“A Bíblia volta ao palácio”, disse a autoproclamada presidenta da Bolívia, Jeanine Añez, na noite da última da terça-feira (12), ao entrar na Assembleia Legislativa com uma versão robusta do livro na mão, saudada por apoiadores à sua volta. Nas redes sociais, a senadora foi aplaudida também pela principal liderança da extrema-direita no país, Luis Fernando Camacho: “Quero manifestar minhas mais sinceras felicitações à Jeanine Añez (…) Que Deus lhe dê sabedoria para tomar as decisões corretas e, com elas, dar ao país a paz que ele tanto necessita”. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a senadora como nova mandatária da Bolívia.
Dois dias antes, no domingo em que um golpe culminou na renúncia do ex-presidente Evo Morales, Camacho se deixou fotografar dentro do palácio presidencial com uma Bíblia sobre a bandeira boliviana. “Nossa luta não é com armas, é com fé. Deus abençoe a Bolívia”, disse ele em sua conta no Twitter. No mesmo dia, manifestantes nas ruas queimaram a whipala, bandeira que representa os povos indígenas da América Latina, também vilipendiada por membros da polícia, que a arrancaram de seus uniformes.
Durante a crise, além de Añez, outras duas mulheres, apoiadoras do ex-presidente, também ganharam notoriedade, mas por motivos bem distintos. No domingo (10), a presidenta do Supremo Tribunal Eleitoral (STE), Maria Eugenia Choque, foi presa e apresentada à imprensa algemada, ao lado de seu vice. Dias antes, a prefeita de Vinto, Patricia Arce, do mesmo partido de Morales, teve seu cabelo cortado, foi encharcada por tinta vermelha e obrigada a caminhar pelas ruas da cidade, acusada de estar vinculada à morte de um manifestante na cidade.
“Este foi o ato mais misógino que vi na política. São formas de humilhar as mulheres que detêm posições de poder. O que aconteceu com a prefeita de Vinto não se repetiu com outras lideranças masculinas do governo. Ainda que possamos criticá-las e responsabilizá-las, essas mulheres foram submetidas a uma humilhação. Não foram combatidas pelo que fizeram politicamente”, analisa Sue Iamamoto, professora de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia, que estuda a cena política do país desde 2007.
Embora crises da magnitude da que afeta o país sejam causadas por inúmeros fatores e gestadas ao longo de anos, os elementos de gênero, raça e religião estão claros no tabuleiro boliviano. E guardam algumas semelhanças com o fundamentalismo de direita que acometeu a política e a sociedade brasileiras desde 2014.
Na avalanche de fatos que sucederam a renúncia, Iamamoto também chama a atenção para o destaque dado pela imprensa local ao fato de a presidenta do STE boliviano ter sido detida com roupas de homem, sem a tradicional pollera (saia usada pelas indígenas do país). “A denúncia da polícia, ressaltando como ela estava vestida, indica um rebaixamento como mulher indígena, como se ela estivesse se escondendo. As ações contra ela como presidenta do Tribunal não estão isentas de qualquer análise criminal. Mas obviamente as roupas que ela usava, sua etnia e suas capacidades foram questionadas. O simbolismo é: ‘estão vendo como o uso da pollera é instrumental, como ela não é indígena de verdade?’”, completa.
Além de Camacho e Añez, outras figuras orbitam na extrema-direita do país, entre elas o ex-embaixador da Bolívia no Brasil, Jerjes Justiniano Talavera. Em fevereiro deste ano, ele elogiou publicamente o comportamento machista do prefeito de Santa Cruz de la Sierra, Percy Fernandez. “Sabem por que Percy não é censurado quando exagera e dá uma escapadinha ou beija alguém? Porque nos identificamos com Percy, porque este é o seu sucesso (…) Queríamos fazer o que Percy faz, mas não temos coragem”. Fernández já foi flagrado passando a mão na perna de uma jornalista, bolinando uma vereadora e beijando à força uma mulher durante a inauguração de um viaduto.