O perigo do silêncio: Depressão é reação mais frequente entre adolescentes que sofrem bullying

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Garoto de 17 anos que cometeu ataque em Suzano abandonou a escola possivelmente por bullying e fazia coro à estatística de evasão escolar. Em SC, 44,3 mil estavam fora da escola em 2017, segundo o Inep. Quase 600 episódios de violência foram registrados em unidades do Estado em 2018. Motivações estão relacionadas a questões de gênero e preconceito.

REPORTAGEM: SCHIRLEI ALVES
EDIÇÃO: BEATRIZ CARRASCO

A tortura psicológica travestida de brincadeira na fase escolar, popularmente conhecida por bullying, pode ter motivado um dos responsáveis pelo ataque à Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), a abandonar o ambiente escolar, segundo a mãe dele. O adolescente de 17 anos – principal executor do massacre que resultou na morte de dez pessoas – estava há quase um ano fora do ambiente escolar.

Durante o tempo ocioso, segundo a investigação, envolveu-se com grupos de ódio ao navegar pelas profundezas do mundo secreto da internet – a Deep Web. Foi por meio desses contatos que ele teve acesso às armas utilizadas no crime – um revólver 38, uma besta e uma machadinha.

Cinco estudantes e duas funcionárias da Raul Brasil foram assassinados. Outras 11 pessoas ficaram feridas. Antes de invadir a escola, o adolescente matou o próprio tio em um lava a jato. O ataque foi cometido por ele e outro colega de 25 anos. Um terceiro adolescente foi apreendido suspeito de participar do planejamento.

Ataque à Escola Estadual Raul Brasil deixou 10 mortos – Foto: MARIVALDO OLIVEIRA/ESTADÃO CONTEÚDOAtaque à Escola Estadual Raul Brasil deixou 10 mortos – Foto: MARIVALDO OLIVEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

O contexto em que vivia o adolescente é mais comum do que se imagina. Além de estar fora da escola, o garoto carecia de estrutura familiar. Embora tivesse os pais vivos, era criado pelo avô, que tinha dificuldade financeira. A avó morreu há poucos meses. O que difere essa de outras histórias é que o desfecho não costuma ser tão cruel, o que não significa que é menos trágico resguardadas as devidas proporções.

Segundo a professora e policial civil que coordena a Cipave (Comissão Interna de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar), no Rio Grande do Sul, Luciane Manfro, o desabrochar da adolescência pode ser regido pela dor quando não há amparo e referências positivas. O resultado, segundo a especialista, costuma ser silencioso e pode perdurar por anos. Mutilações e suicídio são alguns dos caminhos obscuros percorridos pelos jovens.

“Alguns extravasam as dores com violência, como foi o caso terrível de Suzano, mas a maioria sofre de maneira silenciosa. Se eles não se relacionam bem em grupos de amigos e não têm com quem conversar sobre o que estão passando, acabam buscando pares na internet e chegam aos desafios que direcionam para o suicídio”, comentou.

Sofrimento silencioso é o mais perigoso

O bullying, segundo Manfro, é semelhante à depressão. Muitas vezes, o praticante de bullying foi vítima ou ainda está sendo vítima, e acaba reproduzindo a violência sofrida.

“O sofrimento silencioso é o mais perigoso, pois é difícil de identificar. Por isso, a gente tem que falar muito sobre o assunto e trazer o jovem para o debate, para que ele se torne protagonista. Se o formato de família não é mais o mesmo e não tem essa condição, a gente orienta para que ele procure um adulto de confiança e não guarde para si o que está sentindo”, completou.

A Cipave funciona como uma facilitadora para implantar projetos de ONGs e de outros órgãos em escolas do ensino municipal, estadual e particular. O conteúdo que dispõe de orientação, detalhes dos projetos, jogos e mapa da violência está disponível por meio de apostilas, na web e em aplicativo no celular.

Manfro afirma que houve redução de 65% de bullying nas escolas parceiras. Porém, a continuidade do trabalho dependerá muito do interesse do novo governo.

Projeto em Santa Catarina ainda engatinha

Em Santa Catarina, já existe algo parecido. O Nepre (Núcleos de Educação, Prevenção, Atenção e Atendimento às Violências na Escola) foi encaminhando enquanto política pública em 2011. Desde então, engatinha para se tornar uma realidade nas escolas estaduais, revelou o Sinte (Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina).

“Tem que investir em campanha com linguagem que alcance os jovens. Tivemos vários episódios de alunos que agrediram professores no ano passado. A conduta indisciplinar se manifesta de diversas maneiras e a escola tem que ter profissionais capacitados para lidar com isso. A aplicação tem que ser multidisciplinar e envolver vários órgãos”, relatou o diretor de comunicação do Sinte, professor Carlos Alberto Lopes Figueiredo.

Em SC, Nepre engatinha para se tornar uma realidade nas escolas estaduais – Flavio Tin/NDEm SC, Nepre engatinha para se tornar uma realidade nas escolas estaduais – Flavio Tin/ND

A coordenadora estadual do Nepre, Rosimari Kock Martins, afirma que o projeto já tem servido para registrar casos de violência, mas não esconde que ainda faltam profissionais específicos para se dedicar ao tema. “Estamos buscando com que funcione, a escola sozinha não é capaz de lidar com as violências, precisa de toda uma rede e da família junto nesse desafio”, destacou.

Martins afirma que funcionários e professores estão sendo capacitados para trabalhar no Nepre e que o planejamento está em fase de atualização e revisão. O objetivo, segundo ela, é que a iniciativa esteja a pleno vapor até o fim do ano.

O último relatório do Nepre, com dados de 2018, revela que 125 escolas estaduais registraram 593 ocorrências de violência no sistema (confira o quadro abaixo). Ao menos 25% delas correspondem a violência física e 28% a violência verbal. O bullying e o ciberbullying foram discriminados separadamente e respondem por 10,5% do total. Entre as motivações estão identidade de gênero, orientação sexual, preconceito e drogas.

Fonte: Nepre/Secretaria Estadual de EducaçãoFonte: Nepre/Secretaria Estadual de Educação

“Precisamos desenvolver mais atividades de cunho positivo e pacificador, apostar na prevenção, abordar esses temas de forma pedagógica com respeito à diversidade na escola”, acrescentou Martins.

O desafio de evitar a evasão escolar

Tornar a escola atrativa é um dos maiores desafios para evitar a evasão escolar, sinaliza o Programa Apoia do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude do Ministério Público que atua em parceria com as escolas e o Conselho Tutelar.

Segundo o promotor João Luiz de Carvalho Botega, 30% dos alunos catarinenses que abandonaram a escola no ano passado a deixaram por não entender que a educação é algo importante na vida. A falta de estímulo, lembra Botega, pode ser motivada pela falta de atratividade e pelo próprio bullying.

Ao menos 5% dos casos tiveram relação com dificuldade de aprendizagem, 4% por problemas familiares, 4% por motivos de saúde, e os demais por problemas com transporte escolar, trabalho infantil, bullying e gravidez na adolescência.

Esses dados foram compilados em um universo de 43,4 mil ocorrências de evasão escolar registradas pelas escolas em Santa Catarina no último ano. Como pode haver mais de uma ocorrência por aluno, os casos envolvem 37 mil alunos. Botega garante que ao menos 19,4 mil foram resgatados pelo Apoia (saiba como funciona no quadro abaixo).

Fonte: Programa Apoia – MPSCFonte: Programa Apoia – MPSC

“O motivo principal da evasão pode esconder outros motivos – como o bullying. Por isso é importante identificar e trabalhar de forma preventiva. Isso precisa fazer parte do projeto político-pedagógico da escola e chegar até a sala de aula”, avalia Botega.

Uma das estrategias, na avaliação do promotor, é justamente o protagonismo do qual falou Luciane Manfro, da Cipave. Engajar os alunos em projetos culturais, de lazer e esporte, trabalhar com Justiça Restaurativa e mediação de conflitos, além de criar grêmios estudantis para fomentar lideranças são algumas das sugestões. “Não existe formula mágica, mas existem modelos que deram certo e precisamos estar atentos a isso”.

“O resgate de quase 20 mil crianças e adolescentes é o exemplo de um resultado possível de se entregar à sociedade. Entre eles poderia estar esse menino de Suzano, é uma forma de prevenir atos de violência. Mas o trabalho só vai cumprir seu papel quando o registro de evasão escolar for igual a zero”, disse Botega.

O modelo de ensino com as carteiras enfileiradas diante do quadro negro e o professor de pé à frente dos alunos é ultrapassado na avaliação de Manfro. Apesar de monótono, ainda é o ambiente onde o aluno encontrará referências positivas para o seu futuro e terá a oportunidade de desenvolver suas habilidades.

“Quando ele abandona essas referências, passa a conviver apenas com futilidades e sempre haverá algo para chamá-lo a atenção, o que pode enveredar para caminhos obscuros”, completou a professora.

Os dados de evasão escolar do Ministério Público podem não refletir a realidade, como mesmo disse o promotor, uma vez que pode haver a cifra negra de casos não registrados. Por isso, o relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) pode ser o dado mais próximo da realidade. Divulgado em 2018, o relatório revelou que 44,3 mil crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos não frequentaram a escola em 2017.

Fonte: 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação do InepFonte: 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação do Inep

No ano passado, o MP fez a minuta de um termo de cooperação técnica com a finalidade de capacitar os profissionais do Nepre para trabalhar a mediação de conflitos e construir a cultura de paz prevista em diretriz do próprio Ministério da Educação. A expectativa é que a nova gestão estadual assine o acordo e se comprometa com a proposta. “Precisamos caminhar nesse sentindo, como espaço de acolhimento e não de exclusão”, completou Botega.

Uma portaria estadual de número 1064 de 17 de abril do ano passado também regulamenta a elaboração de projeto político-pedagógico quanto a caracterização dos atos de indisciplina e as suas consequências no ambiente escolar.

O documento se propõe a esclarecer as diferenças entre indisciplina e ato infracional, uma vez que apenas o segundo deve ser encaminhado para a esfera de segurança pública e encaminhar as resoluções de conflito de forma a evitar expulsões ou transferências compulsórias (restritas a casos excepcionais).

O episódio de Suzano também levantou a discussão sobre a segurança nas escolas. Logo após a tragédia, o senador Major Olímpio (PSL/SP) disse que “se tivesse um cidadão armado dentro da escola, ele poderia ter minimizado o efeito da tragédia”.

Os especialistas ouvidos pela reportagem não concordam com a afirmação do parlamentar e apontam solução semelhante para aumentar a segurança: ‘prevenção’:

“Há uma linha tênue entre segurança e cerceamento da liberdade. A forma mais adequada de lidar com isso, na minha opinião, é prevenir e construir cultura de paz para que todos os alunos sintam-se engajados na escola e para que toda a comunidade cuide da escola”, afirma João Luiz de Carvalho Botega, do MPSC.

“Apostamos na educação para prevenção. Discutir as questões mais tecnológicas e de estrutura física responde à sensação de segurança, mas a nossa aposta é no investimento em formação, prevenção e educação com projetos de cultura de paz”, disse a coordenadora do Nepre, Rosimari Kock Martins.

“Não é a escola que é violenta, ela é submetida à violência que tem na sociedade. Não adianta ficar botando policial lá dentro, isso é uma resolução simplista. A escola é vítima, perdemos profissionais de educação no massacre de Suzano também. A sociedade inteira está violenta, há perseguição aos jovens nos morros, eles também são cooptados pelo tráfico, existe todo esse caldo da cultura de violência”, destacou Carlos Alberto Lopes Figueiredo, do Sinte.

“A comunidade não quer só a sala de aula, quer o espaço físico de convivência. Quando a escola aprende a abrir esse espaço e conviver em harmonia com a comunidade, a violência não entra na escola, Ela se mantém uma ilha, e sem colocar grades e nem câmeras de vigilância”, disse Luciane Manfro, policial civil e coordenadora da Cipave.