelização em Goa e adjacências, enfatizando os aspectos exteriores da
manifestação religiosa cristã, como as festas e procissões. Encontravam eco nas
populações hindus, que valorizavam essas demonstrações por estarem acostumados às
suas próprias tradições. Muito tenuamente, percebe-se que alguns elementos culturais se
mesclavam nessas festas, misturando práticas religiosas de diferentes religiões,
admitidas pelo clero transigente com a visão de mundo dos recém-convertidos, tanto
que esse tipo de festejo adquiriu vida longa e existe até os nossos dias. Charles Borges
ressaltou que tais devoções religiosas católicas, particularmente as procissões, são ainda
hoje muito importantes para os cristãos goeses, que estão sempre mais presentes às
festas de Corpus Christi ou da sexta-feira da Paixão do que regularmente nas obrigações
cotidianas do fiel para com a Igreja. Borges defende que isso ocorre justamente porque
a presença de elementos culturais locais nessas festividades garantiu sua longevidade
93
.
Outra instituição que procurava desenvolver a difusão da fé no Oriente era a do
Pai dos Cristãos. O Alvará Régio de 1532 oficializou o cargo de Pater christianorum
(pai dos cristãos), com o ordenado de 30.000 réis (em Goa, pois havia variações de
92
Francisco Pyrard (De Laval). Viagem de Francisco Pyrard, de Laval contendo a notícia de sua
navegação às Índias Orientais, Ilhas de Maldivas, Maluco e ao Brasil, e os diferentes casos que lhe
aconteceram na mesma viagem nos dez anos que andou nestes países (1601 a 1611)... Ed. Joaquim
Helidoro da Cunha Rivara. Porto: Livraria Civilização, 1944. v. 2. p. 77.
93
Charles Borges. The changing faces of Christianity in Goa: from being Portuguese to being Indian? In:
Lusotopie 2000 «Lusophonies asiatiques, Asiatiques em lusophonies». Paris, Karthala, mars 2001. p. 437-
438.
249
acordo com a cidade na qual o Pai dos Cristãos atuava). Com a criação desse cargo
“pretendia-se fundamentalmente sistematizar algumas ações até ali desconexas e
arranjar um local onde fosse possível albergar os catecúmenos durante a instrução nas
coisas da fé. Para isso, diligenciava-se encomendar a comunidade recém formada a «um
bom homem que seja como Pai destes Cristãos e que tenha deles especial cuidado»”
94
.
Wicki destaca que “a instituição do «Pai dos Cristãos» a favor da cristandade é
exclusivamente portuguesa nas Missões do Oriente e em particular na Índia”
95
.
É importante destacar que a instituição não era eclesiástica, mas laica e do
Estado, com função pública, embora também recebesse interferência por parte das
autoridades da Igreja, que legislaram sobre muitas de suas ações nas decisões do
primeiro Concílio de Goa (1567). Havia Pais dos Cristãos nas principais praças e
fortalezas dos portugueses: em Baçaim, Taná, Chaul, Damão, Goa, Cochim, Ceilão,
Ormuz, Malaca e Macau. Wicki acrescenta ainda que cada ordem ficou responsável por
determinadas regiões: os jesuítas por Goa e Salcete; os franciscanos por Bardez e
Baçaim; os dominicanos por Mahim, Tarapur, Damão e Chaul; e os agostinianos por
Ormuz
96
.
As atribuições dadas aos Pais dos Cristãos eram muitas e variadas. Em alguns
momentos podiam servir como árbitro nos dissídios que ocorressem entre cristãos;
outras vezes, eram instados pela Inquisição de Goa a testemunhar sobre questões
relacionadas a denúncias e processos do santo tribunal. Um bom exemplo encontra-se
registrado na documentação do Conselho Geral do Santo Ofício, que guarda uma lista
de gentios que foram presos em 22 de julho de 1685 “porque achavam nesta Ilha de Goa
celebrando um casamento e ritos e cerimônias gentílicas, e outros diversos crimes os
quais pediram o batismo”
97
. O inquisidor desconfiou do pedido e mandou uma ordem
para que o Pai dos Cristãos declarasse em certidão os nomes que constavam do livro dos
batizados. O jesuíta Luís de Abreu, que então ocupava o cargo, prontamente cumpriu a
94
Maria Benedita Araújo. O «Pay dos Christãos». Contribuição para o estudo da Cristianização da Índia.
In: Congresso Internacional De História: Missionação Portuguesa e encontros de culturas. Actas: África
Oriental, Oriente e Brasil. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa/Comissão Nacional Para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Fundação Evangelização e Culturas, 1993. v. II. p. 305-
324.
95
José Wicki. O Livro do «Pai dos cristãos». Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969.
p. IX. Essa publicação transcreve dois manuais de Pais dos Cristãos de jesuítas de Goa, com documentos
copiados por eles: alvarás, provisões e leis que norteavam suas ações. Apesar da criação do cargo
remontar a 1532, Wicki só registra a aparição da figura do Pai dos Cristãos em 1537 e informa que a
instituição foi extinta em 1842, com o fechamento da Casa dos Catecúmenos de Goa.
96
Idem. p. XI.
97
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Maço 31. doc. 28. Lista dos gentios que foram presos em 22
de julho de 1685.
250
solicitação do inquisidor e enviou a lista com os batizados de dezembro de 1683 até
novembro de 1686. Muitos nomes se repetiam nas duas relações, o que indica a
tentativa de dissimulação de alguns prisioneiros. Infelizmente não há nenhum outro
registro sobre o caso, mas pode-se imaginar os procedimentos que foram tomados pelos
inquisidores a partir dessa constatação, a julgar pelo elevado número de penitenciados
por gentilidade no século XVII.
Além das questões que envolveram instituições do Estado da Índia, pode-se
constatar no cotidiano outros tipos de colaborações e conflitos, parte dos quais
registrados nos papéis inquisitoriais. Havia desconfianças entre as ordens, e todos
estavam atentos para fazer acusações, como é o caso da denúncia feita contra frei
Manoel de Monti Oliveti, franciscano, em nome do padre Onofre Cerqueira, da
Companhia de Jesus, ao comissário da inquisição em Baçaim e reitor do colégio, o
padre Francisco de Vergara, também jesuíta, em 25 de fevereiro de 1609. O denunciante
declarou ter assistido à pregação do frei franciscano no dia 4 de outubro de 1608 onde
louvara São Francisco com “proposições temerárias e malsoantes”, a primeira “que
ninguém conheceu mais de Deus nesta vida que São Francisco depois da Virgem Nossa
Senhora”, e a segunda “que ninguém hoje gosta mais de Deus na outra vida que São
Francisco tirando a Virgem Nossa Senhora”
98
. Para além da gravidade do que foi dito, a
iniciativa da denúncia ter partido de um jesuíta possibilita perceber rivalidades entre as
ordens.
Um outro exemplo de conflito pode ser detectado em outro episódio em Goa,
quando um fidalgo assassinara outro em 23 de maio de 1629 por questões de adultério.
O assassino, D. Julianes de Noronha, escondeu-se na casa do inquisidor mais antigo na
época, João Delgado Figueira, que ficava contígua aos cárceres secretos da Inquisição.
Ao saber disso, o ouvidor geral do crime, Paulo Rabello, dirigiu-se imediatamente para
lá, e “com todas as justiças levando escadas e machados as casas em que estava e abrira
as barras por força e sem respeito ao lugar”, procurou o criminoso “abrindo todas as
portas em que podia haver perigo tirara o homiziado, excedendo em tudo o modo que
então se tinha na Índia em semelhantes casos”
99
.
98
ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor. nº 8. livro 209. Traslado da Denunciação contra o
Padre frei Monti Oliveti. 25 de fevereiro de 1609. fl. 409-409 v.
99
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Livro 101.Consulta do Conselho Geral sobre a prisão que fez
Paulo Rebello nas casas do Inquisidor de Goa. 10/01/1631. Lisboa. fl. 2 v-3. O episódio foi narrado pelo
próprio inquisidor João Delgado Figueira em carta ao Conselho Geral do Santo Ofício do dia 6 de
fevereiro de 1630. Antônio Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos inquisidores da Índia
(1569-1630). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930. v. II. p. 742.
251
Tratava-se na verdade de um grave desrespeito à autoridade do Santo Ofício, que
certamente arranhava a imagem do tribunal na cidade. Dessa forma, o Conselho Geral
respondeu à consulta com a recomendação de que as demais autoridades de Goa
respeitassem a Inquisição, enviando solicitação ao rei para que ele demonstrasse o seu
descontentamento com o ocorrido.
Outro ponto de atrito ocorreu na questão do uso do palanquim. O uso desse meio
de transporte estava largamente disseminado até finais do século XVI, quando se iniciou
um processo de restrição de seu uso. Catarina Madeira Santos informa que:
já em 1597, limitava-se o uso dos palanquins aos capitães das
fortalezas, vedores da fazenda, secretário de Estado, ouvidor geral do
crime, desembargadores e ouvidor da cidade. E, mais tarde, em 1615,
proibia-se radicalmente o uso de palanquins na Índia, sem expressa
licença do vice-rei
100
.
Mais tarde, em 1630, o vice-rei Conde de Linhares tinha mandado executar uma
lei que proibia o uso do palanquim, exceto pelo arcebispo que já estava velho e doente,
o que aborreceu os inquisidores, desejosos de manter esse privilégio. Estes pediram a
intervenção do Conselho Geral do Santo Ofício que, de Lisboa, solicitou ao vice-rei que
permitisse o uso de palanquim aos inquisidores. A resposta do Conde de Linhares ao
Conselho Geral é uma pérola de desacato ao Santo Ofício, alegando que o rei:
tinha mandado com muito fundadas razões que não andasse nenhum
homem em braços de outros, porque desta delícia nascera afeminarem-
se os homens e que na Índia havia muitas mulas que os Inquisidores de
Portugal andam nelas que assim podiam fazer o mesmo, ou inventar
[?] carretas com cavalos em que andassem
101
.
A mesa do Conselho Geral do Santo Ofício solicitou ao rei que fizesse o vice-rei
voltar atrás.
A correspondência entre o Conde de Linhares e o inquisidor João Delgado
Figueira exemplifica a que ponto chegaram os atritos. No dia 10 de março de 1630 o
vice-rei enviou uma carta ao inquisidor onde reclamava que este havia faltado ao
100
Catarina Madeira Santos. Op. cit. p. 233.
101
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Livro 101. Consulta do Conselho sobre a lei que o Conde de
Linhares publicou sobre a proibição dos palanquins. 10/01/1631. Lisboa. fl. 6 v.
252
“negócio do serviço de Sua Majestade”, marcado pelo conde, solicitando, ao fim da
missiva, uma resposta ao pé da carta. João Delgado Figueira respondeu conforme
solicitado:
por V. Ex
a
. me manda que responda ao pé desta o faço, e nela me
manda dar razão porque me escusei de ir a uma junta que V. Ex
a
. faz
de todos os ministros deste Estado, prelados maiores e inferiores das
religiões [...]. Primeiramente digo que no serviço de S. Majestade não
falho um ponto, e este ano com estar só neste Santo Ofício por não
poder acudir a todas as diligências que se me cometeram do serviço
[...]; além de estar tão maltratado que me não posso bolir e estar há 4
meses em casa sem poder ir aos ofícios divinos por V. Ex
a
. me proibir
andar em uma cadeira como andam muito dos ministros Inquisidores e
não Inquisidores em Portugal que não são tão enfermos como eu e não
ter outra coisa em que andar e ser caluniado e mal aceito do pouco
andar a pé [...]
102
.
Concluiu afirmando que devia toda obediência ao vice-rei, mas que sua alegação
justificava sua falta; em uma última provocação, disse ter faltado outras vezes, e que o
conde de Linhares não tinha feito tanto caso. No dia seguinte, visivelmente irritado, o
vice-rei voltou a solicitar uma resposta de João Delgado Figueira na mesma folha,
abaixo do registro do inquisidor, acrescentando que sua proibição do uso da cadeira não
era pessoal e sim genérica. Reconheceu que havia um inquisidor em Lisboa que a
utilizava, mas este tinha que vencer ladeiras muito dificultosas, enquanto o percurso que
Figueira tinha que percorrer em Goa era muito mais fácil. Afirmou, por último, que já
havia oferecido a ele dinheiro para comprar uma mula. João Delgado Figueira responde
dessa vez secamente, dizendo que “se queira dar por satisfeito com eu dizer de mim que
nem pude e nem posso mais pelas razões de minhas indisposições e as mais que tenho
dado”
103
. Fica claro que o inquisidor entendia que a proibição do uso do palanquim era
um desrespeito à condição de seu cargo, apesar das alegadas justificativas de saúde. Por
fim, o Conselho Geral do Santo Ofício despachou em favor do inquisidor de Goa
104
.
O mesmo João Delgado Figueira, ainda no tempo em que era promotor do
Tribunal do Santo Ofício na cidade, foi protagonista de mais um atrito, dessa vez entre
102
Biblioteca da Ajuda. Miscelânea Coleções de Francisco Barreto. Cartas do Vice-rei da Índia, Conde de
Linhares (D. Miguel de Noronha) para o inquisidor em Goa, João Delgado Figueira e resposta do
inquisidor. 10 de março de 1630. Códice 51-VI-9. fl. 5.
103
Ibidem. fl. 6.
104
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Liv. 101. Consulta do Conselho sobre a junta que o Conde de
Linhares fez a que chamou o inquisidor João Delgado e ele não foi. Lisboa. 13/11/1631.
253
Inquisição e a Companhia de Jesus. O centro da questão era a discussão sobre os ritos
gentílicos defendidos pelo padre Roberto Nobili como sinais exteriores e inofensivos à
fé católica. Os debates já se desenvolviam desde 1610 quando, em 1618, o papa Paulo
V ordenou que o arcebispo e os inquisidores de Goa fizessem uma junta para analisar as
práticas do jesuíta italiano no Malabar. Em 31 de janeiro de 1619 foi instalada a
comissão formada pelos arcebispos de Goa e Cranganor e pelo promotor da Inquisição,
João Delgado Figueira. O propósito da junta era tomar “perfeita informação se os ritos
dos brâmanes e a linha e o sendi e o sândalo e uso de lavatórios são sinais da falsa seita
dos ídolos”
105
.
Logo o primeiro registro refere-se ao arcebispo de Cranganor, que apresentou à
junta um “tratado comprido” sobre a natureza dos ritos gentílicos, recomendando que
fosse lido por teólogos. Além disso, havia livros trazidos de Maduré, mas que só ele e o
padre Nobili saberiam ler. O arcebispo de Goa solicitou então que eles lhes contassem o
que havia nos livros. O jesuíta italiano foi o primeiro a falar, e defendeu o caráter
político dos ritos gentílicos
106
.
No dia 9 de fevereiro de 1619 o arcebispo de Cranganor enviou uma carta à
comissão, onde declarou que ele e os padres da Companhia de Jesus sabiam “de vista e
experiência de muitos anos e da lição dos livros e línguas dos brâmanes” que a linha, o
sândalo e os lavatórios eram sinais da nobreza das famílias brâmanes, fazendo forte
defesa de Nobili
107
.
Entretanto, havia quem discordasse. Uma carta do Bispo de Cochim, datada de 6
de junho de 1619, usa o mesmo argumento da experiência para denunciar de forma
veemente os ritos gentílicos, ao afirmar que: “há trinta e cinco anos e seis meses que
vim para a Índia [...] e pela experiência que tenho destas partes [...] tenho sabido que a
linha é sinal demonstrativo de gentilidade e de religião falsa que os brâmanes gentios
professam”
108
.
João Delgado Figueira articulou seus trabalhos apresentando primeiramente um
arrazoado sobre a questão, enumerando as dúvidas enviadas pelo papa e depois
contrapondo argumentos contra e a favor dos ritos gentílicos. Desdobrou as dúvidas em
dois níveis: “se é lícito” e “se é necessário” o uso dos ritos gentílicos. Afirmou logo a
princípio que não era lícito, sem mais delongas, por serem evidências de ligação com a
105
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Liv. 207. Consultas da Inquisição de Goa (1572-1620). fl. 52.
106
Ibidem. fl. 61.
107
Ibidem. fl. 64.
108
Ibidem. fl. 79.
254
religião dos gentios, mas dedicou-se em seguida à análise da necessidade da permissão
do uso dos ritos para o bem da conversão. Concluiu dizendo que: “os ditos sinais
protestativos da gentilidade oriental são sinais muito pertencentes à religião dos ditos
pagodes e não se convém que se permitam na Cristandade”, enfatizando o caráter
diabólico dessas manifestações.
109
. Trata-se de um texto elegante, extremamente
erudito, que demonstra o grande conhecimento da realidade indiana que tinha João
Delgado. Além desse parecer, ou voto que ficou nos registros da Inquisição —,
elaborou ainda um parecer em latim, datado de 10 de abril de 1619, com cópias
despachadas para Roma e para o Conselho Geral do Santo Ofício em Lisboa; são oitenta
e seis folhas nas quais o promotor desenvolve as idéias já expostas
110
.
No entanto, este não se restringiu à construção de uma argumentação contra os
ritos gentílicos. Em 1620 recebeu um texto de cinco padres brâmanes, vigários de
igrejas de Goa, que afirmavam “ser a linha e curumbim sinal de seita”. Nele os clérigos
seculares nativos explicavam que:
a linha de que é a questão, ordinariamente se faz de nove fios porque
têm os brâmanes para si, e de opinião que corre entre eles, que o
mundo se reparte em nove partes, e desses nove fios se fazem três
cordéis delgados, os quais lançam ao tiracolo do ombro esquerdo ao
modo de colar como um só. Estes três cordéis em protestação dessa
divindade falsa que adoram, tem um só nó porque dizem que estas três
falsas pessoas são Brama, Visnnú, Mtayesou; compondo de nove fios
para mostrar que todas as criaturas destas nove partes do mundo estão
sujeitas a estes falsos deuses que adoram
111
.
Relataram ainda que a linha era posta pelo sacerdote hindu, o boto, o que
implicava necessariamente freqüentar uma série de cerimônias gentílicas. Por fim,
desautorizaram completamente a interpretação defendida por Nobili e pelo arcebispo de
Cranganor, e alertaram para “o perigo de escândalo para a Cristandade”. Após esse
episódio, no mesmo ano, João Delgado Figueira fez uma convocação para se
apresentarem à Inquisição vários portugueses, civis (11) e religiosos (2), que habitavam
por longo tempo a cidade de Goa, e a clérigos seculares nativos (7) de várias paróquias
da cidade e adjacências (inclusive Bardez e Salcete). Para todos fez a mesma pergunta:
109
Ibidem. fl. 83-96.
110
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Liv. 474, Parecer de João Delgado Figueira, promotor e
deputado da Inquisição de Goa sobre os sinais gentílicos. Goa, 10 de abril de 1619. 86 fls.
111
ANTT. Conselho Geral do Santo Ofício. Liv. 207. Consultas da Inquisição de Goa (1572-1620). fl. 98.
255
“se sabiam o significado da linha”. Todos responderam que sim, e todos, sem exceção,
disseram que ela era um sinal de seita gentílica. Não é difícil perceber o objetivo do
promotor: trata-se da construção de um argumento bem alicerçado para defender a
objeção aos métodos de cristianização de Nobili, destacando a possibilidade de
escândalo que a permissão do uso dos ritos gentílicos podia causar à cristandade sitiada
da capital
112
. O empenho de João Delgado Figueira em desautorizar os métodos de
cristianização de Nobili no Malabar deve ter angariado muitas antipatias contra o
promotor, além de outras já apresentadas até aqui envolvendo sua figura.
Outra demonstração de como existiam tensões de várias origens na cidade pode
ser vista no traslado da “Devassa que se criou neste Santo Ofício da morte do padre
Antônio de Andrade religioso da Companhia de Jesus e Deputado dele”, enviado a
Lisboa para apreciação do Conselho Geral do Santo Ofício
113
. Tratava-se, na verdade,
do registro dos testemunhos sobre o assassinato do padre jesuíta Antônio de Andrade,
que fora envenenado em pleno refeitório do colégio de São Paulo de Goa. A Inquisição
tomara as rédeas da investigação por suspeitar que o homicídio tinha sido perpetrado
como atentado à autoridade do santo tribunal, desconfiando que o padre fora morto por
ser deputado do Santo Ofício goês, presunção que se justificava pela suspeita de que o
crime ocorrera num sábado, véspera do auto-de-fé no qual o padre faria o sermão.
É interessante lembrar que o jesuíta Antônio de Andrade era uma figura de
grande destaque na Companhia de Jesus. Nascido em Oleiros, Castelo Branco, Portugal,
no ano de 1580, foi admitido ao noviciado em 1596, partindo para a Índia em 1600. Em
Goa completou a formação religiosa e, em seguida, foi enviado a Agra, como superior e
visitador da missão mogol. Ali reuniu informações sobre o Tibete e decidiu empreender
uma viagem para essa região. Em 1624 iniciou a jornada, conseguindo superar as
dificuldades do Himalaia e localizando as nascentes do rio Ganges. Chegou enfim ao
reino de Guge, e obteve permissão do rei local para pregar a fé católica. Retornando a
Agra, informou por carta ao visitador da Companhia de Jesus na Índia, André Palmeiro,
sobre a sua ousada viagem, e em 1625 voltou ao Tibete, onde conseguiu a conversão do
rei e da rainha de Guge, entre outros habitantes locais. Em 1629 foi chamado a Goa para
assumir o cargo de provincial e depois o de reitor, além de ter assumido o cargo de
deputado da Inquisição de Goa, em 1633. Não se pode esquecer também que esse
jesuíta participou ativamente da visitação de Antônio de Vasconcelos ao Tribunal dessa
112
Ibidem. fl. 292-302.
113
ANTT. Inquisição de Lisboa. Proc. 13942. (1634).
256
cidade em 1632, como secretário das sessões, quando se fundamentaram sérias
acusações contra o inquisidor João Delgado Figueira. Preparava-se para voltar ao Tibete
quando foi envenenado
114
.
O primeiro a ser ouvido pelo inquisidor Antônio de Faria Machado, juntamente
com o deputado frei Jerônimo da Paixão, em 29 de março de 1634, foi frei Diogo de
Santa Maria, agostiniano, morador de Goa, onde exercia a medicina (graduado pela
Universidade de Coimbra). Seu relato afirmava, sem hesitações, que a morte do jesuíta e
deputado do Santo Ofício tinha sido motivada por envenenamento, e que a substância
utilizada era “refinada”. Relacionou tecnicamente quais os indícios observados no
estado de saúde do padre para fazer essa afirmação: seis dias sem urinar, fluxo de
sangue na boca, pulso cada vez mais fraco à medida que chegava perto da morte.
Informou ainda que ele havia tomado três goles da água, e só então desconfiara do
veneno. Tomou várias “contra-peçonhas”, mas de nada adiantaram os remédios.
Curiosamente, em seu testemunho afirma só ter sido chamado a ver Antônio de
Andrade quando já lá se iam quatro dias de doença. Provavelmente os companheiros do
reitor do colégio jesuíta hesitaram em tornar público tal evento, enquanto acalentaram
esperanças de que o padre sobreviveria
115
.
O padre Tomás de Barros, jesuíta, teólogo, morador no colégio de São Paulo, foi
o segundo a testemunhar. Afirmou que:
ele sabe e é geralmente sabido no dito colégio da Companhia que o
dito padre Deputado morreu de peçonha e que lhe foi dada na água de
gorgoleta que se põe no lugar determinado para o Reitor, como ele
atualmente era, e lhe foi dada ao Sábado, ao jantar antes do Domingo
do auto-de-fé que se contaram quatro de março, por quanto estando ele
jantando na segunda mesa e botando água da dita gorgoleta em uma
porcelana e levando-a a boca para beber dela, bebeu alguma
quantidade até que sentiu na língua e na garganta os efeitos que aquela
água que tinha bebido lhe fizera e causara pela peçonha que tinha,
dizendo aos companheiros que estava cheio de peçonha e alevantando-
se logo da mesa, depois de mandar ao Ministro da casa visse que água
era aquela que estava na gorgoleta [...]
116
.
114
Para um resumo das viagens de Antônio de Andrade ver Hugues Didier. Op. cit. p.7-26. A obra reúne
ainda as cartas do jesuíta e um interessante estudo iconográfico.
115
ANTT. Inquisição de Lisboa. Proc. 13942. (1634). fl. 1 v-2.
116
Ibidem. fl. 3-3 v.
257
Atormentado, o reitor teria tomado grande quantidade de azeite e vomitado em
seguida, o que não fora suficiente para neutralizar o veneno. Enquanto isso, os
companheiros davam a água bebida por Antônio de Andrade a um cachorro, que
apresentou os mesmos sintomas observados no reitor. Após a morte do cão, abriram
suas entranhas e constataram que tinha as tripas inchadas, sinal que comprovava a
presença de veneno
117
. Tomás de Barros relatou ainda que Antônio de Andrade morreu
depois de muitos dias de agonia e, ao final, tinha diversas brotoejas pelo corpo e
grandíssimo ardor interno.
Em seguida, o inquisidor perguntou a Tomás de Barros quem poderia ter
colocado o veneno na água, ao que o jesuíta respondeu dizendo que haveria de ser
algum religioso do colégio, ou talvez um dos filhos de João Rodrigues de Lisboa,
contratador cristão-novo e morador de Goa, afirmando depois que não acreditava nessa
hipótese. Achava mais provável que tivesse sido um padre da Companhia,
acrescentando nomes: padre Diogo de Areda, morador da casa professa, e o irmão
Antônio Salvador, morador do colégio; os dois ainda teriam outro cúmplice, o padre
Antônio Rodrigues Junior, também morador da casa professa, e estariam desgostosos
com algumas atitudes do reitor. Informou ainda que o irmão Salvador era cristão-novo,
e que o padre Diogo sabia preparar muitos venenos
118
.
A carga feita por Tomás de Barros contra o irmão Salvador é fortíssima. A
citação de suas considerações é longa mas, por sua riqueza, merece ser transcrita:
primo, não ir o dito irmão Salvador comer no dia da peçonha à própria
mesa, sendo costume e obrigação vir a ela: sobre o qual indício forma
ele testemunha conceito que sendo costume do Reitor ir também
sempre comer à própria mesa, não quis o dito irmão achar-se na
própria mesa por que senão perturbasse com a vista do caso. 2º. Disse
ele testemunha que ouviu ao padre Manuel de Souza professo e
morador no mesmo colégio que sabia perguntara o dito irmão
Salvador a outro irmão cujo nome lhe não disse, no dia do caso da
peçonha, se estava ele dito Salvador corado do rosto ou descorado. 3ª.
Que achando-se o dito irmão Salvador na segunda mesa quando o caso
aconteceu e dizendo: Jesus que desastre! Depois da mesa no tempo da
sesta, indo o irmão Manuel Rodrigues morador no mesmo colégio
avisar ao irmão Miguel d’Almeida espavorido do caso, encontrou-se
com o dito irmão Salvador que vinha com o padre João da Costa e o
dito irmão Salvador se fez de novas sobre o caso, perguntando: que é
117
Provavelmente o veneno era o solimão, poderoso corrosivo, mas também é uma designação genérica
para poções venenosas. A palavra é de origem árabe.
118
ANTT. Inquisição de Lisboa. Proc. 13942. (1634). fl. 4 v-6 v.
258
isso, está o padre Reitor mal ou está doente. 4º. Disse mais que ouvira
ao pe. Cristóvão de Atouguia ministro do dito colégio que ele sabia de
ouvida que o dito irmão Salvador dissera: pode ser que quem lhe deu a
peçonha não pretendeu matá-lo, senão impedir que não pregasse no
cadafalso. 5º. Que ele dito irmão Salvador andou aqueles dias depois
do caso, três ou quatro a ele próximos, muito descorado e como
perturbado e no falar embaraçado, e alcançado como testemunha viu e
notou por este irmão Salvador ser muito corado de seu natural e muito
atrevido e desembaraçado no falar. 6º. que o dito irmão Salvador, o dia
em que se enterrou o dito padre Andrade, se foi meter a incensar seu
corpo, sem ser para isso mandado pelo ministro do dito colégio, a
quem pertence apontar os que hão de fazer estes ministérios; forma ele
testemunha sobre esta conjectura que se o dito irmão estivesse em boa
consciência, não se fora entremeter neste ofício, e assim que iria para
dar satisfação de si e tirar alguma suspeita que dele poderia haver.
Disse mais que sabe ele testemunha que no tempo da doença do dito
padre Andrade, mas não sabe em que dia, indo o padre Antão de
Morais criado do bispo Dom João da Rocha, visitar o padre João de
Sousa lente de véspera no dito colégio e falando com ele sobre a dita
doença, disse que o dito padre não havia de escapar, e que isso sabe
porque lho disse o padre Flamínio Caló, dizendo que lho dissera o dito
padre João de Sousa
119
.
Das onze testemunhas ouvidas pelo inquisidor (dez jesuítas e um agostiniano), o
relato de Tomás de Barros é o mais detalhado e minucioso. Foi ele o responsável pela
citação de nomes dos acusados, que seriam repetidos em parte por outras testemunhas.
Nenhum outro religioso presente ao santo tribunal fez considerações e reflexões tão
detalhadas. Alguns relatos reforçariam pontos específicos, mas pouco foi acrescentado
ao dito por Tomás de Barros, com a exceção do relato do padre Flamínio Caló, que
aduziu uma informação ao testemunho do companheiro:
[...] foi visto o dito irmão estar escondido na casa de água que está
junto ao refeitório e tem uma janela que cai sobre o lugar da mesa em
que costuma comer o reitor por onde se presume que no tempo que
conforme ao costume da religião, os padres e religiosos, antes de
entrarem na própria mesa, costumam ter um quarto exame de
consciência em seus cubículos, este irmão entraria no refeitório pela
dita casa de água e então lançaria a peçonha na gorgoleta do dito padre
e que depois porque veria e entenderia que não poderia sair pelo
refeitório, sem ser visto de alguns padres e religiosos, se deixaria ficar,
e estar escondido na dita casa d’água em que foi visto estar escondido
119
Ibidem. fl. 7-9 v.
259
ao tempo da mesa própria e que isto sabe ele testemunha por lho dizer
e relatar o padre Manuel Sousa, vice-reitor do colégio[...]
120
.
Outras declarações feitas pelo padre Caló sobre a motivação do assassinato,
diferentes daquelas fornecidas por Tomás de Barros, apontaram a grande amizade que
ligava o irmão Salvador ao padre Antônio Rodrigues Junior (teriam vindo juntos do
reino), e os problemas que o primeiro tivera com o reitor envenenado remontariam aos
tempos em que Antônio de Andrade era provincial, quando tentara despedir Salvador da
Companhia de Jesus
121
.
Em seu requerimento, o promotor solicitou a prisão e recolhimento aos cárceres
da Inquisição do irmão Salvador, por ser “tido geralmente por cristão-novo, nos quais se
acha mais propensão contra os ministros do Santo Ofício”, e que ele devia ser
“examinado sobre a dita culpa”
122
. Entretanto, a Mesa do Santo Ofício de Goa agiu com
maior prudência, e todos os presentes reunidos em 18 de julho de 1634 entenderam que:
[...] ainda que contra ele resultavam indícios legítimos para ser preso,
vista a qualidade do crime ser de dificultosa prova que não pertencia a
conhecimento dele ao Tribunal do Santo Ofício por constar da mesma
devassa que a morte do p. Antônio d’Andrade foi maquinada, e
traçada em razão de inimizades particulares que com ele tinham o dito
irmão Salvador e mais pessoas que se tem que nisto entrevieram, e que
sem embargo disto se acabasse a dita devassa e que com este assunto
fosse enviada ao Ilmo Snor Bispo Inquisidor Geral
123
.
Em Lisboa, no dia 29 de fevereiro de 1636, o Inquisidor Geral deu o parecer de
acordo com a decisão da Mesa do Santo Ofício de Goa.
Nesse episódio, narrado apenas a partir do ponto de vista da investigação
inquisitorial pois não foi possível encontrar a documentação jesuítica correspondente
ao caso , há elementos sobremodo interessantes. Aparentemente, como aliás
concluíram os inquisidores, o caso resultara de brigas internas da Companhia de Jesus,
quando não de inimizades meramente pessoais, ou ainda de algum tipo de vendeta, uma
vez que Antônio de Andrade participou ativamente da visitação de Antônio de
Vasconcelos ao Tribunal de Goa em 1632, que não apenas implicou o inquisidor João
120
Ibidem. fl. 11-12 v.
121
Ibidem. fl. 11.
122
Ibidem. fl. 30 v.
123
Ibidem. fl. 30 v-31.
260
Delgado Figueira, mas também outros funcionários, especialmente notários. A princípio
chegou-se a pensar em uma conspiração de cristãos-novos contra o jesuíta e,
indiretamente, contra a Inquisição, demonstrando que sobreviviam tensões dessa ordem
na cidade. Entretanto, o Santo Ofício não se deixou levar por essa teia de intrigas,
reconhecendo que, apesar de cristão-novo, seu crime não pertencia ao foro
inquisitorial
124
.
De maneira que, se foram funcionários ressentidos do tribunal goês que
mandaram envenenar o reitor jesuíta, por vingança, através de um padre cristão-novo; se
foi esse mesmo padre que assassinou o reitor por iniciativa própria ou à frente de uma
conspiração cristã-nova; ou, ainda, se tudo não passou de ódios intestinos à Companhia
de Jesus, tudo permaneceu envolto em mistério. O próprio Santo Ofício preferiu não dar
continuidade à investigação, e pode ser que tivesse outras razões para tanto, além da
alegada insuficiência de provas ou inadequação de foro.
Todos os exemplos aqui apresentados demonstram que a “Roma do Oriente”
tinha muitas ações coordenadas entre instâncias civis e religiosas, no intuito da
cristianização, mas também demonstram, por outro lado, que vicejavam conflitos de
toda sorte nos vários níveis da sociedade goesa.
Da mesma forma, havia também oscilações entre um esforço de ocidentalização
diante da constante influência de costumes indianos, no espaço cada vez mais confinado
da cidadela cristã no Oriente. Como afirma Serge Gruzinski, as fronteiras
apresentavam-se como elas costumam ser: porosas, permeáveis, flexíveis; deslocam-se
e podem ser deslocadas
125
. Havia as ameaças externas à cidade de Goa, mas havia ainda
uma série de acontecimentos na própria dinâmica da sociedade indo-portuguesa que
promovia uma mistura que muitos acreditavam que deviam ser combatidas, tal como os
inquisidores que viam as cerimônias gentílicas como diabólicas e pretenderam extirpá-
las de seu cotidiano. No entanto, outros lançavam mão dos recursos místicos para a
proteção de suas vidas, recuperação da saúde, ou encontro de tesouros que
promovessem uma condição de vida melhor, como se pode entrever nos registros
sobreviventes da Inquisição de Goa. Ao mesmo tempo, proliferavam confrarias e
124
As poucas informações recolhidas sobre esse episódio na presente pesquisa identificaram a
sobrevivência da interpretação de que Antônio de Andrade foi “envenenado à traição por um serviçal do
Colégio de São Paulo ao que parece de conivência com os judeus de Goa, em vésperas de pregar num
auto-de-fé”. Verbete Antônio de Andrade. In: VERBO Enciclopédia Luso-Brasileira de cultura. Lisboa:
Verbo, 1964. v. 2. p. 191.
125
Serge Gruzinski. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001. p. 48-49.
261
irmandades, procissões serpenteavam pelas ruas da cidade, em celebrações
perfeitamente cristãs, embora associadas aos hábitos muito antigos das comunidades
hindus. As fronteiras dentro da cidadela cristã eram também porosas, permeáveis e
flexíveis.
262
4. Em busca de uma “ordem goesa”: a Congregação do Oratório da
Santa Cruz dos Milagres
Como visto anteriormente, um dos problemas que existiam em Goa, que sem
dúvida cresceu muito ao longo do século XVII, foi a questão do clero nativo. Esse
quadro resultou da própria contradição do processo de cristianização promovido pelos
portugueses na Índia. A ação evangelizadora, que não se limitava apenas à conversão,
mas que também fomentava a formação de um clero arregimentado entre os convertidos
da sociedade local, ao mesmo tempo mantinha critérios de segregação responsáveis por
enorme tensão. De um lado, havia um número crescente de religiosos seculares não-
europeus e, do outro, colocações eclesiásticas muito aquém desse número
126
.
Além disso, diversos outros problemas assolavam o Oriente português: os atritos
com a Holanda e a Inglaterra; as pressões militares dos inimigos “infiéis” ao redor dos
territórios lusitanos; as disputas de hegemonia na ação religiosa entre o papado e a
Coroa; os conflitos existentes na própria cidade de Goa, com as rivalidades entre as
ordens religiosas, entre o clero secular e regular, entre representantes das instituições
civis e religiosas. Tudo conspirava para incrementar ainda mais a tensão geral.
Desde meados do século XVI, quando recrudesceu a ação evangelizadora na
Índia portuguesa, nota-se uma série de iniciativas por parte das autoridades civis e
eclesiásticas para a cristianização das populações hindus desses territórios. A prática dos
batismos em massa, a fundação de seminários, a legislação restritiva às práticas
religiosas hindus, o aparato visual dos edifícios religiosos, as confrarias e as procissões,
tudo fazia parte de um projeto de construção da cristandade no Oriente, um projeto de
afirmação da civilização européia que, em contato com as tradições das culturas locais,
lançou mão de inúmeros instrumentos.
Apesar do destaque dado nessa pesquisa ao papel da Companhia de Jesus, nem
remotamente pode-se supor que apenas essa ordem atuava nesse campo. Mesmo em
menor grau, talvez não tão sistematicamente quanto os jesuítas, mas com certeza
126
As primeiras ordenações de clérigos nativos de Goa remontam aos anos de 1532 e 1533. Ver Antônio
Lourenço Farinha. A expansão da fé no Oriente: subsídios para a História colonial. Lisboa: Agência geral
das Colônias, 1943. p. 20.
263
efetivamente, outras ordens participaram desse esforço, a exemplo dos franciscanos, que
monopolizaram as conversões de Bardez, e os dominicanos em Tissuari
127
.
Em Goa, cabeça da cristandade no Oriente devido ao seu papel de centro
administrativo eclesiástico, havia a presença de uma grande massa de religiosos vindos
da Europa. Na verdade, era ali que se concentravam, pois o número dos que eram
“lançados” em ação missionária era sempre inferior ao dos que povoavam as várias
instituições clericais da cidade. Um indicador importante dessa pressão “demográfica
religiosa” pode ser visto na proibição de edificação de conventos na Índia sem a licença
especial do rei, feita em 1615
128
.
Ainda assim, a formação de um clero nativo constituía-se como algo
fundamental para a obra de conversão, mas também útil do ponto de vista prático, uma
vez que, devido ao domínio das línguas locais, os clérigos naturais da terra tinham
maior acesso aos recém-convertidos. Nesse sentido, a proibição que em 1658 o papa
Alexandre VII fez aos missionários da Índia de fazerem confissão por meio de
intérprete, através do breve Sacrosancti apostulatus, pode ser vista como mais uma
estratégia de pressão de Roma sobre o padroado português, e uma forma de incentivar o
aproveitamento do clero indiano e/ou mestiço
129
.
Cabe aqui uma importante reflexão. O esforço de expansão e da decorrente
colonização por parte de Portugal nos séculos XVI e XVII só havia sido possível graças
ao processo de miscigenação que os portugueses promoveram nas regiões que
ocuparam. Por tratar-se de um “ambiente fronteiriço, de guerras contínuas, que
permanecem até ao fim do século XVIII, muito poucas mulheres foram para a Índia, em
comparação com os homens”
130
. Sendo assim, os filhos dos casamentos de portugueses
com mulheres indianas constituíam um grupo de número significativo e fundamental
para a afirmação da presença lusitana no Oriente. Por outro lado, nesse mesmo período
percebe-se no reino um processo de valorização dos critérios de “pureza de sangue”,
127
Ver Cipriano da Cunha Gomes. A cristianização de Bardês. In: Boletim do Instituto Vasco da Gama.
Separata. Bastorá/Goa: Tipografia Rangel, 1957. Castilho de Noronha. A cristianização da Ilha de
Tissuari não foi exclusivamente obra dos religiosos da ordem de S. Domingos. In: Boletim do Instituto
Vasco da Gama. Separata. nº 80, Bastorá/Goa: Tipografia Rangel, 1961. Este último autor afirma que
outras ordens religiosas estiveram evangelizando a ilha de Tissuari, negando o monopólio dos
dominicanos na região. De todo o modo, o contrário não aconteceu, quer dizer, franciscanos e jesuítas
consolidaram suas presenças nas respectivas regiões que lhes foram atribuídas.
128
Fortunato de Almeida. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense, 1967. v 2. p. 252.
129
Idem. p. 256.
130
C. R. Boxer. As relações raciais no Império colonial português 1415-1825. Porto: Aforamento,
1988. p. 61.
264
que impregnou toda a lógica da sociedade portuguesa, desde colocações nos cargos da
administração do rei até a instalação do Tribunal do Santo Ofício.
No Oriente, Boxer diz que:
a política da Coroa portuguesa relativamente à barreira de cor no
Estado da Índia nem sempre foi clara e consistente, mas, no conjunto
os reis portugueses seguiram o princípio de que a religião e não a cor
deveria ser o critério para a cidadania portuguesa, e que todos os
convertidos asiáticos ao cristianismo deveriam ser tratados como
iguais dos seus correligionários portugueses. Leis neste sentido foram
promulgadas, em 1562 e 1572, mas [...] nunca foram totalmente
cumpridas
131
.
A formação do clero nativo também deve ser analisada sob esse ângulo
contraditório. Não havia restrição a serem formados clérigos de origem indiana ou
mestiça, mas as restrições de carreira existiam. Novamente Boxer indica:
[...] os portugueses na Índia estavam preparados para educar
candidatos indianos e mestiços ao sacerdócio secular, mas
mantiveram-nos em posições estritamente subordinadas como sistema
de política eclesiástica e colonial, e recusaram sem apelo deixá-los
tornarem-se jesuítas, dominicanos, franciscanos ou agostinhos
inteiramente responsáveis
132
.
Em geral, as ordens religiosas hesitaram inicialmente em obstar a entrada de
indianos e de mestiços, mas com o tempo acabaram por recusar qualquer admissão
desse tipo.
No caso dos jesuítas, a recomendação para a proibição da entrada de nativos na
ordem foi feita por Valignano, com a notável exceção dos japoneses os “brancos do
Oriente” , segundo suas próprias palavras. O Geral da Companhia adotou a posição de
Valignano, que passou a ser a da própria Companhia de Jesus, que permitiu apenas a
entrada de japoneses, a princípio, e depois a de chineses e coreanos
133
.
Somente na segunda metade do século XVIII as ordens religiosas estabelecidas
no Oriente adotariam uma postura mais flexível em relação à admissão de indianos.
131
Idem. p. 70-71.
132
Idem. p. 67.
133
C. R. Boxer. The Christian Century in Japan: 1549-1650. Los Angeles/London: University of
California Press/ Cambridge University Press, 1951. p. 81.
265
Entretanto, o século XVII foi muito marcado por essa intransigência, o que inviabilizava
aos clérigos locais o caminho da carreira regular. Restava, então, a carreira secular, mas
nela também, como foi visto, os postos mais altos da hierarquia estavam interditados. O
exemplo das reações negativas das autoridades eclesiásticas de Goa contra Mateus de
Castro, clérigo brâmane anteriormente mencionado, é um bom indicador disso.
Apesar da importância do referido clérigo brâmane como símbolo da reação
goesa à intransigência das autoridades eclesiásticas de Goa, já destacada na crise entre a
Propaganda Fide e o padroado português, o acontecimento mais significativo das
expectativas frustradas do clero indiano encontra-se na formação da Congregação do
Oratório da Santa Cruz dos Milagres, em 1682.
Nas Memórias para a História Eclesiástica de Goa e Missões da Ásia encontra-
se o relato das origens da congregação:
[...] uns quatro Presbíteros, naturais de Margão das terras de Salcete, a
saber os padres Pascoal da Costa Jeremias, José Cabral, Simão Vaz e
José da Silva, se recolheram espontaneamente na Ermida de S. João do
Deserto, que ficava no monte da freguesia de Guadalupe das Ilhas de
Goa, com intento de servir a Deus apartados do tráfego do mundo,
tratando da reforma de suas vidas e aproveitamento dos próximos e
assim nessas terras, como na Missão do sul, que então estava bem falta
dos operários evangélicos
134
.
No ano seguinte, a ermida em que se encontravam foi desocupada devido à
destruição que sofrera no período das chuvas e por estar em região muito ameaçada por
ataques do inimigo marata Sambagi. Foram abrigados pela Igreja de Santa Cruz dos
Milagres em 1684, por iniciativa dos irmãos da confraria dessa igreja
135
. Nessa época se
agregaram ao grupo outros clérigos, também brâmanes como os quatro primeiros, com
destaque para o padre José Vaz.
José Vaz nasceu em 1650 ou 1651, filho de Cristóvão Vaz e Maria Miranda,
brâmanes, todos naturais da aldeia de Sancoale em Salcete, estudou no colégio de S.
Tomás dos jesuítas e ordenou-se padre em 1676. Era considerado um clérigo
competente, bom pregador e tinha sido vigário de vara na missão do Canará por três
134
Biblioteca Nacional de Lisboa. Reservados. Memórias para a História Eclesiástica de Goa e Missões
da Ásia. Microfilme F. 3085. fl. 79. Note-se que a origem dos padres é Salcete, portanto a sua formação
provavelmente foi de responsabilidade dos jesuítas, o que talvez explique a motivação por trabalhos de
característica missionária que a nova ordem pretendia desenvolver.
135
Leopoldo da Rocha. Op. cit. p. 52-53.
266
anos
136
. Foi ele que providenciou vincular essa iniciativa dos clérigos goeses aos
estatutos da Congregação do Oratório de Lisboa, enviando solicitação ao próprio padre
Bartolomeu de Quental.
A Congregação do Oratório de S. Filipe de Néri havia sido fundada em Roma
em 1550, e introduzida em Portugal em 1668 pelo padre Bartolomeu de Quental, sob
inspiração do espírito de renovação da Igreja Católica pós-tridentina. Tratava-se de:
uma sociedade de padres seculares que não constituíam uma ordem
propriamente, ficando submetidos à hierarquia episcopal. A igualdade
entre os seus membros, a autodisciplina e a valorização dos princípios
eram suas características. Além da assistência religiosa à "indigência
desgraçada" e à "velhice inválida", seu primeiro objetivo era "educar
no culto da verdade os que têm que constituir a sociedade e dirigir os
negócios públicos"
137
.
O termo “congregação (congregatio) deriva do verbo latino congregare que
significa reunir, criar comunidade sob a orientação de um determinado ideal (carisma)
em função do qual são elaboradas regras que devem orientar os membros dessa mesma
comunidade”. É importante notar que “até o século XVIII todos os institutos religiosos
eram designados em sentido estrito por «ordens religiosas»”
138
.
É certo que o padre Vaz percebeu os pontos de confluência entre a iniciativa dos
religiosos brâmanes goeses e as orientações gerais dessa congregação, daí a solicitação
encaminhada a Lisboa. A resposta de Quental foi enviada em março de 1687 e dizia
que:
com muita alegria de minha alma li a carta de Vossa Reverência [...]
por ver nela o devido ânimo, com que Vossa Reverência e os mais
padres, seus companheiros, desejam dedicar-se a Deus Nosso Senhor,
136
Para sua biografia foram usadas as informações de Ernest R. Hull. Blessed Joseph Vaz. In: New
Advent Catholic Encyclopedia. www.newadvent.org/cathen/15317b.htm e da Biblioteca Nacional de
Lisboa. Reservados. Memórias para a História Eclesiástica de Goa e Missões da Ásia. Microfilme F.
3085. fl. 84. Hull afirma que Vaz nasceu em 21 de abril de 1651, enquanto no manuscrito há a menção a
1650.
137
Francisco José Calazans Falcon. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São
Paulo: Ática, 1982. p. 208. José Sebastião da Silva Dias, autor clássico da historiografia portuguesa, diz
que a Congregação do Oratório "não era uma ordem religiosa no sentido exato da expressão, mas uma
sociedade de padres diretamente sujeitos ao Ordinário diocesano e sem compromisso de voto solene. O
seu fim principal consistia na educação da juventude, o que a tornava concorrente da Companhia de
Jesus". In: Portugal e a cultura européia - séculos XVI-XVIII. Biblos. Lisboa, n.28, 1952, p.339.
138
Carlos Moreira Azevedo (dir). Dicionário de história religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo dos
Leitores, 2000. v. 1. p. 484. A definição da distinção é feita no Código Canônico de 1917.
267
e como para esse efeito querem tomar por protetor a nosso Santo
Patriarca São Felipe Néri, e guardar os estatutos desta nossa
Congregação do Oratório de Lisboa. Não podia eu faltar e, ajudar tão
santos intentos; para esse efeito vão os estatutos e regras [...]
139
.
Apesar da pronta resposta, devido aos procedimentos burocráticos necessários,
somente em 1691 a congregação começou a ser regulada pelos estatutos do Oratório de
Lisboa. De 1682 até essa data havia um estatuto da comunidade religiosa que, na
verdade, tratava-se mais de um horário
140
.
Em Goa a iniciativa ganhou a aprovação de um jesuíta, Francisco Simões, que
em 1690 recebeu a incumbência de avaliar a iniciativa por parte das autoridades
eclesiásticas. Simões emitiu parecer favorável à fundação do Oratório em Goa, enviado
ao bispo de Cochim, no qual dizia que:
obedecendo ao despacho de Vossa Senhoria, li os estatutos da
Congregação dos Clérigos do Recolhimento de Santa Cruz dos
Milagres, que se pretende erigir nessa cidade de Goa e que eu, há
muito tempo, desejo ver erigida por me persuadir que, se estes
reverendos padres se unirem e conservarem no modo de vida que
pretendem, poderão, ao diante, ser de muito préstimo, assim para a
reforma dos costumes de seus naturais, como também para a
conservação dos gentios, para a qual, se lhes não faltar o zelo e
espírito, tem muitas qualidades que lhes facilitarão as empresas das
missões, nas quais poderão entrar e viver livremente, pois os ajudam
as cores e o idioma, os costumes e o gênio semelhantes ao daqueles
com quem hão de tratar. E, por esta causa e também porque os naturais
destas terras, que deveras se resolveram a deixar o mundo e servir a
Deus, tenham lugar e companhia para o poderem fazer, coisa que até
agora lhes faltava [...]
141
.
Apesar da aprovação ser explícita, pode-se notar uma leve desconfiança do
jesuíta na capacidade dos padres goeses perseverarem na proposta. Mas também há uma
constatação de que o trabalho missionário teria um auxílio na identificação que se
pretendia criar entre o clérigo e os fiéis. No entanto, Vaz não encontrou apoio imediato
do arcebispo, D. Frei Agostinho da Anunciação, que relutou em dar a sua aprovação.
Segundo M. da Costa Nunes, não é certo que essa restrição era motivada pela antipatia
139
M. da Costa Nunes. Documentação para a História da Congregação do Oratório de Santa Cruz dos
Milagres do clero natural de Goa. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1966. p. 24-25.
140
Idem. p. 8-9.
141
Idem. p. 33-34.
268
do arcebispo contra o clero nativo ou, por outra, resultado de genuínas dúvidas de
jurisdição eclesiástica
142
; o mais provável é que tenha sido uma mistura de ambas.
Outro jesuíta, padre Francisco de Souza, foi quem aconselhou os padres da Santa
Cruz dos Milagres a fazerem uma boa negociação com Roma, para superar as
dificuldades locais
143
. Naturalmente, não se pode tomar a atitude dos dois jesuítas como
resultado de uma orientação genérica da Companhia de Jesus, mas não deixa de ser uma
constatação do sentido pragmático dos inacianos aqui envolvidos, que talvez
percebessem que esse era um interessante caminho para assimilar goeses ao esforço de
missionação no Oriente.
Finalmente, em 1698 o arcebispo concedeu a licença para a fundação da
Congregação do Oratório em Goa, fazendo algumas alterações nos estatutos no sentido
de consolidar a jurisdição do arcebispado. A ressalva pode ser entendida como reflexo
das disputas que este enfrentara ao longo do século XVII
144
. Em 1703 o rei de Portugal
enviou um alvará autorizando o funcionamento da congregação e, em 1707, o papa
Clemente XI concedeu a aprovação para que os padres da Santa Cruz dos Milagres
adotassem os mesmos estatutos que os oratorianos de Lisboa, sendo este considerado o
ano de sua fundação propriamente dita.
A princípio, os padres da Santa Cruz fizeram alguns trabalhos missionários em
Bardez e Salcete, mas o esforço maior e de verdadeira repercussão foi feito no Ceilão
o domínio dos holandeses tinha debilitado a missionação católica na ilha, para onde
foi o próprio José Vaz, onde morreu em 1711. Boxer afirma a importância da “ação
apostólica de um grupo de oratorianos de Goa, chefiados por fr. José Vaz, cujos
trabalhos devotados em Ceilão, salvaram o catolicismo romano de extinção, nesta ilha,
no fim do século XVII”
145
.
Deve-se destacar que essa congregação fundada em Goa por clérigos nativos é
um fenômeno de extrema originalidade. Até onde foi possível observar no âmbito dessa
pesquisa, em todas as diversas obras que analisam a missionação no Oriente, nada
semelhante foi encontrado, seja na China, no Japão ou em outra região da Ásia que
tivesse entrado em contato com a evangelização desenvolvida com o apoio do padroado
142
Idem. p. XIII-XIV.
143
Idem. p. 75-77.
144
Idem. p. 154-157.
145
C. R. Boxer. As relações raciais no Império colonial português 1415-1825. Porto: Aforamento,
1988. p. 69.
269
português
146
. Algo parecido só veio a existir em 1750, quando uma “outra comunidade
de inspiração nativa, a Ordem Terceira dos Carmelitas Claustrais” foi criada, também
em Goa. E, à diferença dos oratorianos, esta aceitava membros da casta chardó
147
, ou
seja, as rivalidades de castas também devem ser adicionadas ao contexto dos vários
mecanismos de distinção étnica existentes na sociedade hindu, ou se o olhar for
ampliado, na sociedade luso-indiana.
Em um interessante ensaio Charles Borges propõe o questionamento sobre a
atitude do clero nativo de Goa, discutindo se era uma reação à dominação colonial ou
resultado de frustrações pessoais. Sua conclusão é de que aqueles que aceitaram o
cristianismo não ficaram isentos de uma experiência de discriminação, e adquiriram
mais rapidamente a consciência dessa segregação
148
. Certamente o aspecto da decepção
encontrado pela maior parte do clero nativo goês era um fator que alimentava
insatisfação e atitudes de resistência ou de insubordinação.
Por outro lado, a desconfiança que pesava sobre os brâmanes, visível nos
registros dos primeiros jesuítas e outros religiosos que chegaram à região, não foi
completamente apagada num período de um século, apesar da flexibilização das práticas
missionárias promovida desde o início do XVII, principalmente pelos padres da
Companhia de Jesus e especialmente em áreas onde a Coroa portuguesa não tinha uma
presença efetiva. Acrescentem-se, ainda, as próprias rivalidades de castas, que por volta
do início dos seiscentos motivou, por exemplo, um chardó casta cristã , chamado
João da Cunha Jaques, morador na aldeia de Cuncolim em Salcete, a escrever um
livrinho intitulado Espada de David contra o Golias do Bramanismo Péssimo inimigo
de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, onde afirmava
que o maior inimigo da cristandade era o brâmane, e convocava os cristãos da Índia a
146
As principais obras consultadas foram: Pascale Girard. Os religiosos ocidentais na China na Época
Moderna: ensaio de análise textual comparada. Macau/Lisboa: Fundação Macau/Instituto Politécnico de
Macau/ Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999; Andrew
Ljungstedt. An historical sketch of the Portuguese settlements in China and of the Roman Catholic church
and mission in China. Boston: James Monroe & Co., 1836; Beatriz Basto da Silva. Cronologia da
História de Macau séculos XVI-XVII. Macau: Direção dos Serviços de Educação, 1992. v. 1 e C. R.
Boxer. The Christian Century in Japan: 1549-1650. Los Angeles/London: University of California Press/
Cambridge University Press, 1951.
147
A. J. R. Russell-Wood. Comunidades étnicas. In: Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dirs.).
História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores e Autores, 1998. v. 3. p. 214.
148
Charles Borges. Foreign Jesuits and native resistance in Goa. In: Teotônio R. de Souza. Essays in
Goan History. New Delhi: Concept Publishing Company, 1989. p. 69.
270
cortar pela espada aquele mal, revivendo em novos parâmetros as antigas tensões entre
esses dois grupos
149
.
O texto de Jaques é muito elaborado e erudito. Faz citações em latim e em
sânscrito, usa textos da bíblia e dos livros sagrados hindus, refere-se a Aristóteles e a
Francisco Xavier; os capítulos são chamados de “golpes”, a espada são suas palavras.
No prólogo, justificou “desembanhar a espada” em função de quatro motivos:
mostrar que os brâmanes gentios convertidos à nossa Santa Fé
Católica e batizados e pelo conseguinte os seus descendentes cristãos,
já pela misericórdia de Deus não são brâmanes, nem se deve chamar
de brâmanes. [...] O segundo porque tendo S. Francisco Xavier
decidido na epístola que os brâmanes são os piores e mais perversos
de todos os Índios, fraudulentos, falsários e mentirosos, ainda sejam
tão demais ilustres e nobres da Índia, não o sendo senão sem outro
princípio, nem fundamento, mas que por procederem do rosto ou
cabeça do Brama falso Deus dos gentios; que os brâmanes enquanto
gentios creiam nesta fábula sua cegueira os desculpa. Porém que
depois de batizados eles e seus descendentes cristãos repitam a mesma
fábula para fundar nela a sua nobreza é ponto que se deve ventilar e
refutar. [...] O terceiro é que os brâmanes em um tratado intitulado
Epítome da genealogia dos Brâmanes inventando duas árvores, uma
da geração dos judeus e outra dos brâmanes, dizem que os seus avós
gentios adoraram por Deus é o Santo Patriarca Abraão. Esta identidade
tem seqüelas tão fatais que todo fiel cristão deve puxar a dita espada
para a dividir. Porque se Brama e Abraão é o mesmo; segue-se que
Cristo Senhor nosso é filho de Brama, falso Deus dos gentios
150
.
Declarações difamatórias contra os chardós feitas por brâmanes era o quarto e
último motivo para a elaboração do livro. Trata-se de uma obra muito ilustrativa da
sobrevivência das rivalidades entre as castas, mesmo no universo daqueles que haviam
sido cristianizados, além de demonstrar que o orgulho de casta era um elemento
importante para a manutenção da hegemonia dos brâmanes.
Portanto, as desconfianças em relação a estes podiam partir das autoridades
portuguesas e mesmo de representantes de outras castas, e as tensões daí resultantes
podiam gerar problemas de inserção social. A discussão essencial aqui é o significado
do processo de cristianização realizado na Índia, nomeadamente a contradição
fundamental que resultou da preocupação em formar clérigos capazes de auxiliar nas
149
Biblioteca da Ajuda. Espada de David contra o Golias do Bramanismo Péssimo inimigo de Nosso
Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. João da Cunha Jaques. Códice 49 II 9.
150
Ibidem. fls. 2v-4v.
271
práticas de evangelização. Cabe ressaltar que o ideal das autoridades eclesiásticas
portuguesas nesse caso era a atribuição de uma participação subalterna ao clero nativo,
uma função de intermediação. Mas essa condição subalterna que se pretendia impor ao
clero goês atingiu em cheio a própria dignidade do grupo no qual mais se investiu na
formação eclesiástica: os brâmanes. Mesmo aproximando-se dos valores cristãos e
europeus, a lógica da formação cultural desses homens fomentava expectativas de
distinção em relação aos outros grupos sociais hindus cristianizados. Deu-se uma
transposição da lógica das castas mesmo após a efetiva conversão de vários grupos
hindus. Dessa forma, havia um constante fator de tensão criado pelas políticas
discriminatórias colocadas em prática aberta ou veladamente por ordens religiosas e
autoridades eclesiásticas. A fórmula para solucionar esse impasse podia variar entre a
postura agressiva de um Mateus de Castro, que hostilizou o padroado português, ou a
mais sutil de um José Vaz, que liderou os oratorianos goeses, mas ambas sinalizaram
claramente que a cristianização de Goa “insularizada” e carregada de tensões, teria que
mudar seus rumos.
CONCLUSÃO
[...] aqui entram as seitas, os ritos e
cerimônias, as quais os costumes e leis
invioláveis de suas Respublicas, as quais de
nenhum modo quebrantam, ainda em suas
pequenas e a nosso parecer escusadas coisas;
pois se em coisas que em Europa se mudam
com facilidade, com tão grande rigor as
conservam; que dificuldade haverem de
mudar leis antigas, ritos e cerimônias
pertencentes à falsa Religião dos Idólatras,
mouros e judeus. E estas dificuldades em todo
mundo reinam, muito mais sem comparação
dominam o Oriente, no qual vivem quatro
nações de gente, cristãos, judeus, mouros e
gentios.
Sebastião Gonçalves (SJ). História dos
Religiosos da Companhia de Jesus... (século
XVII)
272
Para Serge Gruzinski as monarquias católicas ibéricas e seus domínios
transformaram-se no teatro de interações entre o cristianismo, o islã e as “idolatrias”,
como eram designados os cultos existentes na América, África e as grandes religiões
asiáticas. O esforço de cristianização, que pode ser entendido como “ocidentalização”,
fez com que essas monarquias sustentassem pela primeira vez uma burocracia em escala
planetária, cujos principais representantes foram a Companhia de Jesus e a Inquisição.
Não obstante, os contatos entre as civilizações produziram uma realidade múltipla, com
a mistura de elementos tradicionais das culturas envolvidas num “processo de
mestiçagem”, como é definido pelo autor. Diante dessa realidade múltipla o historiador
tem de transformar-se numa espécie de “eletricista” que Gruzinski chega a enunciar
sob a forma da expressão “eletricista-historiador” , capaz de estabelecer as conexões
geradas a partir dos contatos de civilizações, de culturas, as chamadas “histórias
conectadas”
1
.
Um bom exemplo desse processo descrito por Gruzinski pode ser encontrado na
experiência de cristianização ocorrida em Goa durante os séculos XVI e XVII.
Geralmente destaca-se a originalidade da ocupação dessa cidade no conjunto da
expansão portuguesa, na medida em que os colonizadores se utilizaram das práticas
comerciais e da estrutura da vida rural goesas, embora tenham deixado marcas
religiosas católicas muito evidentes nessa sociedade
2
. É inegável que a cristianização
foi uma inserção da cultura européia na realidade indiana, especificamente na de Goa.
Mas não se deve esquecer que as fronteiras entre as culturas são maleáveis e comportam
trocas. Dessa forma, pode-se observar, em contrapartida, a “indianização” ou
“hinduização” de algumas práticas religiosas dos grupos cristãos de Goa
3
. É muito
1
Serge Gruzinski. Les mondes mêlés de la monarchie catholique et autres «connected histories». In:
ANNALES HSS, janvier-février 2001, nº 1. p. 89-92.
2
Orlando Ribeiro. Originalidade de Goa. In: Atas. Lisboa: III Colóquio Internacional de Estudos Luso-
brasileiros, 1959. v. 1. p. 179.
3
Charles J. Borges. The changing faces of Christianity in Goa: from being Portuguese to being Indian?
In: Lusotopie 2000 «Lusophonies asiatiques, Asiatiques em lusophonies». Paris, Karthala, mars 2001. p.
435-437.
273
comum a prática de colocar colares de flores nas imagens de santos, especialmente de
São Francisco Xavier, apóstolo das Índias, reproduzindo uma prática de tratamento dada
a deuses hindus. Por outro lado, símbolos externos da vida cristã podem ser vistos nas
casas e aldeias da cidade e adjacências. Em Salcete, os jesuítas conseguiram, com o
tempo, que os moradores substituíssem a planta sagrada usada como proteção tulâss
que todo o hindu mantinha na entrada de sua casa, por uma roseira de Santa Catarina ou
por um cruzeiro, tornando, assim, fácil a identificação das habitações dos cristãos locais,
ao mesmo tempo em que se combatia uma manifestação de “gentilidade”
4
.
Outro aspecto comumente ressaltado para indicar o enraizamento da
cristianização de Goa é o número de cristãos existentes na região. É verdade que nos
séculos XVI e XVII esse número foi sempre crescente, ao basear-se especialmente nas
fontes jesuíticas, mas o século XIX oferece um quadro distinto, mesmo que se
considerem as diferenças territoriais, uma vez que desde meados do século XVIII os
portugueses haviam acrescentado ao território de Goa as terras das Novas Conquistas,
cujas populações não sofreram o mesmo esforço evangelizador dos séculos anteriores.
Considera-se que o primeiro censo confiável realizado em Goa é o de 1881, quando foi
detectado que 58% da população era de cristãos e 42 % de hindus. Em 1950, ainda sob
o domínio português, outra estatística demonstrou que a população hindu era
majoritária, com o índice de 55% dos habitantes, enquanto os cristãos constituíam-se
em 42%. No entanto, mesmo havendo uma tendência demográfica de diminuição de
cristãos, esse último censo indicava uma predominância da população cristã na região
das Velhas Conquistas, nomeadamente em Salcete, com o índice de 79%.
Em 1981, vinte anos após a independência de Goa, as estatísticas indicavam um
maior número de hindus, com índice ainda superior ao de 1950, 64%, contra um
significativo declínio dos habitantes cristãos, 31%. Não há a informação nesse caso do
índice de cristãos nas Velhas Conquistas, mas mesmo esses indicadores gerais revelam
uma tendência de diminuição desse número, o que comumente é explicada por uma
estagnação do crescimento dessa população derivada, principalmente, de uma dramática
migração de goeses cristãos para outras regiões da Índia e do mundo
5
.
4
Luís Filipe Thomaz. O cristianismo e as tradições pagãs na Índia portuguesa. In: Actas do Congresso
Internacional de Etnografia. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965. v. 4. p. 9-10.
5
Raquel Soeiro de Brito. Goa e as praças do Norte: revisitadas. Lisboa: Comissão Nacional Para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 39-43. Cf. Teotônio R. de Souza. Goa: roteiro
histórico-cultural. Lisboa: Grupo de trabalho do Ministério da Educação para as comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1996. p. 73.
274
Quando se compara o processo de cristianização de Goa com o da América
hispânica, especialmente nas regiões onde existiam sociedades organizadas de maneira
mais complexa, como eram os casos das civilizações asteca e inca, nota-se que os
resultados, tanto do ponto de vista quantitativo como no de enraizamento do
cristianismo, são muito diferentes. No caso americano, a cristianização difundiu-se de
forma generalizada. Não se está aqui avaliando a mecânica do processo, se há
assimilação, aculturação, ou inculturação. Apenas destaco que, nos dias atuais, os países
que pertenceram ao domínio espanhol têm na fé católica um elemento de identidade
cultural inquestionável. Na América portuguesa e em outras regiões dos domínios
americanos pertencentes à Espanha, de maneira diferente, a cristianização também se
consolidou, mas graças à própria lógica de colonização, que se baseou na ocupação do
território onde viviam esparsas populações indígenas. Ao referir-se aos contatos entre as
civilizações e culturas menos complexas, usando o Brasil como exemplo, Braudel
afirma que: “o português aparece e o índio primitivo retrai-se, cede o seu lugar”
6
.
No caso do Oriente, especificamente no de Goa, a realidade era muito diferente,
ou, “tudo se complica e a toada já não é a mesma quando o avanço não é feito sobre o
vazio”
7
. Não só as densidades demográficas eram infinitamente maiores na Índia, como
se tratavam de civilizações muito antigas e profundamente enraizadas. O hinduísmo,
como um conjunto de concepções e práticas religiosas que pautavam a vida dos
indianos, possuía um complexo sistema de castas que ditava uma organização da
sociedade em termos de grupos, e toda sua lógica reforça a totalidade social em
detrimento do interesse individual. Trata-se, portanto, de uma poderosa barreira que
dificultava a aproximação das culturas que a expansão portuguesa proporcionava.
Na América espanhola, especificamente nas regiões das civilizações asteca e
inca, também havia dificuldades de se superar as altas densidades populacionais, apesar
dos recursos técnicos de defesa serem mais frágeis no caso americano do que no do
Oriente. Os esforços de cristianização feitos pelos espanhóis nos seus domínios na
América, por outro lado, foram formidáveis. No plano institucional numeroso ordens
religiosas instalaram-se desde o início da ocupação territorial, universidades, bispadas e
arcebispados em toda parte, três tribunais do Santo Ofício em pontos estratégicos do
império, todas essas iniciativas serviram para formar uma forte estrutura com o
6
Fernand Braudel. Civilização material, economia e capitalismo séculos XV-XVIII: as estruturas do
quotidiano. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1992. t. 1. p. 76.
7
Idem. p. 78.
275
propósito de desenvolver a evangelização. Campanhas como “conquista espiritual” e
“extirpação de idolatrias” foram motos essenciais da presença espanhola na América,
sobretudo nos dois primeiros séculos. Mas tudo isso só se tornou possível,
evidentemente, em razão de ter ocorrido uma efetiva conquista territorial, militar e
política do mundo indoamericano. Partindo do exemplo espanhol e para além das
características da sociedade hindu já ressaltadas, deve-se buscar na própria estrutura do
Estado da Índia explicações sobre os limites da cristianização que ali teve lugar. O
Império português no Oriente estava montado como uma rede e tinha como principal
ambição o controle da circulação de mercadorias. Os portugueses nunca promoveram
um real esforço de conquista de territórios que não aqueles que consolidariam suas
posições. A tarefa provavelmente estaria além das capacidades da Coroa portuguesa.
Pode-se dizer o mesmo em relação à cristianização, aliás, associada diretamente à
expansão portuguesa. Por mais missionários que se dirigissem para o Oriente, fossem
jesuítas, franciscanos, agostinianos, dominicanos ou religiosos da Propaganda Fide, a
tarefa era hercúlea e fadada a enfrentar enormes obstáculos, que se não eram totalmente
intransponíveis, mesmo depois de ultrapassados, alcançavam resultados modestos.
A Companhia de Jesus foi uma das ordens que mais esforços envidou para a
missionação. É verdade que não agiu de maneira uniforme como costumeiramente são
apresentadas as ações dos jesuítas. No presente estudo foi possível notar que havia
modelos diferenciados nos métodos de conversão das populações indianas, causa
inclusive de graves embates entre grupos de inacianos.
É interessante perceber que, onde a presença portuguesa não era efetiva, a
abordagem dos jesuítas tendia mais a um modelo de “orientalização”, a partir do último
quartel do século XVI. Nas regiões onde havia o respaldo das autoridades portuguesas
houve maior tendência à “ocidentalização”, mesmo que houvesse níveis de
flexibilização junto às populações locais; a contraposição dos métodos de conversão
utilizados em Salcete e no Maduré comprova essa afirmação.
Por outro lado, a cristianização não estava apenas a cargo dos jesuítas ou de
outras ordens religiosas. A Inquisição também desempenhava seu papel nessa ação.
Como tribunal que julgava as questões de fé, mas atrelado à Coroa portuguesa, o
Tribunal do Santo Ofício de Goa tornou-se o mais poderoso instrumento no processo de
“ocidentalização” da sociedade goesa. O esforço foi grande, a tal ponto que promoveu a
alteração do alvo tradicional desse tribunal: a perseguição aos cristãos-novos. A partir
dos finais do século XVI a preocupação com as gentilidades ocupou o centro das
276
atenções dos inquisidores. Mesmo com a recorrente recomendação de brandura em
relação aos neófitos, a própria natureza das conversões feitas em Goa servia de material
quase inesgotável para a ação persecutória inquisitorial. Nesse aspecto, chega-se a uma
importante contradição: o enorme esforço de evangelização feito principalmente pelos
jesuítas, que privilegiava os batismos em massa, colaborava para a frouxidão do
conhecimento da doutrina e franqueava a possibilidade de se cometerem heresias, retro-
alimentando o próprio alvo da Inquisição oriental. Além disso, os batismos em massa
eram interessantes também pelas próprias características do sistema de castas, pois a
conversão em grupo facilitava a inserção social desses novos cristãos, que assim
perpetuavam um elemento fundamental da cultura hindu, constituindo-se em forte
elemento de “indianização” ou “hinduização” do catolicismo.
Sem dúvida houve colaborações entre a Inquisição de Goa e a Companhia de
Jesus, mas com certeza muitos dos conflitos basearam-se numa divergência
fundamental em relação à postura do que se entendia ser o ato de cristianizar. Mesmo
com variações, pode-se dizer que, de maneira geral, os jesuítas tendiam a uma postura
de flexibilização de determinadas práticas culturais, desde que elas fossem consideradas
apenas manifestações exteriores de identidade política ou social, o que era aceitável
dentro do espírito de adaptação paulina. Em contrapartida, os inquisidores pautavam-se
pela ortodoxia, e mesmo que tenham ficado perplexos diante da complexa realidade
indiana, logo procuraram os padrões usuais de perseguição e de ação na conduta social
dos indianos cristãos recém-convertidos. Essa tarefa mostrou-se também extraordinária,
pois num mundo onde as fronteiras eram extremamente flexíveis, maleáveis, porosas,
aumentar-se a pressão poderia resultar em esforço perdido, como fica evidente quando
se constata a migração de goeses para outras regiões da Índia, fugindo da legislação
feita pelos vice-reis ou do aumento da atuação da Inquisição de Goa, o que ameaçava
seus interesses e seu estilo de vida.
Deve-se ainda aqui dimensionar melhor a atuação do Tribunal goês. Há a
necessidade de fazer-se um ajuste no olhar sobre sua ação, a modo de evitar a tradição
de “lenda negra” que a envolve. Não há como negar que foi o tribunal de fé mais ativo
dos que existiram na Coroa portuguesa. Mas com certeza era também a realidade mais
complexa com a qual um tribunal da Inquisição já se havia confrontado, o que pode ser
verificado no número de processados registrados. Mas é importante notar que os níveis
percentuais dos relaxados ao braço secular não fugiam das médias históricas dos
277
tribunais inquisitoriais lusitanos, até onde foi possível constatar a partir dos dados
fragmentários que sobreviveram à destruição da documentação do tribunal goês.
Desde a segunda metade do século XVI desenvolveram-se métodos de
conversão que promoveram o crescimento da população cristã na costa ocidental da
Índia. Mas é possível ver que no século XVII a forma de se fazer a cristianização em
Goa acabou criando muitos problemas. As tensões entre o clero nativo, as autoridades
eclesiais portuguesas, o padroado português e as próprias restrições de pureza de sangue
exigidas para o ingresso nas ordens religiosas no Oriente contribuíram para evidenciar
as contradições promovidas pelo processo de evangelização desenvolvido na Índia. A
dura oposição do brâmane Mateus de Castro ou a preocupação com a ação de
missionação defendida pelos clérigos seculares nativos de Goa, responsáveis pela
fundação da Ordem da Santa Cruz dos Milagres, são indicadores das dificuldades de
assimilação do clero indiano na estrutura eclesiástica da Índia, provavelmente por uma
desconfiança fundamental acerca da qualidade da formação desses religiosos.
Entretanto, seja com a flexibilidade de um bom número de jesuítas, com a
rigidez da Inquisição ou com o interesse de inserção nas atividades missionárias do
clero secular goês, a verdadeira marca da cristianização de Goa está no seu caráter
insular, confinado, posto sob cerco, pois em torno da cidadela cristã, capital do Estado
da Índia, da considerada Roma do Oriente, existiam multidões que não compartilhavam
a fé católica com os portugueses, e que por isso eram consideradas inimigas e uma
ameaça à cristandade. Mas essa ilha de cristãos em que Goa havia se transformado
também convivia, dentro de suas defesas, com a presença desse universo de diferenças
religiosas que promovia contraditoriamente a orientalização dos cristãos que viviam na
cidade. As fronteiras existiam nos limites físicos do domínio português na Índia, mas
também havia fronteiras dentro da cidade de Goa e, por suas características
intercambiáveis, foi possível promover uma rica circulação de padrões culturais nesse
espaço. Portanto, a originalidade da cristianização de Goa repousa em três elementos
que se antagonizaram, mas que também promoveram uma síntese singular: a
ocidentalização dos hindus, a orientalização ou indianização dos portugueses e a
insularidade do catolicismo goês, finisterra da cristandade lusitana.
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Livro 840
Cadernos do Promotor: 4 livro 205; 8 livro 209; 13 livro 214; 68 livro 262;
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Processos: 351; 1047; 1620; 1689; 2947; 5037; 5330; 8450; 12197; 12916; 13942;
13942; 14993; 15086; 15474; 16889
Ministério do Reino
Livro 480
Seção de Microfilme
Casa do Cadaval nº 26 rolo 581
BIBLIOTECA DA AJUDA
Copiador de Cartas
Códice 51-VIII-17 (Carta do Bispo ao Rei 1608)
Códice 51-VIII-19 (Carta do Bispo ao Rei 1605)
280
Conselho de Estado
Códice 51-VI-43 (Reuniões do Conselho de Estado)
Consultas Políticas e Históricas: Conselho de Fazenda
Códice 51-VI-21 (Consulta do Conselho da Fazenda)
Jaques
Códice 49-II-9 (Espada de Davi contra o Golias do Bramanismo)
Jesuítas na Ásia:
Ânuas 1660 e 1661
Códice 49-V-7 (Resposta do Padre Nobili às censuras de Goa)
Códice 49-V-12 (Retratação do Padre Mateus Cebrian)
Códice 49-V-17 (Justificação do Padre Alexandre Cícero)
Códice 49-V-34 (Missões de Tonquim)
Códice 49-V-8 (Relação das Soleníssimas Festas da Beatificação de Inácio de Loyola)
Miscelânea de Francisco Barreto
Códice 51-VI-9 (Cartas do Vice-rei da Índia, Conde de Linhares)
Miscelânea Ultramarina
Códice 51-VII-27 (Relatoria do Recolhimento dos clérigos naturais congregados na
Igreja da Santa Cruz dos Milagres)
BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA
Seção de Reservados
Coleção das mais célebres sentenças das Inquisições de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa
Microfilme F. 2349 e F. 5096.
Coleção de listas impressas e manuscritas dos autos de fé públicos e particulares.
Códice 866. Microfilme F. 5173.
FIGUEIRA, João Delgado. Repertório Geral de três mil e oitocentos processos
despachados pelo Santo Ofício de Goa desde a sua constituição até 1623.
Microfilme F. 2545.
GONÇALVES, Sebastião. Primeira parte da historia dos religiosos da Comp.ª de Jesus
e do que fizeram com divina graça na conversão dos infieis à nossa sancta fee
catholica nos reynos e provincias da India Oriental [Manuscrito ]composta pelo P. e
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Microfilme F. 4869.
Lista dos penitenciados pela Inquisição de Goa de 1685 a 1806. Microfilmes F. 1438 e
F. 1439.
Memórias para a História Eclesiástica de Goa e Missões da Ásia. Códice 177.
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Fonte: Charles J. Borges. The economics of the Goa jesuits: an
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Company, 1994.
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Fonte: Dauril Alden. The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, Its
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Gravura 1: Estandarte da Inquisição de Goa
Fonte: Michel Chandeigne (org). Goa 1510-1685: l’Inde portugaise, apostolique
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Gravura 2: Um pagode segundo Linschoten
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Descobrimentos Portugueses, 1997.