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Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT

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Circunscrição :1 - BRASILIA
Processo :2013.01.1.096604-4
Vara : 223 - VIGÉSIMA TERCEIRA VARA CÍVEL DE BRASÍLIA

SENTENÇA


Vistos, etc.

INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DA INFORMÁTICA - IBDI, parte devidamente qualificada nos autos, propõe a presente ação cautelar preparatória, com pedido de provimento judicial liminar, em desfavor de GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA., parte igualmente qualificada no processo, pretendendo o autor seja o réu compelido a prestar informações detalhadas sobre a execução do projeto denominado "Google Street View".

Alega o requerente, em breve síntese, que tem intenção de ajuizar futura ação coletiva com vistas à condenação do requerido ao pagamento de indenização por dano moral coletivo, haja vista a coleta, processamento e armazenamento de dados de pessoas indeterminadas, bem como a interceptação de comunicações, o que constitui invasão de privacidade.

Tece considerações sobre sua legitimidade postulatória e passa a narrar os fatos. Informa que em agosto de 2007 o requerido lançou a ferramenta tecnológica denominada "Google Street View", com fotos panorâmicas permitindo a seus usuários a visualização de ruas e localidades de diversas regiões do mundo, iniciando pelos Estados Unidos e se expandindo para outros países, inclusive o Brasil, a partir de junho de 2009.

Aduz que em meados de 2010 surgiram denúncias na imprensa estrangeira no sentido de que o projeto teria propósito voltado à espionagem da vida dos cidadãos, com captação de dados pessoais e interceptação de comunicações eletrônicas, o que se fazia pelo acesso a redes "Wi-Fi".

Alude o requerente às várias investigações e cominações de multas impostas ao Google em diversos países, ressaltando que as autoridades brasileiras ainda não tomaram qualquer iniciativa, sendo certo que o autor só teve conhecimento da gravidade das ações do requerido em março deste ano, quando assinado acordo pelo Google nos Estados Unidos com procuradores de 38 Estados.

Esclarece que notificou o requerido extrajudicialmente para saber da captação de dados de cidadãos brasileiros, obtendo resposta no sentido de que os veículos do réu captavam dados, mas foram retirados dos veículos os "softwares" que permitiam a coleta, o que se deu em maio de 2010. Segue narrando que, como não fossem suficientes as informações prestadas, optou por promover nova notificação extrajudicial buscando informações mais detalhadas, o que foi negado ao requerente.

Elenca o direito que entende aplicável à espécie.

Requer, em sede liminar, seja o réu compelido a prestar as informações deduzidas a fls. 41/42, pena de multa, o que deve ser ratificado em sentença meritória. Pretende a gratuidade judiciária, na forma dos arts. 18 da Lei n. 7.347/85 e 87 do CDC.

Atribui à causa o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

A inicial veio instruída com os documentos de fls. 44/156.

O pedido liminar foi deferido pela decisão de fls. 158/160.

Citado (fls. 162-v), o réu apresentou contestação com pedido de reconsideração, a fls. 163/190, suscitando preliminares de ilegitimidade ativa e passiva "ad causam", além da falta de interesse de agir. No mérito, requer a improcedência do pedido; após tecer considerações sobre o Grupo Google, a ferramenta "Google Street View" e a tecnologia "Wi-Fi", menciona que a discussão sobre a coleta de dados se iniciou e em muitos países já se encerrou há alguns anos, não sendo fato novo, como quer fazer crer o autor. Enfatiza que não há, como pretende o autor, relação entre os fatos narrados e as denúncias recentemente divulgadas a respeito de condutas imputadas a agências norte-americanas que teriam violado a privacidade de usuários da Internet. Salienta que o autor não apresenta uma narrativa precisa acerca dos fatos envolvendo o projeto "Street View". Sustenta que, de fato, os veículos utilizados na coleta de imagens para a mencionada ferramenta também foram equipados, por um curto período de tempo, com rádio disponível no mercado, além de "software" de código aberto que permitiram a coleta de informações sobre redes "Wi-Fi" abertas, disponíveis ao longo das vias pelas quais trafegavam. Argumenta que em maio de 2010 o requerido descobriu que os veículos utilizados no desenvolvimento do "Street View" estavam coletando outros dados além daqueles necessários à identificação das redes "Wi-Fi", sendo certo que, embora coletados, não foram utilizados pelo requerido em seus produtos ou serviços. Aduz que tão logo teve conhecimento da coleta de dados, retirou os veículos de circulação, tendo sido os dados coletados separados dos demais e devidamente isolados, de modo a se tornarem inacessíveis, tornando pública a situação. Afirma que passou a entrar em contato com as autoridades competentes para informa-las a respeito do ocorrido, mas no Brasil não há legislação disciplinadora da privacidade de dados e tampouco autoridade competente. Arremata a defesa sustentado a inexistência dos requisitos da cautelar - fumaça do bom direito e perigo da demora - na espécie dos autos. Deduz pedido de reconsideração da decisão deferitória do pedido liminar. A contestação veio acompanhada dos documentos de fls. 191/267.

Pela decisão de fls. 269/274, apreciei e rejeitei as preliminares, além de exercer juízo de reconsideração e tornar sem efeito a decisão deferitória do pedido liminar. Este "decisum" foi objeto de agravo retido pelo requerido (fls. 346/351) e agravo de instrumento manejado pelo autor (fls. 353/381), este convertido em agravo na modalidade retida pela instância superior (fls. 386/389-v e 432/456-v).

O réu regularizou sua representação processual e juntou documentos devidamente traduzidos a fls. 277/320.

O autor ofertou réplica a fls. 323/344 refutando os argumentos da peça contestatória e reiterando os termos da inicial, ao lado de postular a condenação do requerido por litigância de má-fé.

Em sede de especificação de provas, apenas o réu sinalizou para o julgamento antecipado (fls. 383/384).

O Ministério Público, em judicioso parecer de fls. 421/427, opinou inicialmente pela rejeição das preliminares deduzidas. No mérito, manifesta-se pelo acolhimento do pedido autoral, à exceção do item a.9 (fls. 42), uma vez evidenciados os requisitos da cautelar, consistentes na fumaça do bom direito e no perigo da demora, notadamente à vista do direito/obrigação de informação universal, além da manutenção dos dados pelo requerido, diante da inexistência de autoridade pública brasileira a quem entregar os dados.

É o relatório.

DECIDO.

Promovo o julgamento antecipado da lide, na forma do art. 330, inciso I, do Código de Processo Civil.

Como vem de ser consignado no relatório, as questões preliminares agitadas pelo réu em sede de contestação já foram apreciadas e rejeitadas, estando a matéria sob reapreciação pela instância "ad quem" em razão de agravo na modalidade retida, na hipótese de manejo de recurso de apelação.

Não conheço da petição acostada pelo réu a fls. 463/467, eis que apresentada ao arrepio da marcha processual permitida.

Passo à análise do mérito diretamente.

Meritoriamente, como já pontuado, trata-se de pedido cautelar cominatório e preparatório de futura ação civil pública, buscando o autor ver o réu compelido a trazer aos autos dados pessoais de cidadãos indeterminados, captados em razão da ferramenta criada e administrada pelo requerido, nominada "Google Street View", haja vista a pretensão, em tese, do requerente de promover ação coletiva de compensação por dano moral coletivo.

A tutela de urgência cautelar tem previsão expressa no art. 4o da lei de regência da ação civil pública (Lei n. 7.347/85), que deve ser cotejado, no caso, com o § 3o do art. 84 da Lei n. 8.078/90, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Ocorre que o réu é fornecedor de produtos/prestador de serviços, comparecendo o autor como entidade legitimada à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo microssistema consumerista, tudo em harmonia com os arts. 2o, 3o e 82, inciso IV, do CDC.

Incumbe, pois, avaliar a presença dos pressupostos da tutela cautelar: a fumaça do bom direito e o perigo da demora.

No que concerne ao primeiro requisito, é imperioso deixar assente que a concessão da medida não se condiciona à comprovação da existência do direito substancial, senão e tão somente à "demonstração da aparência de tal direito", como preleciona Alexandre Freitas Câmara, nas suas "Lições de Direito Processual Civil", 15a ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 33.

No caso vertente, indispensável que fique sedimentado que não se trata de demonstrar fato atinente à possibilidade em tese de decidir-se pela compensação pecuniária decorrente de pretenso dano moral coletivo. Cuida-se, na verdade, de comprovação em torno da existência de dados pessoais de cidadãos indeterminados que teriam sido captados por veículos do réu quando da elaboração e fomento da ferramenta tecnológica "Google Street View", de responsabilidade do réu.

Esse fato é incontroverso, consoante estabelecido pelo art. 334, incisos II e III, do Código de Processo Civil. Com efeito, o requerido deixa claro que realmente ocorreu a captação de dados pessoais de indeterminados cidadãos brasileiros, quando do tráfego de veículos de sua propriedade na captação de imagens de cidades brasileiras para alimentação do projeto "Street View".

Ademais, embora sustente o réu que esses dados encontram-se armazenados e isolados, sem que lhes tenha sido emprestada publicidade, é certo que eventual propositura de demanda principal, consubstanciada em tutela coletiva voltada à compensação pecuniária por reconhecimento de prática de dano moral coletivo, não prescindirá da comprovação da existência, do conteúdo e da extensão de tais dados em poder do réu, o que só se fará em sede de cognição exaustiva e exauriente no processo principal.

Os dois argumentos centrais lançados pelo requerido na tentativa de fulminar a fumaça do bom direito em prol do autor não impressionam. A questão pertinente à ausência de dolo ou culpa não tem como prosperar, porquanto a responsabilidade civil, no caso, opera-se orientada pela teoria objetiva, seja pela incidência do comando normativo do art. 14 do CDC, seja pela aplicabilidade ao caso do preceito normado do art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro.

Afinal, como dito, a presente demanda está sob o prisma consumerista, e o réu, na condição de prestador de serviços/fornecedor de produtos, tem sua atividade vetorizada pela teoria do risco do negócio, conforme dicção dos dispositivos legais mencionados, prescindindo-se da aferição do elemento subjetivo - dolo ou culpa, elemento este contido na regra geral do art. 186 do Código Civil pátrio, que se excepciona em situações específicas, quando nos casos de responsabilidade respaldada na teoria objetiva, como vem de ser mencionado.

O outro argumento reside na ausência de legislação pátria sobre direito de privacidade e autoridades públicas brasileiras aptas a receberem os dados coletados. Inicialmente, cumpre asseverar que o país ainda está se preparando para, em termos legislativos específicos, tratar das múltiplas questões atinentes á nominada "sociedade em rede", como acentuado por Manuel Castells. Entretanto, isso não significa que não exista normatividade capaz de proteger a privacidade, a intimidade, os dados dos cidadãos brasileiros. Ao contrário, já o texto constitucional abriga tais direitos, como se infere do art. 5o, incisos X e XII, tendo o Código Civil, a partir dessa orientação constitucional, postado em seu art. 21 a inviolabilidade da vida privada da pessoa natural.

Ainda sob esse aspecto, a ausência de autoridade específica, organizada sob a tutela estatal para recebimento de dados relacionados à privacidade dos cidadãos, também não milita em proveito da tese do requerido. Os dados pertencem aos cidadãos, portanto, sua coleta de forma aleatória e sem autorização tem a potencialidade, em tese, de gerar danos, o que por si só recomenda seu armazenamento apropriado, sem prejuízo do debate público acerca da questão. O réu, aliás, deixa clara sua intenção nesse sentido.

Assim, à míngua de órgão específico e especializado no armazenamento desses dados, impõe-se seja investigado perante a Administração Pública ("lato sensu") acerca de organismo capaz de manter em segurança tais dados. As esferas policial e do Ministério Público poderiam ter sido acionadas. Se não o foram, nenhum óbice é imposto pelo sistema jurídico vigente, de forma a impossibilitar sejam tais dados arquivados com segurança perante o Poder Judiciário, como ora se impõe. Ao contrário, o art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal, disciplinador do princípio da inafastabilidade da jurisdição, ancora tal pretensão.

No que tange ao perigo da demora, sugere o réu que tal pressuposto está fulminado pelo próprio decurso do tempo, eis que o ato lesivo apontado pelo autor na petição de ingresso ocorreu em 2010, como também ratificado pelo requerido e, uma vez mais, atraindo a normatividade do art. 334, incisos II e III, do Código de Processo Civil.

O argumento foi tomado em conta para o juízo de reconsideração em relação à decisão pela qual se deferira o pedido de tutela liminar. Ocorre que naquele momento, de cognição sumaríssima, não se consumou o perigo de grave ou irreparável dano, em conformidade com o preceito do art. 4o da legislação disciplinadora da ação civil pública, que, aliás, prevê cautelar satisfativa.

Explica-se: a pretensão a ser deduzida em ação coletiva de índole principal, segundo consta na petição de ingresso, volta-se à compensação por danos morais coletivos em razão da captação não autorizada d dados dee cidadãos indeterminados por veículos de propriedade do réu, em circulação nas ruas de cidades brasileiras, de molde a elaborar e alimentar o projeto "Street View", de responsabilidade do requerido. Assim, a instrumentalidade funcional do presente processo cautelar volta-se a resguardar o direito do Instituto autor de ver reconhecido o direito de compensação pecuniária por danos morais coletivos em tese encetados pelo réu. Essa a pretensão a ser resguardada pelo presente processo cautelar. Portanto, em sede liminar, nada havia, de fato, a salvaguardar.

Ocorre que somente após a presente sentença com trânsito em julgado será o réu compelido a trazer aos autos os dados por si armazenados em decorrência de seu trabalho na confecção e alimentação do projeto "Street View". Não se cuida, pois, de proteger os dados em si, porquanto, nessa hipótese, o perigo da demora estaria, mesmo, rompido, uma vez transcorridos mais de três anos da captação dos dados.

Noutro giro, como adiantado na decisão pela qual reconsiderei meu anterior posicionamento em torno da concessão da medida liminar, não se pode deduzir que os dados seriam ou serão descartados, inutilizados pelo réu, sob pena de presumir-se a má-fé. Ao contrário, o réu deixou entrever que pretende disponibilizar os dados, até para promoção do necessário debate público. A instrumentalidade do presente processo prende-se à necessidade de futura e eventualmente poder o autor propor demanda coletiva em defesa dos direitos e interesses de cidadãos indeterminados que, em tese, tiveram seu direito à privacidade e ao sigilo de seus dados violado.

O perigo da demora, pois, está centrado nessa pretensão, vale dizer, a improcedência do pedido nesta sentença levaria a um dano irreparável em desproveito do Instituto autor, que teria cerceado o direito de discutir em Juízo a possibilidade de serem compensados pela via da reparação pecuniária alegados danos morais coletivos.

O Ministério Público entende deva ser excluída a informação lançada na alínea a.9 (fls. 42) das informações a serem prestadas pelo réu; pretende o autor ter acesso, dentre tantas outras, à informação acerca de quais "as ruas e logradouros públicos, com a indicação das cidades e estados brasileiros, por onde passaram os automóveis e outros veículos do projeto Google Street View". É certo que a indeterminação dos cidadãos brasileiros cujos dados teriam sido violados dispensaria tal informação, entretanto, outros dados pretendidos pelo autor também se reportam a situações particulares. Ademais, como dito, em sendo intenção do próprio réu de apresentar ao Estado brasileiro as informações que se encontram em seu poder, desonerando-se da responsabilidade de ter sob sua guarda tais dados invioláveis, é prudente e até salutar que todas as informações pretendidas sejam apresentadas no processo, notadamente com vistas a permitir a melhor apreciação pelo autor para decidir acerca da propositura - ou não - da demanda coletiva.

O autor aponta litigância de má-fé do réu. Não vislumbro qualquer das hipóteses elencadas no art. 17 do Código de Processo Civil. A acatar-se a tese autoral em torno da litigância temerária e se estará pondo por terra o direito de ação, que compreende o direito de reação, com previsibilidade normativa no art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal, e quem tem índole pública, subjetiva, abstrata e autônoma em relação ao direito material vindicado ou impugnado.

Forte nas razões expendidas, julgo PROCEDENTE o pedido para determinar ao réu que, em 5 (cinco) dias contados da intimação da presente sentença, apresente no processo as informações elencadas pelo autor a fls. 41/42 e descritas nas alíneas a.1 até a.11, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), até o limite de R$ 1.000.000.,00 (um milhão de reais). Resolvo o mérito com amparo no art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil.

Uma vez apresentados os dados, imprima-se SEGREDO DE JUSTIÇA ao presente processo, na forma do art. 155 do Código de Processo Civil, de maneira a resguardar-se o sigilo dos dados dos cidadãos.

Em face da sucumbência e da leitura do art. 19 da Lei n. 7.347/85, condeno o réu ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios que, com parâmetro no art. 20, § 4o, do Código de Processo Civil, arbitro em R$ 2.000,00 (dois mil reais).

Publique-se.

Sentença registrada pelo SISTJ.

Intimem-se (o Ministério Público, pessoalmente).


Brasília - DF, segunda-feira, 04/11/2013 às 14h56.







Processo Incluído em pauta : 04/11/2013