NATANIA APARECIDA DA SILVA NOGUEIRA
AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
NORTE-AMERICANAS: JUNE TARPÉ MILLS E SUA MISS FURY
(1941 – 1952)
NITERÓI – 2015
NATANIA APARECIDA DA SILVA NOGUEIRA
AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
NORTE-AMERICANAS: JUNE TARPÉ MILLS E SUA MISS FURY
(1941 – 1952)
Dissertação de mestrado apresentada ao curso de
Pós
Graduação
em
História
da
Universidade
Salgado de Oliveira, UNIVERSO, Niterói, Rio de
Janeiro, como requisito para a obtenção do título de
Mestre em História. Orientadora: Mary del Priore
NITERÓI – 2015
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universo
Campus Niterói
N778r Nogueira, Natania Aparecida da Silva.
As representações femininas nas Histórias em
Quadrinhos norte-americanas: June Tarpé Mills e sua
Miss Fury (1941-1952) / Antônio Paulo dos Santos Filho.
- Niterói, 2015.
154p. : il
Bibliografia: p. 148-154
Dissertação apresentada para obtenção do
Grau de Mestre em História - Universidade Salgado de
Oliveira, 2015.
Orientador: Dsc. Mary Lucy Murray Del Priore.
.
1. História contemporânea - Séc. XX. 2. História em
quadrinhos - Estados Unidos - História e crítica. 3.
Mulheres - Conduta - História em quadrinhos. 4.
Representações sociais. 5. Mulheres - História. 6.
Histórias em quadrinhos - Aspectos psicológicos. I.
Título. II.Subtítulo: June Tarpé Mills e sua Miss Fury
(1941-1952).
CDD 909.82
Bibliotecária: Elizabeth Franco Martins CRB 7/4990
NATANIA APARECIDA DA SILVA NOGUEIRA
AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
NORTE-AMERICANAS: JUNE TARPÉ MILLS E SUA MISS FURY
(1941 – 1952)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação de História do
Brasil da Universidade Salgado de Oliveira como parte dos requisitos para
conclusão do curso.
Aprovada em 08 de abril de 2015
Banca Examinadora:
______________________________________________________
Marly Vianna - Doutora em História Social pela- USP
Examinadora – UNIVERSO
______________________________________________________
Waldomiro Vergueiro – Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP
Examinador – USP/ECA
______________________________________________________
Mary del Priore – Doutora em História Social - USP
Orientadora
Dedico à minha família, especialmente à minha mãe
Maria Natalina, a meu pai Afrânio e às minhas
sobrinhas Bruna e Marcela. Dedico, também, aos
meus amigos, que nunca deixaram de me incentivar
e de confiar na minha capacidade.
AGRADECIMENTOS
A conclusão desta pesquisa não seria possível sem o apoio de muitos
colegas, o que torna difícil a tarefa de agradecer, uma vez que se corre o risco
de omitir, por negligência ou esquecimento, o nome de alguém que tenha
contribuído mesmo que minimamente para sua consecução. Assim, antes de
começar a agradecer, já peço sinceras desculpas no caso de uma possível
falha neste sentido.
Inicialmente, gostaria de dedicar meus agradecimentos a quem
considero meu grande mentor, a pessoa que me fez investir nos quadrinhos
como fonte de pesquisa, o professor Dr. Waldomiro Vergueiro. Não posso
deixar de mencionar que eu não teria chegado a ele sem a indicação de João
Paulo Lian Branco (Jotapê) que me indicou o grupo discussão sobre
quadrinhos da USP, o que possibilitou meu primeiro contato com o professor
Waldomiro Vergueiro. Estendo ainda meus agradecimentos a Trina Robbins,
cujas pesquisas publicadas foram fundamentais para que eu desenvolvesse
meu tema, que desde nosso primeiro contato mostrou-se totalmente disponível
para tirar minhas dúvidas.
Agradeço, também, aos colegas pesquisadores que sempre me
incentivaram e que confiaram mais em mim do que eu mesma e que me deram
várias oportunidades, seja com convites para publicações, seja me incluindo
em projetos e em propostas de trabalho. São eles, Amaro Braga, Iuri Andreas
Reblin, Valéria Fernandes da Silva, Geisa Fernandes, Sávio Queiroz, Márcio
dos Santos Rodrigues e Gazy Andraus.
Não posso esquecer os amigos que sempre acreditaram no meu
trabalho, seja ele com quadrinhos, educação ou história, aqui representados
pelas amigas Renata Arantes, Claudia Conte, Karla Leonora Dahse Nunes e
pelos amigos Abdeljalil Akkari e Galba Ribeiro. Agradeço, também, a todos os
colegas de trabalho, principalmente àqueles que se prontificaram a mudar seus
horários de trabalho para que eu pudesse frequentar as aulas de mestrado e
aos colegas de pós-graduação, que muito me apoiaram durante o curso.
Um agradecimento especial para Rodrigo Fialho, que acreditou em mim
e me incentivou a fazer a seleção. Sem ele eu não estaria aqui hoje,
encerrando mais esta etapa da minha vida acadêmica e profissional. Agradeço,
também, o apoio da minha família que, em alguns momentos, teve que fazer
sacrifícios para que eu pudesse ter hoje a formação que tenho.
Reservo um agradecimento, também especial, à Dona Juraci, que me
acolheu em sua casa, em Niterói (RJ), fazendo-se merecedora de todo meu
respeito e carinho. Agradeço aos amigos Glaucia Costa e Luiz de Melo
Sobrinho, que sempre tiveram disposição e boa vontade para ler e revisar
meus textos, e Alexandre Moreira, que me ajudou com muitas traduções.
Reconheço aqui que, em alguns momentos, cheguei a abusar dessa boa
vontade.
Por fim, agradeço a atenção e dedicação da minha orientadora, Mary del
Priore, que me incentivou a escrever e pesquisar desde o primeiro dia de aulas,
e a todos os professores do curso de pós-graduação da Universidade Salgado
de Oliveira pelo seu empenho e dedicação como docentes.
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo identificar as muitas representações
femininas presentes nos quadrinhos norte-americanos nas décadas de 1940 e
1950. Nosso objeto de pesquisa são os quadrinhos protagonizados por superheroínas, em especial os quadrinhos da Miss Fury, considerada a primeira
super-heroína criada por uma mulher, a cartunista June Tarpé Mills. Por meio
do estudo destes quadrinhos pretendemos identificar as mudanças ocorridas
na sociedade norte-americana durante o período da Segunda Guerra Mundial,
com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho em
ocupações até então quase que exclusivamente masculinas. Ao mesmo tempo,
desejamos identificar a participação feminina na indústria dos quadrinhos,
especialmente nos gêneros aventura e superaventura. Para isso, vamos
analisar a trajetória de June Tarpé Mills e, em escala menor, de outras
cartunistas norte-americanas, consideradas, como ela, pioneiras, na produção
de quadrinhos. Acreditamos que podemos identificar, também, a resistência de
personagens,
por
meio
de
suas
criadoras,
em
manterem
intactas
representações positivas do feminino numa sociedade que oscila entre o
avanço e o retrocesso das relações de gênero e onde as mulheres ora são
representadas como seres ativos e capazes, ora como elementos passivos e
dependentes da tutela masculina.
Finalmente, nossa proposta envolve a
produção de uma história das mulheres nos quadrinhos como uma forma de
não apenas tirar autoras e personagens do esquecimento mas, principalmente,
trazer à luz um amplo universo feminino excluído da memória e, portanto, da
história.
Palavras-chave:
Representação.
Histórias
em
Quadrinhos,
História
das
Mulheres,
ABSTRACT
The presented research has as goal to identify the many female representations
on American Comic Books during the decades of 1940 and 1950. Our research
object is the comics starred by super-heroines, specially the comics of Miss
Fury, considered the first super-heroine created by a woman, the cartoonist
June Tarpé Mills. In this study we try to identify the changes occurred in the
American society during the II World War with the increase of the participation
of women in the labor market in jobs until then almost exclusively occupied by
men. At the same time, we want to identify the female participation in the comic
book industries, specially, in the adventure and superadventure genre. In order
to accomplish that, we analyze the trajectory of June Tarpé Mills and, in a minor
scale, of other American cartoonist considered pioneers in the production of
comics, like Mills. In our study we try to identify the resistance of characters in
maintaining intact positive representations of women in a society that oscillates
between advances and throwbacks regarding gender relations, in which women
are whether represented as active and capable people, whether as passive and
dependent on men guardianship. Finally, our proposal involves the production
of a History of Women on Comics as a way not just to extract those women and
those characters from ostracism, but mainly to bring up to light a wide female
universe excluded from memory and, thus, from history.
Keywords: Comic Books. Women History. Representation
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 - Retrato de Rose O'Neill
19
Figura 02 - The Kewpie Korner Kewpiegram, 1918
22
Figura 03 - Foto de Dale Messick, 1955
23
Figura 04 - Capa da revista Brenda Staar, n. 13
25
Figura 05 - Candy
34
Figura 06 - Patty-Jo ‘n’ Ginger
34
Figura 07 - Touchy Brown Heartbeats
36
Figura 08 - Sheena
42
Figura 09 - Sheena
42
Figura 10 – Fantomah
46
Figura 11 – Fantomah
47
Figura 12 - Fantomah "Daughter of the Pharaohs”
49
Figura 13 - June Tarpé Mills
52
Figura 14 - Marla Drake
52
Figura 15 - Zelda Jackson Ormes
53
Figura 16 - Touchy Brown
53
Figura 17 – Miss Cairo Jones
55
Figura 18 – Marla Blake colocando o uniforme de Miss Fury
60
Figura 19 – A baronesa Erica vom Kampf
60
Figura 20 - Marla e Erica se enfrentam pela primeira vez
61
Figura 21 – Capa da Kaänga Comics
62
Figura 22 – Capa da Jungle Stories
62
Figura 23 - Tensão do reencontro de Marla e Gary
64
Figura 24 - Série Diana Deane in Hollywod, um dos primeiros
66
trabalhos de Mills, gênero tarzanide, publicado em 1938 na Funny
Pages #1
Figura 25 - Série Fantastic Feature Films, produzida por Tarpé Mills e
66
publicada em Target Comics, 1940.
Figura 26 - Série Mann of India, de Tarpé Mills, publicada na Reg’lar
Fellers Heroic Comics, em 1940
67
Figura 27 - Série de ficção científica e aventura de Mills, Purple
67
Zombie, publicada na Reg’lar Fellers Heroic Comics, em 1940
Figura 28 - Origem da Miss Fury
70
Figura 29 - Marla tem seu primeiro combate como Miss Fury.
71
Figura 30 - Dary Hale casa-se com Erica
74
Figura 31 – Baronesa Erica von Kampf
78
Figura 32 - Baronesa Érica Von Kampf, agredida pelo General Bruno
79
Figura 33 - Erica tem uma suástica marcada em sua testa a “ferro
81
quente” pelos irmãos Manero
Figura 34 – Reencontro da Baronesa com o filho.
83
Figura 35 - Monsieur Charles
84
Figura 36 - "And then in my spare time...". Cartum publicado em 1943
88
faz uma crítica às mulheres que trabalhavam nas fábricas, no esforço
de guerra.
Figura 37 - Women serving in World War II
89
Figura 38 - Pat Parker, War Nurse
93
Figura 39 - Girl Commados
94
Figura 40 - Miss Victory
97
Figura 41 - Miss Victory
99
Figura 42 - Página que contém dois projetos de ilustrações da primeira
101
Mulher Maravilha
Figura 43 - Miss America usando seu uniforme patriótico
103
Figura 44 - Miss América. Uniforme vermelho com capa azul. Escudo
103
faz referência aos Estados Unidos
Figura 45 – Capa de Miss Fury # 02
105
Figura 46 – Capa de Miss Fury # 03
105
Figura 47 – Capa de Miss Fury # 04
105
Figura 48 – Capa de Miss Fury # 05
105
Figura 49 – Era confronta Pepe Manero
107
Figura 50 - Albino Jo se apresenta a Miss Fury
109
Figura 51 - Millie the Model
118
Figura 52 – Patsy Walker
119
Figura 53 - Foto mais famosa de Ruth Atkinson, tirada durante o
120
período em que foi diretora da Fiction House
Figura 54 – Paper doll de Patsy Walker
123
Figura 55 – Paper doll da de Marla Blake
124
Figura 56 - Paper doll da Baronesa von Kampf
124
Figura 57 –Paper doll de Millie
124
Figura 58 – Paper doll de Hesy. Patsy and Herdy.
124
Figura 59 – Imagem usada como propaganda contra a leitura dos
132
quadrinhos.
Figura 60 - Romantic Secrets
137
Figura 61 - Romantic Secrets
137
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
01
CAPÍTULO 1 - HISTÓRIA DAS MULHERES, HISTÓRIA DOS
12
QUADRINHOS
1.1 - As mulheres também fazem quadrinhos nos Estados Unidos?
12
1.2 - Rose O'Neill: a primeira cartunista norte-americana
18
1.3 - Dale Messick: Brenda Starr, mulher e aventureira
22
1.4 - Jacquie Ormes: a primeira mulher negra a publicar quadrinhos nos
31
Estados Unidos
CAPÍTULO 2 - SUPER MULHERES & SUPER-HOMENS: O
39
NASCIMENTO DAS SUPER-HEROÍNAS NA DÉCADA DE 1940
2.1 – Sheena, a rainha das selvas: a primeira heroína a ter sua própria 39
revista
2.2 - Os super-heróis invadem os quadrinhos
43
2.2.1 – Super mulher ou super-heroína?
45
2.3 – June Turpé Mills: a primeira mulher cartunista a criar uma super-
50
heroína
CAPÍTULO 3 - AS MULHERES E A SENSUALIDADE NO UNIVERSO
58
DE MISS FURY
3.1 – Heroínas super femininas
58
3.2 – Marla Drake: uma heroína relutante
68
3.3 – Baronesa Erica Von Kampf, a espiã
75
CAPÍTULO 4 - AS MULHERES VÃO À GUERRA!
86
4.1 – As norte-americanas e a Segunda Guerra Mundial
86
4.2 – Heroínas e super-heroínas defendem a liberdade
90
4.2.1 – As “Victory Girls”: Super-Heroínas patrióticas
95
4.2.2 – Miss Fury e os Nazistas
103
4.2.3 – As diversas representações das mulheres nos quadrinhos
111
da década de 1940
CAPÍTULO 5 - OS COMICS, O PÓS-GUERRA E O RETROCESSO
114
5.1 – O mercado editorial norte-americano e a juventude
114
5.1.1 – Cativando o público leitor feminino: heroínas para todas 116
as idades
5.1.2 – As garotas amam paper dolls
5.2 – As Mulheres e a (super)aventura do pós-guerra
5.2.1 - A perseguição aos quadrinhos
121
126
130
5.2.2 - Novas tendências nos quadrinhos, velhas barreiras para 134
as mulheres
CONCLUSÃO
140
ANEXO
144
Entrevista com Trina Robbins
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
148
INTRODUÇÃO
Definir o que são Histórias em Quadrinhos é uma tarefa que tem
ocupado as mentes de estudiosos e profissionais da área por décadas. Will
Eisner as considera uma forma de arte sequencial, ou seja, uma forma de
narrativa que utiliza imagens em sequência. Segundo Eisner, a Arte Sequencial
é “um veículo de expressão criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística
e literária que lida com a disposição de imagens e palavras para narrar uma
história ou dramatizar uma ideia”.1
Mas arte sequencial é um termo abrangente, que envolve todas as
formas de narrativa sequencial por meio de imagens como, por exemplo, o
cinema e a animação. Scott McCloud irá, a partir do termo arte sequencial,
definir os quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em
sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma
resposta no espectador”. 2
As histórias em quadrinhos são uma forma de narrativa que pode usar
imagem e texto3 e onde o leitor precisa interagir com as informações a ele
apresentadas para decifrar o significado da narrativa. Além disso, elas são um
produto da era industrial e do avanço dos meios de comunicação. Como
produto cultural, elas representam um registro específico de um dado contexto.
Os quadrinhos se inserem no âmbito da História Cultural como objeto e
fonte de pesquisa. A História Cultural é aqui entendida como sendo um campo
da historiografia voltado para o estudo, usando as palavras de José D’
Assunção de Barros, “da dimensão cultural de uma determinada sociedade
historicamente localizada”.
4
Nesse sentido, as histórias em quadrinhos
oferecem ao pesquisador a possibilidade de identificar, analisar e compreender
as representações, os discursos e ideologias presentes em um dado contexto
histórico. Utilizaremos para isso o conceito tirado do Roger Chartier5, segundo
o qual é possível compreender o funcionamento de uma sociedade ou mesmo
1
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 05.
McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 09.
3
O texto nem sempre é necessário, pois as Histórias em Quadrinhos podem ser construídas
tão apenas por meio de uma disposição de imagens em sequência deliberada, daí a
denominação Arte Sequencial, dada por Will Eisner.
4
BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidade e abordagens. 5. Ed. –
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 56.
5
. CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. 2ª ed. Lisboa: Difel,
1988.
2
2
definir as operações intelectuais que nos permitem a apreensão do mundo6.
Esse mundo como representação é moldado a partir de uma série de discursos
que o apreendem e o estruturam.7
A partir do conceito de representação, de Roger Chartier, pretendemos
analisar gestos e comportamentos, individuais e coletivos, não somente como
reflexos exatos ou não da realidade, mas “entidades que vão construindo as
próprias divisões do mundo social”8 Esses quadrinhos possuem um discurso e
são, portanto, formadores de mentes, de opinião. O leitor interage e reproduz
ideias e valores. A leitura é um processo construtivo, dinâmico. As obras de
ficção têm, também, um papel a desempenhar nesse processo. Ainda citando
Chartier:
As obras de ficção, aos menos algumas delas, e a memória, seja ela
coletiva ou individual, também conferem uma presença ao passado,
às vezes ou amiúde mais poderosa do que a que estabelecem os
9
livros de história.
Tal como o livro, os quadrinhos são também um produto da cultura
material, entendida aqui como aquilo que o homem produz em sua vida social,
gerada e organizada materialmente. Os quadrinhos, também, vêm ganhando
espaço na cultura digital (definir), tornando-se cada vez mais parte de uma
cultura global, circulando por diferentes meios. Eles são, portanto, produtos
culturais humanos que foram integrados à sociedade e acabaram por
desenvolver um papel específico dentro dela, variando de acordo com o
contexto. Seus autores incorporam o papel de produtores culturais, e o leitor,
por sua vez, no ato da leitura, torna-se consumidor de cultura. A leitura dos
quadrinhos é, portanto, uma prática cultural, que se estabelece a partir da
transmissão (narrativa) e da recepção (leitura). A leitura ultrapassa o limite das
próprias palavras. Ainda citando Chartier:
A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados.
(...) Toda História supõe em seu princípio, esta liberdade do leitor que
se desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas essa
liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada de limitações
derivadas das capacidades, convenções, hábitos que caracterizam
em suas diferentes práticas e lugares. Os gestos mudam segundo os
6
CHARTIER, 1988, p. 17.
Ibidem, p. 23-24.
8
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo – 2ª ed – Belo Horizonte: Autêntica, 2010,
p. 07
9
Ibidem, 2010, p. 07.
7
3
tempos e os lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas
atitudes são inventas, outras se extinguem 10.
Os quadrinhos não fogem ao propósito da leitura e não podem, também
ser analisados sem que se levem em consideração as motivações para sua
criação e toda a carga social que envolve o ato de ler. Não se pode fazer uma
história dos quadrinhos sem que se faça uma história da leitura.
Pesquisar a história nos quadrinhos é, também, um exercício de
memória. É não apenas o ato de lembrar, como de identificar aquilo que foi
esquecido, uma vez que o próprio esquecimento é parte constitutiva da
narrativa histórica. Entendemos a memória como matriz da história e, também,
como um canal de reapropriação do passado histórico através dos relatos.
Nas palavras de Paul Ricoeur “... não temos nada melhor que a memória
para significar que algo aconteceu, ocorreu ou se passou antes que
declarássemos nos lembrar dela”11. Temos como testemunho desse passado
toda uma produção material, os quadrinhos, assim como o relato de quem a
eles dedica sua vida. Visões de mundo de pessoas diferentes, sexos
diferentes, que, por meio da narrativa, escrita ou iconográfica, nos deixaram
seu testemunho. O resgate da memória por meio dos quadrinhos surge como
uma forma de se colocarem novos olhares sobre o passado, sobre atores
históricos cujas realizações ficaram obscurecidas ou foram propositadamente
ignoradas por gerações futuras.
Segundo Eisner12 uma imagem é uma “memória ou experiência gravada
pelo narrador”. Na condição de memória, os quadrinhos tornam-se uma fonte
de informações que podem ser utilizadas de formas variadas pelo historiador.
Ao mesmo tempo, eles são um produto cultural, um objeto de estudo que deve
ser analisado a partir de critérios pré-estabelecidos, que levem em
consideração os objetivos do leitor/pesquisador.
O historiador dos quadrinhos é um agente da memória e da História, na
medida em que as HQs não podem ser estudadas como dissociadas do
contexto em que foram produzidas nem de quem as produziu. Assim, muito
mais do que falar de personagens, devemos voltar nossos olhares para as
10
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: convenções com Jean
Lebrum. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Editora UNESP, 1998, p. 77.
11
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François.
Campinas, SP: UNICAMP, 2007, p. 40.
12
EISNER, Will. Narrativas Gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. 2ª Ed. –
São Paulo: Devir, 2008, p. 19.
4
mentes criativas que lhes deram vida e forma. Nesse sentido, acabamos por
mergulhar, também, num universo biográfico. Trajetórias de vida, valores,
ideias e traços da própria personalidade do autor (a) são elementos
fundamentais para se entender aquilo que ele deseja representar na sua obra.
No caso dos quadrinhos, temos uma leitura complexa que se faz não
apenas a partir do texto escrito, mas, também, por meio do texto iconográfico.
A imagem complementa a narrativa sendo, para o leitor dos quadrinhos,
fundamental associar texto e imagem (quando há texto). Os quadrinhos, como
fonte de pesquisa histórica, devem ser compreendidos tanto do ponto de vista
do produtor quanto do receptor.
É preciso que se estabeleçam critérios para sua leitura, levando sempre
em conta o contexto em que foram produzidos, o público para que se destina e
a mensagem que inicialmente se pretende passar. O historiador dos
quadrinhos, mais do que qualquer outro, deve sempre estar atento às
armadilhas que a fonte lhe oferece e buscar a melhor forma de interagir com
seu objeto.
O importante no estudo de imagens como fontes históricas é buscar
metodologias próprias com a atenção de que existe uma diferença
clara entre o discurso visual e o discurso escrito. Deve-se evitar,
naturalmente, aquela tentação ou até mesmo inocência de se utilizar
a fonte iconográfica como mera ilustração que confirma o que o
historiador já percebeu através do discurso escrito de outra fonte que
está sendo trabalhada paralelamente. A imagem visual, é o que
queremos ressaltar, tem ela mesma algo a ser dito. É preciso fazê-la
falar com as perguntas certas, ou, para utilizar a metáfora de Vovelle,
13
“arrancar da imagem certas confissões involuntárias.”
No Brasil as Histórias em Quadrinhos têm despertado interesse de
pesquisadores e estudiosos há muitas décadas. Nos anos de 1960, o professor
Francisco de Araújo criou na Universidade de Brasília a primeira disciplina de
graduação do país sobre a linguagem dos quadrinhos. Durante a década de
1970, a Universidade de São Paulo se tornou um polo de referência de estudos
sobre quadrinhos, tendo como centro de referência a Escola de Comunicações
e Artes14. As décadas de 1980 e 1990 viram crescer o número de pesquisas,
principalmente nas áreas de comunicação e artes. Atualmente, são realizados
13
BARROS, 2004, p. 106.
FLEXA, Rodrigo Nathaniel Arco e. Super-Heróis da Ebal: A publicação nacional dos
personagens dos ‘comic books’ dos EUA pela Editora Brasil-América (EBAL), décadas de 1960
e 70. Dissertação apresentada à Área de Concentração Jornalismo da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção
do Título de Mestre em Ciências da Comunicação, São Paulo, 2006, p. 30.
14
5
encontros acadêmicos em várias partes do país e vêm surgindo, também,
núcleos de pesquisa envolvendo profissionais das mais variadas áreas. 15
Os estudos acadêmicos sobre os quadrinhos têm se multiplicado nos
últimos anos em várias áreas. Nas pesquisas em história vêm surgindo grupos
de historiadores cada vez mais especializados. De fato, o crescimento das
pesquisas sobre quadrinhos na área da história tende a superar áreas onde,
até então, esses
estudos se concentravam, como nos campos
da
comunicação, da arte e da educação.
Como fonte de pesquisa, os quadrinhos oferecerem e constroem
representações e contextualizações que podem ajudar a entender tanto as
relações sociais, políticas e raciais, quanto suas próprias transformações no
tempo e no espaço. Tabus, preconceitos e formas de pensamento podem ser
encontrados nos quadrinhos produzidos durante todo o século XX. Os
historiadores estão descobrindo as histórias em quadrinhos e, com elas, novas
formas de aplicação das teorias históricas.
Os quadrinhos podem ser instrumentos axiológicos e políticos. Eles
alternaram visões de mundo que, em muitos momentos, eram conflitantes. Nos
comics norte-americanos, podemos identificar as mudanças pelas quais
passaram as relações humanas e políticas em determinados períodos. Partindo
desse pressuposto, é possível afirmar que as histórias em quadrinhos são
documentos importantes para se entenderem as ideias e os valores
dominantes de uma época. Nos quadrinhos, estão as representações do real
ou daquilo em que se deseja transformar a realidade. Citando Douglas Kellner
e sua teoria da Pedagogia Crítica Dialética,
(...) a cultura contemporânea da mídia cria formas de dominação
ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao
mesmo tempo em que fornece instrumental para a construção de
identidades e fortalecimento, resistência e luta. Afirmamos que a
cultura da mídia é um terreno de disputa no qual grupos sociais
importantes e ideologias políticas rivais lutam pelo domínio, e que os
15
As Jornadas Internacionais de Quadrinhos, realizadas em 2011 e 2013, na USP; A
Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial que vem promovendo encontros anuais,
envolvendo pesquisadores de todas as aéreas; núcleos de pesquisa como o Observatório de
Histórias em Quadrinhos – ECA/USP., o NuPeQ - Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (MS) , e
Núcleo de Vivências e Experimentações em HQ no Laboratório Experimental de Arte-Educação
& Cultura, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) citando apenas
alguns, promovem iniciativas e vem estimulando o estudo dos quadrinhos.
6
indivíduos vivenciam essas lutas através de imagens, discursos,
mitos e espetáculos veiculados pela mídia.16
Ao adentrar neste mundo de ficção, o leitor (a) acaba por assimilar ideias
nele contidas, valores que são reforçados pelo autor (a) e, sem perceber,
acaba formando opiniões muitas vezes aproximadas sobre temas cotidianos,
política e mesmo economia. Quadrinhos, como qualquer outra mídia, são
formadores de opinião. Por conter aspectos inerentes à época e contexto em
que foram produzidos, eles acabam se tornando, também, objetos de pesquisa.
Os quadrinhos se tornaram muito mais do que simples transmissores de
informação, passaram a fazer parte da formação social de jovens e adultos,
tornaram-se instrumentos políticos e ideológicos. Os quadrinhos saíram dos
jornais e passaram a ocupar, também, espaços nas revistas. Revistas em
quadrinhos são um subproduto de um movimento que transformou arte e
comunicação em importantes artefatos culturais que podem ser dirigidos a
indivíduos de todas as faixas etárias, de todos os sexos, credos e etnias.
Na condição de um trabalho de pesquisa acadêmica que se propõe a
utilizar os quadrinhos como fonte para analisar as representações do feminino
veiculadas nos anos de 1940 e 1950 nos Estados Unidos, esta dissertação
busca revisitar debates já iniciados e abrir caminho para novas possibilidades
de diálogo entre a história e a cultura jornalística. O estudo das representações
femininas nos quadrinhos permite uma aproximação com as relações de
gênero, que se desenvolviam nos Estados Unidos dentro do recorte estudado,
mas também ajuda a entender a extensão dos meios de comunicação e sua
influência na sociedade.
As relações de gênero são entendidas aqui como as relações entre
homens e mulheres a partir das representações criadas pela sociedade sobre o
que é um homem e o que é uma mulher, sobre as relações entre mulheres e as
relações entre homens; os valores e as oposições entre feminino e masculino,
que envolvem hierarquias, relações de poder e de resistência.
É necessário pensar o conceito de gênero nas relações sociais e
institucionais sejam elas fenômeno do universo real ou fictício. O gênero se
expressa, também, nas páginas das histórias em quadrinhos, da mesma forma
como se fazem presentes nas práticas sociais cotidianas. Assim, quando
16
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 10.
7
analisamos a presença feminina e as relações de gênero presentes nas
histórias em quadrinhos, com foco em determinado personagem e contexto,
estamos, na verdade, buscando identificar os mecanismos de dominação de
uma determinada configuração.17
É também uma forma de se estudar a história das mulheres, tanto
aquelas que participam do mercado, que produzem quadrinhos, quanto das
personagens que povoaram estes inúmeros universos ficcionais. Voltamos ao
tema memória partindo do esquecimento. Personagens e autoras, esquecidas
pela história e pelos quadrinhos, podem nos oferecer relatos e informações
importantes para se entender a forma como se estruturavam as relações
sociais no período a ser estudado.
Os quadrinhos exteriorizam dramas e aspirações, são fortemente
influenciados por ideologias e possuem um discurso que produz significados.
Eles são parte de toda uma configuração cultural que, de momentos em
momentos, vai se modificando e se adaptando às necessidades da sociedade
e do mercado. Essas obras de ficção, tal como a memória, também conferem
uma presença ao passado, em alguns momentos mais poderosa do que os
próprios livros de história.18
Ao analisar as representações sociais e culturais femininas nos
quadrinhos de June Tarpé Mills, estamos, também, promovendo uma análise
histórica acerca de uma cultura e sociedade em mudança, transformação.
Homens e mulheres, não apenas norte-americanos, mas de outras partes do
continente e do mundo, passaram por momentos de mudanças semelhantes,
se em menor ou maior grau, não nos cabe aqui determinar.
Nosso objeto nos permite dialogar com todo um universo ficcional e
comercial que marcou a primeira metade do século XX e cuja influência cultural
extrapolou as fronteiras norte-americanas. Mills é considerada a primeira
mulher a criar uma personagem com superpoderes 19 , ou seja, uma superheroína, a Miss Fury. Entender a importância do que isso significou nos anos
17
SAMARA, Eni de Mesquita (org). Gênero em debate: trajetória e perspectivas da
historiografia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997.
18
CHARTIER, 2010.
19
Quando se trabalha com quadrinhos é muito difícil categorizar como pioneiro determinado
autor ou autora, o mesmo podemos dizer acerca dos personagens. No entanto, no caso de
Mills, e de outras cartunistas aqui citadas ao longo da pesquisa, estamos nos arriscando, com
base nos estudos sobre a personagem e sua autora, realizados por pesquisadores como Mike
Madrid e Trina Robbins.
8
de 1940 significa entender como as mulheres estavam inseridas na indústria
dos quadrinhos e, ainda, entender como o contexto histórico contribui tanto
para suas conquistas quanto para o surgimento de obstáculos não apenas ao
talento feminino mas às mulheres em sua totalidade.
Já a personagem Miss Fury nos conduz por um universo onde as
mulheres são as protagonistas e são representadas de formas diversas. São
quadrinhos de aventura feitos por uma mulher e que carregam uma gama
enorme de significados, apontando para realidades muito diferentes daquelas
que a grande mídia procurou, por muito tempo, nos impor. Miss Fury nos guia,
também, para um universo feminino bem mais amplo, influenciado e
incentivado pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, onde outras mulheres,
reais ou de papel, protagonizaram seus próprios dramas.
Esses quadrinhos são, portanto, uma forma de se estudar a cultura
material, arte e produção literária de um dado momento, numa determinada
sociedade, a partir da visão de mundo de roteiristas e desenhistas, pessoas
reais influenciadas diretamente pelo contexto em que viveram. É um exercício
de memória, na medida que recupera uma parte da ação das mulheres na
história e coloca em xeque alguns estereótipos que são regularmente
reproduzidos, seja na academia, seja nos próprios meios de comunicação,
como jornais, revistas e, claro, revistas em quadrinhos.
No primeiro capítulo, introdutório ao tema, vamos destacar a presença
feminina na indústria dos quadrinhos nas primeiras décadas do século XX e
sua inserção nesse campo de trabalho. Apresentaremos algumas das pioneiras
dos quadrinhos, com destaque para Rose O’Neill, Dale Messick e Jackie
Ormes. Essas três autoras representam muitas outras, a maioria delas
esquecida pela História das Histórias em Quadrinhos. Ao longo do primeiro
capítulo iremos perceber que as mulheres nos quadrinhos constituíram um
número significativo de profissionais, que conquistaram seu lugar dentro de um
mercado competitivo e que devem também ser lembradas pela forma como
uma parte da sua produção se inseriu dentro do contexto das lutas feministas
da época.
No segundo capítulo, partimos para a análise dos gêneros aventura e
superaventura, o surgimento dos primeiros super-heróis dos quadrinhos, ainda
na década de 1930, e das primeiras heroínas e super-heroínas, necessário
9
para que nos possamos adentrar no universo dos quadrinhos dos anos de
1940 e seu impacto social. Não é demais esclarecer que o período que vai de
meados da década de 1930 e toda a década de 1940 faz parte da chamada
Era de Ouro dos Quadrinhos, onde os gêneros aventura e superaventura
possuem uma importância fundamental. Nesse capítulo apresentaremos a
cartunista June Tarpé Mills, levantando parte da sua biografia e os obstáculos
que enfrentou enquanto profissional dos quadrinhos.
No terceiro capítulo iremos nos adentrar no universo da Miss Fury,
analisando as formas como o feminino é representado nos quadrinhos norteamericanos e o tratamento que Tarpé Milss oferece às suas personagens,
destacando duas, a Miss Fury e sua nêmesis, a Baronesa Erica Von Kampf.
Conhecer a trajetória dessas duas personagens nos permite entender os tipos
de representações femininas que Mills insere em sua obra. Além disso, é
necessário contar a história da Miss Fury para que a análise de seu conteúdo
alcance o objetivo desejado. Trata-se não apenas do estudo da obra de Mills e
de suas personagens, mas da forma como suas personalidades foram
moldadas e do diálogo que se faz entre quadrinhos e sociedade.
No quarto capítulo iremos nos ater a um tema que está presente em
quase toda a narrativa desse período e que influenciou a criação e releitura de
muitos personagens dos quadrinhos na década de 1940: a Segunda Guerra
Mundial. A maior inserção das mulheres no mercado de trabalho e a criação de
personagens classificadas como patrióticas serão temas abordados. Nesse
capítulo iremos analisar a temática do nazismo nos quadrinhos da Miss Fury e
voltaremos a falar das representações femininas nos quadrinhos nesse
período, tendo em vista o esforço concentrado de guerra presente em vários
países.
O quinto capítulo encerra nossa pesquisa analisando o mercado editorial
norte-americano, suas tendências e as dificuldades encontradas pelas
mulheres para nele se manterem, principalmente no período pós-guerra, o
backlash, o retrocesso nos direitos femininos, resultante do retorno dos
homens da guerra, a perseguição aos quadrinhos, a emergência de novos
gêneros e as mudanças impostas pela sociedade às personagens femininas,
principalmente nos quadrinhos de aventura e superaventura.
10
De uma forma geral, a grande referência para a elaboração desta
pesquisa foram os escritos da cartunista e historiadora das mulheres nos
quadrinhos, Trina Robbins, que possui uma vasta obra dedicada ao estudo da
participação feminina na indústria dos quadrinhos, nos Estados Unidos. Entre
os anos de 2011 e 2013, essa autora lançou duas grandes coletâneas, com
tiras da Miss Fury produzidas por June Tarpé Mills e publicadas e distribuídas
em jornais norte-americanos, entre os anos de 1941 e 1949. Esse material,
somado à leitura e análise de seis das oito revistas publicadas Timely Comics,
entre os anos 1942-1946, foi a nossa principal fonte de pesquisa.
Somados a esses quadrinhos, outros títulos lançados durante o período,
com gêneros que vão da aventura ao romance, também foram analisados, em
virtude da necessidade de se entender a lógica do mercado daquela época e,
também, para estabelecer parâmetros de comparação. Foram analisadas 157
revistas em quadrinhos, das quais foram efetivamente utilizadas na pesquisa
30 revistas em quadrinhos, publicadas entre os anos de 1938 e 1955, além das
351 páginas de quadrinhos coletadas por Trina Robbins. É relevante destacar
que só foi possível pesquisar esse material graças à existência de museus e
arquivos virtuais nos Estados Unidos, como o Comic Book Plus e ao Internet
Archive, que permitem acesso direto ao material digitalizado.
Por fim, cabe aqui justificar a escolha de uma autora norte-americana e
a análise de um contexto externo. Primeiramente temos a questão do
pioneirismo. Os Estados Unidos foram os pioneiros nos gêneros aventura e
superaventura, surgidos na década de 1930. Mills, por sua vez, foi uma
pioneira entre as mulheres e homens da sua época tanto por criar uma
personagem tão complexa como Miss Fury quanto por assumir integralmente
sua produção, No Brasil, pelo menos no recorte estudado, não possuíamos
uma produção significativa de quadrinhos nem foram encontrados registros
sobre a participação feminina relacionados a essa indústria.
Tivemos, claro, nossas pioneiras nas artes gráficas, como Nair de Teffé
e Hilde Weber, por exemplo, mas sua produção se resumia à caricatura e à
charge, Por outro lado, o material produzido nos Estados Unidos foi
amplamente distribuído na América do Sul. No Brasil, quadrinhos de aventura,
superaventura, crime e terror eram consumidos avidamente, assim como se
consumia o discurso e as representações neles contidos. Aliás, representações
11
do Brasil e do povo brasileiro estão dispostas nos quadrinhos da Miss Fury. A
América Latina era, e ainda é, foco da política externa norte-americana e
considerada região estratégica para o combate ao avanço nazista.
Assim, se estamos aqui propondo um estudo das representações
femininas nos quadrinhos da Miss Fury, estamos indiretamente estudando as
formas como o Brasil e mesmo as mulheres brasileiras estão representados
nos comics da década de 1940. Além disso, dado o intercâmbio cultural intenso
entre os Estados Unidos e o Brasil, fruto da política de boa vizinhança, é
possível verificar que modelos de comportamento feminino e masculino foram
aqui reproduzidos.
CAPÍTULO 1 - HISTÓRIA DAS MULHERES, HISTÓRIA DOS QUADRINHOS
1.1 - As mulheres também fazem quadrinhos nos Estados Unidos?
Sim, mulheres fazem quadrinhos, e o fazem muito bem.
Elas também estão presentes na história dos quadrinhos, embora sua
atuação seja ainda hoje invisibilizada pelo olhar masculino. A História das
Mulheres nos quadrinhos também precisa ser construída a partir da pesquisa
em fontes, tanto na sua produção quanto na trajetória das primeiras
cartunistas. Nos Estados Unidos existem grupos de pesquisadores (as)
dedicados a recuperar a obra e memória de quadrinistas, esses sujeitos
históricos que se escondem muitas vezes por detrás de seus personagens.
Se levarmos em conta os quadrinhos, como produto cultural e de cunho
popular, que já estão há mais de um século entre nós, é razoável imaginar que
o número de quadrinistas, cartunistas, chargistas e caricaturistas que já
desfilaram pelos jornais e revistas publicados nos estados Unidos nos últimos
100 anos é excepcionalmente expressivo. Proceder a um levantamento
minucioso acerca dessa produção material e intelectual é uma tarefa que
demanda muito esforço, pesquisa e persistência.
Mas, no caso das mulheres cartunistas, esse trabalho é ainda mais
delicado. A identidade das mulheres nos quadrinhos algumas vezes se
esconde por trás de pseudônimos masculinos e na própria condição de
anonimato, muitas vezes imposta pela sociedade às mulheres. Assim, um dos
objetivos, e creio que o mais nobre, da presente pesquisa é de iniciar um
debate acerca da presença feminina nos quadrinhos, começando com as
pioneiras, as mulheres de carne e osso, que produziram personagens
marcantes e se tornaram símbolos do talento, mas geralmente deparavam-se
com as barreiras erguidas pelo preconceito.
Em 2001, Trina Robbins publicou uma obra que se tornaria uma
referência para a História das Mulheres nos quadrinhos. Trata-se de The Great
Women Cartoonists. No livro, a pesquisadora apresenta ao público leitor
dezenas de mulheres que se destacaram na produção dos quadrinhos, do final
do século XIX até a década de 1990. Das pioneiras até autoras
contemporâneas. A obra nos mostra como é vasto o universo das mulheres
13
nos quadrinhos, a começar pelas autoras, a grande maioria delas hoje
esquecida.
Na década de 1920, Harry Wildenberg e Max Gaines, dois pioneiros na
produção de histórias em quadrinhos em forma de revista, investiram na
popularização dos quadrinhos - cujas edições continham propagandas que
estimulavam a venda de produtos de consumo- e acabaram chegando ao
formato adequado para a época: folhas de jornal tamanho padrão, dobradas ao
meio, considerado compacto e conveniente para uma revista em quadrinhos.
Centenas
de
milhares
de revistas
em quadrinhos
eram distribuídas
20
gratuitamente, numa arrojada estratégia de marketing.
Em meados da década de 1930, as revistas em quadrinhos chegaram às
bancas, agora para serem vendidas. Em 1934, a Eastern Color Printing
Company publicou a revista Famous Funnies e vendeu 200 mil exemplares.
Foi, então, imitada por outras empresas.
Se, inicialmente, os quadrinhos foram usados como uma estratégia para
atrair o consumidor, seja para jornais, seja para produtos de consumo dos tipos
mais variados, agora eles se transformaram em uma mercadoria. Seu custo de
produção era relativamente barato e muitos dos personagens já eram
populares, uma vez que eram publicados nos jornais e conhecidos do público
em geral. Essas revistas, por sinal, poderiam ser uma mistura de quadrinhos
com matérias informativas, direcionadas a um público específico.
A republicação de tiras foi substituída pela criação de novos
personagens.
Durante
a
década
de
1930
surgiram novas
editoras,
especializadas em quadrinhos, e, a partir de 1937, estúdios foram criados para
abastecê-las, gerando mais empregos21 As revistas em quadrinhos caíram no
gosto popular e ofereciam elementos que estavam ausentes nas tiras
publicadas em jornais.
As revistas tinham um extra que os jornais não tinham como almejar.
Tinham durabilidade, ao contrário dos jornais diários, que eram
descartáveis; podiam virar coleções e serem emprestadas. O formato
20
CHENAULT, Wesley .Working the Margins: Women in the Comic Book Industry. A Thesis
Submitted in Partial Fulfillment of Requirements for the Degree of Master of Arts in the College
of Arts and Sciences Georgia State University, 2007, p. 17-18.
21
HOWE, Sean. Marvel Comics: a história secreta. São Paulo: LeYa, 2013, p. 19-20.
14
maior permitia que elas apresentassem histórias mais longas e mais
detalhadas22.
No início do século XX, essas mulheres criaram histórias estreladas por
crianças, um tema popular na época. No final da década de 1930, elas
passaram,
também,
a
trabalhar
com
personagens
de
aventura
e,
posteriormente, superaventura. Algumas mulheres, no entanto, optaram por
tornar-se apenas ilustradoras de livros infantis, abandonando o ramo dos
quadrinhos. Mas outras permaneceram. Temos casos como o de Ruth
Thompson, por exemplo, que não apenas permaneceu na indústria dos
quadrinhos como chegou a ocupar o cargo de editora do David McKay
Company, até 1945.23
Durante a década de 1940, as comic shops 24 contrataram muitas
mulheres roteiristas e desenhistas. Muitas editoras não davam crédito às
produções femininas, mas outras o faziam, possibilitando assim identificar seu
trabalho e seus personagens. Nelas as artistas foram autorizadas a assinar
seu trabalho e produzir tiras completas individualmente. A maioria das
mulheres nas comic shops da década de 1940 trabalhou para os estúdios
dirigidos por Jack Binder, Lloyd e Grace Jacket, Eisner & Iger (mais tarde Iger
& Roche) e Harry Chesler.25
É preciso ter em foco que a indústria que surgiu nos Estados Unidos em
torno da produção de quadrinhos cresceu e se expandiu enormemente, abrindo
oportunidade para a absorção de uma mão de obra que se tornou cada vez
mais especializada. Durante os anos de 1930, trabalhar com quadrinhos era
uma forma de vencer os desafios financeiros impostos pela Grande Depressão.
As HQs eram um entretenimento barato, nem sempre de boa qualidade da arte
e do roteiro, mas que atraia os jovens e oferecia um certo conforto naquele
momento de grande dificuldade pela qual passava toda a nação.
Muitos homens e mulheres entraram para a indústria dos quadrinhos,
entre os anos de 1930 e 1940, praticamente por duas razões: necessidade e
oportunidade. Nos anos de 1930, a crise econômica e a recessão haviam
22
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. – São Paulo: Globo,
2013, p. 75.
23
CHENAULT, W., 2007, p. 36.
24
Diferentemente do que conhecemos atualmente como comic shops, essas lojas funcionavam
como estúdios e havia uma verdadeira linha de montagem de revistas, onde as mulheres eram
contratadas para as mais variadas atividades.
25
CHENAULT, Ibidem, p. 37.
15
gerado uma verdadeira legião de desempregados. Apesar de toda a
propaganda e da euforia gerada pelo crescimento econômico nas duas
primeiras décadas do século XX e a expansão da classe média, o que se tinha,
na verdade, era uma grande concentração de renda em uma pequena parcela
da sociedade, que atingiu o pico em 1928 e declinou durante os anos 1930 e
1940.26 A grande maioria da população norte-americana era assalariada, o que,
muitas vezes, exigia que vários membros da família trabalhassem fora a fim de
complementar a renda familiar e, desta forma, manter um padrão mínimo de
vida.
A indústria dos quadrinhos torna-se, assim, uma saída para quem tinha
algum talento (como letrista, roteirista ou desenhista) e precisa trabalhar para
ajudar a complementar a renda familiar. Talvez por isso não é de se admirar
que muitos daqueles que foram empregados em estúdios fossem muito jovens.
Pagava-se pouco, mas eram escassas as oportunidades de emprego naquele
momento.
Para a maioria dos envolvidos na produção, trabalhar com quadrinhos
não era motivado pelo desejo de se construir uma carreira. Entre os próprios
artistas havia preconceito. Por exemplo, artistas que trabalhavam com revistas
em quadrinhos eram considerados inferiores aos artistas que trabalhavam
produzindo tiras para jornais. Muitos artistas que produziam histórias para
revistas em quadrinhos preferiam não revelar sua profissão, considerando-a
provisória e esperando a oportunidade de ascender a uma posição de
prestígio. Isso talvez explique o fato de muitos dos artistas que trabalharam
com quadrinhos terem se tornado, mais tarde, ilustradores.
Ainda por muito tempo os quadrinhos seriam considerados “uma mídia
ignorada ou ridicularizada por grande parte da sociedade”. 27 Se alguns
autores/artistas conquistaram popularidade junto ao público-leitor com seus
personagens e até mesmo conseguiram acumular um capital significativo, a
atividade ainda estava longe de oferecer status social ou profissional. Stan
Lee, um dos grandes mitos dos quadrinhos, afirmou em depoimento que
26
SAEZ, Emmanuel. Striking it Richer: The Evolution of Top Incomes in the United States
(2008). Disponível em <http://elsa.berkeley.edu/~saez/saez-UStopincomes-2006prel.pdf>,
acesso em: 24 jan. 2014, p. 03.
27
HOWE, 2013, p. 11
16
Escrever quadrinhos era considerado o nível mais baixo da área
criativa. Ninguém tinha respeito pelos quadrinhos – nem a pessoa
para quem eu trabalhava. Meu editor achava que eles só eram lidos
por crianças bem pequenas ou adultos semianalfabetos. Não havia
por que tornar as histórias mais complexas nem se preocupar em
28
desenvolver melhor os personagens nem nada disso.
Uma considerável parcela do público das revistas em quadrinhos eram
os adolescentes e eles passaram a ser o público alvo das editoras, que
encomendavam aos estúdios personagens com aventuras repletas de ação,
romance, humor e mulheres bonitas, geralmente usando roupas sensuais.
Quando os estúdios começaram a produzir personagens e quadrinhos sob
encomenda, seguia-se uma fórmula pré-estabelecida. Os roteiros nem sempre
primavam pela qualidade. As revistas, de forma geral, acabavam sofrendo
críticas rígidas e os cartunistas eram considerados artistas inferiores.
Nesse ambiente, as mulheres eram minoria. Muitas delas passaram
pelos estúdios de forma quase anônima. Neles a esmagadora maioria dos
funcionários eram homens e o ambiente de trabalho era considerado
inapropriado para mulheres.
Mulheres eram extremamente raras no mundo dos quadrinhos
daquela época a não ser como secretárias. Os estúdios, assim como
os clubes de beisebol, eram ambientes exclusivamente masculinos,
habitados por adultos envolvidos em um jogo juvenil. O
comportamento e o palavrado de mau gosto, as pegadinhas, o humor
de baixo calão, as bebedeiras depois do batente e, em alguns casos,
a total vadiagem eram práticas comuns. Ninguém ligava para a
29
reprovação feminina.
Casos como o de Toni Blum (Audrey Anthony "Toni" Blum), que
começou sua carreira trabalhando pela Eisner & Iger, não foram muitos. Toni,
que teve destaque pela sua produção nas décadas de 1940 e 1950, trabalhava
com quadrinhos de aventura e superaventura. Ela não apenas desenhava, mas
roteirizava histórias, tornando-se um dos destaques do estúdio. Toni Blum
chegou a participar anonimamente, como fantasma, da produção de Spirit,
quando Eisner estava servindo, durante a Segunda Guerra Mundial, e de Lady
Luck.
Quando Toni começou sua carreira no Eisner & Iger, trabalhava no
estúdio juntamente com o pai Alex Blum, o que facilitou sua inserção no meio,
28
29
SCHUMACHER, 2013, p. 48.
Ibidem, p. 65.
17
mas não impediu, por exemplo, que sofresse assédio por conta de colegas.30
Toni é considerada uma das pioneiras dos quadrinhos nos Estados Unido,
tendo trabalhado para grandes estúdios como o Quality Comics.
Na década de 1950, ocorreu uma redução do número de mulheres que
trabalhavam com quadrinhos. Estima-se que em 1950 esse número havia
caído para um terço, em comparação com os anos de guerra. As mulheres de
todos os setores foram incentivadas a abandonar seus postos de trabalho, que
seriam novamente ocupados pelos homens. Aquelas que permaneceram na
produção de quadrinhos foram sendo gradativamente retiradas dos títulos de
ação e aventura. Para muitas delas restaram os quadrinhos com temas para
adolescente e os romances em quadrinhos.
Assim, para muitas mulheres a atividade de cartunista, o trabalho em
estúdios e a produção de histórias em quadrinhos foi uma profissão efêmera. A
própria Toni Blum, apesar do prestígio que construiu entre seus pares,
abandonou a carreira, na década de 1950, para tornar-se dona de casa e
cuidar dos filhos. Mas essas pioneiras deixaram sua marca a partir do trabalho
que desenvolveram para pequenos e médios estúdios.
Em geral, o cartunista não era dono da sua criação. Ela pertencia aos
estúdios, que não tinham preocupação em arquivar ou resguardar a memória
dos quadrinhos que lá eram produzidos. A maioria da arte original era
descartada, considerada inútil ou sem valor. Assim, muitos trabalhos feitos por
homens e mulheres foram perdidos, o que pode dificultar o estudo dos
quadrinhos, principalmente até a metade do século XX. Um obstáculo para os
pesquisadores dos quadrinhos.
Um outro desafio é identificar a obra dos cartunistas. O número enorme
de pseudônimos que um mesmo artista utilizava dificulta seu reconhecimento.
Isso se aplica tanto a homens quanto a mulheres. A já citada Toni Blum
assinou seu trabalho com diversos nomes. Embora possamos citar esse ou
aquele personagem, essa ou aquela revista como sendo obra de um
determinado artista, ou tendo a participação de certo roteirista, é improvável
que se possa fazer um levantamento completo de toda a produção de um
profissional dos quadrinhos nesse período.
30
SCHUMACHER, 2013, p. 59
18
Na indústria dos quadrinhos, era prática comum que a editora ou o
syndicate assumisse os direitos sobre os personagens. Os syndicates, que
surgiram na década de 1840, nos Estados Unidos, para abastecer os jornais
rurais com material para publicação, tiveram um papel muito importante na
indústria dos quadrinhos.31 Com o sucesso das tiras, eles se multiplicaram e
passaram a contratar cartunistas famosos e a distribuir seu trabalho por todo o
país, sendo responsáveis pela popularização das HQs. Por outro lado, eles
podiam assumir os direitos de publicação e distribuição desse material.
Como, para muitos artistas, trabalhar para os quadrinhos era uma tarefa
temporária, até que conseguissem uma colocação melhor, abrir mão dos seus
direitos sobre suas criações não era um problema. Para outros, que mais tarde
viriam a se profissionalizar e construir um nome e uma carreira, abrir mão de
um personagem, deixar que outros artistas assumissem sua produção, era
penoso.
Levando em conta essas informações, e o propósito de melhor demarcar
o território ocupado pelas mulheres cartunistas nos Estados Unidos, ao longo
deste capítulo estaremos apresentando algumas dessas pioneiras, de forma
mais detalhada. Para esse fim selecionamos três cartunistas que atuaram
notadamente na primeira metade do século XX. Elas foram reconhecidas pelas
suas criações e tiveram, cada uma à sua maneira, impacto não penas sobre a
nona arte32, mas também sobre a inserção social da mulher na sociedade da
época.
1.2 - Rose O'Neill: a primeira cartunista norte-americana
Rose Cecil O'Neill nasceu em 25 de junho de 1874, em Wilkes-Barre,
Pensilvânia. Aos 14 anos de idade ela ganhou um concurso de arte para
crianças e passou a criar uma série de desenhos semanais para o Omaha
World Herald. Aos 16 anos já fazia ilustrações para o Excelsior e The Great
Divide. Recebendo pelo seu trabalho, Rose ajudou os pais a sustentar sua
família, muito numerosa33.
31
IANNONE, Leila Rentroia. O mundo das histórias em quadrinhos. – São Paulo: Moderna,
1994, p. 44.
32
Classificação recebida pelos quadrinhos.
33
ROSE O'Neill's Biography. Disponível em http://www.roseoneill.org/mainpage.html#/, acesso
em: 31 mar. 2012.
19
Em 1893, com o apoio do pai William Patrick O'Neill, Rose foi morar em
Nova York, em um convento. Lá passou a oferecer seu trabalho, um portfólio
com cerca de 60 ilustrações, para jornais e revistas. Seu pai era um sonhador e
depositou no talento da filha todas as expectativas familiares. Aos 18 anos, já
era uma ilustradora popular e requisitada. Ela assinava suas ilustrações com as
iniciais C.R.O como uma forma de esconder o fato de que ela era uma mulher.
Uma prática comum entre as mulheres que iniciavam carreiras nas artes e na
comunicação. Em 1896, ela se tornou a primeira mulher artista da equipe na
Revista Puck, sendo oficialmente reconhecida pela indústria dos quadrinhos
como a primeira mulher cartunista norte-americana.
34
Figura 01 - Retrato de Rose O'Neill cartunista e defensora dos direitos da mulher.
Robbins 35 chama a atenção para o fato de Rose O'Neill iniciar sua
carreira profissional quase ao mesmo tempo em que Richard Outcault lança
seu Yellow Kid. Dois pioneiros dos quadrinhos, Outcault e Rose O'Neill,
marcam o início de uma era na comunicação em massa, tanto para homens
34
Documentar as Gilded Age Destaques. Disponível em
<http://gildedage2.omeka.net/exhibits/show/highlights/artists>, acesso em: 19 mar. 2014.
35
ROBBINS, Trina. The Great Women Cartoonists. New York: Watson-Guptill Publications,
2001, p. 02.
20
quanto para mulheres. A história dos quadrinhos esqueceu Rose O'Neill e
escolheu celebrar a produção de Richard Outcault.
O relevante número de mulheres que participaram desse mercado, na
primeira década do século XX, é um dado revelador e pode sustentar a tese de
que, apesar de restrito e competitivo, o mercado editorial norte-americano
estava aberto a novos talentos, inclusive o feminino. O que, claro, não tornava
a conquista de espaço profissional mais fácil para as mulheres, que ainda
precisavam vencer os preconceitos quanto a seu sexo e provar serem tão
capazes quanto os homens.
Um detalhe importante que não deve passar despercebido é a idade das
jovens cartunistas/ilustradoras. Rose começou bem cedo, aos 14 anos, e se
profissionalizou aos 18 anos. Mas ela não era necessariamente um prodígio,
ou uma exceção. Na mesma época outras cartunistas iniciavam suas carreiras,
também jovens, como Grace Drayton, que começou a publicar suas ilustrações
na mesma época que Rose O'Neill, em 1895, aos 18 anos; Nell Brinkley, que
aos 16 anos publicou suas ilustrações no Denver Post, em 1902; ou ainda
Fanny Y. Corg, que começou sua carreira como ilustradora aos 18 anos e, em
1902, já tinha uma carreira bem sucedida.36
Havia, possivelmente, outros fatores envolvidos na escolha da profissão,
que iam muito além do talento e da vocação. As mulheres, meninas ainda,
começaram a se tornar valiosos recursos econômicos para suas famílias. Nas
famílias que careciam de mais recursos, geralmente por serem numerosas,
mas onde ainda se podia garantir alguma instrução para os filhos, as meninas
eram incentivadas a assumir uma forma de complementar a renda familiar.
Em períodos de crise, como a I Guerra Mundial, a grande depressão
ocasionada pela quebra da bolsa de valores em 1929 e a II Guerra Mundial, o
trabalho feminino foi um recurso que não pôde ser ignorado. O trabalho como
ilustradora e/ou cartunista era uma boa opção, pois poderia ser realizado na
própria casa, sem contato muito direto com pessoas do outro sexo e sob os
olhares dos pais e mães zelosos da reputação de suas filhas, o que agradava
aos pais das moças. Estas, por sua vez, conseguiam conquistar certa
autonomia financeira e, até mesmo, a oportunidade de, com o sucesso, mudar
36
Cf. ROBBINS, 2001.
21
para uma cidade maior sem precisar estar presa ao compromisso do
casamento.
Por sua vez havia uma demanda crescente de cartunista no mercado
norte-americano, no início do século XX. O jornalismo se expandia cada vez
mais e os editores reconheciam a importância de caricaturas, charges,
cartoons e quadrinhos como elementos importantes para estimular as vendas.
O próprio contexto histórico, nas primeiras décadas do século XX, pode ter
influenciado. As Guerras Mundiais e os abalos na economia liberal estimularam
as mulheres de classe média a se tornarem, dentro da mentalidade capitalista,
membros produtivos da sociedade, não podendo mais se limitar aos trabalhos
domésticos, enquanto os homens estavam de alguma forma impedidos de
prover de bens básicos a sobrevivência de sua família.
Voltando à produção de Rose O'Neill, sua criação mais famosa, e que
lhe garantiu um bom suporte financeiro, foi o grupo de cupidos que ela batizou
de Kewpies, em 1905. O cartoon foi um sucesso tão grande que, em 1912, um
fabricante de porcelana alemã começou a fazer bonecas Kewpie, sob
supervisão de Rose. Eles foram publicados até a década de 1930. Graças aos
Kewpies, O'Neill fez uma fortuna de US$ 1,4 milhões, que hoje estaria
equiparada a um valor próximo a US $15 milhões. A American Visuals,
empresa fundada por Will Eisner, em 1948, trouxe de volta as aventuras dos
Kewpies, em quadrinhos, mas não obteve sucesso.37
Rose O'Neill nunca hesitou em se envolver com política ou questões
referentes a direitos das mulheres. Usou seu talento para criar e ilustrar
programas, cartazes, charges onde expressava seu apoio a causas como o
sufrágio feminino. Utilizou, também, sua fama como cartunista para chamar
atenção da sociedade para a forma desigual com que as mulheres eram
tratadas. Muitos dos Suffrage posters (Cartazes Sufrágio) feitos por O'Neill
foram guardados e preservados e se tornaram uma parte da memória do
movimento sufragista norte-americano. Entre os anos de 1917 e 1918, criou
uma série de ilustrações, The Kewpie Korner Kewpiegram, com pequenos
poemas que defendiam o sufrágio feminino ou tratavam de outro tema
polêmico, relacionado na maioria das vezes às mulheres.
37
SCHUMACHER, M. 2013, p. 146.
22
38
Figura 02 - The Kewpie Korner Kewpiegram, 1918.
Apesar de todo o sucesso que atingiu, O'Neill acabou perdendo quase
todo seu patrimônio por conta de uma série de fatores, dentre eles sua falta de
controle sobre suas finanças, o que a levava a cometer algumas
extravagâncias, seu mecenato e problemas familiares. Rose O'Neill viveu sua
vida intensamente. Foi escultora, sufragista, inventora, empresária, filósofa,
poeta, romancista, autora de livros infantis, e compositora. Morreu em 1944,
empobrecida.
1.3 - Dale Messick: Brenda Starr, mulher e aventureira
Dale Messick pode ser considerada uma das cartunistas norteamericanas mais importantes do século XX. Ela mostrou que as mulheres
podiam fazer quadrinhos de aventura e ter sucesso dentro desse gênero.
Geralmente, as cartunistas se dedicavam a produzir quadrinhos com
personagens caricatos ou fofos.
38
SFCGA - San Francisco Academy of Comic Art Collection, The Ohio State University Billy
Ireland Cartoon Library & Museum. Disponível em: <http://goo.gl/O3snhn>, acesso em: 31 mar.
2013.
23
Dalia Messick nasceu em South Bend, Indiana, no dia 11 de abril de
1906 e faleceu em 05 de abril de 2005. Foi a criadora de Brenda Starr,
Repórter - personagem feminina popular que atingiu seu auge na década de
1950, quando chegou a ser publicada em cerca de 250 jornais. Dalia vinha de
uma família humilde; era filha de uma costureira e seu pai era pintor. Ela
aprendeu com a mãe o ofício de costureira - que foi, por muito tempo, fonte do
seu sustento - e foi incentivada pelo pai a desenvolver o desenho.
Figura 03 - Foto de Dale Messick.39
Chegou a cursar a Ray Commercial Art School, em Chicago. Abandonou
o curso para trabalhar como ilustradora em uma empresa de cartões de
felicitação (greeting card company), mas acabou desistindo do emprego
quando, durante a grande depressão da década de 1930, sua remuneração foi
cortada pelo chefe para dar aumento a outro funcionário. 40 Ela largou o
emprego, saiu de Chicago e foi morar em Nova York, em 1934, e conseguiu
trabalho, também como ilustradora de cartões.41
39
ROBBINS, 2001, p. 56.
SULLIVAN, Patricia. Cartoonist Dale Messick Dies: Creator of 'Brenda Starr' Strip (2005).
Disponível em <http://zip.net/bnqSq5>, acesso em 02 de abr. de 2013.
41
LEGER, Jackie. Dale Messick: A Comic Strip Life (2000). Disponível em:
http://www.awn.com/mag/issue5.04/5.04pages/legermessick.php3, acesso em: 02 abr. 2013.
40
24
Nessa mesma época, começou a criar quadrinhos e a oferecê-los em
jornais. Teve que trocar o nome de Dalia para Dale, como uma forma de burlar
o preconceito contra as mulheres cartunistas. Criou várias séries de
quadrinhos, mas nenhuma foi aprovada para publicação. Foi a pessoa mais
improvável que lhe deu uma chance: Joseph M. Patterson, editor do New York
Daily Newsand e cabeça do Chicago Tribune-New York News Syndicate.
Patterson era considerado um chauvinista e avesso a mulheres cartunistas.42
Joseph Patterson, o poderoso chefão do Chicago Tribune-New York
Syndicate promoveu a sua auxiliar direta Mollie Slott, amiga de
Messinck. Surgiu então a oportunidade da criação de uma “girl Strip”
desenhada por Messick, que realizou para as páginas dominicais
43
Brenda Starr, Reporter
Assim, a personagem Brenda Starr,
44
heroína e aventureira é
apresentada ao público, em 1940. Brenda é uma audaciosa jornalista que
trabalha para o jornal The Flash, vivendo aventuras profissionais e amorosas.
Brenda era uma jornalista insatisfeita com seu trabalho, que se limitava a
notícias da coluna social. Ela desejava algo mais, queria investigar os fatos,
queria a ação que seus colegas do sexo masculino vivenciavam na procura de
notícias. Ela busca mais espaço dentro da sua atividade profissional. Brenda
representa, de certa forma, a mulher que deseja oportunidade para mostrar seu
potencial a uma sociedade que não lhe oferece abertura.
Dale Messinck, com Brenda Starr, rompeu com a hegemonia masculina
nessa área e criou uma personagem que fez sucesso por mais de setenta
anos. Ela simplesmente invadiu o território masculino nos quadrinhos. 45 Ao
longo de toda a sua carreira, Dale deparou-se com muita resistência dos
homens. Era muito mais julgada pela sua aparência do que pelo seu talento.
Sua personagem recebia críticas, mas era muito mais complexa do que outras
repórteres mulheres dos quadrinhos, como Lois Lane, que precisava sempre
42
LEGER, J., 2000.
GOIDANICH, Hirton Cardodo. Enciclopédia dos quadrinhos Goida. – Porto Alegre: L&PM,
1990, p. 236.
44
A personagem foi inspirada fisicamente na atriz Rita Hayworth. Seu nome foi inspirado numa
famosa debutante, Brenda Frazier, e seu sobrenome foi escolhido porque seria o repórter
estrela em The Flash. In: SEVERO, Richard. Dale Messick, 98, Creator of 'Brenda Starr' Strip,
Dies (2005). Disponível em <http://zip.net/bdqSF7>, acesso em 09 mai. 2013.
45
ROBBINS, 2001, p 58.
43
25
ser resgatada pelo Superman. Ela desmaiava, chorava, sentia medo, mas não
fugia dos desafios nem dependia de um herói para salvá-la.46
Dale recebia muitas cartas de fãs perguntando sobre a personagem,
fazendo sugestões e críticas. O interessante é que, mesmo muitos anos depois
de os quadrinhos de Brenda Starr estarem circulando em jornais e,
posteriormente, em revistas em quadrinhos, ainda havia fãs que não
acreditavam que a autora fosse realmente uma mulher. Em um texto publicado
na revista Brenda Starr # 13, de 1955, editada pela Chalton Comics, aparece
uma foto da autora e uma breve biografia. O texto começa justamente
levantando a questão do sexo de Dale. Ela é mulher, afirma o editorial, e
bonita. O mesmo texto segue afirmando que mesmo que as histórias não
fossem boas, os cabelos ruivos de Brenda garantiam por si só a devoção dos
fãs do sexo masculino, reforçando a objetificação da personagem.
Figura 04 - Capa da revista Brenda Starr, n. 13, publicada pela A four Star Comics, em 1947.
Ressaltar o fato de a autora ser bonita é algo que deve ser analisado.
Persistia e persiste até hoje uma representação da mulher eficiente e talentosa
46
SULLIVAN, P., 2005.
26
como feia e sem vaidade. Um estereótipo que vem sendo reproduzido há
décadas, como uma forma de desqualificar as mulheres que trabalham e
conquistam sucesso. Tal como Dale Messick, tantas outras cartunistas de
sucesso como Rose O’Neal, Toni Blum, Tarpe Mills e Jackie Ormes eram
talentosas e bonitas, segundo os padrões de beleza da época. Mas eram,
acima de tudo, mulheres inteligentes, cheias de energia, criatividade e
idealismo, que conquistaram sucesso com seus/suas personagens marcantes.
Não foi a sua aparência física a responsável pelo seu êxito na profissão.
Ainda, afirmar que os leitores homens, pois o texto não faz referência às
leitoras do sexo feminino, acompanham as tiras de Brenda porque ela é ruiva
(e aí subentende-se ruiva bonita e sensual) contrasta com o fato de Dale ter
sido citada como uma das poucas cartunistas bem sucedidas dos Estados
Unidos naquela época. A autora e sua personagem são subestimadas e
desqualificadas. A beleza feminina sob o olhar masculino é o que, segundo o
editor, vende os quadrinhos.
O quadrinhista, de uma forma ou de outra, transpõe para seus
personagens, em parte, aquilo que supõe-se que o leitor deseja ler, afinal os
quadrinhos são um produto de consumo, que deve ser atrativo. Daí a presença
constante de clichês e estereótipos, que são absorvidos vorazmente pelo
consumidor/receptor. Por outro lado, o quadrinho não deixa de ser uma forma
de o autor exprimir aquilo que pensa, que sente. Ele estabelece um diálogo
com o seu interlocutor por meio de imagens e palavras, estabelece uma troca
silenciosa.
O autor é o sujeito que “sabe” que há um interlocutor; um sujeito que
deve seguir injunções da racionalidade social, disposições do uso
social da linguagem. Se o sujeito abriga, em princípio, opacidades e
contradições, o autor, ao contrário, tem um compromisso com a
clareza e a coerência: ele tem que ser visível pela sociedade, sendo
responsável pelos sentidos que sustenta. 47
Os anos de 1950 foram marcados por um discurso reacionário voltado
para a desqualificação do trabalho feminino, em todos os setores da sociedade.
Era o backlash, uma reação aos avanços dos anos anteriores, onde as
mulheres têm suas conquistas ameaçadas. Uma fase, também, de perseguição
à mulher que estuda e/ou trabalha fora de casa, garantindo sua independência.
Essa perseguição era justificada em teorias pseudo-científicas que buscavam
47
ORLANDI, E., 2007, p. 103.
27
desestimular a independência feminina.
No caso das mulheres afro-
americanas, por exemplo, até mesmo o controle de natalidade era sugerido,
como forma de conter o crescimento da população negra nos Estados
Unidos.48
Ao final da Segunda Guerra Mundial, seguiu-se, também, um período
obscuro para os quadrinhos, que passaram a ser perseguidos e censurados,
ora pelo Macartismo 49 , ora pelo ataque de moralistas como o psiquiatra
Fredric Wertham que, em seu livro A sedução dos inocentes, condena os
quadrinhos alegando que eles corrompiam a juventude. 50 Mas Brenda Starr
sobreviveu, manteve-se ainda por muitas décadas como uma personagem
popular, em grande parte graças à persistência de sua criadora, que impediu
que grandes mudanças ocorressem nas histórias de Brenda e em sua própria
personalidade, como aconteceu com outras personagens, como a Mulher
Maravilha, por exemplo.
Os quadrinhos eram publicados nas páginas dominicais do Chicago
Tribune Syndicate, como parte do suplemento experimental do jornal, o
Chicago Sunday Tribune, no formato de revista. Era uma história completa a
cada edição. Mas os editores não tinham grandes expectativas com relação ao
sucesso da tira, que inicialmente foi desacreditada. No entanto, Brenda Starr
agradou tanto ao público que em 1945 surgiu como um seriado, “Brenda Starr,
reporter”, com Joan Woodbury no papel da heroína.51
Assim, em meio a loiras e morenas, uma ruiva conquista o coração dos
leitores norte-americanos. A ideia era criar uma tira com uma personagem
feminina, cuja carreira como repórter permitisse-lhe viajar pelo mundo e ter
grandes aventuras. Os quadrinhos de Brenda Starr eram a mistura de
romance, aventura e uma boa dose de humor, que acabou agradando a
homens e mulheres.
Se os heróis serviam de inspiração para os rapazes, heroínas como
Brenda Starr brincavam com a criatividade das meninas, que podiam se
48
FALUDI, Susan. Backlash. O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres.
Trad. Mário Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
49
O termo Macartismo é usado para definir o período de intensa perseguição anticomunista e
desrespeito aos direitos civis nos Estados Unidos, comandada pelo senador americano Joseph
McCarthy.
50
REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua
potencialidade teológica. – São Leopoldo: EST/PPG, 2012, p. 232.
51
CHAMBLISS, Julian. Comic Milestone: The Brenda Starr Byline Has Ended (2010).
Disponível em: <http://zip.net/bjqSj1>, acesso em: 02 de abr. de 2013.
28
imaginar saltando de paraquedas de um avião, explorando florestas ou fugindo
de vilões.
Brenda Starr fez parte do esforço de guerra, junto ao grande panteão de
personagens masculinos, que vez ou outra deram lugar a algumas heroínas e
super-heroínas como Sheena e Mulher Maravilha. Para Howell,52 seu sucesso
foi, em parte, um produto da força de trabalho feminina que se destacou
durante a Segunda Guerra Mundial. Ela era uma girl power, que inspirava
outras mulheres a experimentar uma vida diferente daquela vivida por suas
mães e avós.
No momento em que as mulheres eram impelidas a retornar para suas
casas e cuidar do lar, uma personagem feminina, inteligente, liberada e
funcional, circula livremente pelas páginas de centenas de jornais, inspirando
moças a abraçarem uma carreira, a sonharem com viagens a lugares exóticos,
a serem destemidas e determinadas.
Brenda Starr, a corajosa repórter,
recusa-se a assumir o papel de esposa e dona de casa que a sociedade norteamericana impunha às mulheres após a Segunda Guerra Mundial.
Brenda foi uma inspiração para as jovens desejosas em romper com os
tabus machistas para a sociedade. Mas ela é, também, uma mulher inspirada
em outras mulheres. Brenda não tem vergonha de ser sensual, de vestir-se
bem, gosta de estar sempre bonita e tem uma vida amorosa agitada. Em
muitos sentidos, Brenda Starr é um reflexo da própria criadora, se não
fisicamente, na forma de viver sua vida sem se importar com as críticas que
recebe. É uma heroína, mas também é uma mulher do seu tempo. Ela é uma
Glamor Girl, como tantas outras personagens femininas que surgiram na
década de 1940 e que fizeram muito sucesso até a década 1950.
Brenda quer uma carreira, mas não rejeita a possibilidade de viver um
grande amor. Esse é um tema que está presente em suas histórias,
invariavelmente. Nelas, homens se declaram a Brenda, oferecem seu amor e
devoção. Ela até aparece, em certos casos, fazendo papel de cupido para as
amigas, mas sua vida amorosa é sempre complicada.
A heroína teve muitos pretendentes que foram seduzidos pelos seus
encantos, mas ela os recusava, pois nutria uma grande paixão pelo químico
52
HOWELL, Daedalus. Brenda Starr's Dale Messick is a firecracker (1998). Disponível em
<http://www.metroactive.com/papers/sonoma/02.19.98/comics-9807.html>, acesso em: 02 de
abr. de 2013.
29
Basil St. John, seu eterno noivo. Basil era um homem misterioso, usava um
tapa-olho preto, desaparecia por meses e sua vida estava ligada a uma
orquídea negra rara que só existia na selva amazônica. Basil retirava dela um
soro, a única cura para uma doença rara que possuía53.
Antes de anunciar sua aposentadoria, Messick realizou, finalmente, o
casamento de Basil com Brenda. Eles tiveram uma filha, Starr Twinkle St. John.
Mas, Brenda não era feita para o casamento e acabou de divorciando. Se
Brenda não foi feliz no casamento, sua criadora teve o mesmo destino,
divorciou-se duas vezes.
Ao se aposentar, na década de 1980, Dale exigiu que a personagem
continuasse a ser produzida, mas apenas por mulheres. Na época, Linda Sutter
(roteirista) e Ramona Fradon (ilustradora) assumiram a função de manter a
personagem viva. Em uma indústria onde o autor não era dono de sua obra,
Dale não apenas controlou a produção dos quadrinhos de Brenda Star até sua
aposentadoria como ainda impôs condições para sua continuidade. E isso foi
fundamental para manter a identidade de sua personagem. Seis anos após a
morte de sua criadora, em 2011, a personagem Brenda Starr encerrou sua
carreira nos quadrinhos.
Os quadrinhos de Brenda Starr eram avidamente consumidos por um
público masculino, que cultuava as belas formas da repórter ruiva, mas Dale
escreve, também, para as mulheres que sonham com um futuro que possa lhes
oferecer um pouco mais do que uma vida doméstica e para mulheres casadas,
de classe média, que se encantam com o charme e a ousadia de Brenda Starr.
Essa geração que se alimenta das oportunidades geradas pela Segunda
Guerra Mundial irá lutar pelo desejo de independência que lhe será negado na
década seguinte.
Brenda Starr mantém sua personalidade nos anos que seguem e
consegue se firmar como personagem popular até sua última publicação em
2011. Ela representou aquele grupo de mulheres que rejeitava a ideia de
simplesmente retornar para a vida doméstica, porque a guerra acabou. Aqui
está um grupo determinado a buscar reafirmar seus direitos e afirmar sua
capacidade produtiva e intelectual na sociedade norte-americana pós-guerra.
53
SULLIVAN, P., 2005.
30
Selma Regina Nunes Oliveira54 lista Brenda Starr dentro do estereótipo
da mulher moderna, criado nos quadrinhos na década de 1920. Segundo esse
modelo, característico das girls strip, esse modelo de mulher moderna é
multifuncional. A mulher dinâmica, que se desdobra entre o trabalho, a casa, os
filhos e o marido. Segundo a autora, essa mulher moderna dos quadrinhos
possuía três características: seduzir, amar e viver.55
Ouso contrapor a essa análise uma outra. Brenda Starr era uma releitura
do estereótipo da mulher moderna. Essa nova mulher, que se destaca nos
anos de 1940, é independente, continua sendo dinâmica mas, agora, ela
desloca essa energia para empreendimentos que vão lhe render prazer
pessoal e profissional. Ela não se preocupa com a casa, não sonha com a
maternidade e não está à caça de um marido. Claro, Brenda tem seu interesse
romântico, mas não faz dele a meta de sua vida. O casamento não foi o final de
sua carreira, foi apenas uma experiência pela qual ela passou e que ajudou a
aumentar seu desejo pela independência.
Apesar de todo o discurso difundido pela indústria cultural, através dos
quadrinhos, romances e outros meios de comunicação de massa, a mulher
moderna norte-americana não podia ser resumida a um único estereótipo.
Havia uma pluralidade de mulheres, nem todas compartilhando do mesmo ideal
de família e de felicidade, discurso que era produzido e reproduzido na
sociedade, mas que não necessariamente encontrava abrigo em todos os
corações femininos.
Da mesma forma, os
homens não compartilhavam a mesma
representação idealizada de mulher. Fosse assim, heroínas como Brenda Starr
e tantas outras não teriam sua legião de fãs do sexo masculino. Mulheres
dinâmicas e independentes tinham seu lugar na sociedade.
Apesar de reconhecer que os quadrinhos, assim como outros meios de
comunicação, foram e são ainda usados como ferramentas, veículos para a
imposição, solidificação de valores, a partir de representações que são
apresentadas e absorvidas como verdades, é preciso sempre ter em mente
que isso ocorre de forma plural. Essa não é uma via de mão única, usando
uma expressão coloquial.
54
Cf. OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado - as representações femininas nos
quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). – Brasília:
Universidade de Brasília: Finatec, 2007.
55
OLIVEIRA, S., 2007, p. 51
31
Nenhum discurso é neutro, nenhum discurso é único e nenhum discurso
é inocente. Todo discurso produz sentidos. É a análise desses sentidos, que
nascem das ideias e ideologias de quem os produz, que nos permite enxergar
além dos modelos impostos. É possível perceber e identificar reações, tensões,
resistências.
É sempre preciso levar em consideração o fato de que o leitor não é um
agente passivo, ele interage, ele tem suas próprias ideias, ele absorve a
informação de forma diferente, de acordo com o contexto. Por maior que seja o
controle sobre a sociedade, ele não é total como fazem crer os donos do poder,
uma vez que é incapaz de colocar fim nas relações de força e impor totalmente
sua hegemonia (usando um termo marxista) sobre a sociedade.
Os padrões culturais que predominam ou são impostos por um grupo
dominante, em determinada sociedade ou contexto histórico, ao mesmo tempo
em que separam e legitimam as distinções, estabelecem a separação e o
distanciamento entre as demais expressões culturais.56 Embora seu discurso
tente alcançá-las, irá esbarrar nas próprias distinções que ajudou a criar.
Sendo assim, por mais convincente que seja a ideologia nele contido, a
interpretação do receptor vai estar intimamente ligada aos símbolos e valores
sobre os quais pesa a sua formação.
Assim, a formação do leitor interfere diretamente no nível em que ele
apreende o conteúdo que encontra nos quadrinhos ou em qualquer outro tipo
de leitura. Há leitores que não são criteriosos ou estão preocupados em avaliar
o conteúdo que têm em suas mãos.
Eles absorvem a informação para
compensar uma falta de conhecimento ou mesmo de experiência. Nesse caso,
o conteúdo, o discurso presente no texto, encontra uma recepção maior. Mas é
justamente essa particularidade, essa pluralidade na formação geral do leitor
que estabelece um contraponto. Diferentes leitores, diferentes pontos de vista e
experiências acumuladas de vida significam diferentes leituras da realidade.
1.4 - Jackie Ormes: a primeira mulher negra a publicar quadrinhos nos
Estados Unidos
Nascida em uma família de classe média, no ano de 1911, em
Monongahela, Pensilvânia, Jackie Ormes foi batizada como Zelda Mavin
56
BOURDIEU. Pierre. O poder simbólico. - 2ª ed. - Rio de Janeiro, Betrand Brasil, 1998, p. 1011.
32
Jackson, tendo adotado o sobrenome Ormes depois de casada. Ainda jovem,
destacou-se no curso secundário pelo seu talento com artes. Depois de se
formar, em 1930, pela Monongahela High School, em Pittsburgh, Ormes
trabalhou como repórter freelance e revisora para o Pittsburgh Courier, um
jornal semanal afro-americano que saía todo sábado.
Foi no Pittsburgh Courier, em 1937, que publicou sua primeira tira de
quadrinhos, Torchy Brown in “Dixie Harlem”, que conta a história de uma jovem
negra do Mississipe que busca por novas oportunidades nas metrópoles do
norte.57 Com humor, as peripécias da jovem eram uma forma de refletir sobre
as dificuldades enfrentadas por quem sai do Sul em busca de novas
oportunidades no Norte. Chegou-se a um total de doze tiras, publicadas em
1937 e 1938, no Pittsburgh Courier. Torchy representa a primeira personagem
negra independente. Ormes investiu em um gênero que vinha fazendo sucesso
e que atraía o leitor do sexo feminino, a girl strip, tiras de garotas ou ainda
história de garota.58
Segundo Trina Robbins, apenas três afro-americanos cartunistas
conseguiram quebrar a barreira da cor nos quadrinhos durante toda a primeira
metade do século XX, e todos eram homens. Para ela, Jackie Ormes, uma
mulher afro-americana, não iria tentar vender seus quadrinhos em um jornal
para brancos. Daí a escolha de um jornal destinado ao público negro, o que a
livrava da barreira da cor, mas ainda corria o risco de ser recusada por ser
mulher, o que não aconteceu. Torchy Brown in “Dixie Harlem” estreou em um
jornal para negros e foi distribuída para mais outros quatorze jornais, também
para negros, espalhados por todo o país.59
Ormes mudou-se para Chicago em 1942 e passou a contribuir para a
coluna social de outro jornal afro-americano, o Chicago Defender, considerado
um dos principais jornais norte-americanos destinado aos negros. Em 1945,
lançou outra personagem, que apareceu em algumas tiras, de quadro único
(painel), publicada durante quatro meses: Candy, uma empregada doméstica
sexy e atrevida que está sempre fazendo observações astutas sobre seus
patrões e sobre a sociedade de um modo geral.
57
GREEN, Karen. Black and White and Color (2008). Disponível em:
<http://pulllist.comixology.com/articles/96/Black-and-White-and-Color>, acesso em: 02 jan.
2013.
58
OLIVEIRA, S., 2007, p. 50.
59
ROBBINS, 2001, p. 96-97.
33
O traço da personagem lembra sua própria autora, que passa a interagir
com sua produção, não apenas colocando nela suas ideias e suas críticas, mas
se personificando, apresentando uma nova mulher negra norte-americana, que
não se intimida frente à sociedade, que não tem medo de expor seu
pensamento e sua sensualidade. A partir de Candy, traços físicos e da
personalidade de Ormes estarão cada vez mais presentes em suas
personagens.
Ainda em 1945, lançou uma tirinha, também de quadro único (painel),
chamada Patty-Jo ‘n’ Ginger. Ginger era uma mulher jovem, elegante e de
corpo escultural, sempre às voltas com as travessuras de sua irmã caçula
Patty-Jo. A cada semana, Patty-Jo emitia algum tipo de comentário referente a
uma situação polêmica. Esses comentários podiam ser inócuos, mas,
frequentemente, refletiam preocupações e interesses da própria Ormes, bem
como os acontecimentos do dia.60
A personagem Patty-Jo acabou se tornando, também, um sucesso de
vendas nas lojas infantis. Transformada em boneca, foi produzida entre os
anos de 1947 e 1949. A boneca era dedicada às meninas afro-americanas,
uma forma que Ormes encontrou de levar às meninas negras um brinquedo
com o qual pudessem se identificar. Segundo Nancy Goldstein, a boneca
representou uma importante referência para essas crianças e suas famílias, um
marco na história do negro nos Estados Unidos. 61
É importante destacar aqui o papel dos jornais afro-americanos na
divulgação dos quadrinhos e mesmo sua influência na obra de autores como
Ormes. Os jornais destinados à população afro-americana têm uma longa
história, que começa oficialmente em 1827, quando Samuel Cornish e John
Brown Russwurm fundaram o primeiro Jornal Africano-Americano, o Freedom’s
Journal (Jornal da Liberdade). Esses jornais se tornaram um grande
instrumento de luta pela liberdade dos escravos e, posteriormente, contra o
racismo e a injustiça social.
60
GREEN, K., 2008.
GOLDSTEIN, Nancy. The First African American Woman Cartoonist. University of Michigan,
2008, 04.
61
34
Figura 05 - Candy, 30 de junho de 194562
Figura 06 - Patty-Jo ‘n’ Ginger, 06 outubro de
1945.63
O Correio Pittsburgh, primeiro jornal onde Ormes trabalhou e onde
começou sua carreira como cartunista, foi criado em 1907 por Edwin Harleston.
Além de lutar pelos direitos dos afro-americanos, o jornal teve como uma de
suas
principais
metas
capacitar
os
negros
tanto econômica
quanto
politicamente. Naquele jornal, Ormes teve oportunidade de desenvolver várias
atividades como jornalista, chegando até a ser comentarista esportivo.
O Chicago Defender foi fundado em 1905 para leitores afro-americanos.
O Editor e fundador Robert Sengstacke Abbott teve um papel importante em
influenciar a migração de afro-americanos do sul para o norte, tema das
aventuras de Torchy Brown in “Dixie Harlem”. Usando de recursos, como
charges, reportagens e editoriais, o jornal promoveu Chicago como um destino.
Para isso, denunciou os crimes contra os negros no sul, apresentou exemplos
bem sucedidos de negros que conseguiram conquistar espaço social e
econômico no norte e apresentou a cidade como aberta a muitas
oportunidades.
A comunidade afro-americana teve, nessas publicações, acesso a uma
gama de informações que possibilitaram seu fortalecimento como comunidade
e conseguiu, também, instrumentos para exigir direitos e participar mais
ativamente da sociedade civil. Elas abriram oportunidades para jovens talentos
62
63
GOLDSTEIN, N., p. 78.
Ibidem, p. 87
35
como Ormes e prestaram serviços importantes na área social, principalmente
educacional. Nem mesmo obstáculos, como a falta de anunciantes, problemas
com distribuidores e fornecedores, impediram seu crescimento, estando
presentes nas grandes cidades norte-americanas, em muitas delas com
circulação nacional.
Em 1950, Jackie Ormes lança a série “Touchy Brown Heartbeats”, em
cores, publicada no Chicago Defender, até 1954.
Ormes, na verdade,
reinventou Torchy transformando-a numa heroína bem diferente da menina
ingênua que se migra do sul para viver em Nova York. Ela remodela a
personagem, dando a ela outro significado, outra meta. Uma das qualidades
das personagens dos quadrinhos é justamente a possibilidade de se fazerem
releituras; as
representações
personagens das histórias em quadrinhos materializam
que
são
constantemente
retomadas,
reatualizadas
e
normatizadas, abrindo a possibilidade de se recriarem e fundamentarem
modelos e saberes.64
A nova Torchy é uma enfermeira e tem um relacionamento romântico
com um jovem médico, Paul Hammond, com quem emplaca uma luta contra o
racismo e a poluição ambiental em uma cidade chamada "Southville". Torchy é
uma história de aventura e romance e envolve, ao mesmo tempo, um trabalho
pedagógico de conscientização contra os problemas que atingem os Estados
Unidos e o mundo, como a segregação racial, política externa dos EUA,
democratização da educação, bomba atômica e poluição ambiental.65
A consciência política e social da personagem era um diferencial. Ormes
abre espaço para discutir relações afetivas, sociais, políticas e ambientais em
uma tira estrelada por uma mulher negra, o que torna a sua personagem ainda
mais rica, tendo em vista o contexto no qual foi concebida. Ormes foi uma
pioneira de muitas formas. Ao criticar questões relacionadas ao meio ambiente
nos quadrinhos Touchy Brown, por exemplo, ela demonstra seu pioneirismo e
um nível de conscientização muito além do de outras mulheres e outros
homens de sua época.
É, também, uma produção ousada que exalta o poder da sensualidade
feminina. Torchy é uma afro-descendente que encarna o papel da heroína que
antes se aplicava apenas às mulheres brancas, nos romances, nas revistas
64
65
OLIVEIRA, S., 2007, p. 23.
ROBBINS, 2001, p. 97.
36
feminimas e nos quadrinhos. Ela apresenta para as leitoras negras que o que
vai definí-las não é a cor da pele; assim como as heroínas brancas, as negras
poderiam, também, ocupar seu espaço na sociedade, ter sua independência,
realizar-se na sua individualidade.
Figura 07 - Touchy Brown Heartbeats , 08 de maio de 1954.
66
Tanto a tira como os personagens marcam o amadurecimento de Ormes
como autora e desenhista. A qualidade da arte é superior assim como a
narrativa, muito mais sofisticada. Touchy Brown Heartbeats foi seu trabalho
que mais se destacou e é, ocasionalmente, lembrado pelos historiadores de
quadrinhos devido à sua atitude prospectiva para com a justiça social.
Com essa personagem, Ormes apresentou a imagem de uma mulher
negra que contrasta com as representações estereotipadas da mídia
contemporânea. Torchy é confiante, inteligente e corajosa. Uma mulher que se
66
GOLDSTEIN, N., 2008, p. 157.
37
recusa a representar um papel subalterno na sociedade e que não tem medo
de lutar pelo que acredita. Em pleno blacklash, sua personagem é ousada e se
recusa a aceitar o confisco dos direitos e conquistas femininas que tiveram
início no final da Segunda Guerra Mundial e que marcaram a década de 1950.
Os quadrinhos de Ormes são uma reação a esse retrocesso imposto à
sociedade norte-americana e, especialmente, às mulheres. Eles disseminaram
um discurso diferente daqueles que tradicionalmente eram direcionados às
leitoras do sexo feminino. Eles refletem e transmitem uma visão de mundo
diretamente relacionada a sua autora e à sociedade em que se vive.
Analisando esse discurso, temos a possibilidade de ir além das representações
impostas pela sociedade machista e racista daquele período.
Mulheres como Ormes foram fundamentais para o movimento feminista
no século XX. Mais do que isso, o feminismo negro tornou-se uma
manifestação de repúdio ao preconceito, que atingia duplamente as mulheres
negras, não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. As escritoras,
jornalistas e quadrinistas tiveram um papel fundamental na expansão e nas
conquistas femininas ao longo do século XX.
Bell Hooks destacada feminista afro-americana corretamente afirma
que o que as mulheres compartilham não é a mesma opressão, mas
a luta para acabar com o sexismo, ou seja, pelo fim das relações
baseadas em diferenças de gênero socialmente construídas. Para os
negros é necessário enfrentar esta questão não apenas porque a
dominação patriarcal conforma relações de poder nas esferas
pessoal, interpessoal e mesmo íntimas, mas também porque o
patriarcado repousa em bases ideológicas semelhantes às que
permitem a existência do racismo à crença na dominação construído
67
com base em noções de inferioridade e superioridade
É inegável a importância de Ormes para a comunidade afro-americana
em seu todo e, especificamente, para a mulher afro-americana. Seu legado
pode ser encontrado, por exemplo, na The Ormes Society, uma organização
dedicada a apoiar mulheres afro-americanas que criam histórias em quadrinhos
e que promovem a diversidade dentro da indústria e entre os leitores.
Essas mulheres, pioneiras nos quadrinhos, fazem parte de uma galeria
de personagens esquecidos pela História e que estão retornando por meio da
História das Mulheres nos Quadrinhos, um campo que tem crescido nos
Estados Unidos e dá seus primeiros passos no Brasil. E se tivemos mulheres
67
BAIRROS, LUIZA. Nossos feminismos revisados. Estudos Feministas, n. 02, 1998, p. 458463. Disponível em <http://zip.net/bkqSp8>, acesso em: 07 fev. 2013, p. 462.
38
ousadas que se destacaram como cartunistas, tivemos, também, personagens
femininas marcantes. Essas heroínas dos quadrinhos, aventureiras que
povoaram os sonhos e instigaram a imaginação dos seus leitores, voariam
ainda mais alto com a chegada das rainhas da selva e das primeiras superheroínas, como veremos no capítulo seguinte.
CAPÍTULO 2 - SUPER MULHERES & SUPER-HOMENS: O NACISMENTO
DAS SUPER-HEROÍNAS NA DÉCADA DE 1940
2.1 – Sheena, a rainha das selvas: a primeira heroína a ter sua
própria revista
O primeiro grande herói dos comics de aventura foi Tarzan, criado por
Edgar Rice Burroughs, em 1912, e posteriormente adaptado para os
quadrinhos e para o cinema.
Tarzan estreou em tiras diárias de jornal,
desenhado por Hal Foster, em 1929. Em 1937, o desenhista deixou de ilustrar
as aventuras do rei das selvas para trabalhar em outro personagem que
também se tornou mundialmente conhecido, o Príncipe Valente. 68 Enquanto
Tarzan era o herói das selvas, representando a superioridade do homem
branco no exótico mundo africano, o Príncipe Valente era um herói de capa e
espada que projetava em suas aventuras os valores antigos da cavalaria
associados ao ideal civilizatório burguês.69
O gênero da aventura rompe com o estilo caricatural, tornando o traço
dos quadrinhos mais realistas. Os quadrinhos de aventura eram publicados em
tiras nos jornais e, posteriormente, nas revistas em quadrinhos. Heróis capazes
de ultrapassar todos os obstáculos, detetives, piratas, aventureiros do futuro,
justiceiros e selvagens, entre outros, tornaram-se ícones de toda uma geração.
Dentro desse gênero, um dos enredos que mais faziam sucesso eram
justamente as aventuras na selva, que deram origem a várias publicações com
personagens que, mais tarde, foram denominados de Tarzanides. Homens,
mulheres, meninos e meninas da selva, lutando contra invasores, nativos e
animais selvagens.
Uma personagem, em especial, irá ganhar destaque: Sheena, a rainha
das selvas, que acabaria se tornando um sucesso de vendas e uma das mais
populares heroínas da década de 1940. Sheena foi criada em 1937 por
ninguém menos do que Will Eisner. Segundo Hirton Cardoso Goidanich,70 para
os quadrinhos, Willian Erwin Eisner é uma figura tão importante quanto Orson
Welles para o Cinema.
68
FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de histórias. –São Paulo: Moderna, 1997, p.
26.
69
MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996,
p. 115-117.
70
GOIDANICH, H., 1990, p. 112.
40
Eisner começou a trabalhar aos 13 anos, vendendo jornais. Aos 16 anos
publicou sua primeira arte, ilustrando um artigo de jornal e aos 19 anos, em
1936, fundou, em parceria com Jerry Iger, a Eisner & Iger, estúdio responsável
pela produção de quadrinhos para editoras. Havia naquele momento uma
demanda expressiva por histórias em quadrinhos e estúdios pequenos como o
Eisner & Iger. Aqui estava, portanto, um mercado a ser abastecido. Sheena,
assim como outros personagens criados pelo estúdio, foi um produto feito por
encomenda e acabou se tornando um grande sucesso comercial.
Ela é uma versão feminina de Tarzan, uma tarzanide. Sheena
assemelha-se ao Tarzan em vários aspectos, como sua vida aventureira na
selva, o dom de compreender e ser compreendida pelos animais, a coragem e
habilidade em lidar com a natureza.
Sheena fez sua estreia na revista
britânica Wags # 01, em 1937. Nas revistas em quadrinhos norte-americanas
ela faz sua primeira aparição no ano seguinte, na Jumbo Comics # 01. Foi um
sucesso tão grande que, em 1942 ela ganhou sua própria revista.
Will Eisner assinava as histórias com o pseudônimo “W. Morgan
Thomas”. Esse vai ser o nome que vai aparecer nas histórias de Sheena até a
década de 1950. No entanto, tratava-se de um pseudônimo que iria ser
utilizado por vários cartunistas, entre homens e mulheres. Inicialmente, Eisner
roteirizava as histórias que eram ilustradas por Mort Meskin e a arte da capa
ficava geralmente a cargo de Eisner.71 Posteriormente, Eisner irá abrir mão dos
direitos sobre a personagem ao encerrar sua sociedade com Jerry Iger
Na década de 1940, as heroínas, como personagens principais,
tornaram-se muito comuns.
Embora a ideia da power woman trouxesse
alguma resistência, ela estava dentro do espírito da época, quando mulheres
começavam a ocupar espaços antes destinados aos homens, principalmente
durante o período da II Guerra Mundial. Os quadrinhos incentivavam e
elogiavam, à sua maneira, a competência feminina, embora não se possa falar
necessariamente de igualdade dos sexos.
Sheena foi uma heroína cuja criação era direcionada ao público
masculino. As premissas das suas aventuras giravam em torno da proteção
dos animais (o que contrasta de certa forma com o fato de ela aparecer na
maioria das capas da Fiction House lutando contra um grande felino ou
71
SCHUMACHER, 2013. p. 54-55.
41
enfrentando um elefante furioso), dos nativos (ela interfere em conflitos tribais
com certa frequência e é mediadora entre brancos e negros) e exploram as
paisagens exóticas de uma África que muito mais é produto da imaginação de
desenhistas e roteiristas do que a representação de um ambiente real. A
personagem
irá
servir
de
matriz
para
outras
tarzanides,
surgidas
posteriormente.
Sheena surgiu por causa da enorme popularidade dos livros de
Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e como extensão natural do tipo de
conteúdo que se esperava da Jungle Stories da Fiction House. Tão
minimamente vestida quanto sua versão masculina, Sheena
enfrentava homens e feras numa série de aventuras divertidas,
embora absurdas. Era o sonho dos garotos: uma mistura de pinup
com ação, e aparentemente não importava que a jovem, nascida nas
profundezas africanas, sempre estivesse com os cabelos loiros bem
aparados e escovados, falasse inglês exemplar e usasse trajes que,
embora feitos de pele de leopardo, pareciam criados por estilistas de
72
Hollywood.
Em suas aventuras, Sheena está sempre acompanhada de seu
parceiro, Bob. Este conta com a heroína para salvá-lo na maioria das vezes.
Bob geralmente assume o papel da “mocinha em perigo”. Apaixonado por
Sheena, ele escolheu viver na selva, em uma casa na árvore, e acompanhar
Sheena em suas aventuras. Vai ser Bob que dará um toque de humor nas
aventuras da heroína. Um homem solteiro, que vive maritalmente com uma
bela mulher numa selva. Essa representação agradava aos jovens que
consumiam os quadrinhos da heroína. Mais do que atiçar a imaginação de
adolescentes, os quadrinhos de Sheena trazem uma novidade, uma inversão
dos papéis de gênero: são os homens agora que têm que ser salvos pelas
mulheres.
Suas roupas minúsculas, que colocavam à mostra boa parte do corpo,
contribuíram para o sucesso da personagem junto à juventude da época.
Apesar do apelo ao físico que apresentava, Sheena não era uma personagem
sensual ou erótica, embora esta leitura pudesse ser feita pelo público
masculino.
Ao contrário da outra grande heroína dos quadrinhos, a Mulher
Maravilha – que era voltada para o público feminino -, Sheena atingia
em cheio o jovem público masculino, raramente acostumado com
tamanha exuberância como a que era mostrada em suas páginas,
72
SCHUMACHER, p. 55.
42
numa época em que os puritanos dos quadrinhos norte-americanos
raramente enveredavam pela trilha do erotismo. 73
Cabe acrescentar que, apesar de toda uma vigilância com relação à
publicação de quadrinhos eróticos ou pornográficos, eles circulavam entre
jovens e adultos. Contribuiu para isso a própria expansão dos meios de
comunicação no final do século XIX. Com o desenvolvimento da fotografia, do
cinema e com a maior circulação dos quadrinhos, o público masculino passou a
ter acesso, com maior ou menor facilidade, a esse tipo de material (filmes,
revistas e quadrinhos eróticos). Seus defensores acreditavam serem benéficos
para o desenvolvimento masculino. De outro lado, foram radicalmente
condenados por grupos que os enxergavam como uma forma de perversão da
juventude. Era comum o uso de personagens populares nesses quadrinhos,
que podiam circular de forma clandestina.
Figura 8 - Sheena usa roupas que mostram menos
o corpo e acessórios como pulseiras, colares e
braceletes que, dificilmente, uma menina criada na
74
selva teria tido acesso.
73
Figura 9 – Quatro anos depois a
personagem é representada na capa da
revista com quase sem nenhum
acessórios mas, também, com muito
menos roupa.75
D’ ASSUNÇÃO. Otacílio. Sheena, a rainha das selvas – Clássicos HQ. Rio de Janeiro, EBAL,
1984,p. 02.
74
JUMBO Comics. Fiction House, n. 06, 1939, p. 31.
75
JUMBO Comics. Fiction House n. 55, 1943.
43
Em 1920, surgiram os quadrinhos pornográficos de grande circulação
nos EUA. Eram chamados de dirty comics ou quadrinhos sujos.
Neles, não faltava humor e muitos dos principais atores eram
conhecidos, não dos papais, mas da criançada: Mickey Mouse, Betty
76
Boop ou Popeye.
Assim Sheena e suas roupas minúsculas atiçavam a imaginação de
rapazes,
embora
suas
aventuras
fossem
consideradas
inocentes.
É
interessante notar que outras garotas da selva, criadas posteriormente,
passaram a usar vestimentas semelhantes. A própria Sheena viu suas roupas,
com o tempo, diminuírem cada vez mais.
Na Jumbo Comics, a personagem foi publicada por quinze anos e sua
revista teve dezoito volumes, até ser cancelada, em 1953. Sheena, assim como
muitos outros personagens, foi vítima das pressões moralistas “que culminaram
com a criação do famigerado Comic Code Authority (Código de Ética), que
provocou o maior massacre na História dos Quadrinhos Americanos. 77
2.2 - Os super-heróis invadem os quadrinhos
Em 1938, com a criação do Superman, por Jerry Siegel e Joe Shuster,
publicado pela primeira vez na revista Action Comics. Os super-heróis são
seres fictícios capazes de realizar proezas impossíveis para um herói comum.
Eles possuem poderes que nos fazem lembrar deuses da mitologia antiga,
vestem uniformes coloridos e possuem uma identidade secreta. Com o
surgimento da superaventura, “nascia o arquétipo do herói perfeito, um ser de
habilidades quase divinas, que, além de possuir extraordinários poderes, era
possuidor de um caráter incorruptível.”78
Os super-heróis, tal como os conhecemos e com suas características
definidoras, são produtos da sociedade moderna. Os deuses antigos
são superpoderosos, mas são vistos como verdadeiros por seus
produtores e reprodutores até serem transportados para o mundo da
ficção, enquanto que os super-heróis são reconhecidos como
produtos fictícios, tanto por seus produtores quanto por seus leitores.
79
76
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Planeta, 2011, p. 131.
77
D’ ASSUNÇÃO. O., 1984,p. 02.
78
GUERRA, Fábio Vieira. Super-Heróis Marvel e os conflitos sociais e políticos nos Estados
Unidos (1961-1981). Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011, p. 05.
79
VIANA, Nildo, REBLIN, Iuri (Org). Super-heróis e sociedade: aproximações multidisciplinares
sobre quadrinhos. Aparecida: Ideias & Letras, 2011, p. 19.
44
Um sucesso imenso, os primeiros super-heróis, que lutavam contra
bandidos comuns que ameaçavam as pessoas comuns, passaram a fazer
parte da vida dos jovens, a trazer mensagens, valores e esperança. A
proximidade da guerra pode ser entendida como um fator que impulsionou o
gênero. Muitos dos super-heróis criados nesse período inevitavelmente lutaram
contra os nazistas. Eles são, portanto, produtos históricos e sociais e precisam
ser entendidos e analisados como tal.
O super-herói de quadrinhos é uma parte integrante do mito criado pela
cultura americana, um meio de lidar com o medo, e a incerteza, alimentado por
grandes crises que marcaram a primeira metade do século XX, como a Quebra
da Bolsa de Valores (1929) e a II Guerra Mundial (1939-1945). Indivíduos
superpoderosos apresentam-se para combater as forças do mal, que podiam
ser simples bandidos, que ameaçavam o cidadão comum ou mesmo os
nazistas. Eles garantiam que o bem prevalecesse. Esse dualismo seria mantido
e reproduzido nas décadas seguintes e tornou-se uma característica essencial
dos quadrinhos de superaventura. Os super-heróis são, assim, narrativas
míticas que orientam os norte-americanos na compreensão da verdade, da
justiça e do próprio modo de vida americano.
Suas provações e triunfos são alegorias nascidas dos obstáculos
enfrentados pelos habitantes daquela nação e suas ações vão guiá-los na
tarefa de estabelecer a distinção entre o certo e o errado; fixar normas e
moderar atitudes. O poder da narrativa mítica vai fornecer a orientação
necessária para que o indivíduo possa se encaixar dentro da sociedade. A
narrativa da superaventura molda o presente e o futuro, criando um sistema em
que a cultura se desenvolve e persiste. As histórias em quadrinhos de superheróis, portanto, nos dizem o que os Estados Unidos e o povo americano
devem ser 80.
Os super-heróis foram, assim, apropriados pelo governo norteamericano como armas ideológicas, usados tanto junto à juventude quanto
junto aos aliados dos Estados Unidos. Em tempo de guerra, era necessário
garantir que a vitória acontecesse, também, no reino da ficção, onde a justiça
está presente e onde a vitória do “bem” é elemento motivador e reconfortante.
80
HAYES, Jacki Renee. Goddess in a cape: Feminine divine as comic book superhero (2012).
Graduate Theses and Dissertations. Paper 12684, p. 28.
45
A criação do Superman abriria caminho para o surgimento de um
panteão de super-heróis que lutam pela liberdade e contra a opressão que,
naquele momento, era representada pelas ditaduras totalitárias europeias.
Entre esses personagens, veremos mais adiante, surgiram as primeiras super
mulheres, que, durante a II Guerra Mundial, irão, sozinhas ou ao lado dos
homens, combater os principais inimigos dos Estados Unidos naquela época:
os nazistas.
2.2.1 – Super mulher ou super-heroína?
O que teria surgido primeiro?
A super-heroína ou a super mulher?
O conceito de super-herói teria sido construído a partir do final da
década de 1930, com o surgimento do Superman e vai muito além do simples
fato de se possuir super-poderes. O heroísmo em si é uma noção que dispensa
a existência ou não de habilidades super-humanas. Tanto é que temos
exemplos de atos heróicos todos os dias: uma mãe que protege o filho do
ataque de um cão feroz, um bombeiro que arrisca a vida para salvar pessoas
em um prédio em chamas, um soldado que enfrenta a linha de tiros para salvar
um companheiro ferido, ou mesmo pessoas cujas ações, direta ou
indiretamente, podem beneficiar ou inspirar outras pessoas.
(...) os heróis são indivíduos detentores de capacidades e/ou
qualidades consideradas excepcionais, como habilidades físicas,
mentais ou morais, sendo a coragem o atributo mais típico de um
81
herói.
Os heróis e super-heróis dos quadrinhos têm como qualidades
primordiais a coragem e o fato de estarem dispostos a fazer sacrifícios pelo
bem de outras pessoas, mesmo aquelas que eles não conhecem. Eles são
representantes do bem e lutam contra o mal. Suas ações devem ser
exemplares e altruístas. Eles precisam ser benevolentes, quando necessário, e
devem, acima de tudo, respeitar as normas sociais e defender a vida. Levando
todos esses pontos em consideração não é possível dizer que um personagem
é um super-herói ou uma super-heroína apenas por possuir super poderes.
81
REBLIN, Iuri Andréas. Para o alto e avante: uma análise do universo criativo dos superheróis. Porto Alegre: Asterisco, 2008, p. 22.
46
Então, antes da construção da noção de super-herói (o herói com super
poderes), noção que vem sofrendo mudanças e se adaptando aos diversos
contextos históricos desde o surgimento do primeiro super-herói, surgiram os
“super homens” e as “super mulheres”. Seguindo essa linha de pensamento,
encontramos aquela que pode ser considerada a primeira super mulher:
Fantomah, Mystery Woman of the Jungle, 82 criação de Fletcher Hanks, que às
vezes assinava seus quadrinhos como Barclay Flagg. Fantomah é uma
tarzanide e foi publicada pela primeira vez na Jungle Comics #2, em fevereiro
de 1940.
Personagem movida muito mais pela razão do que pela emoção, essa
super mulher age como protetora da selva. Sua origem estava ligada ao Egito
antigo, sendo ela representante de uma antiga linhagem de faraós. Fantomah
era uma princesa egípcia que retorna à vida para proteger a selva africana. Ela
tem vastos poderes mágicos que a tornam invencível e não tem fraquezas
aparentes.
Figura 10 – Fantomah - Jungle Comics, n. 11, Fiction House’s, p. 30, nov.1940.
Linda, branca e loira, como muitas das mulheres da selva e heroínas nos
quadrinhos daquele período, a personagem não tem carisma, não expressa
emoções e é um anjo da vingança, pronta para punir aqueles que invadem ou
82
MISIROGLU, Gina. A The Superhero Book: The Ultimate Encyclopedia of Comic-Book Icons
and Hollywood Heroes. Visible Ink Press, 2004, p. 557.
47
tentam saquear a selva. Algumas vezes, ao usar seus poderes, ela se
transforma em uma espécie de fantasma azul, que em alguns momentos
lembra uma múmia, deixando de ser uma bela mulher para se transformar
numa criatura pavorosa. Noutras, perde o corpo físico e aparece como um
cometa, onde apenas sua cabeça flutuando nos permite identificá-la. Fantomah
causava medo e era implacável.
Fantomah is described as "the most remarkable woman in the
universe", which sound less like a superhero, and more like a
goddess. Fantomah best fits that ancient image of the goddess who
could be both benevolent and terrifying. Like all deities, Fantomah is
83
all-knowing and all-seeing, and has established a set of laws.
84
Figura 11 - Fantomah
Suas histórias são sempre marcadas pela violência, seus poderes não
têm limites e não são bem definidos. Ela praticamente pode fazer de tudo, é
basicamente onipotente. Fantomah não corre riscos, porque eles simplesmente
não existem para ela. Nas suas ações não há verdadeiro altruísmo ou sacrifício,
o que nos leva a caracterizá-la muito mais como uma super mulher do que uma
super-heroína. Como valor moral, o heroísmo não faz parte das suas ações.
83
Fantomah é descrita como "a mulher mais notável no universo", o que soa menos como uma
super-heroína, e mais como uma deusa. Fantomah melhor se adapta a imagem de deusa
antiga que poderia ser tanto benevolente e aterrorizante. Como todas as divindades, Fantomah
é onisciente e tudo vê, e estabeleceu um conjunto de leis (tradução livre do original). MADRID,
Mike. Divas, Damages & Daredevils: lost heroines of Golden Age. [Minneapolis?]:
Exterminating Angel Press, 2013, p. 776.
84
JUNGLE Comics. Fiction House’, nº 02, 1940 p. 64.
48
Em uma aventura, Fantomah derrota sozinha um exército inteiro85. Noutra, ela
ordena a um bando de gorilas que arranquem os membros de um cientista que
deseja criar uma raça de guerreiros com gorilas modificados.86
Seus inimigos normalmente são invasores, conquistadores e ladrões. O
desenho é, em geral, grotesco, a narrativa é pobre e suas histórias sempre
terminavam com um ato de vingança. Fantomah parecia muito mais uma
personagem de terror do que uma tarzanide tradicional. É difícil enxergar nela
as qualidades de uma super-heroína.
Em 1942, na Jungle Comics # 19, a personagem muda. Ela fica morena
e se torna Fantomah, Daughter of the Pharaohs. Fletcher Hanks abandona os
quadrinhos e deixa a personagem nas mãos de outros artistas, que a
transformam numa garota das selvas mais tradicional, sem os fabulosos
poderes mágicos de uma deusa, mas ainda descendente dos faraós, parte
mais explorada nas suas aventuras. Ela agora é a rainha de uma civilização
perdida. Tem uma pantera negra como animal de estimação. As histórias
passaram a ser melhor desenhadas e com uma narrativa mais rica e bem
trabalhada. Fantomah tem agora características de heroína, não sendo mais
um espírito vingativo.
Quando Hanks deixou a série em 1941, a personagem aproximou-se
mais do modelo de uma típica rainha da selva, como Sheena. Ela ainda
possuía poderes mágicos, mas não eram mais infinitos. A personagem passou
por um processo de humanização, se podemos assim dizer. A mudança maior
veio em 1942, quando Fantomah tornou-se a governante de uma cidade
egípcia perdida. Essa nova Fantomah não tinha mais nenhum poder. Suas
aventuras na Jungle Comics terminaram em 1944.87
85
JUNGLE Comics. Fiction House’s, nº 12, 1940, p. 31-37.
JUNGLE Comics. Fiction House’s, nº 04, 1940, p. 52-58.
87
MADRID, 2013, p. 787.
86
49
88
Figura 12 - Fantomah "Daughter of the Pharaohs .
88
JUNGLE Comics. Fiction House’s, nº 30, 1942, p 15.
50
Se Fantomah foi a primeira mulher nos quadrinhos a possuir habilidades
sobrenaturais incríveis, por outro lado não parecia haver interesse do autor em
criar uma personagem que se aproximasse do público leitor feminino.
Demoraria ainda mais algum tempo para ver surgir uma super-heroína com
quem as mulheres pudessem se identificar, com sonhos, temores e dúvidas e
lutar contra inimigos mais concretos, mais próximos.
2.3 – June Turpé Mills: a primeira mulher cartunista a criar uma
super-heroína
Não demoraria muito para que uma personagem muito mais complexa e
que vestisse, literalmente, a manta de uma super-heroína chegasse aos
quadrinhos. Em 1941 June Tarpé Mills criava Miss Fury. Mills foi uma pioneira,
por ter sido a primeira mulher a escrever e ilustrar uma história em quadrinhos
de super-herói tendo como protagonista uma super-heroína.
June Tarpé Mills Mills nasceu em 191289, no Brooklyn, bairro de Nova
York. Ainda jovem, começou a trabalhar como modelo para poder pagar seus
estudos no Pratt Institute 90 , em Nova York, onde se graduou em artes.
Pretendia trabalhar com escultura, mas uma experiência desastrosa com
máscaras de gesso fez com que mudasse de ideia
91
Possivelmente
influenciada pelo trabalho como modelo, acabou se especializando em
desenhos de moda.
No início de sua carreira como cartunista, June Tarpé Mills, assim como
muitas mulheres cartunistas antes dela, escondeu seu sexo assinando como
Tarpé Mills. Tratava-se de uma estratégia para conseguir chamar a atenção
dos editores para o seu trabalho. Tarpé Mills Inicia sua carreira aos vinte e seis
anos, em 1938, quando ela fez sua estreia nos quadrinhos com Amazing
89
Nas biografias da autora na internet a data do seu nascimento consta em 1915. No entanto,
optamos por usar a data que consta no livro Tarpé Mills & Miss Fury: Sensational Sundays
(1944-1949) – The first fenale superhero cread & Drawn by a woman cartoonist, de Trina
Robbins, publicado em 2011.
90
O Pratt Institute é uma instituição privada sem fins lucrativos de ensino superior localizada no
bairro de Clinton Hill, em Brooklyn, Nova York. Surgiu em 1887 com cursos em engenharia,
arquitetura e artes plásticas. Muitos cartunistas de renome frequentaram suas salas.
91
ROBBINS, Trina. Tarpé Mills & Miss Fury: Sensational Sundays (1944-1949) – The first
fenale superhero created & Drawn by a woman cartoonist. San Diego: IDW Publishing, 2011, p.
07.
51
Mystery Funnies e Funny Pages. 92 Seu primeiro trabalho foi Daredevil Barry
Finn, para a Centaur Publishing. Depois produziu The Purple Zombie e Mann of
India, para a Eartern Color’s Reg’lar Fellers Heroic Comics e Fantastic Feature
Films para a Target Comics. 93 O sucesso viria, no entanto, com Miss Fury,
uma história em quadrinhos muito mais sofisticada.
Em 05 de abril de 1941, publicou as primeiras tiras dominicais da superheroína Miss Fury, cujo nome original era Black Fury. As tiras ocupavam uma
página inteira de jornal, sendo publicadas nesse formato até 1952. No Brasil,
as aventuras da Miss Fury foram publicadas no Suplemento Juvenil, durante o
ano de 1944, com o nome de Mulher Pantera, e no Almanaque do Águia
Negra, em 1962.
Circulando principalmente em jornais, os quadrinhos da Miss Fury
colocaram Mills no hall das cartunistas norte-americanas bem sucedidas. No
formato de revista em quadrinhos, teve oito números publicados pela Timely
Comics (hoje Marvel Comics), entre 1942-1946. Suas revistas, na época em
que foram lançadas, venderam mais do que as da Mulher Maravilha.94
Ao criar sua super-heroína, Mills, sem o pretender, acabou abrindo
caminho para que outras mulheres cartunistas tivessem oportunidade de se
destacar no campo da aventura e da superaventura. Não é exagero colocar a
criação da Miss Fury como um momento de mudança dentro da indústria dos
quadrinhos, uma mudança que afetaria diretamente as mulheres cartunistas.
When Tarpe Mills created her superheroíne Miss Fury in 1941, it
signaled a change for female comic artist, By the early 1940s, artists
like Ruth Atkinson, Ann Brewster, Barbara Hall and Fran Hopper were
drawing superhero stories for a number of different comic books.
When male artists were drafted to serve in WWII, it provided even
95
more opportunities for women to draw heroic stories in comics.
Um dado que chama a atenção é a relação entre personagem e sua
criadora. Marla Drake, a Miss Fury, é inspirada fisicamente na própria Mills. A
92
ROBBINS, 2011, p. 07
Idem.
94
MISS Fury. Disponível em: <http://ladyscomics.com.br/tag/june-tarpe-mills>, acesso em 12
dez. 2011.
95
Quando Tarpe Mills criou sua super-heroína Miss Fury em 1941, sinalizou uma mudança
para as artistas de quadrinhos do sexo feminino. No início da década de 1940, artistas como
Ruth Atkinson, Ann Brewster, Barbara Hall e Fran Hopper estavam desenhando histórias de
super-heróis para um número de diferentes revistas em quadrinhos. Quando os cartunistas do
sexo masculino foram chamados para servir na Segunda Guerra Mundial, surgiram ainda mais
oportunidades para as mulheres desenhares histórias de heróis nos quadrinhos (tradução livre
do original). MADRID, M., 2013, p. 578
93
52
autora se transporta para os quadrinhos na forma de uma super-heroína,
embora não tenha vivido literalmente suas aventuras nem possuído qualquer
poder especial. Além da aparência física, Mills ainda cria um outro vínculo entre
ela e Miss Fury, ao dar a Marla um gato persa, que, na verdade, era seu
próprio gato, Peri-Purr. E o pequeno animal não era simplesmente decorativo.
Ele atuava nas histórias, chegando até a salvar a Miss Fury de vilões. Não
havia como negar: June Tarpé Mills era a Miss Fury.
Tarpé Mills created Miss Fury in her own image – literally – and was
able to have on paper adventures she could never havein real life.
(…) Lest readers think it was mere coincidence that Marla Drake
loocked exactly like her creator, a newspaper article from the strip’s
first year included a photo of Millsand was headlined, “Meet the Real
96
Miss Fury – It’s All Done With Mirrows”.
97
Figura 13 - June Tarpé Mills .
98
Figura 14 - Marla Drake
Uma de suas características pessoais, que ela transfere para suas
histórias, é o fato de apreciar o glamour. Então, nada mais natural que suas
mulheres sejam bonitas e bem vestidas. No auge de sua popularidade, os
96
Tarpé Mills cria Miss Fury a sua imagem - literalmente - e foi capaz de ter, no papel, as
aventuras que ela nunca poderia ter na vida. (...) Para que os leitores que achavam que era
mera coincidência Marla Drake parecer exatamente como sua criadora, um artigo de jornal
publicado a partir do primeiro ano da tira incluía uma foto de Mills e tinha como título "Conheça
a Verdadeira Miss Fury – Tudo é Feito com Espelhos" (tradução livre do original). ROBBINS,
2011, p. 08.
97
JUNE Tarpé Mills. Disponível em: <http://ladyscomics.com.br/tag/june-tarpe-mills>, capturado
em 12 dez. 2011.
98
MISS Fury. Timely Comics, n. 07, 1945, p. 34.
53
quadrinhos da Miss Fury foram impressos em centenas de jornais nos Estados
Unidos, bem como em Europa, América do Sul e até mesmo na Austrália.99
Will Eisner afirmava: “Quem trabalha com quadrinhos de super-heróis e
coisas do tipo sempre se esconde sob a fantasia”.100 No caso de Tarpé Mills,
isso não apenas é evidente, como foi usado como forma de promover a série.
Mills não foi a única. Outras cartunistas deram vida às suas personagens
tendo a si mesmas como pontos de referência. Aconteceu o mesmo com
Jackie Ormes, cujas personagens femininas adultas assemelham-se a ela. Em
Touchy Brown, a semelhança com a autora é inegável, e não se limita apenas
ao aspecto físico. Touchy compartilha das paixões e do idealismo de sua
criadora.
Figura 15 - Zelda Jackson Ormes
101
102
Figura 16 - Touchy Brown
Dale Messick, apesar de ter se inspirado em Rita Hayworth para
caracterizar fisicamente Brenda Starr, deu a ela traços da sua própria
personalidade, como seu gosto pela moda e por viver bem. Messick chegou a
tingir o cabelo de ruivo para combinar com os de Brenda. Quando dava
entrevistas costumava dizer: "Eu sou Brenda Starr."103
99
MISIROGLU, G., 2004, p. 349.
SCHUMACHER, 2013, p. 120.
101
TORCHY Brown. Disponível em: <http://museumofuncutfunk.com/2009/10/05/torchybrown/>, acesso em: 02 jan. 2013.
102
Idem.
103
SEVERO, R., 2005.
100
54
As personagens femininas produzidas por essas mulheres parecem ter
uma relação empática com suas criadoras. Aparência física, traços de
personalidade, ideais e ideias. São mulheres reais transportadas para os
quadrinhos, vivendo aventuras, passando por dramas, protagonizando
verdadeiros romances em quadrinhos. Isso talvez explique o fato de elas terem
sido produzidas quase que exclusivamente por suas criadoras, ao contrário de
outros tantos personagens que passaram pelas mãos de dezenas de
desenhistas e roteiristas. Quando Messick é praticamente forçada a se
aposentar, escolhe suas sucessoras. Ormes encerra a tira Touchy Brown, que
para de ser publicada. É como se apenas elas pudessem ser capazes de
entender aquilo que movia suas personagens.
Como a maioria das tiras de aventuras, Miss Fury atingiu o pico de sua
popularidade durante a II Guerra Mundial, quando ela foi tema de artigos de
jornal e até mesmo de um texto publicado na Time Magazine, em 1943. As tiras
publicadas em jornais foram reunidas em publicações semestrais, num total de
oito, na forma de revistas em quadrinhos e chegaram a vender um milhão de
cópias. Essas revistas estão, atualmente, entre os itens de colecionador
considerados de grande valor monetário.104
Tarpé Mills começou a ter problemas com prazos de entrega do material,
o que pode ter relação com problemas de saúde que a cartunista enfrentava.
Ela sofria fortes crises de asma que chegavam a resultar em sua
hospitalização. Mills também sofria com crises de artrite. A artista teve que
interromper momentaneamente o trabalho para cuidar da saúde.105
Em 1947 as tiras da Miss Fury deixaram de ser publicadas por seis
meses. Mills, por orientação de seus advogados, teve que interromper
temporariamente a produção das tiras da Miss Fury, devido a um processo de
plágio. Uma personagem, lançada em 1945, cujo nome era Miss Cairo Jones,
criada por Jerry Albert e Bob Oksner, teria sido inspirada na Miss Fury. A
questão é que as aventuras da Miss Cairo Jones eram distribuídas por um
syndicate filiado ao Bell Syndicate, que distribuía as tiras da Miss Fury.106
104
ROBBINS, 2011, p. 17.
Ibidem, p. 14.
106
Ibidem, 2011, p. 13-14.
105
55
Figura 22 – Miss Cairo Jones. Personagem que gerou processo de plágio era uma detetive
sem superpoderes. O grande pivô foi o uso da palavra “Miss” antes do nome da personagem
107
que, segundo seus criadores era uma homenagem a Miss Fury.
Mills parou de produzir os quadrinhos da Miss Fury em 1952. A autora
praticamente se aposentou da indústria dos quadrinhos. Fez um breve retorno
em 1971, para ilustrar uma produção para a Marvel, um romance chamado Our
Love Story, para a Marvel Comics. No entanto, não obteve o mesmo sucesso
das décadas de 1940 e 1950.
Inspirada nas primeiras aventuras da Miss Fury, Mills investiu em uma
Graphic Novel, que tentou lançar em 1979, com uma história protagonizada no
Brasil, com seu personagem masculino favorito, o índio brasileiro Albino Jo.
Reforçava seu fascínio pelo país que nunca chegou a conhecer. A revista não
foi lançada nem terminada, mas as páginas que Mills desenhou mostram um
Albino Jo mais moderno, bem no estilo dos anos de 1970, assim como retrata
paisagens brasileiras, com direito até a uma passista de escola de samba. De
1979 até sua morte em 1988, a artista tentou, sem sucesso, vender quadrinhos
107
MISS Cairo Jones Comics. Croydow Publication.CO, vol. 01, n. 01, 1945, p. 03.
56
baseados em seu herói de guerra, Albino Jo, mas o material não agradou aos
editores.108
Albino Jo, o homem com olhos de tigre, foi um personagem coadjuvante
em Miss Fury. Ele era um aventureiro que havia percorrido o mundo e
colecionava histórias. Algo que agradava a Mills, cuja produção envolvia
narrativas em lugares exóticos e não se concentrava nos Estados Unidos. No
entanto, como protagonista de suas próprias histórias, Albino Jo não agradou
às editoras. Sua tentativa de atualizar seu estilo noir, por meio de um
personagem masculino, não deu certo.
Talvez um dos grandes méritos da obra de Mills seja o fato de que suas
mulheres são plurais e sua personalidade é explorada de forma profunda. Elas
representam outras mulheres de sua época, das mais comportadas às mais
ardilosas. Mesmo as vilãs são carismáticas. O universo feminino de Miss Fury
representa a diversidade e apresenta as mulheres não apenas como um pano
de fundo para a aventura. Elas não precisam ser salvas pelos homens, elas
mesmas podem se salvar; elas expressam seus sentimentos de forma intensa;
elas são sensuais de uma maneira tão espontânea e natural que não cativam o
leitor apenas pela sua beleza física mas pelo conjunto de suas características.
Aliás nenhuma autora, além de Mills, talvez tenha tido, na época, capacidade
de explorar tão bem a sensualidade feminina sem dar a ela uma conotação
negativa.
Há uma grande área cinza presente na forma como as mulheres são
representadas, das heroínas às simples coadjuvantes. Se, por um lado, temos
homens com uma visão machista e sexista das mulheres, de outro há mulheres
que reproduzem a mesma visão. O machismo não é exclusivamente
masculino, nem seu oposto.
Mas homens e mulheres, independentemente da visão de mundo que
possuem, acabam chegando a um acordo. Eles contam a história de uma
forma muito parecida, reproduzem estereótipos e, em certos momentos,
chegam às mesmas conclusões. Em maior ou menor grau, a ideologia
antinazista e o discurso em defesa da liberdade são um ponto comum, um
ponto de união.
108
ROBBINS, 2001, p. 63.
57
A década de 1940 aproxima homens e mulheres que não podem ser
resumidos a uma visão simplificada de gênero. As relações de gênero desse
período em especial são marcadas pela mesma diversidade que caracteriza os
quadrinhos e seus personagens. Nos quadrinhos de Mills essas relações se
apesentam ora de forma sutil, ora de forma bem clara.
Ela consegue nos trazer personagens que traduzem bem a diversidade
de papéis assumidos por homens e mulheres apresentando uma multiplicidade
de ações e relações que vão de encontro ou se chocam com o modelo
socialmente estabelecido das relações de gênero. A partir dos seus
personagens, dos quais a mais complexa foi a Miss Fury, podemos entender
essa diversidade e construir uma História das Mulheres que não vai excluir os
homens, mas que vai compor um quadro mais amplo da participação feminina
na História.
CAPÍTULO 3 - AS MULHERES E A SENSUALIDADE NO UNIVERSO
DE MISS FURY
3.1 – Heroínas e super-femininas
As mudanças sociais e crises políticas e econômicas que marcaram a
primeira metade do século XX forçaram mudanças sociais. As relações de
gênero tiveram que ser adequadas aos diversos momentos em que os homens
não puderam mais arcar sozinhos com o ônus gerado pelas crises. No entanto,
era preciso manter vivo todo um discurso que lembrava a mulher do seu papel
subalterno. Era preciso ter sempre um modelo idealizado de mulher. Nos
quadrinho não era diferente. As heroínas dos quadrinhos deveriam representar
o ideal da mulher moderna.
Bela, frágil, recatada e romântica... essa é, finalmente, a mocinha das
histórias em quadrinhos da era de ouro – anos de 1930 e 1940. Ela é
a eterna namorada ou noiva. Modelo de virtude a ser seguido; mulher
idealizada para ser sonhada. Mas essa mulher, como não podia
deixar de ser, tem seu duplo: a vilã109
Se por um lado havia a mulher ideal, aquela que reunia todas as
qualidades que fariam dela a boa namorada, a boa noiva, a boa esposa e boa
mãe, havia seu inverso, a vilã. Ela é o oposto da mocinha, ela é sensual, ela
usa maquiagem que ressalta seus olhos, roupas que deixam à mostra partes
do seu corpo e possui uma beleza quase selvagem. Ela não respeita os
homens, ela os enfrenta, representando tudo aquilo que a sociedade burguesa
condena. Ela deve ser observada e até desejada, mas deve ser combatida.
A beleza da vilã representa o desconhecido que amedronta, mas
fascinava e reunia tantas significações que era possível associá-la,
diferentemente da mocinha, a vários tipos de desvios – beleza glacial,
110
beleza demoníaca, beleza cortesã, beleza superficial, etc .
Tanto a mocinha quanto a vilã seduzem o herói e o leitor de formas
diversas. Elas representam dois modelos femininos antagônicos e sua
existência tem um caráter pedagógico. Elas ensinam aos meninos/rapazes a
distinguirem entre a santa e a vagabunda, a mulher que serve para ser esposa
109
OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado - as representações femininas nos
quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). – Brasília:
Universidade de Brasília: Finatec, 2007, p. 67.
110
Ibidem, p. 70
59
e mãe daquela com quem eles devem apenas manter relações superficiais. A
mocinha representa o ideal do amor conjugal, que edifica e constrói; a vilã
representa por sua vez a paixão, tida como destruidora de espíritos e cujo fogo
rapidamente se esvai.
Uma característica dos meios de comunicação, que se acentua na
década de 1920, é de construir imagens superficiais de mulheres. Nos
quadrinhos, ela pode ser sedutora na forma da eterna namorada, subserviente,
ou da esposa cúmplice do seu cônjuge, aquela que se sacrifica para a
felicidade do marido e da família. Quando solteiras, elas exalam sensualidade,
uma vez casadas tornam-se modelos de pureza.111
As mulheres nos quadrinhos de June Tarpé Mills, embora ainda
conservem
alguns
estereótipos,
sinalizam
para
uma
mudança
de
comportamento nas mulheres da década de 1940. Não apenas pela sua
independência, afinal alguma independência é tolerada e necessária na mulher
moderna, mas pelas suas iniciativas. Elas lutam pelo que desejam, são
decididas e não têm vergonha de seu corpo ou de expressar sua sensualidade.
Não são simplesmente decorativas. São elas que dão aos quadrinhos da Miss
Fury o tom de um grande romance de aventura.
São mulheres sem medo de serem mulheres e, ao mesmo tempo,
mostrando que não existe fragilidade em ser feminina. Se as leitoras se
encantam com o glamour das personagens, com os feitos da Miss Fury, ao
mesmo tempo elas têm contato com um universo onde estão sempre no
comando, sejam elas as mocinhas ou as vilãs.
Embora o erotismo não esteja explicito, ele está presente em várias
situações, numa frase de efeito, no ato de despir uma roupa na frente do
espelho ou num banho de espuma. Elas não têm vergonha do seu corpo e têm
consciência do poder da sua beleza. Mesmo vilãs e mocinhas, em Miss Fury,
exploram sua sensualidade. Elas representam anseios e desejos femininos.
Os leitores, os homens, por sua vez, deixam a imaginação voar longe
com as cruzadas de perna ousadas, decotes generosos e cenas onde as
personagens usam apenas lingerie ou perdem parte da roupa após uma luta ou
uma fuga. Mills tem o dom de dar à trama uma pitada certa de erotismo, sem
111
KLEIN, Sheri (1991) "Breaking the Mold with Humor: Images of Women in the Visual Media,"
Marilyn Zurmuehlen Working Papers in Art Education: Vol. 10: Iss. 1, Article 9, p. 30. Disponível
em: <http://ir.uiowa.edu/mzwp/vol10/iss1/9>, acesso em: 19 jan. 2014.
60
cenas apelativas ou que exponham exageradamente e desnecessariamente o
corpo feminino.
Figura 18 – Marla Blake colocando o uniforme
112
de Miss Fury.
Figura 19 – A baronesa Erica vom Kampf. 113
Tarpé Mills nos traz um corpo feminino belo e sensual, nem
completamente revelado, nem completamente escondido dos olhares mais
curiosos. Suas mulheres estão sempre bem vestidas. Suas roupas, das mais
simples às mais glamourosas, valorizam o corpo e tornam o cenário mais
interessante. As mulheres, quando liam os quadrinhos, podiam de lá tirar ideias
para roupas novas, os homens podiam apreciar as formas femininas,
imaginando mulheres reais no lugar das fictícias. Fosse como fosse, o(a)
leitor(a) interagia com a obra, recebia, decodificava e assimilava as
informações visuais transformando aquela leitura numa prática cultural. Prática
essa que, de alguma forma, era coerente com a realidade vivida ou que se
desejava viver.
Uma passagem (Figura 20) chama atenção já nos primeiros capítulo de
Miss Fury. É uma luta na varanda de um prédio, entre Marla Drake, a mocinha,
e a Baronesa Erica Von Kampf, a vilã. Na cena, temos duas belas mulheres,
uma delas usando apenas uma lingerie. Mais do que toda a ação envolvida, o
112
113
MISS Fury. Timely Comics nº 03, 1943, p. 25.
MISS Fury. Timely Comics nº 02, 1942, p. 14.
61
lingerie de Marla e o decote da baronesa que vão provocar a imaginação
masculina.
Mills sabe seduzir e envolver o leitor masculino. O uso do lingerie na
cena é um exemplo de como ela entende, também, o universo masculino. As
peças íntimas eram usadas como uma necessidade mas, também, eram uma
questão de estilo e sensualidade, tornando-se um fator determinante para a
beleza estética feminina114
Figura 20 - Marla e Erica se enfrentam pela primeira vez (fragmento). Quadrinho publicado
originalmente em 22 de junho de 1941.115
Graças à lingerie, o corpo passou a ser um objeto estético, fonte de
desejo e contemplação, não só o santuário de virtudes vitorianas e
hipocrisia. O pudor começava a recuar. Inculcado desde a primeira
infância e reforçado nas meninas durante a adolescência, doravante
ele iria se articular com as exigências do casamento 116
114
JORGE, Juliany Aparecida. Coleção de vestuário pela marca Santa Madre. Monografia
apresentada como requisito para a obtenção do título de Bacharel de Moda pela Universidade
do Vale do Itajaí. Centro de Educação. II, Balneário Camburiú, 2008, p. 38.
115
ROBBINS, 2011, p. 15.
116
DEL PRIORE, M., 2011, p. 109.
62
As roupas minúsculas, transparentes ou decotadas, que colocavam à
mostra boa parte do corpo, faziam das personagens femininas da época um
fetiche para os jovens. Foi um recurso muito usado pelos quadrinhos na
década de 1940. Trata-se da Good Girl Art (GGA), que abundou nos anos de
1940 e 1950. São quadrinhos que utilizam um tipo de versão narrativa de uma
pin-up. A Good Girl Art poderia ser encontrada com bastante frequência na
capa de revistas. Durante a II Guerra Mundial, esse tipo de representação
feminina fez um grande sucesso, sendo muito popular entre os soldados.117
118
Figura 21– Capa da Kaänga Comics.
Figura 22 – Capa da Jo-Jo Congo King. 119
As GGA podem apresentar uma imagem de fragilidade, sendo
exploradas situações onde elas se encontram amarradas (bondage), sob
ameaça ou prestes a serem salvas pelos heróis. Essa imagem foi a que mais
se perpetuou durante a guerra, sendo usada como forma de inspirar os
soldados que estavam no front. Suas roupas podem estar rasgadas ou são
propositalmente desenhadas de forma a deixar perna e seios quase totalmente
117
SCOTT, Kevin Michael. Images of women in the popular culture publications of Fiction
House, 1941-1952. A Thesis Submitted to the Graduate Faculty in Partial Fulfillment of the
Requirements for the Degree of MASTER OF ARTS. Iowa State University, 1991, p. 28.
118
KAÄNGA Comics.Fiction House, nº. 04, 1950.
119
JO-JO Congo King. Foz Feature Syndicaten, nº. 11, 1948.
63
à mostra. É uma mulher que exala sensualidade e que está presente em
muitos quadrinhos da época, desenhados por homens e por mulheres.
A princípio, ela será representada como a mulher sexualmente passiva,
que não age de acordo com sua vontade. A vítima que precisa sempre ser
resgatada. Nesse caso específico, é a mulher sem domínio sobre o próprio
corpo, que precisa ser protegida pelos homens. Para os soldados em guerra,
ela representa uma visão idealizada da feminilidade e da pureza. Sexualmente
desejável, mas sem ter consciência do poder da sua feminilidade. Esse tipo de
recurso aparece com muita evidência nas capas de revistas em quadrinhos da
selva, muito populares naquele período.
A sexualidade das mulheres em propagandas e nos quadrinhos é a
fórmula encontrada para atrair o leitor do sexo masculino. Assim, a partir da
lógica machista das editoras, as mulheres são vistas a partir do olhar do
homem, do leitor em potencial.120 Essas imagens de mulheres transformadas
em objeto de desejo e admiração nos conduzem a uma reflexão acerca da
feminilidade e sexualidade como discursos construídos que geram significados.
Nos quadrinhos da Miss Fury, há relações amorosas mas não existem
cenas de sexo explicitas. Os pares românticos que se formam durante a trama
não são platônicos, pelo contrário. Em algumas cenas pode-se perceber uma
forte tensão sexual, mas existe um controle das emoções que deixa o(a)
leitor(a) curioso(a) em saber o “final” da trama. Mills explora muito bem o
potencial do romance e sabe equilibrá-lo com a aventura.
Uma característica das histórias da Miss Fury é que a autora faz questão
que o(a) leitor(a) tenha contato com os sentimentos dos personagens. As
mulheres se abrem, mostram suas inseguranças, suas dúvidas. Elas podem
exprimir seu ciúme, sua tristeza, sua raiva e seu medo. O(a) leitor(a) entra em
sua mente e compartilha de seus pensamentos mais íntimos. São personagens
de papel mas que não passaram para o(a) leitor(a) uma sensação de
artificialidade.
120
Cf. KLEIN, S., 1991.
64
121
Figura 23 - Tensão do reencontro de Marla de Gary
.
Elas têm ideais e inspiram os(as) leitores(as) a serem pessoas
melhores. São quadrinhos de aventura/superaventura onde a ação é uma
fórmula usada para promover uma parte do entretenimento, mas vão ser as
atitudes pessoais, as emoções dos personagens que realmente dão à trama
forma e vigor. Se Stan Lee é até hoje muito festejado pelo fato de ter trazido ao
público super-heróis mais humanizados, como o Homem Aranha, por exemplo,
Tarpé Mills descobriu a fórmula muito antes disso. A narrativa que dá forma às
aventuras de Miss Fury está repleta de dramas psicológicos, e revela as
dúvidas, sentimentos e dramas que poderiam ser vividos, em maior ou menor
proporção, por pessoas reais, homens ou mulheres.
Miss Fury representa o amadurecimento de Mills enquanto cartunista.
Nessa história em quadrinhos a autora recicla ideias e cria personagens
121
MISS Fury. Timely Comics, nº 07, 1945, p. 09 e 10.
65
baseados em trabalhos anteriores, em séries como Fantastic Feature Films,
Diana Deane in Hollywood e Mann of Índia.
Mills fashioned her characters as actors in adventure movies and was
already giving those characters as actors in adventure movies and
was already giving those characters names she would recycle in Miss
Fury: Gary Hale, the explorer whom she turned into Marla Drake’s
handsome but weak fiancé; Karen Drake, whose last name would be
appropriated for Marla Drake, the socialite alter ego of Miss Fury; and
Darron Davis, a first name she would resurrect for Marla’s adopted
son, Darron Drake. Mills obviously liked the surname “Hale” because
she used it again for the young scientist Kinberly Hale, creator of The
Purple Zombie. In later “Purple Zumbie” stories Mills introduced a
hunchbacked, red-haired mad scientist improbably named Chico, a
name she gave the dashing Argentine fighter and pride of the
Pampas, Don Chico, in Miss Fury. The “white goodness” swinging on
vines though the jungle in “Diana Deane in Hollywood” is called Ora, a
122
name Mills charges to Era in the newspaper strip.
Mills estabelece um diálogo entre o cinema e os quadrinhos. Ela não
está apenas utilizando elementos culturais presentes naquele momento, mas
demonstra conhecimento e domínio sobre eles. Ela se interessa por filmes de
aventura e ação. Ela também gosta de romance, mas é a aventura que a atrai.
Lugares exóticos que estão na moda naquele momento, como o continente
africano e a exótica índia, além das terras paradisíacas da América do Sul que
lhe parecem ser um atrativo maior, o que será mais à frente analisado.
122
Mills construía seus personagens como atores em filmes de aventura e já tratava os
personagens como atores em filmes de aventura, dando a esses personagens nomes dos
personagens que ela iria reciclar no Miss Fury : Gary Hale, o explorador a quem ela
transformou no noivo bonito, mas fraco (covarde), de Marla Drake; Karen Drake, cujo
sobrenome seria apropriado para Marla Drake, o alter ego “socialite” da Miss Fury, e Darron
Davis, o primeiro nome que iria ressuscitar para o filho adotivo de Marla , Darron Drake. Mills,
obviamente, gostava do sobrenome "Hale", tanto que ela tornou a usá-lo para o jovem cientista
Kinberly Hale, criador de The Purple Zombie. Nas histórias seguintes do “The Purple Zombie”
Mills introduziu um cientista corcunda ruivo e louco, com o improvável nome de Chico, um
nome que ela deu ao lutador argentino arrojado e orgulho dos Pampas , Don Chico, no Miss
Fury. A "bondade branca" balançando-se em cipós através da selva em " Diana Deane em
Hollywood" é chamada Ora , nome que Mills atribuiu a Era na tira de jornal (tradução livre do
original). In: ROBBINS, 2013, p. 07.
66
Figura 24 - Série Diana Deane in Hollywod,um dos primeiros trabalhos e Mills, gênero
tarzanide, publicado em 1938 na Funny Pages #10.123
Figura 25 - Série Fantastic Feature Films, produzida por Tarpé Mills e publicada em Target
Comics, 1940. Na apresentação dos personagens pode-se perceber não apenas familiaridade
nos nomes, mas no traço de personagens que lembram aqueles que iriam formar o universo da
124
Miss Fury, em 1941.
123
124
ROBBINS, 2013, p. 14
Ibidem, p. 12.
67
Figura 26 - Série Mann of India, de Tarpé Mills, publicada na Reg’lar Fellers Heroic Comics, em
125
1940
Figura 27 - Série de ficção científica e aventura de Mills, Purple Zombie, publicada na Reg’lar
Fellers Heroic Comics, em 1940.126
125
126
ROBINNS, 2013, p. 20.
Idem.
68
Como cartunista, Tarpé Mills invade o mundo da aventura de forma
elegante e versátil, aproveitando bem os estereótipos produzidos e largamente
reproduzidos nos personagens, heróis ou vilões, da época de ouro dos
quadrinhos. Por outro lado, a composição de sua obra vai muito além da mera
reprodução de uma fórmula pré-concebida. Ela nos diz muito da Mills mulher,
seus gostos, seus interesses, colocando em xeque a representação feminina
corrente naquele momento. A mulher moderna de Mills possui peculiaridades
que podem ser identificadas no discurso e nas ações dos personagens.
Dentre as muitas personagens femininas criadas por Mills, duas
mulheres se destacam nas tiras da Miss Fury. A super-heroína, Marla Drake e
sua principal arquiinimiga, a Baronesa Erica Von Kampf. Nessas duas
mulheres procuraremos identificar as representações femininas que Tarpé Mills
traz para os quadrinhos e até que ponto essas representações estão ou não
relacionadas às mulheres reais das décadas de 1940 e 1950.
3.2 – Marla Drake: uma heroína relutante
Marla Drake era uma das mulheres mais ricas de Nova Iorque, uma
socialite que cultivava uma vida luxuosa e sem muitos riscos. Solteira, vivendo
em sua cobertura, tinha como única preocupação sua vida amorosa. Essa é a
mulher que Mills escolhe para se tornar a Miss Fury. Ela pertence a uma classe
privilegiada e nunca teve que enfrentar dessabores e infortúnios. Seu futuro já
estava planejado: ela entregaria o controle da sua vida a um marido e se
contentaria em ter filhos, participar de festas de caridade e bailes.
Marla é o paradigma da mulher de elite presente nas revistas de moda e
nas colunas sociais. Mas tudo muda numa noite, por conta de uma futilidade.
Conversando ao telefone, a socialite descobre que outra mulher usaria uma
roupa idêntica à sua em um baile de máscaras pra o qual ela se preparavar.
Irada, ela rasga a roupa, que havia perdido sua originalidade. Francine, a
empregada, oferece uma solução. Ela sugere que ela use a manta de pantera
negra, uma veste cerimonial de origem africana que havia ganhado de seu tio.
Marla experimenta a manta e, como não tem opções, resolve ir à festa
com a fantasia, sem saber que sua roupa era um artefato que continha magia
negra. A vida de Marla Drake começa a mudar a partir de então. A caminho da
festa ela é abordada numa estrada deserta por um desconhecido. Assustada,
69
acreditando tratar-se de um perigoso assassino, cuja perseguição estava
sendo noticiada pelo rádio, Marla reage quase que instintivamente,
desarmando e nocauteando o suposto criminoso.
Quase em seguida, outro carro chega e ela percebe que havia cometido
um erro. Na realidade Marla havia derrubado o detetive Dan Carey, que estava
perseguindo o assassino. O verdadeiro criminoso a rende e ameaça. Mais uma
vez ela reage e, usando força e inteligência, derrota o criminoso, deixando-o
inconsciente e algemado ao lado do detetive. Marla retorna assustada para
casa e descobre, no dia seguinte, que sua pequena aventura havia se tornado
destaque nos jornais, que comentavam a prisão do assassino pela misteriosa
mulher vestida de pantera. A polícia, mais especificamente o detetive Carey,
passa a investigar aquela que foi apelidada de Black Fury.
Assim têm início as aventuras de Miss Fury. Esse pequeno evento
desencadeia uma série de outros que levam Marla a uma jornada de
autoconhecimento, descobertas e amadurecimento. A manta de pantera era
mágica e dava super poderes, aumentando a força e dando habilidades
acrobáticas a quem a usasse. No entanto, a magia tinha um preço.
Toda vez que a heroína vestisse a roupa alguma coisa seria cobrada ou
tirada dela. Marla, a partir de então, foi forçada a sair da sua vida confortável e
protegida, a conhecer o sofrimento e a passar por provações que iriam colocar
em xeque as certezas que ela cultivara ao longo da vida. Quanto mais luta
contra seu destino, mais a jovem fica envolvida em aventuras e mistérios.
Dessa forma, a fantasia se torna uniforme e a socialite vira super-heroína.
Para manter sua identidade secreta, Marla conta com a ajuda de
Francine e de seu porteiro Cappy, que se desdobram para que, nem a polícia
nem seu namorado Gary Hale, descubram seu segredo. Marla, ao contrário de
outros super-heróis, é prática: ela simplesmente não quer sua vida exposta.
Seu disfarce era apenas um último recurso para que as pessoas não
descobrissem as confusões nas quais havia se metido.
70
Figura 28 - Origem da Miss Fury. Marla veste pela primeira vez o a roupa de pantera que irá lhe
127
dar super-poderes.
127
MISS Fury. Timely Comics, 1942, nº 01, p. 03.
71
Figura 29 - Marla tem seu primeiro combate como Miss Fury.128
128
MISS Fury. Timely Comics, 1942, nº 01, p. 05.
72
Entender a origem de um super-herói é importante para entender aquele
em quem ele vai se tornar. Nos quadrinhos os super-heróis são, em geral,
pessoas comuns que se deparam com situações incomuns e são obrigados a
fazer escolhas. Essas escolhas estão constantemente afetando suas vidas e a
vida das pessoas que os cercam. Elas serão, também, definidoras de seu
caráter. Quando Marla veste a roupa de pantera e usa suas habilidades, ela
começa uma jornada marcada por angústia e sofrimento. Ela vai se tornando
uma nova mulher.
Miss Fury não é uma representação das mulheres que estão sendo
forçadas a mudar? A sair do conforto e segurança de seus lares para enfrentar
longas jornadas de trabalho? Elas não estão se sacrificando, também, no
esforço de guerra?
Se levarmos em conta o contexto em que as aventuras de Miss Fury
foram escritas, a reposta seria repetidamente “sim”. A década de 1940 foi um
período de grande incerteza, onde todos, homens e mulheres, foram chamados
a lutar contra a ameaça das ditaduras totalitárias. A mulher foi considerada
abertamente mão de obra reserva. 129 Diferenças de gênero à parte, as
mulheres assumem o comando de seus lares, ocupam postos de trabalho que
antes eram de seus pais, irmãos ou maridos, elas são chamadas a colaborar
com seu país como nunca antes havia ocorrido.
Quando contextualizamos o período somos levados a crer que a
inserção das mulheres no mercado de trabalho foi necessária e temporária;
que antes da guerra elas não estavam lá, nas fábricas, lojas, hospitais, escolas
e escritórios; que depois da guerra elas simplesmente voltariam para suas
casas e retomariam suas vidas sem que nada houvesse mudado. Esse era o
discurso oficial.
Mas entre o oficial e o real existe uma grande lacuna a ser preenchido. É
fato que as mulheres sempre estiveram presentes no mercado de trabalho,
como também é fato que a sociedade machista sempre resistiu a reconhecer o
valor do trabalho feminino. Em maior ou menor quantidade, as mulheres
estavam ativas.
A eclosão da II Guerra Mundial abriu uma brecha para que um maior
número delas pudesse ser inserido no mercado de trabalho norte-americano.
129
OLIVEIRA, S., 2007, p. 84.
73
Não apenas se ampliaram as oportunidades como, pelo menos nesse período,
as mulheres tiveram reconhecido o seu valor como força de trabalho. As
mulheres norte-americanas foram tão competentes quanto os homens e a
sociedade, em nome do bem da nação, incentivou e reforçou esse sentimento
de autoestima.
Então, se familiares relutantes acreditavam que as meninas deveriam ter
uma educação básica e não muito aprofundada, pois seu destino era o
casamento, esses mesmos familiares se viram obrigados a incentivar essas
mesmas meninas a trabalharem fora de casa. Se as esposas antes contavam
com a renda do marido para manter a casa e os filhos, agora elas vão ter que
trabalhar, pois seus maridos estão na guerra e impedidos de suprir todas as
necessidades domésticas.
Marla Drake representa essa transformação. Essa necessidade de tomar
as rédeas, de assumir outras responsabilidades, de fugir de padrões impostos.
Ela se descobre uma mulher capaz de vencer obstáculos, de superar
expectativas. E isso não se deve exclusivamente aos poderes que adquire
quando veste sua manta de pantera. Na verdade, uma das coisas que mais
chama atenção nas histórias da Miss Fury é o fato de Marla raramente usar a
roupa.
Usar os poderes mágicos da veste pode lhe trazer problemas. A magia
irá lhe cobrar, tirar dela algo importante. Então, na maioria das vezes, ela conta
com a sua inteligência, seus reflexos naturais, e com sua capacidade de
observação para escapar de situações perigosas. Ela é simplesmente
inteligente, corajosa e desenvolve um forte senso de justiça.
A princípio, Marla é uma heroína relutante, que deseja retornar para sua
confortável e ociosa vida de mulher rica, mas é sempre puxada para alguma
missão, como se a manta não lhe permitisse novamente ter uma vida normal.
Começa, então, a mergulhar cada vez mais profundamente em uma vida de
segredos e perigos. O grande drama da sua vida é perder o amor de Gary
Hale, para quem teve que mentir a fim de não revelar sua dupla identidade.
Uma série de acontecimentos separa o casal, apesar dos esforços de
Marla. Mas a heroína não se deixa abater, tendo até outros interesses
românticos (o detetive Dan Carey, por exemplo), embora Gary ocasionalmente
retorne à cena, balançando o coração da Miss Fury. Mills usa muito a ideia de
74
amor predestinado, à medida em que cria circunstâncias que sempre
aproximam os ex-namorados. Marla chega a adotar uma criança, sem saber
que era filho de Gary.
Figura 30 - Dary Hale casa-se com Erica e Marla lamenta seus infortúnios colocando a culpa
130
na pele de leopardo mágica .
Principalmente por atrapalhar sua vida pessoal, Marla odeia sua
identidade secreta. Tenta ao máximo se afastar dos problemas, mas
circunstâncias acima do seu controle sempre levam Miss Fury a ter que usar o
traje para consertar algum erro.131
Segundo Mike Madrid, 132 as super-heroínas, cujas aventuras foram
escritas por homens, tiveram um destino parecido com o de seus pares
masculinos, sendo submetidas a uma vida dupla, que elas abraçavam
voluntariamente e com obstinação, a fim de lutar contra as injustiças. Já Tarpé
Mills tem uma abordagem diferente com relação à identidade secreta de Marla.
Ela é mais realista e prática. Marla não abre mão da sua vida para manter seu
segredo. Sua identidade como Miss Fury foi um meio para atingir determinados
fins e não corresponde a seus sonhos. Marla não aprecia ser uma superheroína, embora não tenha tido controle sobre os eventos que a conduziram a
isso. As histórias de Miss Fury são as histórias de Marla Drake e não o
contrário.
A personagem não desejava a responsabilidade que a manta de pantera
negra havia lhe dado. Não queria superpoderes nem se envolver em tantas
130
ROBBINS, 2011, p. 20.
MADRID, Mike. The Supergirls: Fashion, feminism, fantasy, and the history of comic book
heroines. [Minneapolis?]: Exterminating Angel Press, 2009, p. 08
132
Ibidem, p. 09
131
75
aventuras. Talvez por isso Marla, e não a Miss Fury, seja o foco central de toda
a trama. Ela é Miss Fury porque na maioria das vezes não tem opção. Mas sua
identidade secreta não anula sua personalidade civil. Marla é a mesma pessoa,
com ou sem o uniforme. Este traço em especial é o que dá mais autenticidade
à personagem criada por Mills e a diferencia das futuras super-heroínas.
Usar a manta e colocar-se em risco permitiu a Marla descobrir uma outra
pessoa dentro dela, capaz de enfrentar situações difíceis, de refazer sua vida,
de lutar pelos seus interesse e passar em cima de tabus sociais que ela
mesma já havia defendido. Ela se torna uma nova mulher, Marla ganha uma
nova perspectiva, uma nova visão sobre a sociedade de sua época.
Se a Marla dos primeiros anos da tira era uma sonhadora, uma mulher
que estava atrás do amor e de uma família nos moldes tradicionais, uma
mulher mais amadurecida e senhora de si vai surgindo aos poucos. Ela teve
sua família, embora não tenha sido exatamente uma família convencional. Ela
torna-se mãe solteira. Salva e adota uma criança, que na verdade, é filho de
Gary Hale com sua arqui-inimiga, Baronesa Erica Von Kampf.
A antiga Marla Drake não seria tão ousada. Uma nova mulher começa a
ser talhada a partir dos eventos que se sucederam ao dia em que vestiu pela
primeira vez a manta de pantera que lhe deu poderes. De certa maneira ela
marca a transformação de Marla, que vai abrindo espaço em sua vida para
novas opções, rompendo com antigos padrões de comportamento e se
adequando aos novos tempos.
Difícil não relacionar essa mulher de papel com as mulheres reais, que
na década de 1940 são forçadas a mudar suas vidas em função do esforço de
guerra. Difícil não pensar em como mais de meia década de independência
financeira, de reconhecimento pelo esforço, de estímulo ao trabalho, à
participação e à ação não teria feito da mulher norte-americana uma mulher
diferente daquela de anos anteriores. Mais complicado ainda acreditar que
essas mulheres simplesmente deixaram tudo isso para trás com o final da
guerra.
3.3 – Baronesa Erica Von Kampf, a espiã nazista
Todo bom quadrinho de superaventura tem que ter um vilão carismático.
É ele que vai dar o tom da história, a emoção, e trazer uma dose de suspense.
76
Afinal, o herói ou a heroína precisam de desafios que só um bom antagonista
pode oferecer. No caso das aventuras da Miss Fury, a baronesa Erica Erica
Von Kampf, a espiã nazista é a vilã preferida, tanto do público quanto da
própria autora. Erica é aquilo que se espera de uma espiã de guerra: bonita,
inteligente e muito ardilosa. Ela manipula, mente, mata e engana se isso lhe
trouxer algum benefício. Seu sobrenome é uma referência direta ao nazismo
Kampf, inspirado no livro de Adolph Hitler, Mein Kampf, base da ideologia do
Nacional Socialismo.
Ela não entra na vida da Miss Fury propositadamente, muito pelo
contrário. Vai ser Marla que acidentalmente vai interferir nos planos da
baronesa e de seu parceiro de vilania, o General Bruno. A partir de então a
vida dessas duas mulheres passa a se cruzar constantemente. Se a princípio
Marla age de forma a atrapalhar os planos de Erica, num segundo momento, é
a baronesa que interfere diretamente na vida de Marla. Essa interferência se
faz sentir com mais intensidade no plano pessoal. Erica atrapalha o romance
de Marla com Gary Hale, seu namorado, que já vinha sofrendo problemas
devido aos segredos de Marla (no caso, ela esconde que é Miss Fury e que se
envolve em várias aventuras combatendo o crime). Interesseira, Erica seduz
Gary Hale e casa com ele.
Um Gary deprimido, acreditando que Marla não o ama, parte para o
Brasil. A vinda de Gary para terras brasileiras é um marco, um divisor de
águas. Nos quadrinhos da Miss Fury o país sul americano se torna o palco de
momentos cruciais na vida da heroína. É sempre bom lembrar (e trataremos
disso com mais detalhes no próximo capítulo), que nosso país, por algum
tempo, oscilou entre o Eixo e os Aliados. Os quadrinhos da Miss Fury estão
sendo publicados num momento de estreita aproximação dos Estados Unidos
com o governo Vargas. Uma aproximação que envolve tanto relações
diplomáticas quanto culturais e não deixa de ser representada, também, nos
quadrinhos.
Erica, que estava no Rio de Janeiro, envolvida em um complô político,
vê no belo rapaz americano uma oportunidade de conseguir entrar novamente
nos Estados Unidos. A baronesa havia permanecido nos Estados Unidos como
exilada política, mas teve que ir para o Brasil, a mando de Bruno, em missão.
Feita sua parte, desejava retornar.
77
Ardilosa, a vilã vê no casamento com um jovem norte-americano uma
forma de garantir um visto em seu passaporte. Gary é um alvo perfeito.
Segundo a baronesa, nada mais fácil de manipular do que um homem de
coração partido. Ela se aproxima sutilmente, se faz presente e até se arrisca
para salvá-lo. Seduz Gary e se casa com ele. A baronesa não é a causa direta
da separação de Marla e Gary, mas ela contribui muito para isso
Érica é uma vilã típica dos quadrinhos, um reflexo distorcido do caráter
da mocinha, o seu oposto. Ela usa sua beleza como uma arma, que pode levar
os homens à ruína. Existe a plena consciência do seu poder de sedução, que
pode ser percebido, por exemplo, quando manipula Gary de forma a levá-lo a
um casamento que, de fato, ele não queria. Ela cria uma ilusão de amor que se
desfaz quando não é mais necessária. Érica, enquanto vilã, é o pior pesadelo
de uma sociedade patriarcal, uma vez que não valoriza a família e os laços
conjugais.
Ela representa a sombra, o erro, o vício, o mal que deve ser
subjugado, punido e exorcizado. A antagonista é a personagem
sempre presente, não só nas histórias em quadrinhos, mas também
na literatura, nos filmes, nas novelas. Enfim, ela é a outra face da
mulher idealizada e personifica os maiores temores da sociedade
133
patriarcal.
Invariavelmente envolvida em alguma armação, seja com bandidos
comuns ou com golpistas, Erica procura sempre tirar vantagem da situação.
Algumas vezes consegue, mas, como todo vilão merece um castigo, ela acaba,
em algum momento, vendo seus planos frustrados, direta ou indiretamente pela
Miss Fury. A baronesa foi a vilã preferida dos leitores. Ela oferecia às aventuras
da Miss Fury uma dose extra de emoção, com sua personalidade forte e
perversa. Segundo a própria Mills, numa entrevista dada em 1944, os fãs
enviam mais cartas para a vilã do que para a própria Miss Fury.134
133
134
OLIVEIRA, S., 2007, 68.
ROBBINS, 2011, p. 09.
78
135
Figura 31 – baronesa Erica von Kampf.
Erica era uma personagem ousada. Ela atraía a atenção não apenas
pelas suas maldades, mas pela forma sedutora com que aparecia nas tiras.
Sempre com um olhar fatal, roupas decotadas e uma expressão diabólica. Ela
era uma mulher ao mesmo tempo odiada e desejada, seja nos quadrinhos, seja
pelos leitores. A baronesa é naturalmente uma personagem provocante.
Representa aquilo que as meninas não devem ser e aquilo que os meninos
desejam ter. Numa tira muito sugestiva, ela aparece se despindo, tomando
banho, se enxugando e vestindo um lingerie.
A vida da baronesa é marcada pela violência, seja ela física ou moral. A
começar pela relação com seu comparsa, General Bruno. Ele a ofende e agride
inúmeras vezes. Em algumas delas, Érica reage, mas em outras fica tomada
pelo medo. E o medo não é o sentimento que cimenta a relação entre os dois
vilões. Ela se baseia em uma mistura de admiração, raiva e amor. As escolhas
de Érica são resultado da violência que ela sofre, mas se há momentos em que
ela questiona essas escolhas, isso não necessariamente indica que a vilã está
em busca da sua redenção. Mills, através da personagem, nos chama a
135
MISS Fury. Timely Comics, n. 08, 1945, p.08
79
atenção para um problema atual, a violência contra a mulher, que também
estava presente nos anos de 1940. Tanto nos quadrinhos quanto na vida real
as mulheres estavam sendo tratadas de forma violenta por homens que se
achavam superiores a elas.
Figura 32 - Baronesa Érica Von Kampf, agredida pelo General Bruno, na edição #01 de Miss
136
Fury.
O general Bruno é um dos principais vilões da série. Um expert em
intrigas internacionais. Ele é careca, maneta, usa um monóculo. Sua aparência
é intimidadora. Bruno acredita que no futuro a guerra não precisará mais de
soldados, apenas de cientistas e engenheiros. Mas, para isso, ele precisa de
dinheiro. A baronesa acaba auxiliando-o em alguns de seus planos. Mas nem
por isso recebe dele o reconhecimento que acredita merecer.
Ele a agride, ofende e, mesmo assim, Erica não consegue deixar de
amá-lo. Ao ser rejeitada depois de declarar seu amor, ela fica dividida entre o
desejo de destruí-lo ou amá-lo137. Erica é vítima da violência simbólica, como
muitas mulheres o foram e ainda o são. Ela deve se submeter às ordens de
Bruno e, durante vários momentos, ao jugo de outros homens. É nítida a
determinação desses homens de dominá-la, seja pela força física ou pela
intimidação. Erica está constantemente sendo lembrada da sua inferioridade
física. Afinal, ela é mulher.
Segundo Bourdieu138, uma das formas de se justificar a dominação da
mulher pelo homem é o critério biológico. Ele determina uma divisão social de
136
MISS Fury. Timely Comics, vol 01, nº 01, 1942, p. 11.
ROBBINS, 2011, p. 16.
138
Cf. BOURDIEU. P., 1998.
137
80
papéis cabendo à mulher um papel de submissão, uma vez que elas mesmas
aplicam a toda realidade e, em particular, às relações de poder nas quais elas
estão presas, os esquemas de pensamento que são o produto da incorporação
dessas relações de poder e que se exprimem nas oposições fundadoras da
ordem simbólica.139 Assim, ela acaba aceitando a violência simbólica como
natural.
Exercida através de um conjunto de mecanismos de conservação e
reprodução das estruturas de domínio, a violência simbólica se perpetua,
fazendo parte tanto do universo masculino quanto do feminino. Os dominados,
inconsciente e involuntariamente, assimilam os valores e a visão do mundo dos
dominantes, o modo de ver, a maneira de valorar. As concepções de fundo são
as dos dominantes, mas os dominados ignoram totalmente esse processo de
aquisição e partem ingenuamente do princípio de que essas ideias e esses
valores são os seus. Estes valores são reproduzidos de várias formas, por
vários canais. Os quadrinhos são um dos veículos de disseminação dessa
violência, ao apresentarem padrões perfeitos de comportamento tidos como
socialmente aceitáveis.
Mas no caso específico da baronesa, temos uma reação ao estado de
coisas. Ela é obrigada a se submeter, mas sempre encontra uma forma de
tentar fugir do controle dos homens. Ela é usada por Bruno, mas também
manipula e usa Gary. Ela sofre a violência, mas não se conforma com ela. Ela
é vítima, mas uma vítima que está constantemente reagindo, que não se
entrega passivamente.
Numa passagem publicada na revista Miss Fury # 02, Erica envolve-se
com os irmãos Manero, a mando de Bruno, que estão organizando um
movimento golpista, com objetivo de criar uma nova ordem na América do Sul.
Ela acaba atirando em um deles para salvar Gary, a quem pretende usar para
retornar aos Estados Unidos. Diogo, o irmão mais velho, descobre e se vinga
de uma forma brutal, marcando a ferro quente uma suástica em sua testa.
139
BOURDIEU, P., 1998, p. 40.
81
Figura 33 - Erica tem uma suástica marcada em sua testa a “ferro quente” pelos irmãos
Manero. O símbolo nazista será uma lembrança permanente da violência que ela sofreu nas
aos dos homens.140
140
MISS Fury. Timely Comics, 1942, nº 02, p.28.
82
Ao invés de se lamentar, a jovem foge, vai atrás dos seus opressores e
não pensa duas vezes em matá-los. É possível notar a tensão que a cena
passa. Mesmo Erica sendo uma personagem má, a violência que sofre é brutal
e inspira piedade. Além disso, é uma rara descrição da violência sofrida por
uma mulher feita do ponto de vista de outra mulher. As personagens dos
quadrinhos de Mills podem estar feridas, podem ser vítimas de humilhações,
podem estar em desespero, mas elas se levantam e enfrentam os obstáculos.
São vítimas, mas não aceitam permanecer como vítimas.
Erica não se considera má, embora seja capaz de atos hediondos.
Quando Bruno transforma o gato de estimação de Marla em um “gato bomba” a
fim de cometer um atentado, ela enfrenta o comparsa e implora para que ele
não mate o animal. Ela é agredida e repreendida por Bruno, que lembra que
eles estão em guerra e centenas de pessoas morrem todos os dias. Um gato
não faria diferença. Em outros momentos, ela é capaz de deixar transparecer
sentimentos nobres, chega a chorar com sinceridade.
Ela tem um filho com Gary, que desconhece a existência da criança,
pois seu casamento com Erica dura pouco tempo. Ela entrega a criança nas
mãos de um amigo médico, Dr Diman Saraf. A criança, Gary Hale Jr, que tem
aproximadamente dois anos, foi criada sem família, desconhece o próprio
nome, pois nunca foi chamada por ele. O reencontro entre mãe e filho é tenso.
Erica não sabe lidar com a situação. A vilã está sempre buscando justificativas
para suas ações com relação à criança. A começar pelo nome. Ela o chamou
de Gary Hale Jr não por nutrir qualquer sentimento pelo ex-marido, mas porque
a criança, segundo ela, era a própria imagem dele. A maternidade para Erica é
um estorvo. Ela é uma espiã, um filho é uma distração.
A criança, por sua vez, é exposta a todo tipo de violência, seja ela moral
ou física. Dr. Diman a castiga, agride de várias formas. Erica não sabe, ela
mesma, agir de outra forma, afinal, sua vida foi perpassada pela violência. A
vilã não conhece outra forma de lidar com as situações, não sabe expressar
seus sentimentos, não sabe dar nem consegue receber afeto e está sempre
pagando o preço pelas suas escolhas.
A baronesa sente algo próximo de remorso quando percebe como a
criança foi criada. Arrepende-se de ter deixado o filho com Diman, ainda mais
83
quando descobre sobre os experimentos científicos. 141 Uma referência aos
experimentos nazistas com pessoas que, ao que parece, já eram de
conhecimento público no final da II Guerra Mundial. Ela vive um conflito moral
que a faz questionar os rumos da situação. A baronesa tem sentimentos e é
capaz de atos de bondade. Não é uma vilã caricatural e, talvez por isso, tenha
conquistado o público.
Figura 34 – Reencontro da Baronesa com o filho. Já no primeiro contado depois de anos de
142
separação a violência marca a relação entre mãe e filho.
A espiã não nega seu interesse por dinheiro e poder, mas não é
desprovida de valores. Ao se envolver com os irmãos Manero, ela o faz pela
Pátria Mãe (Alemanha). A baronesa se considera uma patriota e não vê razão
para não ser recompensada por isso, tirando proveito financeiro, por exemplo.
Ela demonstra possuir um certo juízo de valor, dedicando lealdade ao seu país,
correndo riscos por ele. Erica também faz parte do esforço de guerra, embora
esteja atuando do lado inimigo. Não são apenas as mulheres norte-americanas
que foram convocadas para lutar, são todas as mulheres, de todos os países
envolvidos, reais ou fictícias. A Segunda Guerra Mundial não é uma guerra
apenas dos homens.
Tarpé Mills preocupa-se em dar complexidade a seus vilões. Eles não
são apenas nem somente maus, existe toda uma justificava para suas ações.
141
142
ROBBINS, 2011, p. 40.
MISS Fury. Timely Comics, nº 08, 1945, p. 21.
84
Que Marla é a mocinha, a heroína, ninguém duvida, mas outros personagens
têm suas ações justificadas de várias formas. Além disso, o panteão dos vilões
chega a ser mais interessante do que os próprios heróis. Mills é ousada, por
exemplo, ao incluir um vilão gay, Monsieur Charles.
Figura 35 - Monsieur Charles.
143
Monsieur Charles não é um figurante. Ele tem lugar de destaque na
trama. Não nos foi possível identificar outros personagens gays na década de
1940, até porque isso demandaria tempo e uma pesquisa bem mais ampla e
específica, desviando-nos do nosso objetivo. Mas podemos afirmar que
personagens homossexuais, se existiam nessa época, eram muito raros e
puramente decorativos. O personagem de Monsieur Charles é uma produção
pós-guerra, portanto num momento em que os quadrinhos começavam a
enfrentar uma dura campanha difamatória, portanto, Mills é duplamente
ousada.
Mesmo na atualidade, personagens gays encontram resistências nos
quadrinhos. Na última década, a homossexualidade vem sendo representada
timidamente nos quadrinhos. No caso dos super-heróis, inicialmente foram
escolhidos personagens secundários ou que participavam apenas de alguns
arcos de aventura. As grandes editoras ainda tateiam e tratam o tema com
143
ROBBINS, T., 2011, p. 98.
85
desconfiança, com medo do reação do mercado. Mas alguns autores têm se
arriscado e obtido sucesso nessa empreitada. Por exemplo, Archie,
personagem popular e duradouro, criado na década de 1940, assumiu sua
homossexualidade em uma história em quadrinhos publicada em 2012, que
apresenta o primeiro casamento gay dos quadrinhos.
CAPÍTULO 4 - AS MULHERES VÃO À GUERRA!
4.1 – As norte-americanas e a Segunda Guerra Mundial
Não demorou muito para que as lideranças dos países envolvidos no
conflito percebessem que teriam que convocar as mulheres para a guerra.
Inicialmente, elas foram conclamadas a se voluntariarem, mas, com o avanço
do conflito, passaram a ser recrutadas. Se na Primeira Guerra Mundial elas
estiveram em fábricas e foram enfermeiras, na segunda fabricavam e até
pilotavam aviões.
A Segunda Guerra Mundial foi um confronto de homens e mulheres.
Nunca antes em toda a história tantas mulheres, em diferentes países, foram
chamadas a contribuir com um esforço de guerra como entre os anos de 1939
e 1945. Elas ocuparam cargos que antes eram considerados masculinos, como
engenheiras, supervisoras de produção e motoristas de caminhão, por
exemplo, e também se alistaram nas forças armadas. A entrada maciça de
mulheres no mercado de trabalho, seja para suprir o vazio deixado pelos
homens que estão no front de batalha, seja para preencher uma demanda
surgida com a eclosão da guerra, irá causar um grande impacto social, durante
e depois do conflito.
Elas não são super-heroínas, mas desempenharam um papel bem
parecido, inspiradas no dever cívico e muitas, possivelmente, naquelas
mulheres de papel, corajosas e audaciosas, como a Mulher Maravilha e Miss
Fury e muitas outras personagens populares daquela época. Reais ou
imaginárias, elas estão envolvidas na guerra. A participação das mulheres nas
forças armadas merece destaque.
Antes de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial,
várias empresas já tinham contratos com o governo para a produção de
equipamentos de guerra para os aliados. Com a entrada do país no conflito, a
produção aumentou, fábricas de automóveis foram adaptadas para a
construção de aviões, houve ampliação de estaleiros e novas fábricas foram
abertas. A demanda por trabalhadores ultrapassou as expectativas dos
empresários e do próprio governo. Eventualmente, foi necessário apelar para o
87
trabalho feminino a fim de cumprir com os contratos assinados com o
governo.144
Assim, é possível dizer que, bem mais do que substituir os homens
enviados para a guerra, as mulheres supriram a demanda de um grande
mercado em expansão. A guerra foi lucrativa para os empresários norteamericanos. Novos postos de trabalho foram criados, mas faltava mão de obra.
Ao convocar a força de trabalho feminina para fábricas, o governo garantia a
expansão de suas indústrias e os lucros com a venda de armas, equipamentos
e suprimentos militares.
É notável o esforço para se passar a ideia de que o trabalho feminino é
uma novidade. O fato é que elas sempre trabalharam, apenas não eram
valorizadas, estavam invisíveis. Ou seu trabalho era considerado uma extensão
do doméstico, ou ainda um dom que poderia ser apropriado pelo patriarca da
família, ou um complemento e, portanto, extensão do trabalho do “homem da
casa”.
O padrão de família da classe média, que tem a esposa que se ocupa
dos trabalhos domésticos e dos filhos, enquanto o marido provedor passa o dia
trabalhando, era uma representação idealizada da sociedade norte-americana.
Em boa parte das famílias, especialmente as de baixa renda, as meninas
trabalhavam desde cedo, em várias atividades. O que a guerra irá fazer é
trazer à luz e valorizar essa mão de obra e, em alguns casos, possibilitar a
muitas mulheres driblar preconceitos de classe, adquirir conhecimentos
técnicos e conquistar independência econômica.
A guerra iria abrir novas possibilidades para a participação feminina no
mercado de trabalho, principalmente em áreas dominadas pelos homens,
como, por exemplo, a engenharia. Foi lançada uma intensa campanha na mídia
a fim de atrair a força de trabalho feminina para o esforço de guerra.
Quando os Estados Unidos entraram na guerra, havia 11,3 milhões de
mulheres trabalhando. Esse número representava cerca de um terço da força
de trabalho nacional. Ao final da guerra, eram 18 milhões. Dessas, 4 milhões
trabalhavam nas fábricas de armamentos. Quando o número de mulheres
solteiras não foi suficiente para suprir a demanda, as mulheres casadas foram
atraídas para trabalhar. Muitas resistiram à ideia, preferindo permanecer em
144
SORENSEN, Aja. Rosie the Riveter: Women Working During World War II. Disponível em:
http://www.nps.gov/pwro/collection/website/rosie.htm, acesso em: 05 mai. 2013.
88
casa. As que aderiram ao esforço de guerra, cerca de 10%, acabaram sofrendo
críticas da sociedade sendo, inclusive, responsabilizadas pelo aumento da
delinquência juvenil.
Cartoons publicados durante esse período ora detratavam as mulheres
que trabalhavam nas linhas de montagem, ora reforçavam o discurso acerca da
necessidade do trabalho feminino, Mulheres que serviam no exército também
eram vítimas de piadas maldosas e de preconceito por parte de cartunistas.
Alguns, de grande mau gosto, tentam desqualificar a presença feminina no
exército.
Figura 36 - "And then in my spare time...". Cartum publicado em 1943 faz uma crítica às
mulheres que trabalhavam nas fábricas, no esforço de guerra. Reforça o argumento sobre a
questão do abandono dos filhos e da delinquência juvenil. 145
145
BOB Barnes for OWI. ca. 1943, Library of Congress. Disponível em:
<http://ows.edb.utexas.edu/site/women-homefront/political-cartoons-primary-sources>, acesso
em: 23 jan. 2014.
89
Figura 37 - Women serving in World War II (s/d).146
Além do trabalho nas fábricas e da ocupação em outras atividades no
mercado formal, as norte-americanas também iriam ingressar nas forças
armadas, em parte seguindo o exemplo da Grã-Bretanha. Cerca de 350 mil
mulheres foram alistadas e serviram tanto em solo americano quanto no
exterior. Em maio de 1942, o Congresso instituiu o Women's Auxiliary Army
Corps, mais tarde renomeado Women's Army Corps.
Na aeronáutica, foi criada a Women's Airforce Service Pilots, ou
WASPs. Essas mulheres já tinham licença para pilotar antes da guerra e
realizaram missões de transporte de aviões e cargas para bases militares e
participaram de simulações de combate.
Mais de 1.000 WASPs serviram
durante a guerra, e 38 delas perderam a vida durante o conflito mundial. O
general Spaatz, comandante em 1945 das forças aéreas estratégicas do
Pacífico, chegou a afirmar que não via diferença entre homens e mulheres,
além do fato de as últimas usarem saias.147
As mulheres da Airforce Serviço Pilots (WASP) eram também um
sucesso na mídia, tanto que ganharam um logo desenhado especialmente para
146
WOMEN serving in World War II (s/d). Disponível em <http://zip.net/brqSBp>, aceso em 23
jan. 2014.
147
QUÉTEL, Claude. As mulheres na guerra – vol 02. São Paulo: Larousse, 2009, p. 143.
90
elas pelos estúdios da Walt Disney, com uma personagem chamada
Fifinella148. No entanto, a guerra abranda, mas não acaba com os preconceitos
e isso fica claro quando ela termina. As WASP, por exemplo, eram
consideradas pilotos civis e só na década de 1970 receberam status militar
completo e todos os privilégios a ele advindos.
Elas pilotaram, contudo, 77 tipos de aviões, entre os quais B26 e B29
(Superfortalezas), totalizando 90 milhões de quilômetros de voo para
“somente” 38 acidentes mortais, isto é, uma porcentagem equivalente
a de seus homólogos masculinos. A injusta manutenção de um status
civil, no entanto, as impedirá de beneficiar-se das pensões militares
em caso de invalidez. Pior, a concorrência direta e bem-sucedida que
terão feito aos homens, aos refratários das tarefas domésticas, nas
quais foram acantonadas muitas vezes as mulheres até no exército,
levará o alto comando americano a dissolver o corpo da WASP desde
149
o final de 1944.
Essas mulheres deixaram sua marca na história e, embora nem todas
tenham lutado ao lado de homens, muitas estiveram no front, sujeitas aos
mesmos perigos. Pilotos, foram abatidas por causa de suas cargas, o que as
colocava em combate. Enfermeiras, tiveram que se arriscar para salvar a vida
ou pelo menos diminuir o sofrimento de soldados no front. Atiradoras e pilotos
soviéticas, causaram muitos danos às tropas germânicas. O que dizer das
mulheres anônimas, que arriscaram suas vidas para esconder judeus? Ou
mesmo daquelas que se arriscaram espionando o inimigo, em ambas as
frentes, para passar informações importantes para seus exércitos?
As mulheres estiveram na guerra de todas as formas. Sem elas os
rumos da Segunda Guerra Mundial poderiam ter sido outros. Elas são as
verdadeiras heroínas que não podem ser encontradas nos quadrinhos, mas
podem ter servido de inspiração para muitos personagens da ficção.
4.2 – Heroínas e super-heroínas defendem a liberdade
Se as mulheres estavam presentes na construção civil, nas fábricas de
armas e no front, as mulheres de papel contribuíam também, nas páginas das
histórias em quadrinhos, na luta contra o nazismo. Personagens como Brenda
Starr colaboraram com o esforço de guerra perseguindo espiões. Na ficção, as
mulheres também estavam sendo convocadas para lutar contra as ditaduras
148
WASP on the web. Disponível em <http://wingsacrossamerica.us/wasp/free/index.htm
acesso>, em 23 jan, 2014.
149
QUÉTEL, C., 2009 p. 143.
91
fascistas. Na década de 1940, os Estados Unidos viram surgir uma série de
personagens patriotas, que literalmente vestiam a bandeira do país. Não
apenas os homens, mas também as mulheres.
Elas defendiam os Estados Unidos dentro e fora de suas fronteiras, uma
vez que o nazismo era um inimigo global e que deveria ser combatido de todas
as formas e em todos os lugares. Enfrentando espiões, soldados, tanques de
guerra ou mesmo mantendo a ordem local, colocando bandidos na cadeia.
Essas mulheres irão representar não apenas a força da “América” mas,
sobretudo, a força feminina. Em tempos de guerra, as mulheres dos
quadrinhos, assim como as mulheres da vida real, se igualam aos homens e
até mesmo os superam.
Nos quadrinhos nós tivemos uma série de personagens e histórias que
retratavam o dia a dia dos combatentes na Segunda Guerra Mundial. Ases dos
céus, marines, soldados entrincheirados. Todos eles foram lá representados,
em seus atos de heroísmo. Mas as combatentes também tiveram sua chance
de mostrar do que eram capazes. Uma personagem que podemos inicialmente
destacar é Pat Parker, a War Nurse.
Pat Parker é uma enfermeira britânica com muitas habilidades que vai
representar não apenas as mulheres que se arriscam nos campos de batalha,
cuidando dos feridos, mas, também, a mulher combatente, guerreira, que não
se conforma em ficar em abrigos ou trabalhando apenas como auxiliar.
A War Nurse foi uma personagem feminina inspirada no esforço de
guerra e criada pela ilustradora Jill Elgin. Ela fez sua primeira aparição na
Speed Comics #13, em 1941, revista publicada pela Harvey Publications. Ela
não tinha poderes, mas muita atitude. Suas primeiras histórias eram mais
realistas e buscavam mostrar um pouco da vida das enfermeiras no front, sua
bravura e os riscos que corriam para salvar pessoas.
No entanto, a
personagem não emplacou como outras heroínas e acabou sendo reformulada,
ganhando um uniforme e máscara, e dando outra direção às suas aventuras.
Isso acontece na sua segunda aventura, quando sozinha captura um navio
alemão, no litoral da Grã-Bretanha, o que levou-a a criar a identidade secreta
de War Nurse.150 Havia uma demanda pela fantasia, onde o herói ou heroína
150
MADRID, M., 2013, p. 393.
92
eram idealizados e a guerra apresentada de uma forma menos cruel, onde o
mocinho ou a mocinha saiam sempre vitoriosos.
Em 1942, passa para as mãos de outra cartunista, Barbara Hall, e tornase líder de um grupo internacional de combatentes chamado Girl Commandos.
Essa equipe teria sido a primeira nas revistas em quadrinhos totalmente
formada por mulheres, cada uma com uma nacionalidade diferente. Além de
Pat Parker, faziam parte da Gilr Commandos Ellen Billings, britânica e amiga
de Pat, Tanya, uma "fotógrafa oficial soviética", Penelope "Penny" Kirt, uma
repórter de rádio americana e Mei-Ling, uma chinesa que se junta à equipe
para vingar a morte de sua família nas mãos do exército japonês.151
São as auxiliares tomando frente no campo de batalha. Mulheres de
todos os países representados em um grupo de heroínas que se arriscam em
combate, enfrentam nazistas e japoneses, contando apenas com suas
habilidades físicas naturais (e normais). Uma equipe multinacional, para
lembrar que a Segunda Guerra Mundial só pode ser vencida a partir da união
dos países aliados contra a ameaça do EIXO. A Girl Commandos foi publicada
até 1947.
É relevante destacar que o Girls Commados foi uma história em
quadrinhos produzida por mulheres, Jill Elgin e Barbara Hall. Esta última
passou a assinar como Barbara Calhoun. Ao sair da série Girl Commandos,
Barbara Hall (ou Calhoun) assumiu a arte de Black Cat, uma super-heroína que
também tinha suas histórias publicadas na Speed Comics e que, segundo Trina
Robbins152 foi a primeira super-heroína em uma revista em quadrinhos. Vale
lembrar que Miss Fury era publicada inicialmente em tiras de jornal. Tanto
Barbara Hall quanto Jill Elgin abandonaram os quadrinhos. A primeira para se
dedicar à pintura a óleo (o marido teria influenciado sua decisão) e a outra para
se dedicar à ilustração de livros infantis. Atividades vistas como “mais
femininas” e, talvez, com uma escala de trabalho mais flexível, podendo, assim,
conciliar o lar e o emprego.
151
GIRL Commandos. Disponível em <http://pdsh.wikia.com/wiki/Girl_Commandos>, acesso
em: 11 mai. 2013.
152
ROBBINS, 2001, p. 69.
93
Figura 38 - Pat Parker, War Nurse.
153
SPEED Comics. Harvey Comics, nº 13, 1941, p. 22.
153
94
Figura 39 - Girl Commados. 154
154
SPEED Comics. Harvey Comics, nº 26, 1943, p. 50.
95
Essas heroínas, criadas dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial,
irão fazer parte de um grupo de personagens, com e sem super poderes, cujo
maior objetivo é a defesa da Pátria e a luta contra o EIXO, representado
geralmente por japoneses e alemães. São heróis e super-heróis patriotas.
Muitos deles desapareceram após a guerra. Outros tiveram suas histórias
adaptadas para os novos contextos históricos, para as novas demandas do
mercado.
The American people were being told that a specter was casting its
shadow across the country. Comic books presented stories of evil
foreign spies working within the nation’s borders, and the heroic
efforts of valiant Americans to crush this vermin. The Nazis and the
Japanese were presented as cruel and insidious foes perfectly suited
for the grand drama of comic books. A veritable battalion of patriotic,
star-spangled, Axis-bashing superheroes would be created to deal
155
with this secret menace.
Na Golden Age (Era de Ouro) dos quadrinhos norte-americanos é fácil
identificar esses personagens, principalmente em publicações como a Speed
Comics, que exploram a temática desde o início da guerra. Trata-se de um
vasto universo de heróis e super-heróis, homens e mulheres, que representam
o esforço de guerra, que guardam parte da memória desse período e que, aos
poucos, vêm sendo redescobertos pelos pesquisadores. Interessam-nos aqui
as super-heroínas patriotas, que Mike Madrid 156 chama de “Victory Girls”:
mulheres atraentes e corajosas, uma mistura de pin-up com uma heroína
destemida, que, com suas roupas curtas e corpo escultural, está pronta para
salvar o mundo e sacrificar sua vida pela liberdade e pela Pátria. E elas foram
muitas. Selecionamos algumas, que serão apresentadas adiante.
4.2.1 – As “Victory Girls”: Super-Heroínas patrióticas
O ano de 1941 pode ser considerado um marco para o surgimento das
heroínas de guerra e das heroínas patrióticas, que literalmente vestiam a
155
Ao povo Americano foi dito que um fantasma estava espalhando sua sombra por sobre todo
o país. Os comic books apresentavam estórias de espiões estrangeiros maus atuando dentro
das fronteiras da nação e os heroicos esforços de corajosos Americanos para exterminar esses
vermes. Os Nazistas e os Japoneses eram mostrados como cruéis e pérfidos inimigos,
perfeitamente adequados para o grande drama dos comic books. Um verdadeiro batalhão de
super-heróis patrióticos, sob a proteção da bandeira nacional, combatentes do Eixo, seria
criado para lutar contra essa ameaça secreta (tradução livre do original). MADRID, M., 2013, p.
346.
156
MADRID, M., 2009, p. 15 - 21.
96
bandeira de seu país e enfrentavam diversos perigos. A princípio, mulheres
comuns, com habilidades de luta que as deixavam em pé de igualdade com os
homens e, na maioria dos casos, até melhores do que eles. Eram inteligentes e
bonitas.
Se as enfermeiras faziam sucesso comandando equipes de heroínas, as
pilotos de caças estavam entre algumas das personagens preferidas do público
leitor. Uma das heroínas criadas em 1941 e que trilhou um longo caminho até
se tornar uma referência para a força aérea dos Estados Unidos foi a Miss
Victory.
A Miss Victory, cujo nome era Joan Wayne, foi publicada pela primeira
vez na revista Captain Fearless #1 pela Holyoke Publishing Company, ou
Holyohe Comics157, em agosto de 1941. Uma das primeiras heroínas patriotas,
tendo sido lançada meses antes da Mulher Maravilha, lutou contra o crime e
contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Na sua primeira
aventura ela enfrenta uma organização criminosa, que envolve políticos
corruptos.
Já de imediato a temos em ação. Não houve, no caso da personagem,
uma história de origem. Ela já é apresentada ao público como uma combatente
do crime. Sua roupa tem as cores da bandeira norte-americana. Sua origem
não era bem clara e, incialmente, ela não apresentava superpoderes, estes
vieram depois e só foram realmente explicados quando a personagem foi
reformulada e revitalizada, décadas mais tarde.
Seu nome foi inspirado em um ídolo norte-americano da época, John
Wayne, de quem, com certeza, vai herdar qualidades como coragem e
determinação. Há quem defenda que a escolha pelo nome da heroína era,
também, uma forma de atrair leitoras femininas, dando a elas uma personagem
feminina que se equivalesse a um ídolo masculino. A heroína, é claro, também
possuía os atributos que agradavam aos rapazes: era bonita, suas roupas
eram curtas (e foram ficando cada vez mais curtas com o tempo) e foi se
tornando uma personagem sensual.
157
A Holyoke é muitas vezes confundida com empresas de propriedade de Frank Z. Temerson,
como a Helnit. Em 1943 era conhecida como Continental Publishing.
97
158
Figura 40 - Miss Victory
158
.
CAPTAIN Fearless Comics. Holyoke Publishing Company, nº 01, 1941, p. 47.
98
Joan era um estenógrafa que trabalhava para o escritório da Secretary
of Commerce, em Washington (DC). Ela usava sua posição para obter
informações sobre as atividades inimigas e usá-las para defender os Estados
Unidos.159 Depois de várias promoções tormou-se piloto de missões de voo.
Participou de várias missões perigosas na Europa e no Pacífico enfrentou
japoneses e lutou contra sabotadores nazistas alemães. Tornou-se um ás da
aviação: a Capitã Joan Wayne.
Ela foi criada por Charles M. Quinlan, que assinou a arte, embora não se
saiba ao certo quem tenha sido responsável pelo roteiro. Duas mulheres
estiveram, posteriormente, à frente da personagem. Uma delas foi Alberta
Tews (Al Tews), que passou a ser responsável pelo roteiro. Tews iniciou sua
carreira como letrista freelance para Timely Comics, no início da década de
1940, tendo trabalhado em vários estúdios. Outra foi Nina Albright, uma das
mais destacadas artistas femininas do período, que trabalhava com quadrinhos
de aventura. Albright assumiu a personagem a partir da edição Captain Aero #
17. Foi ela que redesenhou o uniforme da Miss Vitory, tornando seu decote
mais revelador e sua roupa mais curta e sexy160. Na década de 1950, Nina
Albright deixou os quadrinhos e passou a trabalhar apenas com ilustração.
A Miss Victory era apresentada como uma mulher forte, corajosa e
determinada a lutar contra injustiça e pelo seu país. Ela representa um modelo
feminino que irá caracterizar vária personagens durante o período da Segunda
Guerra Mundial. Durante a Era de Ouro dos Quadrinhos sua última aparição foi
registrada na revista Captain Aero nº 26, agosto de 1946, quando então os
heróis patriotas já não despertavam mais tanto interesse161.
159
THE Evolution of Ms Victory. In.: Hangerhouse Archives, n. 06. The Complete Miss Victory
Collection. The Evolution of Ms Victory. 2013, p. 01.
160
PARDUCCI, James CCI: Comic Character Investigation #39. Disponível em:
<http://www.comicbox.com/index.php/articles/cci-comic-character-investigation-39/>, acesso
em: 08 jul. 2014.
161
MISS Victory (01 - 40's). Disponível em: <http://comicbookdb.com/character.php?ID=5633>,
acesso em: 09 jul. 2014.
99
162
Figura 46 - Miss Victory
162
.
Captain Aero. Holyoke Publishing Company, nº 26, 1946, p.19.
100
Apesar de seus talentos e sua habilidade para a luta, Miss Victory não
era uma super-heroína; não, se levarmos em consideração a definição do
super-herói como sendo alguém com habilidades que superam as de uma
pessoa normal, como super-força, por exemplo. Neste caso, quando falamos
em super-heroína patriota norte-americana, possivelmente vem à mente a já
imortalizada Mulher Maravilha, uma das personagens femininas de maior
sucesso nos quadrinhos em todos os tempos.
A mulher Maravilha, que nem é norte-americana, veste uma roupa
inspirada na bandeira daquele país e aparece para combater o caos da guerra
em nome da harmonia do amor. A personagem foi concebida para ser um
símbolo, um exemplo da perfeição e superioridade feminina. A Mulher
Maravilha surgiu em 1941, pelas mãos do psicólogo William Moulton Marston.
“Consta que Moulton era um teórico feminista, e ao observar que a
galeria de heróis e super-heróis pertencia ao sexo masculino quis,
então, fazer uma personagem feminina que pudesse servir de modelo
para as mulheres da sua época. Ele acreditava que as fortes
qualidades do sexo feminino haviam sido desprezadas e resolveu
criar uma protagonista tão forte como o Super-Homem, mas com o
fascínio de uma bela mulher.163
Marston apresenta a personagem a partir de suas qualidades
superiores, que podem remeter ao ideal do amazonismo, definido décadas
mais tarde por Sal Randazzo como expressão extrema da mulher guerreira,
que considera o patriarcado, assim como os homens, essencialmente
opressivo.164
Em tempos de guerra, a Mulher Maravilha representava a força das
mulheres norte-americanas, que deveriam trabalhar para que seu país se
mantivesse firme e unido, enquanto os homens lutavam na guerra contra os
nazistas e em nome da liberdade. Ela é a mulher que vai à luta pelos seus
ideais e se sacrifica por eles, mas sem perder sua identidade feminina.
Segundo Dave Coustan
A Mulher Maravilha incorporou a visão que Marston tinha das
mulheres: inteligentes, honestas e gentis. Ela possuía grande força
de persuasão. Como amazona, tinha habilidade em combates corpoa-corpo. Ao contrário dos outros super-heróis, a sua missão não era
163
164
OLIVEIRA, S., 2007, 108.
Ibidem, p. 07.
101
só acabar com o crime, mas também reformar os criminosos e tornálos cidadãos de bem.165
A Mulher-Maravilha é uma mulher forte e autossuficiente, age de acordo
com o código das amazonas não admitindo a ajuda dos homens e mostrando
todo o espírito feminista representado na personagem. Mas ela também é
feminina, é atraente, bonita, adoradora de Afrodite, a deusa grega da beleza e
do amor, sendo a beleza e a capacidade de amar consideradas qualidades
ideais da mulher.
Mas se a Mulher Maravilha é a mais conhecida, outras super-heroínas
também deixaram sua marca no panteão das Victory Girls da década de 1940.
Nenhuma talvez tenha sido tão patriótica quando a Miss América, uma jovem
repórter do Daily Star, Joan Dale.
Figura 42 - Página que contém dois projetos de ilustrações da primeira Mulher Maravilha (uma
166
figura de perfil, a outra de frente). Desenhos assinados por Peter H.G.(1941).
Joan Dale é uma pessoa comum que, certo dia, tem um sonho onde o
espírito da liberdade, representado pela estátua da liberdade, lhe faz uma visita
e lhe confere poderes mágicos, para que ela possa lutar contra os inimigos da
liberdade. Ela acorda e percebe que tem realmente superpoderes. Miss
165
COUSTAN, Dave. "How Stuff Works - Os segredos proibidos da Mulher Maravilha" (2008).
Disponível em: <http://lazer.hsw.uol.com.br/mulher-maravilha.htm>, acesso em: 16 ago. 2008.
166
WONDER Woman Original First Draft Illustration. Disponível em
<http://www.wonderwomancollectors.com/origart-1.html>, acesso em: 28 abr. 2013.
102
América foi criada por Elmer Wexler e publicada pela Quality Comics (que mais
tarde vendeu os direitos de publicação de seus personagens para a DC
Comics), aparecendo pela primeira vez na Militar Comics # 01, em 1941. Assim
como a Miss Fury, a Miss America surgiu um pouco antes da Mulher-Maravilha.
Mas se sobrava patriotismo para os roteiristas e desenhistas nos anos
de 1940, faltou um pouco de originalidade, pelo menos na escolha dos nomes.
Muitos personagens eram descaradamente plagiados. Mudava-se uma
característica física ou outra, mas a fórmula básica, que iria garantir o sucesso
era mantida. Outra Miss América, Madeline Joyce Frank, seria lançada anos
mais tarde, em novembro de 1943, pela Timely Comics, na Mystery Comics #
49, criação do roteirista Otto Binder e do desenhista Al Gabriele. Mesmo nome,
uniforme parecido, mas atitudes e origens um tanto diferentes iriam caracterizar
essas duas super-heroínas patriotas.
A Miss América da Timely Comics ganhou seus poderes de um
experimento científico. É uma mulher frustrada com sua condição feminina que
considera fraca e inútil. Ela acredita que para fazer diferença teria que ter a
força intimidadora de um homem. Acabou ganhando a força de mil. Ela é a
mulher que precisa ocupar o lugar do homem para manter a ordem e lutar pela
justiça. Em seu discurso ela aceita o ônus da masculinidade (força, poder) para
compensar a fraqueza feminina no mundo e no contexto (guerra) em que ela
vive.167
Se a Mulher Maravilha enaltece a superioridade feminina e deseja
vencer o “mal” através do amor, a Miss América não acredita na capacidade
feminina de vencer obstáculos, ela deseja atingir a justiça por meio da força e
ressalta o discurso da inferioridade feminina.
É interessante notar que as três super-heroínas têm em comum o fato
de seus uniformes serem, direta ou indiretamente, referência aos Estados
Unidos. As cores de seus uniformes são combinações de azul, vermelho e
branco, com maior ou menor predominância de uma dessas cores. Neles
podem estar presentes estrelas, listras, escudos ou qualquer outro símbolo
patriótico, como a águia, por exemplo, uma característica presente em muitos
dos heróis e super-heróis patrióticos, antes, durante e depois da Segunda
Guerra Mundial.
167
SMITH, Colin. On Wonder Woman & Miss America In The Golden Age: "If I Were Only A
Man!" (2013) Disponível em: <http://zip.net/bvqkPN>, acesso em: 27 abr. 2013.
103
Figura 43 - Miss America
usando
seu
uniforme
patriótico. Destaque para as
168
estrelas e listras .
Figura 44 - Miss América. Uniforme vermelho com capa
azul. Escudo faz referência aos Estados Unidos. No fundo,
169
uma suástica ressalta a luta contra o nazismo .
A primeira Miss América usava um vestido vermelho nas suas primeiras
aventuras, depois trocou por um uniforme com símbolos patrióticos. A mulher
maravilha, desde seus primeiros rascunhos, já possuía um uniforme com
referências à bandeira norte-americana e a segunda Miss América já traz,
desde o início, um grande brasão em destaque.
Características à parte, nas histórias em quadrinhos norte-americanas
as mulheres tiveram oportunidade de participar do esforço de guerra. Um grupo
representativo de patriotas vestiram seus uniformes coloridos e mostraram que
também eram boas de briga. As Victory Girls são uma mistura de soldado
patriota e pinup, elas mostraram que todos tinham um papel a desempenhar na
guerra.
4.2.2 – Miss Fury e os Nazistas
Quatro das oito edições em quadrinhos da Miss Fury trazem capas que
fazem referência direta à luta contra as ditaduras fascistas. Nelas, a super-
168
169
MILITARY Comics. Quality Comics, nº. 07, 1942, p. 46.
MARVEL Mistery Comics, Timely Comics, nº. 76, 1946, p.01.
104
heroína luta contra soldados alemães e até japoneses. Em duas delas Hitler
aparece em um retrato e “pessoalmente”, dando a impressão de que a Miss
Fury havia invadido seu quartel. Uma forma, talvez, de lembrar aos leitores que
todos os super-heróis estavam unidos contra a ameaça nazista. Uma jogada de
marketing, obviamente, que segue uma tendência. Nada mais comum nos anos
de guerra do que personagens fictícios aparecerem em animações ou revistas
em quadrinhos, socando ou humilhando, de alguma forma, o ditador alemão.
A verdade é que nenhum vilão fez ou faz tanto sucesso quanto Hitler e
os roteiristas aproveitaram ao máximo a vocação do ditador alemão para a
vilania. Era um personagem pronto, não havia o que acrescentar, o antagonista
perfeito para todos os heróis e super-heróis, sempre prontos para combatê-lo e
a seu bando de nazistas. E o melhor de tudo, ele era real. Talvez isso explique
o sucesso desses quadrinhos durante a guerra, entre os soldados. Reforçava
a autoestima do combatente ao saber que seu inimigo não tinha chances nem
no reino da ficção.
A Miss Fury pode não ter vestido a bandeira dos Estados Unidos, nem
ter feito discursos emocionados sobre a defesa da liberdade, mas ela também
entrou no esforço de guerra e, a seu modo, pode ser considerada uma superheroína patriota. Sua luta contra o nazismo acontece de forma quase acidental,
mas ela tem papel importante na defesa da liberdade na América. Nesse caso,
quando dizemos América, não estamos nos limitando aos Estados Unidos. Ela
vai ultrapassar as fronteiras nacionais, vindo para a América do Sul e, aqui,
ajudando a desmantelar os planos no Eixo.
Se o conteúdo das suas aventuras não se resume ao combate ao crime
e à defesa da Pátria, isso se deve, sobretudo, à habilidade narrativa de Tarpé
Mills
que
transformou
a
série
numa
grande
novela,
devidamente
contextualizada. Miss Fury era uma heroína patriota, na medida em que
combatia nazistas, mas essa não era a essência de suas histórias, apenas um
pano de fundo devidamente aproveitado por sua autora.
105
Figura 45 – Capa de Miss Fury # 02.
170
Figura 47 – Capa e Miss Fury # 04172
170
MISS Fury. Timely Comics, nº. 02, 1943.
MISS Fury. Timely Comics, nº. 03, 1943.
172
MISS Fury. Timely Comics, nº. 04, 1944.
173
MISS Fury. Timely Comics, nº. 05, 1944.
171
Figura 46 – Capa de Miss Fury # 03
171
173
Figura 48 – Capa e Miss Fury # 05
106
E muitas cenas dessas aventuras se passam no Brasil, onde ela vai
encontrar uma resistência armada contra o nazismo. No Brasil, também, entra
em cena uma outra personagem feminina, a bela e perigosa Era, personagem
brasileira, líder de uma milícia armada que procura acabar com os planos
golpistas dos já citados Irmãos Manero de implantar uma nova ordem na
América do Sul, com a ajuda do General Bruno.
Era é uma combatente, temida pelos seus inimigos. É também um
estereótipo da mulher latino-americana. Trina Robbins a descreve como a
Carmem Miranda local. 174 Ela fuma, tem um temperamento explosivo, é
destemida e movida pela paixão. Suas feições são sempre severas, menos
quando está com Chico, um argentino dos pampas, seu interesse amoroso. Ela
tem muito ciúme de Marla. Inicialmente Era desconfiava que Marla fosse uma
espiã. Num segundo momento, passa a ser vista como uma rival na atenção de
Chico.
Era não é uma vilã. Sua relação com Marla, a Miss Fury, é de pura
rivalidade. A guerrilheira brasileira vê na norte-americana uma usurpadora que
atrai a atenção para si, atenção que antes era concentrada nela. As duas se
revezam em cenas cômicas, rolam pelo chão aos tapas e uma acaba salvando
a outra de alguma situação perigosa. Estão longe de ser amigas, mas não são
necessariamente inimigas. Mills usa dessa rivalidade feminina como uma forma
de fazer humor e dar certa leveza à narrativa.
Em seu primeiro encontro, Era resgata Marla, que havia sido capturada
pelo General Bruno, quando tentava impedir o casamento de Gary com a
Baronesa. E, já nessa oportunidade, as duas partem para a agressão física.
Em outros momentos, a guerrilheira irá provocá-la, mas Marla aprende a lidar
com Era e suas emoções afloradas.
Mills brinca com essa rivalidade e explora a sensualidade da
personagem sul-americana. Era é mais uma das suas personagens fortes e
decididas. Ela manda e desmanda em seus homens, encara o campo de
batalha vestindo uma longa saia rodada, com o cabelo trançado, e não tem
medo de enfrentar os perigosos irmãos Manero. Ela é uma mexicana
estereotipada cuja representação é aplicada para qualquer mulher latina.
174
ROBBINS,T., 2011, p. 10
107
Ela é um meio termo entre mocinha e vilã. Tem as boas intenções de
uma heroína e a independência e ousadia de uma vilã.
Figura 49 – Era confronta Pepe Manero.
175
Era é um líder, uma mulher destemida que deseja defender seu país da
ameaça representada pelo General Bruno e seus comparsas. Isso a torna uma
heroína brasileira, que luta contra o nazismo, não como enfermeira, mas como
soldado, líder. Mills dá às suas mulheres um papel de destaque, força e
liderança que contradizem outras representações femininas do período, mas
que, como já pudemos constatar, não significa que não houvesse mulheres
assim, fossem elas norte-americanas, russas, britânicas ou mesmo brasileiras.
Já em sua primeira aparição (Figura 49) nas aventuras de Miss Fury,
nós podemos perceber a falta de informações sobre o Brasil. Quando Era
chega sorrateiramente e surpreende Pepe Manero, ela anuncia a morte do
inimigo falando seu nome completo: Pepe José Maria Umberto Rodrigo
175
MISS Fury. Timely Comics, nº. 03, p. 09.
108
Fulgêncio Juan Manero. A aventura na América do sul pode confundir um
pouco o leitor, pois Mills brinca com as nacionalidades dos personagens e com
a própria geografia.
O estranhamento constante entre as duas personagens sempre acabava
quando o assunto era enfrentar as arbitrariedades e a violência masculina. Em
tira publicada em 1943, Era e Marla são capturadas por criminosos e seus
comparsas nazistas e agredidas fisicamente. Apesar de toda a rivalidade e
ciúmes que tem de Marla, Era coloca-se em perigo para salvá-la e quase sofre
abuso sexual por parte do agressor.176 Mas, se suas personagens em certos
momentos sofrem agressão física (e reagem), Mills não permite em seus
quadrinhos que ocorra agressão sexual. Na mesma tira, o violento Bruno
impede um possível estrupo de Era.
O general, vilão mor dos quadrinhos de Miss Fury, podia distribuir tapas
aleatoriamente em mulheres, mas havia um limite quando a questão era o
estupro. Bruno tinha rígidos padrões morais e fazia questão que estes fossem
seguidos por seus subalternos e aliados. Assim como a baronesa, Bruno não
se considera um “vilão”, mas alguém disposto a sacrifícios pelo que acredita.
Os Irmãos Manero são argentinos que querem implantar uma ditadura
na América do Sul, com o apoio da Alemanha. O Brasil é um país estratégico,
um alvo em potencial. Assim, não se admira que tenhamos uma guerrilheira
brasileira e seu parceiro argentino, Chico. Mas é possível perceber que as
referências que Mills tem sobre o Brasil são muito limitadas. A aventura
começa no Rio de Janeiro e, de repente, parece que tudo é transportado para
os pampas gaúchos ou para uma floresta tropical.
Albino Jo, e seus olhos de tigre, é outro personagem que também faz
sua primeira aparição em Miss Fury # 03. Ele é um índio brasileiro albino,
formado em Havard. Um aventureiro que percorre o mundo e que demonstra
um profundo conhecimento das propriedades mágicas do traje de Marla, que é
africano. Albino Jo tem algum conhecimento sobre magia e explica a Marla a
origem da sua roupa/manta de pantera. É ele que vai alertá-la sobre o preço de
se usar a manta.
176
ROBBINS, 2013, p. 124.
109
Figura 50 - Albino Jo se apresenta a Miss Fury.
177
Algum tempo depois das aventuras no Brasil, Albino Jo e Marla
reencontram-se. Ele agora aparece com trajes elegantes, comportamento
aristocrático e até acompanha Marla a um restaurante, onde reencontram Era.
Albino Jo era um ideal de herói: exótico, versátil, inteligente e sabia ser sedutor.
Tem uma personalidade muito mais trabalhada do que os demais “mocinhos”
das tiras da Miss Fury.
O Brasil vai se tornar palco fictício de uma série de combates entre
nazistas e aliados, representados pelos brasileiros. É perceptível a importância
que o país tem não apenas na luta contra a ditadura nazista (é sempre bom
lembrar que vivíamos naquela época uma ditadura no Brasil, o Estado Novo),
mas dentro das estratégias de guerra norte-americanas, daí sua presença
constante em quadrinhos estadunidenses. Também é possível perceber as
representações que a autora constrói acerca do Brasil e dos brasileiros,
baseadas em estereótipos produzidos e reproduzidos durante a primeira
metade do século XX acerca da população latino-americana.
Segundo Trina Robbins 178 , Mills tinha uma grande fascinação pelo
Brasil. Mas a forma como ela via o país era idealizada, uma vez que Mills
nunca chegou a visitá-lo. Observando atentamente os quadrinhos da Miss
Fury, podemos supor que o Brasil que ela idealizava era aquele mais
romântico, representado nos filmes de Hollywood, como os estreados por
Carmem Miranda ou presente nas animações da Disney, dos anos de 1940.
177
178
MISS Fury, Timely Comics, nº 03, 1943.
Em entrevista concedida no dia 07 de setembro de 2014. Cf. Anexo.
110
A escolha do Brasil como cenário da luta contra os nazistas pode estar
relacionada, também, à Política da Boa Vizinhança, implementada pelos
Estados Unidos durante a década de 1940. Nesse período, os Estados Unidos
procuraram aproximar-se dos países latino-americanos, por meio de uma
ofensiva política ideológica em torno da defesa das Américas (panamericanismo).
Mesmo antes de entrar na guerra, os Estados Unidos já haviam traçado
um perímetro de segurança que incluía a América do Sul, especialmente as
regiões Norte e Nordeste do Brasil. Em 1940, o multimilionário Nelson
Rockefeller criou Office for Coordination of Commerce and Cultural Relations
between the American Republics (OCIAA), que em 1946 tornou-se Office of
Inter-American Affairs, uma agência por meio da qual o presidente Roosevelt
conseguiu implantar a Política da Boa Vizinhança no Brasil. O trabalho desta
agência tinha como base a propaganda ideológica norte-americana, trazendo
para o Brasil não apenas produtos norte-americanos, mas o próprio modo de
vida cultivado por aquele país. Na época, o Brasil era uma área estratégica,
visada pela Alemanha e pelos EUA.
Nelson Rockefeller vislumbrava que a tomada de posição do Brasil
não se daria pela intervenção, mas pela sedução. (...) Rockefeller
entendia que se o governo, a população e as instituições brasileiras
considerassem que o modelo de desenvolvimento capitalista norteamericano era o ideal, o Brasil se tornaria um aliado natural dos
179
EUA.
Os EUA apresentavam-se como um paradigma a ser seguido pela
América Latina e o Brasil era considerado um país estratégico e, portanto, um
dos alvos preferenciais da Política da Boa Vizinhança. Sendo assim, a agência
investiu nas mídias da época. Cinema, jornal, revistas e quadrinhos eram
veículos usados para disseminar a cultura e as ideologias do capitalismo norteamericano.180
O Repórter Esso, por exemplo, foi criado em 1941 para ajudar a
combater a propaganda nazista, tendo sido o principal noticiário radiofônico
brasileiro, trazendo notícias sobre a II Guerra, entre os anos de 1941-1945 e
era patrocinado pela Standart Oil Company (Exxon) poderosa companhia de
179
BARBOSA, Alexandre. A Comunicação sedutora: aspectos da influência norte-americana na
comunicação brasileira. Cenários da Comunicação, São Paulo, v. 4, 2005, p. 15.
180
Ibidem, p. 16-19.
111
petróleo norte-americana. Este programa seguia o modelo de jornalismo
idealizado nos estúdios comandados pelo escritório de Rockefeller. O mesmo
acontecia com os cinejornais e o cinema. Incentivavam-se produções
cinematográficas ambientadas na América Latina como uma forma de
aproximação cultural.181
Assim como a própria guerra, as aventuras e Miss Fury reúnem
personagens das mais diversas procedências, sejam eles aliados ou inimigos.
Também está presente a ideia de que os Estados Unidos são o grande
guardião da América, que estão presentes em todos os lugares, vigilantes,
sempre buscando combater as ameaças externas. O fato de boa parte da
trama se desenvolver na América do Sul traz para os quadrinhos a própria
política da boa vizinhança, ao mesmo tempo que demonstra o pouco
conhecimento do povo norte-americano sobre a região e o povo que pretende
“proteger”.
4.2.3 – As diversas representações das mulheres nos quadrinhos
da década de 1940
Tivemos aqui vários exemplos de representações de mulheres nos
quadrinhos que tiveram seu papel no esforço de guerra, com destaque para as
super-heroínas. São modelos que foram oferecidos à juventude norteamericana, meninos e meninas, homens e mulheres, leitores que, de uma
forma ou de outra, dialogaram com os personagens, compartilharam de suas
aventuras e desventuras. A primeira Miss América, uma patriota com o mais
elevado sentimento de amor à Pátria, é inspirada na própria encarnação da
Liberdade expressa por seu símbolo maior, a “Estátua da Liberdade”. Ela
representa toda mulher norte-americana disposta a se sacrificar pela nação em
tempos de guerra.
Um segundo exemplo é a Mulher Maravilha, fruto de uma visão
idealizada da mulher. Ela é perfeita, segundo a ideia de perfeição desenvolvida
pelo autor. É um modelo ideal de mulher, superior aos homens, defensora do
amor, em oposição à imperfeição masculina, que segue o belicismo e a guerra.
O terceiro modelo é a segunda Miss América, que reafirma a
superioridade masculina ao defender que a mulher tem que se igualar ao
181
KLÖCKNER, Lucian. O Repórter Esso e Getúlio Vargas. Disponível em:
<http://zip.net/bnqSqS >, acesso em: 16 de out. 2014.
112
homem em força física para fugir da sua inferioridade. Ela considera que
apenas a força bruta (masculina) é sinal de poder e que apenas ela irá trazer
respeito. As mulheres são impotentes, elas precisam da força masculina.
E, por fim, temos a Miss Fury. Ela não adota as cores da Pátria nem faz
propaganda explícita pela defesa da liberdade, mas, mesmo assim, participa do
esforço de guerra. Ela o faz, principalmente como mulher, com suas
imperfeições e limitações. Recorre aos seus poderes apenas em última
instância e não nega o valor de sua condição feminina. De todas é a que mais
se aproxima da mulher real, com suas dúvidas, seus erros e seu
amadurecimento e crescimento enquanto pessoa.
Miss Fury luta contra nazistas mas não está fadada a salvar o mundo. A
narrativa é mais densa; o roteiro, envolvente. Em muitos momentos tem um
tom de humor, noutros de drama.
Mas qual a leitura que se pode fazer dessas quatro personagens,
destacadas entre o panteão de outras super-heroínas que surgiram no
período? Qual delas atinge, de forma mais intensa, o público leitor? São
questões difíceis de ser respondidas.
Diante dessas representações tão distintas do feminino, nos deparamos
com mulheres reais que também possuem valores e objetivos distintos. Elas
são constantemente bombardeadas por informações, que são retiradas da sua
rotina familiar, e são, muitas vezes, privadas do poder de opinar, de escolher.
Se, antes, a família e seus altos valores morais limitavam suas relações ao
espaço privado, agora o Estado, a Nação precisa que elas rompam com essas
limitações e assumam um novo papel social. Isso é temporário, mas de
fundamental importância. Pela primeira vez a mulher é chamada a colaborar,
por ter sua capacidade reconhecida. Ela é capaz, é competente. Ainda ganha
menos que o homem, ainda enfrenta muitas barreiras, mas o reconhecimento
do seu valor social é uma grande conquista dentro de uma sociedade
tradicionalmente machista.
Mas, para muitas delas, a mística feminina ainda é forte, ainda é aceita
como a única alternativa para as mulheres. A mística feminina estabelecia que
o papel social da mulher está em ser esposa, mãe e dona de casa. As meninas
não eram educadas para ser independentes, autônomas, mas para
desenvolver habilidades apenas para se casar e viver em função dos filhos e
113
do marido. Fugir deste padrão significava, então, dar as costas para a
felicidade. Segundo este pensamento,
a raiz do problema feminino no passado, é que as mulheres
invejavam os homens, tentavam ser como eles, em lugar de aceitar
sua própria natureza, que só pode encontrar realização na
passividade sexual, no domínio do macho, na criação dos filhos, e no
amor materno.182
Portanto, a forma como o discurso será apropriado e reproduzido pelo
leitor vai depender, acima de tudo, de práticas específicas. Não existe um
sujeito universal, cada indivíduo, cada grupo, possui uma maneira própria de
ler a realidade, fundamentada na sua bagagem cultural, social e institucional.
No caso do jovem leitor, pelas influências que sofre no âmbito familiar, na
escola ou em outro espaço onde se relaciona com outros atores, ele está
sujeito a uma variedade de discursos dos quais ele se apropria de elementos
que considera adequados à sua formação pessoal.
Como já foi comentado anteriormente, a leitura, enquanto prática
cultural, não pode ser dissociada do ato de ler, que por si só é pessoal e
também passa a ser um ato de consumo e de produção. Este ato não se limita
ao texto, nem aos comportamentos vividos nas interdições e nos preceitos que
pretendem regulá-lo 183 . Assim, as representações femininas contidas nos
quadrinhos poderiam receber inúmeras leituras. Havia, no caso das mulheres,
aquelas que certamente se identificavam com super-heroínas como a Miss
Fury, inicialmente relutante, mas que se acaba percorrendo um caminho de
sofrimento, de entrega, saído da sua concha dourada, recebendo fortes golpes
da vida e se tornando uma mulher cada vez mais independente.
Aquelas que viam na Mulher Maravilha um ideal de mulher forte, da
amazona destemida que cultivava os valores mais nobres. Mas temos aquelas
que se identificam com a Miss América da Timely Comics, para quem, apesar
de todo o seu poder, reforça o discurso da superioridade masculina. O
heroísmo era incômodo e deveria ser temporário, assim como a participação da
mulher real no esforço de guerra.
182
183
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Petrópolis: Ed. Vozes, 1971, p. 40.
Cf. CHATIER, R., 1990.
CAPÍTULO 5 - OS COMICS, O PÓS-GUERRA E O RETROCESSO
5.1 – O mercado editorial norte-americano e a juventude
O
mercado
dos
quadrinhos
estava
em
plena
expansão.
Os
investimentos na área cresciam. A cada ano, novas editoras estavam sendo
abertas e novos títulos lançados no mercado. Entre os anos de 1938 e 1940, o
número de histórias em quadrinhos, de títulos e de editoras aumentou
vertiginosamente. Em outubro de 1954, mais de 650 títulos já haviam sido
publicados nos Estados Unidos, somando um total de 150 milhões de
exemplares por mês e uma receita anual de US$ 90 milhões.184
Essa expansão teve seu momento maior nos anos de 1940, quando a II
Guerra Mundial trouxe uma demanda enorme de revistas e personagens que
tratavam da guerra, sendo sua temática principal o cenário para as aventuras e
superaventuras de personagens populares. Como já vimos no capítulo IV,
dezenas deles foram produzidos, a maioria deixou de circular depois da guerra.
A guerra servia de vínculo ideal entre leitores de quadrinhos de todas
as procedências. O patriotismo – e o ódio profundo pela Alemanha e
pelo Japão – tomou o país, criando alguns deveres compulsórios – o
dever de envolvimento, o dever de ter bravura, o dever de triunfar
sobre as forças do mal -, e quem melhor para fornecer um vislumbre
de segurança que não os heróis e heroínas figura dos quadrinhos?
As editoras sabiam disso e, antes de a guerra acabar, parecia que
todo super-herói do mercado já tinham tido uma refrega com o
185
inimigo
Nos anos de 1940 as oportunidades eram inúmeras para quem
trabalhava com quadrinhos. A expansão da indústria cultural elevou a produção
de revistas em quadrinhos, voltada para públicos cada vez mais específicos. A
produção desse material era cada vez mais um bom negócio e chegou a gerar
grandes fortunas, beneficiando empresários, editores e, em menor proporção,
cartunistas mais ambiciosos. Podia-se viver de quadrinhos, apesar das
limitações impostas por muitas editoras aos cartunistas.
Nos anos de guerra, os quadrinhos também foram utilizados pelo
governo norte-americano. Eram comprados e distribuídos aos milhares para as
tropas e o próprio exército chegou a produzi-los para os soldados com
184
185
CHENAULT, W., 2007, p. 22-24.
SCHUMACHER, 2013, p. 112.
115
objetivos educativos. Will Eisner, então servindo como soldado, criou manuais
sobre manutenção preventiva de equipamentos que foram distribuídos para
soldados durante a II Guerra Mundial.
A popularidade dos quadrinhos atingiu o pico nos anos de guerra.
Eles não eram mais entretenimento apenas para garotos tontos de
Kansas City; eram também para irmãos mais velhos, primos e tios
deles, que vestiam uniforme e tentavam vencer uma guerra que, no
início de 1943, parecia que não ia ter fim. Os militares vinham de
todas as partes do país com formação e níveis educacionais variados
e amavam quadrinhos. Eisner acertou ao prever, durante as
discussões com diretores da Army Motors, que os soldados teriam
186
forte atração pelas HQs.
A Timely Comics foi uma das editoras que mais lucrou com a venda dos
exemplares de quadrinhos durante a II Guerra Mundial, tendo o Capitão
América como seu principal título. O volume mensal de revistas em quadrinhos
vendidas após dois anos de guerra havia pulado de 15 milhões para 25
milhões. No ano de 1943 esse número atingiu a marca de 30 milhões, a grande
maioria destinada para os soldados em guerra187
Segundo Vince Fago188, a tiragem média de uma revista em quadrinhos
da Timely era de aproximadamente meio milhão por edição, durante a guerra, e
várias edições eram lançadas durante uma semana. É bom lembrar que os
quadrinhos da Miss Fury foram publicados durante a guerra pela Timely
Comics, que, entre 1942-1946, em edições de férias (inverno e verão), vendia
até um milhão de exemplares. Os quadrinhos haviam se tornado um
empreendimento milionário.
As oportunidades para essa indústria em expansão eram muitas e foram
aproveitadas pelos editores e donos de estúdios. Mesmo quando o governo
solicitou que se fizesse o racionamento de papel e zinco, as editoras tentaram
manter o ritmo da produção. Embora tenha diminuído o número de títulos, pois
não valia a pena arriscar o suprimento limitado com personagens inéditos, que
poderiam não cair no gosto do público, resultando em revistas encalhadas nas
bancas, o volume total de revistas impressas aumentou, assim como seu
consumo.
Embora os quadrinhos de crime, aventura e superaventura fossem muito
populares e a temática da guerra estivesse constantemente presente, muitos
186
SCHUMACHER, 2013, p. 110.
HOWE, S., 2013, p.33.
188
Ibidem, p. 34.
187
116
outros gêneros também fizeram sucesso neste período e continuaram fazendo
após a guerra, como veremos adiante.
5.1.1 – Cativando o público leitor feminino: heroínas para todas as
idades
Como um produto de consumo, as revistas em quadrinhos estão abertas
aos gostos diversos de seus leitores. Meninos ou meninas, homens ou
mulheres, todos podem consumir histórias de aventura, humor, terror ou
romance. Quanto maior o público leitor, maior o lucro dessa indústria.
Mesmo quando publicados nos jornais, os quadrinhos tinham alvos
específicos. As tiras poderiam ser lidas por um público variado, afinal, os
jornais são, de uma forma geral, um meio de comunicação que atinge toda a
família, ainda mais depois da criação dos suplementos. Mas, o surgimento das
revistas em quadrinho, como produto, levaria a uma maior especialização do
setor. Os gêneros dos quadrinhos passam a respeitar uma divisão etária
(infantil, juvenil e adultos) e sexual (feminino/masculino).
A princípio, foram lançadas revistas em quadrinhos com vários
personagens, misturando humor, aventura e superaventura. Os personagens
que ganhavam o gosto do público poderiam ter suas próprias revistas, o que
acontecia com frequência. Essas revistas passavam a ter um público alvo
específico. Nas décadas de 1940 e 1950, os adolescentes e as donas de casa
foram dois segmentos contemplados com essa especialização, se assim
podemos dizer.
Em 1941, por exemplo, o personagem chamado Archie, um dos mais
populares até hoje entre os jovens norte-americanos, foi publicado pela
primeira vez na Pep Comics # 22, pela editora Archie Comics. Archie é um
adolescente típico norte-americano. Ele cursa o ensino médio, pratica esportes
e namora. Seus quadrinhos fizeram tanto sucesso que deram origem a vários
outros títulos, com personagens que fazem parte do seu universo.
Seu
principal público consumidor eram as adolescentes.
A Pep Comics, onde Archie foi inicialmente publicado, era uma revista
de ação, com histórias em quadrinhos de aventura e superaventura envolvidas
e/ou interessadas no esforço de guerra. Archie era apenas uma, dentre muitas
das histórias publicadas na revista. Uma revista que bem provavelmente era
117
lida também por meninas. Outro título, a Jumbo Comics, que circulou no
mesmo período, publicava em suas páginas as aventuras de Sheena, histórias
de detetive, de pirata e quadrinhos cômicos.
É uma hipótese válida sugerir que essa multiplicação de títulos foi uma
forma encontrada pelas editoras de multiplicar, também, o público leitor. A
princípio, um leitor ou leitora poderia adquirir a revista para ler tanto uma
história de aventura, quanto um romance adolescente ou, possivelmente, ler as
duas coisas. Posteriormente, as publicações vão ficando mais específicas,
agregando quadrinhos de apenas um gênero, como terror, humor e
superaventura, sendo direcionadas a um público preferencial (meninos ou
meninas, homens ou mulheres).
No pós-guerra, os quadrinhos para adolescente apresentaram um
crescimento significativo. A Timely Comics, atualmente Marvel Comics, lançou
nesse período muitos títulos, como Millie the Model e Patsy Walker.189 Esses
títulos exploravam o lado adolescente dos personagens e criavam uma imagem
desejada do(a) jovem norte-americano(a).
Além do lucro gerado pela expansão do mercado dos quadrinhos, havia,
também, a questão da moderação dos comportamentos. Os quadrinhos são
um instrumento social pedagógico à medida que passam a determinar o tipo de
leitura que cada faixa etária e gênero devem consumir. Ficava, então,
socialmente determinado que as meninas devem ler os romances e as
aventuras cômicas de personagens adolescentes; os meninos podem ler
quadrinhos de terror, crime, aventura e superaventura.
Mas, muitos quadrinhos ainda eram publicados em jornais e os jornais
eram de leitura livre para todos. Assim, personagens como Brenda Starr e Miss
Fury, continuaram a cativar ambos os públicos e permitiam às meninas
adentrarem no universo da aventura, burlando de certa maneira o senso
comum, que estabelecia que os quadrinhos de aventura e superaventura são
para meninos e não para meninas.
As meninas, por sinal, foram um público consumidor ávido, daí o grande
sucesso de alguns personagens criados para serem lidos por adolescentes.
Vejamos dois exemplos fazendo uma breve análise de dois títulos de sucesso
da época: Millie the model e Patsy Walker.
189
MISIROGLU, G., 2004, p. 91.
118
Millie the Model foi uma personagem de humor muito popular, publicada
de 1945 a 1973.
Millie é uma jovem bonita que trabalha como modelo
profissional na agência Hanover. O título começou investindo em situações
engraçadas e depois evoluiu para uma espécie de aventura romântica.
No Brasil, a personagem ficou conhecida como Lili, a garota modelo. Ela
fez tanto sucesso que, quando o material vindo dos Estados Unidos começou a
diminuir, a editora La Selva contratou o desenhista brasileiro Gedeone
Malagola para escrever novas histórias. Os leitores brasileiros adoraram e a
série continuou sendo vendida durante muitos anos ainda190.
191
Figura 51 - Millie the Model Comics.
Millie vive às voltas com um mundo da moda, que atrai a atenção das
meninas, que poderiam se imaginar em sessões de fotos, em desfiles e festas.
Ao mesmo tempo, é uma personagem sensual e provocante, sempre com
roupas curtas ou decotadas, tomando banhos de espuma ou na praia, bem ao
gosto dos rapazes. Uma verdadeira GGA.
190
RIBEIRO, Antônio Luiz. Lili, A Garota Modelo. Disponível em:
<http://www.guiadosquadrinhos.com/personbio.aspx?cod_per=9849>, acesso em: 16 jun. 2013.
191
MILLIE the Model Comics. Marvel Comics, nº. 21, 1946 p. 03.
119
A personagem Patsy Walker foi lançada um pouco antes, em 1944. Ela
estreou na revista Miss America (não confundir com a super-heroína Miss
America), dedicada ao público feminino. A revista trazia quadrinhos e matérias
direcionadas a moças. 192 As histórias de Patsy Walker seguem um rumo
diferente das de Millie the Model, mas também são voltadas para um público
adolescente e, também, têm a intenção de formar uma juventude moralmente
saudável, dentro dos padrões estabelecidos na época.
Patsy Walker é uma jovem de classe média que frequenta o curso
secundário. Tem um namorado, fofoca, sai com as amigas, sonha com lindos
vestidos e é romântica. Representa o modelo ideal e desejado de uma garota
norte-americana “saudável” e “consumista”. Suas roupas são elegantes,
seguindo a moda da época. Nas revistas de Patsy optou-se por um padrão de
beleza mais discreto e realista, realçando-se as roupas e os acessórios.
Embora as curvas do corpo feminino possam ser percebidas nitidamente, os
vestidos e os decotes agora são mais comportados.
193
Figura 52 – Patsy Walker
.
Quando Timely Comics torna-se Marvel Comics, muitos personagens
sofrem reformulações ou deixam de ser publicados. A editora passa a se
especializar em quadrinhos de superaventura. Assim, em 1965, Patsy’s foi
integrada ao universo dos super-heróis Marvel, sendo figurante no casamento
do Sr. Fantástico com a Mulher Invisível. Uma fã declarada do Quarteto
Fantástico, Patsy sonhava em se tornar uma super-heroína.
192
ROBBINS, 2001, p. 88.
PATRICIA “Patsy” Walker (Hellcat), 2011. Disponível em: <http://zip.net/brqSBd>, acesso
em: 16 jun. 2013.
193
120
Em 1973, casada, ela se torna coadjuvante do Fera na revista Amazing
Adventures. No ano de 1976, divorciada, realiza seu sonho e assume a
identidade de Felina (Hellcat), uma super-heroína, deixando de ter qualquer
semelhança com a personagem criada em 1944. Patsy Walker surgiu como
uma personagem padrão de uma série de histórias para adolescentes, como
protagonista de uma comédia romântica e acabou se transformando em uma
super-heroína dos quadrinhos, um caso raro para uma personagem feminina.
Patsy Walker e Millie Model foram criações da canadense, naturalizada
norte-americana, Ruth Atkinson, nascida em 1912 e que estreou nos
quadrinhos no ano de1944, como freelancer. Em seu primeiro trabalho
creditado, ela apresentava um avião chamado Hellcat, curiosamente, o
codinome assumido por Patsy Walker quando se torna uma super-heroína, na
década de 1970.
Figura 53 - Foto mais famosa de Ruth Atkinson, tirada durante o período em que foi diretora da
194
Fiction House.
Atkinson pode ser considerada uma das pioneiras nos quadrinhos, tendo
chegado a assumir o posto de editora chefe da Fiction House e ter participado
da produção de títulos como Wing Tips, Tabu e Sea Devil, esses, notadamente,
194
ROBBINS, 2001, p. 74.
121
quadrinhos de aventura. Mas, ela também produziu romances em quadrinho,
colaborando com títulos como Lover’s Lane. Sua produção foi eclética e seguiu
as tendências do mercado.
Uma curiosidade é o fato de Millie the Model ter nascido do lápis de Ruth
Atkinson, que colaborou com a primeira edição da revista, assinada, também,
pelo editor chefe da Timely Comics, Stan Lee. 195 Mas, a cartunista dedicou
mais tempo ao título Patsy Walker, no qual ficou por cerca de dois anos. Essas
duas revistas foram o maior sucesso teen da editora e as duas personagens
tiveram uma vida longa. No caso de Patsy, ela pode ser considerada a
personagem feminina da Marvel mais antiga em atividade. Ruth Atkinson
faleceu em 1997, vítima de câncer. Ela foi uma das poucas cartunistas que
trabalharam na Marvel Comics e que conquistaram reconhecimento e influência
com seu trabalho.196
Nos anos de 1950 menos mulheres estavam trabalhando nos estúdios e
editoras de grande porte. Na Marvel, por exemplo, havia apenas duas. Se,
durante a era de ouro, os quadrinhos de aventura protagonizados por mulheres
estavam muito mais focados na aventura, agora era o romance, o glamour e o
humor que predominava em quadrinhos como os de Millie.197
5.1.2 – As garotas amam paper dolls
Uma das estratégias utilizadas para seduzir o público feminino eram as
paper dolls, bonequinhas de papel para recortar e colar que vinham como uma
espécie de encarte, tanto nos jornais quanto nas revistas em quadrinhos. As
leitoras (ou leitores) podiam vestir a personagem com roupas de papel.
Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, quando o papel era barato, havia
espaço suficiente na seção de quadrinhos dos jornais de domingo para imprimir
bonecos de papel das personagens de quadrinhos dos mais variados tipos. Em
1931, a personagem Blondie, criada por Murat Bernard Chic Young, conhecida
no Brasil como Belinda, exibia seu guarda-roupas em Blondie and Some
Evening Clothes.
Mas as paper dolls não eram apenas de personagens femininas. Até o
famoso detetive dos quadrinhos, Dick Tracy, foi vestido e despido pelos fãs que
195
ROBBINS, 2001, p. 87
WOMEN of the Golden Age: Ruth Atkinson. Disponível em: <http://www.comicvine.com/ruthatkinson/4040-56287/>, acesso em: 10 ago. 2013.
197
MADRID, 2013, p. 648.
196
122
compravam o Chicago Sunday Tribune, no ano 1940. 198 Uma verdadeira
manobra de propaganda para os quadrinhos, mencionada por Trina Robbins 199
em Paper Dolls from the Comics. Segundo a pesquisadora, as bonecas de
papel eram um chamariz para as leitoras200. Em um artigo sobre a história da
moda nos quadrinhos, Nádia Senna chama a atenção para essa prática
editorial que, segundo ela, era uma atividade comum entre as meninas.
Algumas revistas traziam encartes com roupas para serem recortadas
e coloridas, brincadeira de vestir as “bonecas de papel”, atividade
típica das meninas da época para os dias de chuva ou de resguardo
201
na cama.
Mais do que um passatempo, as paper dolls tinham um objetivo
mercadológico. Essas bonecas de papel chegaram aos quadrinhos como uma
forma de ampliar o mercado consumidor feminino para aquele produto. Elas
conhecem um grande sucesso na década de 1940, quando passaram a
acompanhar histórias em quadrinhos publicadas em jornais e, depois, em
revistas. O resultado positivo fez com que as editoras incentivassem sua
publicação. As vendas de quadrinhos aumentaram e, em alguns casos, os(as)
leitores(as) eram convidados a contribuir enviando desenhos com modelos que
poderiam ser usados pelos(as) personagens202
Na figura 54, temos uma amostra de desenhos enviados pelas fãs. Nas
margens da folha, podemos identificar a autora de cada parte do manequim.
Inclusive com o endereço postal. Eram meninas de várias cidades enviando
seus desenhos para serem publicados em uma revista de circulação nacional.
As pequenas modistas ganhavam destaque e a revista encontrava mais uma
forma de cativar seu público, afinal, as meninas adoram paper dolls.
198
ROBBINS, Trina. Paper Dolls from the comics. Forestvolli: Eclipse Books, 1987, p. 12
Idem
200
Ibidem, p. 03
201
SENNA, Nádia Cruz. Moda e HQ. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo
Grande /MS – setembro 2001. Disponível em: <http://zip.net/bfqj8Y>, acesso em: 07 fev. 2013.
202
JOHNSON, Judy M. History of Paper Dolls (1999). Disponível
em <http://www.opdag.com/History.html>, acesso em: 07 fev. 2013.
199
123
Figura 54 – Paper doll de Patsy Walker.
203
PATSY Walker. Bard Publishing Corp., nº. 73, 1957, p. 14
203
124
204
Figura 55 – Paper doll da de Marla Blake
Figura 57 –Paper doll de Millie.
204
206
.
Figura 56 - Paper doll da Baronesa von
205
Kampf .
Figura 58 – Paper doll de Hesy.
MISS Fury, v. 01, n. 02, Timely Comics, 1943, p.16.
Miss Fury, v. 01, n. 02, Timely Comics, 1943, p.15.
206
MILLIE the Model Comics. Male Publishing Corp., n. 94, 1960, p.16.
207
PATSY and Herdy. Male Publishing Corp., n. 71, 1960, p. 12.
205
207
125
A ocorrência das paper dolls, primeiro em jornais e depois nas revistas
em
quadrinhos,
nos
traz
duas
importantes
evidências.
Primeiro,
o
reconhecimento de um mercado consumidor feminino; segundo, o fato de que
as mulheres eram leitoras tanto de jornais quanto de quadrinhos. Se levarmos
em conta que essas bonequinhas eram publicadas, também, em revistas de
quadrinhos de aventura, como Dick Tracy e Terry and the Pirates, podemos
considerar, mais uma vez, que as meninas liam e gostavam de gêneros
variados de quadrinhos ou mesmo a possibilidade de que os meninos também
gostassem de colecionar e brincar com paper dolls.
Em Miss Fury, o recurso das paper dolls foi usado, tanto nos jornais
quanto nas revistas em quadrinhos. Nelas, temos Marla, Erica e até a geniosa
Era exibindo seus modelos de festa. Tarpé Mills gostava de vestir bem suas
personagens. Elas raramente repetiam suas roupas. Isso refletia um pouco a
própria personalidade de Mills, que estava sempre bem vestida. Na análise de
Trina Robbins,208 por Mills ter sido modelo antes de se dedicar aos quadrinhos,
ela demonstrou ter um extraordinário senso de moda em sua tira.
Suas personagens eram elegantes, da protagonista Marla Drake,
passando pela vilã, Erica, possivelmente inspirada na atriz hollywoodiana,
Marlene Drietrich, até a personagem Era, o líder de uma unidade de Guerrilha
antinazista. Na revista em quadrinhos Miss Fury # 02, as paper dolls de Marla e
Erica ocupam, cada uma, uma página inteira.
De uma forma geral, a ocorrência das paper dolls em uma revista em
quadrinhos indica que ela tem como público principal, mas não único, o
feminino. A idade varia muito. Supõe-se que as adolescentes gostem das
revistas teen, mas que também se interessem pelas histórias de aventura e
superaventura. As mulheres mais velhas e, possivelmente, as casadas leem
quadrinhos de humor e romances em quadrinhos, mas também podem se
interessar por aventura ou superaventura. Por que não?
Essas personagens direcionadas ao público feminino têm características
diferentes, estilos diferentes e sugerem representações particulares do
feminino. As aventureiras e super-heroínas surgidas no início da década de
1940 são mais maduras, mais velhas e se envolvem em tramas muitas vezes
complexas. As adolescentes que estampam as capas das revistas teen são
208
Cf. ROBBINS, 2011.
126
moças despreocupadas, sonhadoras e superficiais. Essa diferenciação, longe
de tentar gerar uma simplificação generalizante, aponta para uma série de
mudanças nas relações de gênero que vão caracterizar o período pós-guerra.
5.2 - As Mulheres e a (super)aventura do pós-guerra
No início dos anos de 1940, as jovens heroínas eram decididas, tinham
planos, buscavam sua realização, principalmente por meio de uma profissão.
Eram independentes e pensavam no futuro como um campo inexplorado de
possibilidades. Essas heroínas possuíam as qualidades e os valores que
estavam presentes, em menor ou em maior escala, nas mulheres comuns.
A maioria das heroínas das principais revistas femininas — Ladies
Home Journal, McCall's, Good House keeping, Woman's Home
Companion — eram mulheres atraentes, que tinham sua carreira e
viviam felizes, orgulhosas, amando e sendo amadas pelos homens. E
a energia, a coragem, a independência, a determinação, a força de
vontade que manifestavam no trabalho de enfermeira, professora,
artista, atriz, escritora, comerciária, faziam parte dos seus atrativos.
Davam a nítida impressão de que sua individualidade era algo a ser
admirado, e que os homens se sentiam atraídos tanto por sua energia
209
e caráter, como por sua aparência.”
No entanto, o período pós-guerra irá fazer uma releitura da condição
feminina, tanto na ficção quanto na realidade. Chamadas a colaborar com o
esforço de guerra, agora as mulheres são instruídas a retornarem para seus
lares e reassumirem seu papel doméstico. Elas não eram mais necessárias nas
diversas posições que assumiram, os homens voltaram. Esse discurso não
estava direcionado a todas as mulheres, mas, sim, para aquelas que haviam
recentemente sido alocadas no mercado de trabalho formal.
Como já foi afirmado, as mulheres sempre trabalharam, elas apenas
eram invisíveis. Pouco se falava do trabalho feminino, mas ele existia e era
essencial. Mas as mulheres pobres é que deviam trabalhar. Mulheres de classe
média, moças que pertenciam à fina flor da sociedade deveriam manter-se em
suas casas. Elas estudavam, mas seu objetivo deveria ser o casamento. A
guerra fez com essas moças, solteiras ou casadas, enfrentassem o mundo do
trabalho de uma forma que nunca haviam imaginado, assumindo postos e
papéis que antes eram de seus pais e irmãos e maridos.
209
FRIEDAN, B., 1971, p. 36.
127
Como já vimos, elas participaram ativamente do esforço de guerra e se
tornaram símbolos da luta contra o EIXO. Quando a guerra terminou, as
mulheres representavam 57% da força de trabalho. Dessas, 75% pretendiam
continuar trabalhando mesmo depois da guerra e 88% sonhavam em ter uma
carreira profissional A força da participação feminina chegou, inclusive, a
sensibilizar legisladores, que apresentaram leis que promoviam os direitos das
mulheres nos Estados Unidos.210
Mas com o fim da II Guerra Mundial toda essa euforia foi colocada em
xeque. Apenas dois meses depois do fim do conflito cerca de 800 mil
trabalhadoras da indústria aeronáutica perderam seus empregos. Em menos
de um ano mais de 2 milhões de mulheres foram demitidas na indústria
pesada.211 Era preciso devolver aos homens que retornavam da guerra seus
postos de trabalho. Foram ressuscitadas proibições contra o trabalho de
mulheres casadas, salários foram severamente reduzidos, creches foram
fechadas. Em 1948 os Estados Unidos, de 22 países do continente americano,
foram o único país a se recusar a assinar um parecer da ONU a favor de
direitos para as mulheres.
A maior parte das conquistas femininas foram combatidas tanto pela
mídia quanto pelo governo e pelos mesmos empresários que, anos antes,
louvavam as qualidades do trabalho feminino. As mulheres casadas foram as
mais prejudicadas. As que insistiram em continuar trabalhando eram alvos de
preconceito. As solteiras eram incentivadas a trabalhar, caso necessário, mas
somente até casarem, afinal, a maternidade deveria vir em primeiro lugar.
A mão de obra feminina, considerada reserva, foi dispensada e, para
que não houvesse maiores resistências foi elaborada uma pauta
cujos pontos foram eficientemente executados pela indústria cultural.
Essa pauta determinou a promoção dos valores femininos e
212
transformou o lar em um verdadeiro paraíso feminino.
Tratava-se da instalação do backlash (retrocesso) que atinge todos os
setores da sociedade norte-americana, inclusive a indústria de entretenimento
norte americana. Os backlashes são reações contra o progresso das minorias.
No caso das mulheres, os backlashes geralmente ocorrem quando elas estão
próximas de ter conquistas significativas. Ele, normalmente, não tem
210
FALUDI, 2001, p. 70.
Idem.
212
OLIVEIRA, 2007, p. 88.
211
128
conotações políticas (ou aparenta não ter). Apresenta-se como uma
manifestação dos medos da sociedade civil, que se sente ameaçada pelas
mudanças provocadas pelo sucesso das mulheres.
Ele se baseia em argumentos pseudocientíficos, em pesquisas, por
exemplo, publicadas em revistas e jornais, noticiados em rádio e TV que
afirmam, por exemplo, que mulheres com curso superior têm menos chances
de se casar, ou que determinada porcentagem de casos de delinquência juvenil
envolvem filhos de mulheres que trabalham fora ou que determinadas doenças
podem ser desenvolvidas por mulheres solteiras depois de determinada idade,
etc. Enfim, argumentos que justifiquem a opção pelo casamento e pela
maternidade.
Os publicitários inverteram a sua mensagem dos tempos de guerra a de que a mulher podia trabalhar e gozar da vida familiar - e
afirmavam agora que as mulheres deviam optar pelo lar. Como
descobriria mais tarde uma pesquisa sobre a imagem da mulher nas
revistas de ficção do pós-guerra, a carreira para as mulheres estava
sendo apresentada numa ótica mais desencorajadora do que em
qualquer outra época desde o começo do século; aqueles pequenos
contos representavam "o mais duro ataque contra a carreira feminina"
desde 1905. Nas histórias em quadrinhos, até a Mulher Maravilha do
213
pós-guerra não ia lá muito bem das pernas.
Na prática, o backlash dos tempos da mística feminina não mandou as
mulheres de volta para casa, ele agiu de uma forma muito mais sutil, mas não
menos eficiente.
A sociedade passa a ridicularizar as mulheres que
trabalhavam fora de casa e eram discriminadas pelos patrões assim como pelo
próprio governo, que promoveu novas políticas de emprego. O número de
mulheres que trabalhavam não se reduziu drasticamente nos anos de 1950,
mas elas passaram a ser confinadas a empregos mal remunerados. Segundo
Susan Faludi, “o backlash dos anos 50 não transformou as mulheres em
‘felizes donas-de-casa em horário integral’; apenas as rebaixou à condição de
secretárias mal pagas”. 214
Os homens querem de volta o espaço que deixaram vago na sociedade
durante a guerra. O trabalho das mulheres, sua ausência do lar e sua
independência financeira atingiam a autoestima dos homens, naturais
provedores da família. Muitas mulheres se recusaram a abandonar sua vida
profissional recém-conquistada e a retornar para as limitações do trabalho
213
214
FALUDI, 2001, p. 70.
Ibidem, p. 71
129
doméstico. O governo lançou, então, uma campanha nos meios de
comunicação para convencê-las a reassumirem seu papel de donas de casa.215
De acordo com essa campanha, seria um dever patriótico das mulheres
entregar aos homens o seu lugar no mercado de trabalho. Elas deviam isso a
eles, que haviam se sacrificado na guerra pela segurança da Pátria. Quase que
por mágica se esquece que as mulheres também fizeram sacrifícios e algumas
até foram consideradas baixas de guerra.
É preciso levar em conta que todo um mercado de trabalho havia sido
modificado e se expandido durante os anos de guerra. No período pós-guerra a
economia norte-americano continuou crescendo. Ora, o país não podia se dar
ao luxo de dispensar praticamente metade da sua força de trabalho. Cerca de
dois anos depois da guerra, muitas mulheres retomaram o trabalho. A década
de 1950 foi marcada pelo aumento da participação da mulher no mercado de
trabalho. O que ocorreu foi que a força de trabalho foi deslocada para
atividades menos remuneradas, onde não competiam com os homens.
Entre as mulheres dos grupos economicamente inferiores, muitas
tiveram que voltar ao trabalho para ajudar o marido a manter o padrão razoável
de vida para a família. Outras se revoltaram com o governo por afirmar que as
mulheres só seriam felizes realizando trabalhos domésticos, sendo uma dona
de casa ideal. Temia-se uma mudança permanente no papel feminino.
Segundo Selma Regina Nunes Oliveira,216 a década de 1950 foi marcada pelo
antifeminismo nos Estados Unidos e houve um significativo aumento das
pressões moralistas sobre as mulheres.
O backlash não estava impedindo as mulheres de trabalharem, mas
colocava o trabalho em segundo plano, reforçando a importância da família. A
família era considerada a base da organização social e contava com noções
tradicionais dos papéis masculino e feminino na família. Era um modelo
marcado por uma série de estereótipos. Uma família tradicional onde a mulher
desempenhava o papel de esposa e mãe. O casamento era uma instituição
poderosa. Segundo Vanessa Martins Lamb, 217 as pessoas não perguntavam
se iam se casar, mas quando e com quem. As jovens não tinham dúvidas
215
LAMB, Vanessa Martins. The 1950’s and 1960’s and the American Woman: the transition
from the “housewife”. Université du Sud Toulon-Var UFR Lettres et Sciences Humaines Master
civilisations contemporaines et compares, 2011.
216
OLIVEIRA, 2007, p. 34.
217
LAMB, 2011, p. 10-11.
130
sobre ter filhos, mas sobre quantos bebês teriam. O casamento era um mundo
seguro, organizado, privado, rodeado por bens de consumo, crianças e
expectativas.
5.2.1. A perseguição aos quadrinhos
As mulheres de papel assim como as mulheres de carne e osso sofrem
no pós-guerra os efeitos do backlash. No caso das personagens dos
quadrinhos, elas vão pouco a pouco perdendo parte da sua autonomia.
Passaram a ser definidas muito mais pelos seus super poderes do que pela
sua inteligência. As heroínas como A Mulher Maravilha, Sheena e Miss Fury
que passavam para as leitoras e os leitores uma imagem de independência e
segurança ou sofrem uma releitura (são reinventadas) ou desaparecem.
Mas, esse moralismo não se aplica a certas práticas como, por exemplo,
a adoção de roupas decotadas e curtas para personagens femininas. A roupa
de Sheena, por exemplo, ficava cada vez mais curta, principalmente nas capas
das revistas. Millie Model estava sempre tomando seu banho de espuma e
Brenda Starr não dispensava uma boa cruzada de pernas. A verdade é que
muitas personagens, super-heroínas ou não, estavam ficando menos
inteligentes, mais dependentes e suas aventuras superficiais.
As campanhas contra os quadrinhos marcaram o final dos anos de 1940
e a década de 1950. Uma onda de conservadorismo varreu os Estados Unidos
e exigia-se o controle de toda forma de arte que ameaçasse o status quo. A
moda, o rádio, televisão e o rock também sofreram com o controle sobre a
produção cultural. Era preciso proteger a juventude de influências negativas.
Na verdade, essa preocupação nada mais era do que uma forma de abordar
outros problemas sociais, surgidos após a guerra218
A igreja foi uma das inimigas declaradas dos quadrinhos nos Estados
Unidos. Grupos religiosos os acusavam, já em 1944, de causarem danos
morais às crianças e não cumprirem com os padrões de uma boa leitura.
Segundo eles, a maioria dos quadrinhos era inapropriada para a juventude.219
Em 1947, com o declínio dos quadrinhos de super-heróis e o aumento da
218
GOLDSTEIN, Andrew, "Depravity for Children -- Ten Cents a Copy!": Hartford and the
Censorship of Comic Books, 1948 - 1959" (2003). Hartford Studies Collection: Papers by
Students and Faculty. Paper 14, p. 01-02.
219
FREDRIC Wertham, Censorship & the Timely Anti-Wertham Editorials. Disponível em:
<http://zip.net/blp4zF>, acesso em: 09 ago. 2013.
131
popularização de gêneros como terror e crime, as críticas aumentaram e
tomaram uma proporção alarmante nos anos seguintes. Quanto maior era o
sucesso desses gêneros, maiores eram as críticas feitas por meio de artigos
em jornais e revistas.
Essa situação se agrava com a publicação, e o sucesso, do livro de
Fredric Wertham, intitulado A sedução do Inocente, em 1954. Os quadrinhos
seriam um dos fatores que poderiam levar à delinquência. Alguns gêneros, em
especial, eram considerados mais perigosos, uma vez que neles eram comuns
cenas de violência. Wertham se tornou o crítico mais importante, dedicado a
alertar a sociedade sobre o impacto negativo dos meios de comunicação de
massa sobre as crianças, especialmente as histórias em quadrinhos.
Wertham já estava engajado na campanha contra os quadrinhos já há
algum tempo. Em 1948, a revista Collier’s publicou o artigo “Horror in the
Nursery” (Terror no berçário), assinado por Judith Christ, onde eram
apresentadas
delinquência.
as teorias
220
de Wertham relacionando os
quadrinhos à
Neste mesmo ano, já eram feitas manifestações públicas,
organizadas por escolas e igrejas, que incluíam a queima de revistas em
quadrinhos. Wertham chegou a afirmar que os quadrinhos eram uma influência
pior do que o próprio nazismo.
Acredito que Hitler era um principiante se comparado à indústria de
quadrinhos”, declarou Wertham ao comitê. “Eles ensinam ódio às
outras raças aos quatro anos, antes de as crianças saberem ler”.
Wertham não se deu ao trabalho de explicar como uma criança seria
influenciadas por palavras ofensivas publicadas numa revista que ela
221
não podia ler.
Inicia-se uma perseguição até então nunca vista contra os quadrinhos e
um dos gêneros que mais sofreu foi o de superaventura. As super-heroínas,
claro, não foram poupadas. Para Wertham, as representações das mulheres
nas histórias em quadrinhos significavam uma deturpação masculinizada do
desenvolvimento humano e moral e um péssimo exemplo para meninos e
meninas, em especial, os quadrinhos da Mulher Maravilha, que ele considerava
uma afronta à família, à moral e aos bons costumes. 222 A resposta a este
220
SCHUMACHER, 2013, p.133.
Ibdem, p. 167.
222
REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua
potencialidade teológica. Tese de Doutorado Para obtenção do grau de Doutor em Teologia
221
132
discurso, que encontra eco em vários setores da sociedade civil, é uma
mudança radical em muitos personagens assim como o desaparecimento de
outros.
Figura 59 – Imagem usada como propaganda contra a leitura dos quadrinhos. O fragmento
retirado do artigo de John Mason Brown, publicado na Saturday Review Literature, de 29 maio
223
de 1948, onde Wertham reforça suas declarações dadas anteriormente à revista Collier’s.
Wertham questiona ainda o papel das histórias em quadrinhos na
representação do masculino e do feminino. Ele contra-argumenta a
afirmação de que as histórias em quadrinhos expressam uma
equidade entre o papel social de homens e mulheres. Para o
psiquiatra, não existe nenhuma compreensão avançada do masculino
e do feminino, mas um retrocesso perverso. Mais ainda, as histórias
em quadrinhos estimulam (e aqui o tom é de acusação) as relações
homoafetivas masculina e feminina, representado na relação entre
Batman e Robin e nas histórias da Mulher Maravilha224.
Muito mais do que uma ação destemperada de um psicólogo que queria
se promover publicamente, as ações de Wertham eram guiadas pela crença de
que os quadrinhos eram realmente nocivos. Wertham foi discípulo de Freud,
tendo uma formação sólida em psiquiatria. Ele realizava importantes trabalhos
Escola Superior e Teologia Programa de Pós-Graduação Área de concentração: Religião e
Educação – São Leopoldo, 2012, p. 40.
223
FREDRIC Wertham, Censorship & the Timely Anti-Wertham Editorials. Disponível em:
<http://zip.net/blp4zF>, acesso em: 09 ago. 2013.
224
Ibidem, p. 37-38.
133
sociais, tendo fundado uma clínica psiquiátrica em Harlem, a Lafargue, onde
atendia gratuitamente a população negra de baixa renda.225
Fredric Wertham não achava necessário censurar os quadrinhos para os
adultos e não creditava unicamente aos quadrinhos o aumento da delinquência
juvenil. Mas, suas ideias, muitas delas afirmações sem qualquer fundamento
científico ou teórico, tiveram um forte impacto numa sociedade que vivia um
momento de conservadorismo, que tentava refazer a família patriarcal em
moldes rígidos.
Para se protegerem, as editoras criaram o Comic Code Authority (CCA),
em 1954, uma forma de autocensura, a fim de salvaguardar títulos e
personagens. Como consequência, os quadrinhos mudaram, os roteiros
ficaram mais superficiais, muitos personagens - em especial personagens
femininas, como a Mulher Maravilha - sofreram mudanças visíveis em seu
comportamento. Se por um lado o selo de aprovação do Comic Code Authority
tranquilizava os pais quanto ao seu conteúdo, por outro, representou um
retrocesso para os quadrinhos, enquanto expressão artística e das relações de
gênero neles representadas.
Para a MM (Mulher Maravilha), o CCA representou o final de sua
postura como símbolo feminista. Tornando-a uma personagem quase
anódina. Esta combinação permaneceu (...) até os anos 70, quando
as coisas começaram a mudar. Não apenas para ela, mas nos
226
quadrinhos em geral .
Os anos imediatamente após a instituição do Código foram turbulentos
para a indústria de quadrinhos. Em 1954 editoras já tinham fechado as
portas.227 Em 1956, muitas empresas foram vendidas ou fecharam as portas.
No final da década de 1950, das dezenas de editoras existentes no mercado
até o final da II Guerra Mundial, apenas nove sobreviveram: American Comics
Group, Archie Comics Publishing, Charlton Comics, Dell Publishing Company,
DC Comics, Gilberton Publications, Harvey Comics, Marvel Comics, e Prize
Publications.228
225
GOLDSTEIN, 2003, p. 05.
CHACON, Beatriz da Costa Pan. A mulher e a Mulher Maravilha: uma questão de história,
discurso e poder (1941-2002). Dissertação de Mestrado no Programa de Pós Graduação em
História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2010, p. 31.
227
HOWE, 2013, p. 40,
228
CHENAULT, 2007, p. 33.
226
134
Muitos títulos foram cancelados e editoras desapareceram. Muitos
cartunistas e outros profissionais ligados aos quadrinhos tiveram que mudar de
ramo, trabalhando com ilustração em agências de publicidade. O número de
mulheres que trabalhavam nos estúdios, que não era grande, diminuiu ainda
mais.
5.2.2 - novas tendências nos quadrinhos, velhas barreiras para as
mulheres
A crise atinge também as cartunistas. Com fim da II Guerra Mundial,
muitas cartunistas perdem seus empregos, principalmente aquelas que haviam
sido contratadas para trabalhar com quadrinhos de aventura e superaventura.
Elas tiveram que ceder espaço para os homens. Com o fechamento de
editoras, as cartunistas que haviam permanecido em atividade são, em muitos
casos, obrigadas a buscar outras atividades ou simplesmente abandonar os
quadrinhos.
A mudança, na verdade, atingia toda a indústria dos quadrinhos, e não
apenas as mulheres. Personagens que fizeram sucesso durante a II Guerra
começam a ser descartados. A onda de patriotismo que varreu a primeira
metade da década de 1940 perde sua força. A era de ouro dos quadrinhos
estava chegando ao fim.
The end of WWII promised a new era of peace for the world. But it
presented a challenge for comic books. The scores of red, white, and
blue, star-spangled heroes and heroines who had fought so bravely
during the war years were now obsolete. Peace had eliminated the
perfect evil foe for freedom-loving heroes. Who needed a Mr.
America, Liberty Belle, or Yankee Doodle Jones if there was no longer
a great menace theatening democracy? Patriotc heroes disappeared
quickly, as the anthology comics of the Golden Age began to change
229
to reflect the postwar world.
Segundo Wesley Chenault. 230 os anos finais da década de 1940 e o
início da década de 1950 foram marcados pela redução do número de
229
O fim da II Guerra Mundial prometia uma nova era de paz para o Mundo, porém representou
uma ameaça para os quadrinhos. Os muitos heróis e heroínas americanos que haviam lutado
tão valentemente durante os anos de guerra estavam agora obsoletos. A Paz havia eliminado a
apropriada ameaça diabólica para esses heróis amantes da liberdade. Quem ainda precisava
de um Mr. America, uma Liberty Belle ou um Yankee Doodle Jones se não havia mais a grande
ameaça à Democracia? Heróis patrióticos desapareceram rapidamente das antologias de
quadrinhos da Era Dourada começarem a mudar a fim de retratarem o Mundo pós-guerra.
(tradução livre do original). In: MADRID, 2013, p. 1022.
230
CHENAULT, 2007, p. 30.
135
mulheres que trabalhavam com quadrinhos. Em 1950, esse número, entre
roteiristas e desenhistas, havia caído para menos de um terço daquele do
período da II Guerra Mundial. O ano de 1954 marca não apenas um momento
crítico da indústria dos quadrinhos, mas também o fim de uma era de ouro para
as mulheres cartunistas.
Poucas conseguiram manter-se no ramo. As que decidem, e
conseguem, permanecer na indústria dos quadrinhos migram para os títulos
adolescentes, para os romances em quadrinhos (romance comics) e para os
quadrinhos de animais (funny comics). Outras cederam às pressões da
sociedade e do governo e adotaram o ideal da dona de casa e esposa.
Editors of the post-war, who seemed to rejected the ideia of woman
drawing actions strips, obviously found no fault with these artists
drawing teenage comics. Another genre in which woman were
welcome was the burgeoning field of romance comics, which had
started in 1947. With few exceptions, the stories in these books were
hackneyed an cliched, but the art was often stylish and elegant,
allowing woman artists to draw what they seem to prefer drawing:
Graceful closeups of woman's face.
(...) If woman cartonist were still accepted in the more traditional teen
and romance comics, one would expect to also find them in funny
231
animal comics.
Eram nesses gêneros que elas tinham mais oportunidades. Poderiam,
também, se dedicar à ilustração de livros, como aconteceu com muitas delas.
Mas, se o mercado se fechava para as cartunistas, as que persistiram
souberam aproveitar as poucas oportunidades que tiveram. Vale citar aqui o
caso de Ruth Atkinson e sua participação na produção de quadrinhos para
adolescentes e, posteriormente, nos romances em quadrinhos.
E foi nos romances que essas cartunistas representaram um número
maior de colaboradores. Mas, sua função era, na maioria das vezes, restrita à
arte. Os roteiros foram majoritariamente assinados por homens, que colocavam
ali suas representações de mulheres ideais e de como deveriam ser os
231
Editores do período pós-guerra, que pareciam rejeitar a ideia de uma mulher desenhar tiras
de ação, obviamente, não encontraram nenhum problema com essas artistas desenhando
quadrinhos de adolescentes. Outro gênero no qual a mulher era bem-vinda era a campo
florescente dos quadrinhos de romance, que surgiram em 1947. Com poucas exceções, as
histórias desses álbuns [livros] eram banais e cheias de clichês, mas a arte era geralmente
estilosa e elegante, permitindo mulheres artistas desenhar o que elas pareciam preferir
desenhar: closes graciosos dos rostos de mulheres. (...) se uma mulher cartunista ainda fosse
aceita nos quadrinhos adolescentes e de romance mais tradicionais, seria de se esperar
encontrá-las também nos quadrinhos cômicos de animais (tradução livre original). ROBBINS,
2001, p. 92.
136
desfechos dos relacionamentos amorosos. O público alvo eram mulheres
adultas, casadas e solteiras, e adolescentes.
Esses quadrinhos retratavam o amor romântico, falavam de ciúme,
casamento, divórcio e traição. Os romances em quadrinhos tornaram-se um
dos gêneros mais populares do final da década de 1940 até a década de 1970.
No início da década de 1950 foram publicados dezenas de títulos.
Ganhava força a ideia de que deveria haver uma rígida separação entre
“quadrinhos para meninas” e “quadrinhos para meninos”. As meninas deveriam
ler os romances; os meninos, os quadrinhos de ação e aventura. As meninas
deveriam ler histórias onde as mulheres ficam noivas e se casam; os meninos
deveriam ler histórias onde as mulheres eram resgatadas por um homem. As
heroínas dos anos de 1950 se tornaram uma sobra daquelas bravas guerreiras
da década anterior.232
Não por acaso, nesse período, as mulheres nos quadrinhos de
superaventura tiveram seus poderes reduzidos, tornaram-se cada vez mais
dependentes dos homens e passaram a ser modeladas aos padrões de
fragilidade, docilidade e submissão exigidos. A Mulher Maravilha, por exemplo,
passou a sonhar em se casar com o Major Steve Trevo, seu eterno namorado,
mas não o faz, porque nunca conseguiria ser mais fraca que ele, algo
fundamental em um casamento. Outro exemplo é a Super Girl, personagem
lançada no final dos anos de 1950. Ao chegar à Terra para encontrar com seu
único parente vivo, o Superman, a jovem é colocada em um orfanato. Ela vive
um vida reclusa, onde sua principal preocupação é agradar ao primo famoso,
mesmo que isso signifique sacrifícios pessoais como não ter uma família,
esconder do mundo a sua existência ou evitar fazer amizades.233
Assim, dentro dessa nova lógica, que enfraquecia as mulheres e as
tornava cada vez dependentes dos homens, os romances em quadrinhos eram
um gênero aceitável para as mulheres, em geral donas de casa. Para as jovens
solteiras eles representavam a promessa de um amor eterno e um estímulo
para o casamento. Com a implementação do Comic Code Authority, em 1954,
232
MADRI, 2013, p. 273.
NOGUEIRA, Natania A Silva. A fragilidade feminina nos quadrinhos de superaventura na
década de 1960. Labrys, Études Féministes/ estudos feministas janvier / juin 2013. Disponível
em: <http://www.labrys.net.br/labrys23/culturepop/natania.htm>, acesso em: 13 ago 2013. /
junho 2013
233
137
as histórias passaram a dar enfoque a conceitos tradicionais patriarcais de
comportamento feminino, aos papéis de gênero, amor, sexo e casamento.
Figura 60 - Romantic Secrets.
234
235
Figura 61 - Romantic Secrets.
Eles reforçavam o ideal representado pelo modo de vida americano, que
enaltecia a mulher perfeita, na forma da dona de casa eficiente, esposa e mãe
amorosa, um dos símbolos da riqueza e prosperidade da nação. Esses
romances criticavam e desestimulavam a promiscuidade, mostrando o quanto
ela era prejudicial para a mulher. Também criticavam o desejo feminino de
buscar realização profissional mostrando que a verdadeira felicidade estava no
casamento, pois uma mulher só poderia se sentir completa e segura com um
homem ao lado. A imperfeição feminina contrastava com a perfeição
masculina.
Esses romances também serviam como forma de mostrar às meninas as
consequências de se entregarem a paixões. Mostram a elas que ações
destemperadas, fugas com namorados e escolhas baseadas na emoção
podem levar à infelicidade. Toda e qualquer união deve ser fruto da razão e
não da emoção. As mulheres são seres emocionais e os homens racionais.
Uma reprodução de um pensamento preconceituoso, que afirmava a
234
235
ROMANTIC Secrets. Charlton Comics Group. V. 01, nº 20, 1959.
ROMANTIC Secrets. Charlton Comics Group. V. 01, nº 20, 1959, p. 02.
138
inferioridade feminina. Uma reação ao aumento da presença feminina no
mercado de trabalho.
Nos anos 50, embora as mulheres pudessem até ficar na cozinha,
também aumentava a sua presença nos escritórios - numa
progressão que logo superou até a participação delas no trabalho
durante a guerra. E foi justamente o contínuo afluxo das mulheres ao
mercado de trabalho, e não a volta ao lar, que provocou e insuflou o
furor antifeminista. Foi a realidade da mulher trabalhadora que
provocou a exacerbação das fantasias culturais acerca do seu papel
como dona-de-casa e parceira no sexo. Como as estudiosas de
literatura Sandra M. Gilbert e Susan Gubar observam acerca da
época pós-guerra, "quanto mais as mulheres eram pagas para usar o
cérebro, mais os homens as descreviam em romances, peças e
236
poemas como sendo apenas corpos".
Esses quadrinhos reforçavam a ideia de que as mulheres devem ser
submissas e não devem se deixar levar pelos impulsos. Reforçam a submissão
feminina, que se apresenta na forma da mãe e esposa devotada. As mulheres
são classificadas como aquelas que servem e aquelas que não servem para
casar. As solteiras são as que sempre sofrem com desilusões até encontrarem
a felicidade conjugal. Se são independes, sofrem por não conseguir um marido.
Se desejam ter uma carreira e não desejam se casar, são representadas como
solteironas amargas. O preço da independência é a solidão e a infelicidade.
Essa era a imagem que a mídia veiculava no final da década de 1940 e durante
os anos de 1950.
No do século XX a representação que a imprensa faz da mulher solteira
assume ares de mentalmente perturbada, retraída e depressiva. As mulheres
casadas, quando vítimas de traição, perdoam seus maridos, afinal, o
casamento é uma instituição sagrada. O backlash usa todos os meios de
comunicação para combater qualquer avanço, qualquer progresso das
mulheres na conquista de mais espaço na sociedade, de direitos. Os
quadrinhos de romance foram, também, utilizados para isso.
Se pensamos em Miss Fury como um longo folhetim de romance, e não
como uma surperaventura, veremos que Mills brinca com o “amor”. Marla é
romântica, se apaixona, aparece muitas vezes como uma mulher frágil e
atormentada pelos sentimentos, mas o casamento deixa de ser um opção para
ela. Até a maternidade é um ato de coragem. Ela prefere adotar uma criança e
236
FALUDI, 2001, p. 72.
139
ser mãe solteira. Ela é financeiramente independente, não precisa ser
sustentada nem se submeter a nenhum homem.
O romance presente nas aventuras da Miss Fury, até o seu
encerramento no final da década de 1952, embora possua algumas
características do amor romântico (é sempre bom lembrar que as revistas em
quadrinhos são um produto e que, como tal, têm que agradar ao consumidor),
enfatiza que a mulher solteira tem o seu valor, independente de ter um homem
ao seu lado. Ela não é amarga, ela não é mal amada e nem se sente inferior
aos homens. Isso não se deve apenas ao fato de que Miss Fury foi desenhada
e roteirizada por uma mulher. Os quadrinhos românticos também tiveram
participação feminina em sua produção, mas eles obedeciam a uma fórmula
pré-estipulada que funcionava como uma camisa de força. Em 1954, com o
código de ética dos quadrinhos, ficava mais difícil fugir das exigências do
mercado e da sociedade.
CONCLUSÃO
De uma sub-arte, banalizada pelos críticos, as histórias em quadrinhos
foram se transformando em um produto de seu próprio contexto histórico,
refletindo a necessidade e carências da sociedade ocidental e ocupando um
espaço cada vez maior no cotidiano de adultos, jovens e crianças. Elas são
elementos formativos da sociedade contemporânea. De um entretenimento,
uma diversão para a família, as histórias em quadrinhos tornaram-se uma
forma de linguagem quase universal, presente em todo o mundo, e
extrapolaram seus objetivos primários. Nelas encontramos representados
diversos papéis sociais, práticas e ideias de uma época, na forma de discursos
que são reproduzidos e reinventados através da interfase entre autor/produtor
e leitor/receptor.
Ainda são poucas as iniciativas neste sentido, não apenas no Brasil,
quanto em outros países. Os Estados Unidos estão construindo toda uma
historiografia que se apropria dos quadrinhos para desvendar e entender
melhor não apenas as mudanças nas relações sociais, mas também na política
e na economia. Segundo Eni Orlandi237 todo discurso possui uma ideologia. Os
quadrinhos, enquanto meios de comunicação, possuem um discurso, que nos
leva a entender melhor ideias, ações e representações que marcaram uma
época.
Ao analisarmos a trajetória das pioneiras nos quadrinhos como Rose
O’Neill, Toni Blum, Dale Messick, Jackie Ormes e Tarpé Mills e suas criações
estamos não apenas fazendo um estudo sobra a participação feminina nos
meios de comunicação em massa, mas, uma história das mulheres que
quebram o silencio da história a partir das suas personagens. Ao mesmo
tempo, o uso dos quadrinhos como fonte abre novos horizontes para a
pesquisa em história cultural.
Vimos que as representações do feminino nos quadrinhos obedeciam a
paradigmas, estereótipos que eram produzidos e reproduzidos por uma
sociedade machista, que temia a emancipação feminina. Nos estúdios,
independentemente do gênero, roteiristas e desenhistas tinham que se ater a
certos modelos, afinal, os quadrinhos eram uma indústria que devia atender a
237
Cf. ORLANDI, 2007.
141
uma demanda. Mas encontramos também a resistência daqueles que não
aceitavam a forma submissa e superficial com que as mulheres eram
representadas.
Da mesma forma, as personagens femininas criadas por Tarpé Mills vão
corresponder às representações de mulher que ela, em sua experiência,
identifica dentro dos ambientes sociais em que circula. A própria Mills se retrata
na sua personagem, Marla Drake, não apenas fisicamente. Mills insere
elementos de sua vida pessoal, como, por exemplo, seu próprio gato e o
desejo de conhecer a América do Sul. As aventuras da Miss Fury são quase
que autobiográficas, na medida em que reproduzem, em determinada escala,
os interesses de Mills.
O discurso presente nas aventuras da Miss Fury está recheado de
temáticas complexas, que envolvem o universo feminino e que normalmente
não estão presentes nos quadrinhos produzidos na época. Ao abordar temas
como a violência contra a mulher, ela faz desfilar várias representações de
mulheres: as que sofrem abuso e buscam ajuda, as que reagem à violência
masculina, as mulheres que se colocam contra a violência física e moral dos
homens. Mills mostra que não existe apenas uma representação do feminino,
nem nos quadrinhos, nem na sociedade.
A questão da maternidade também é outro tema que Mills discute em
seus quadrinhos. A vilã Erica vive a contradição de ter um filho mas sem
desejar ser mãe. Ora, Tarpé Mills não coloca em xeque a questão da
maternidade? Não seria um instinto natural da mulher amar e proteger seus
filhos? Erica entende o discurso mas não consegue dele tirar um sentido. Ela
não tem o chamado “instinto materno”. Como consequência, temos uma série
de maus tratos contra uma criança pequena.
Ainda no tema maternidade, temos Marla se afeiçoando pela criança que
Erica não deseja, mas que ela resolve adotar. Saltamos aí para outra questão.
Erica teve o filho como fruto de um casamento que, mesmo por interesse, é
válido e legal. Marla, ao adotar a criança, faz a opção por ser mãe solteira. Ela
forma uma família sem um homem mantenedor, sem um pai disciplinador.
Conscientemente ou não, os quadrinhos de Mills estavam carregados de um
discurso de resistência. Rompem com o modelo tradicional de família, o qual
ela mesma defendia ao início de sua jornada como Miss Fury.
142
Nos quadrinhos de Mills temos um equilíbrio entre demanda de mercado
e autoafirmação da capacidade feminina de assumir o controle de sua vida,
independente dos homens. Como todo romance, as aventuras de Miss Fury
possuem momentos onde os sentimentos se afloram. Como numa boa
superaventura, Miss Fury sabe aproveitar o suspense e suas proezas, que nem
sempre parecem “super”, dando ao leitor a sensação de que aquilo pode ser
possível, de que existem mulheres como Marla Drake.
Miss Fury, como super-heroína, não viaja por um universo de absurdos e
fantasias, mas transita por uma realidade que apresenta contradições, que
conduz o leitor a decifrar essas mesmas contradições a partir de uma realidade
real e palpável. Se os anos de 1920 e 1930 negaram às mulheres maior
participação na sociedade e valorização da sua capacidade de trabalho, os
anos de 1940 trouxeram para o palco principal as “Miss Furys” que estavam
escondidas atrás dos balcões de lojas, dos tanques de lavar roupa e dos
escritórios.
Essas mulheres desabrocharam durante a guerra, receberam honraria e
elogios. Foram as pilotos audaciosas, as engenheiras, marceneiras e
mecânicas. Foram aquelas mulheres arrancadas da fantasia criada pelos
homens de que só o casamento e a maternidade seriam a fonte da realização
feminina e de que mulher só encontraria felicidade se tivesse um homem ao
seu lado. Com o fim da guerra e o novo blacklash, por meio de propagandas,
por pesquisas pseudocientíficas ou por romances na forma de livros ou
quadrinhos, esse discurso conservador é novamente reforçado.
Muitas cartunistas vão optar pelo casamento e abandonar a carreira.
Outras se afastam do ambiente dos estúdios e se dedicam à ilustração ou
pintura, como vimos. Mas pioneiras como Tarpé Mills e Dale Messick ainda
continuaram produzindo. Em 1949, a Timely Comics (Marvel Comics) parou de
publicar as aventuras da Miss Fury em quadrinhos, mas ela ainda continuou a
sair na forma de tiras dominicais, até inícios de 1952, quando Mills parou,
então, de produzi-las. Ela não chegou a sofrer os efeitos do Comic Code
Authoritye e resistiu ao antifeminismo que caracterizou o final da década de
1940 e os anos de 1950.
Seu afastamento dos quadrinhos pode estar ligado aos seus problemas
de saúde, que a impossibilitaram em alguns momentos de cumprir os prazos
143
determinados pelo syndicate. É difícil precisar. A historiadora dos quadrinhos
Trina Robbins pesquisou a vida da cartunista mas encontrou vários hiatos. A
vida pessoal de Mills é um mistério, assim como as atividades que
desempenhou nos espaços de tempo em que esteve ausente da indústria dos
quadrinhos.
Mas sua paixão pelos quadrinhos não parece ter morrido. Embora tenha
feito breves incursões na década de 1970, ela mostrou que era capaz de criar
novos projetos, reaproveitar antigos personagens. As poucas páginas
concluídas da graphic novel, de Albino Jo, mostram uma Tarpé Mills com um
traço mais amadurecido e disposta a retornar ao mercado (mesmo que a
tentativa tenha sido fracassada) mais de duas décadas depois de ter encerrado
as tiras da Miss Fury.
June Tarpé Mills morreu em 1988, aos 76 anos, mas deixou sua marca
em suas personagens que têm sido redescobertas por meio da História e vêm
causando fascínio entre leitores, homens e mulheres.
ANEX0
Entrevista com Trina Robbins
A cartunista Trina Robbins é uma das mais renomadas artistas gráficas
em atividade nos Estados Unidos. Nascida em 1938, ela viveu sua infância e
juventude em plena “Era de Ouro dos Quadrinhos”. ´Na década de 1950 atuava
junto à “science fiction fandom”. Foi uma das primeiras mulheres a integrar e
influenciar o movimento dos quadrinhos underground. Com uma carreira com
mais de meio século, trabalhou em muitas editoras e suas ilustrações
chegaram a ser exibidas em uma galeria de arte, em 2011.
Ficou conhecida por sua participação em histórias de personagens
famosas como Vampirella (1969), publicada pela Warren Publishing, da qual foi
coautora. Trina desenhou sua roupa e deu a ela parte de suas características
físicas, como o cabelo, por exemplo. Outra personagem que passou por suas
mãos foi a Mulher Maravilha (1986). Dessa personagem destaca sua
participação como desenhista em The Legend of Wonder Woman, escrito por
Kurt Busiek, série que prestou homenagem às raízes da Era de Ouro do
personagem. No final de 1990, Robbins colaborou ainda com Colleen Doran na
graphic novel Wonder Woman: The Once and Future Story, sobre o tema da
violência conjugal.
Em sua trajetória profissional, Trina Robbins trafegou por todos os
ambientes artísticos, desde jornais feministas clandestinos nos anos de 1970
até editoras de renome, como a DC Comics e a Marvel Comics. A biografia
dessa autora é extensa e seu trabalho foi reconhecido com prêmios e menções
honrosas que preencheriam várias páginas.
Como cartunista e feminista, ajudou a promover a venda de quadrinhos
feitos por mulheres. Robbins foi uma co-fundadora da Friends of Lulu, uma
organização sem fins lucrativos, formada em 1994, para promover a leitura de
histórias em quadrinhos feitas por mulheres e a participação das mulheres na
indústria dos quadrinhos. Sua produção caracteriza-se pelo engajamento social
e político. Trina nunca teve receio de colocar em público suas opiniões.
Chegou a criticar abertamente o machismo e a misoginia de cartunistas
consagrados, como Robert Crumbe e Mike Deodato. Em 1993 lançou um livro
que pode ser considerado um clássico, A Century of Women Cartoonists.
145
Mas o que queremos aqui é destacar a importância da obra de nãoficção de Trina para a História das Mulheres nos quadrinhos. A cartunista tem
se dedicado há mais de três décadas a pesquisar a história das mulheres que
produziram quadrinhos nos Estados Unidos. Não é apenas um levantamento
biográfico, mas uma pesquisa ampla que envolve o resgate de produções da
“Era de Ouro” já há muito tempo esquecidas.
Como historiadora dos quadrinhos, Trina Robbins pode ser classificada
como uma pioneira na História das Mulheres nos Estados Unidos. Infelizmente,
o acesso à sua produção é limitado, uma vez que nenhuma de suas obras de
não-ficção foi ainda traduzida para o português.
Um de seus objetos de pesquisa foram os quadrinhos da Miss Fury,
produzidos por June Tarpé Mills. Sobre o trabalho das mulheres cartunistas
nos Estados Unidos e sobre os estudos que realizou com a personagem e sua
autora, Trina Robbins nos concedeu uma entrevista, via e-mail, no dia 07 de
setembro de 2014238.
******
N. N - Sra Robbins, como a senhora tornou-se uma cartunista? Como surgiu o
desejo de ser uma cartunista?
T.R - Minha mãe, que era professora do 2º ano primário/fundamental, ensinoume a ler com a idade de 4 anos e logo eu estava lendo tudo o que havia em
casa e na biblioteca, inclusive os gibis. Junto com a leitura veio a escrita. Na
verdade eu escrevi meu primeiro poema aos 3 anos, antes mesmo de saber ler
ou escrever. Eu sempre desenhei, então era natural que eu viesse a combinar
a contação de histórias com os desenhos, e isso é o que as revistas em
quadrinhos são. Lá pelos 11 anos eu pegava uma folha de papel ofício,
dobrava ao meio, e fazia 4 páginas, o que é perfeito para os quadrinhos.
N. N - Durante a sua carreira a Sra. encontrou algum tipo de obstáculo que um
homem não teria enfrentado na mesma profissão? Qual?
T.R - Ah! O maior obstáculo que eu enfrentei foram os homens que trabalham
com quadrinhos, tanto os profissionais mais convencionais quanto os
238
A entrevista foi traduzida na íntegra por Carlos Alexandre Moreira.
146
alternativos. Eu não era convidada aos seus grupos e também não me sentia
bem vinda. Tinha que fazer tudo sozinha, sem nenhuma ajuda, enquanto os
rapazes estavam se convidando para participar dos seus trabalhos e
oferecendo, uns aos outros, dicas em como desenhar e colorir.
N. N - Na sua carreira a Sra. Sempre apoiou outras cartunistas mulheres,
encorajando-as e colaborando na divulgação dos seus trabalhos. A Sra. acha
que hoje em dia as cartunistas mulheres, e seus trabalhos, têm maior
visibilidade que nos anos 1960 e 1970? Nos dias atuais ainda há obstáculos
para as mulheres na indústria dos quadrinhos? Quais são as perspectivas para
uma cartunista nos USA?
T.R - Atualmente as perspectivas para as cartunistas são mais favoráveis que
nunca! Devido ao sucesso dos quadrinhos (graphic novels), as mulheres
podem desenhar e escrevê-los. Há muito mais mulheres desenhando superheróis, e desenhando-os bem, que antigamente. Mais mulheres estão nessa
indústria e não há outra possibilidade senão ganharem mais e mais projeção.
N. N - A Sra. organizou uma exposição, em 2010, com Takemiya Keiko. O que
pode nos contar sobre essa experiência? O que a Sra. acha do trabalho das
cartunistas japonesas comparadas às norte-americanas?
T.R. Mesmo antes da exposição eu admirava shojou mangá: uma grande
quantidade de quadrinhos para garotas e muito bem desenhados e roteirizados
por mulheres! Nos USA os editores e distribuidores continuavam a insistir que
garotas não liam quadrinhos. Foi a entrada do shojou mangá nos USA que
provou aos editores e distribuidores que garotas LEEM quadrinhos e que
existem revistas em quadrinhos que as meninas querem ler e irão lê-los.
N. N - Em 1989 a Sra. tornou-se uma historiadora dos quadrinhos. Como
entrou nessa área? Quais os motivos para essa mudança?
T.R - Alguém tinha de fazê-lo! Se você ficasse só na história (dos quadrinhos)
escrita por homens (e elas eram todas escritas por homens), você nunca
saberia que as mulheres desenharam quadrinhos também. (Estes são os
mesmos caras que diziam que garotas não liam quadrinhos, e eu sabia que
isso era BOBAGEM!)
147
N. N - Quais são as maiores dificuldades que a Sra encontra quando pesquisa
a história das cartunistas mulheres e da presença feminina nos quadrinhos?
T.R- Foi mais difícil na minha primeira história, escrita em parceria com
Catherine Yronwode. Isso foi muito antes da internet e nós garimpamos no
escuro. Muito da nossa pesquisa apresentava erros porque as fontes
continham erros. A cada nova história eu pude corrigir a informação anterior
truncada e fazer novas descobertas excitantes (pelo menos para mim!).
N. N - Como surgiu a vontade de pesquisar e reunir o trabalho de June Tarpé
Mills?
T.R - Na década de 1970, em Nova Iorque, um cara me disse que eu deveria
dar uma olhada numa tirinha de 1940 chamada “Miss Fury” porque ele dizia ter
certeza de que gostaria muito. Eu nunca havia visto essa tirinha antes, mas do
momento em que a vi, amei-a! Eu gostaria de me lembrar do nome daquele
cara e agradecer-lhe. Bem, ela foi uma grande artista e escritora e contou
tantas excitantes, dramáticas aventuras de agradável leitura. Havia muitas
tirinhas de impressionantes aventuras nos jornais daquela época, mas as dela
eram as únicas onde o herói era uma mulher e, NATURALMENTE, criada
também por uma mulher.
N. N - Considerando outros personagens que surgiram no mesmo período, o
que a Sra. acha que é a característica mais marcante de “Miss Fury”?
Respondi isso acima. Foi a única tirinha de aventura criada por uma mulher e
protagonizada por outra. E a aventura provém do ponto de vista feminino.
N. N - Nos quadrinhos da “Miss Fury” existem personagens brasileiros. Mills
parecia atraída pelo Brasil, assim também como outros cartunistas dos anos
1940. A Sra. tem alguma teoria que pudesse explicar esse interesse?
T.R - Não é mesmo interessante? Mill estava obviamente fascinada pelo Brasil,
ainda que nunca tivesse estado lá, pelo que eu pude saber. Eu penso que ela
quisesse ir ao Brasil mas as viagens eram muito mais difíceis naquela época, e
muito mais caras. Eu sinto que o Brasil que ela imaginava era muito romântico
e muito diferente do verdadeiro Brasil!
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