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NATANIA APARECIDA DA SILVA NOGUEIRA AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NORTE-AMERICANAS: JUNE TARPÉ MILLS E SUA MISS FURY (1941 – 1952) NITERÓI – 2015 NATANIA APARECIDA DA SILVA NOGUEIRA AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NORTE-AMERICANAS: JUNE TARPÉ MILLS E SUA MISS FURY (1941 – 1952) Dissertação de mestrado apresentada ao curso de Pós Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira, UNIVERSO, Niterói, Rio de Janeiro, como requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Mary del Priore NITERÓI – 2015 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universo Campus Niterói N778r Nogueira, Natania Aparecida da Silva. As representações femininas nas Histórias em Quadrinhos norte-americanas: June Tarpé Mills e sua Miss Fury (1941-1952) / Antônio Paulo dos Santos Filho. - Niterói, 2015. 154p. : il Bibliografia: p. 148-154 Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre em História - Universidade Salgado de Oliveira, 2015. Orientador: Dsc. Mary Lucy Murray Del Priore. . 1. História contemporânea - Séc. XX. 2. História em quadrinhos - Estados Unidos - História e crítica. 3. Mulheres - Conduta - História em quadrinhos. 4. Representações sociais. 5. Mulheres - História. 6. Histórias em quadrinhos - Aspectos psicológicos. I. Título. II.Subtítulo: June Tarpé Mills e sua Miss Fury (1941-1952). CDD 909.82 Bibliotecária: Elizabeth Franco Martins CRB 7/4990 NATANIA APARECIDA DA SILVA NOGUEIRA AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NORTE-AMERICANAS: JUNE TARPÉ MILLS E SUA MISS FURY (1941 – 1952) Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação de História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira como parte dos requisitos para conclusão do curso. Aprovada em 08 de abril de 2015 Banca Examinadora: ______________________________________________________ Marly Vianna - Doutora em História Social pela- USP Examinadora – UNIVERSO ______________________________________________________ Waldomiro Vergueiro – Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP Examinador – USP/ECA ______________________________________________________ Mary del Priore – Doutora em História Social - USP Orientadora Dedico à minha família, especialmente à minha mãe Maria Natalina, a meu pai Afrânio e às minhas sobrinhas Bruna e Marcela. Dedico, também, aos meus amigos, que nunca deixaram de me incentivar e de confiar na minha capacidade. AGRADECIMENTOS A conclusão desta pesquisa não seria possível sem o apoio de muitos colegas, o que torna difícil a tarefa de agradecer, uma vez que se corre o risco de omitir, por negligência ou esquecimento, o nome de alguém que tenha contribuído mesmo que minimamente para sua consecução. Assim, antes de começar a agradecer, já peço sinceras desculpas no caso de uma possível falha neste sentido. Inicialmente, gostaria de dedicar meus agradecimentos a quem considero meu grande mentor, a pessoa que me fez investir nos quadrinhos como fonte de pesquisa, o professor Dr. Waldomiro Vergueiro. Não posso deixar de mencionar que eu não teria chegado a ele sem a indicação de João Paulo Lian Branco (Jotapê) que me indicou o grupo discussão sobre quadrinhos da USP, o que possibilitou meu primeiro contato com o professor Waldomiro Vergueiro. Estendo ainda meus agradecimentos a Trina Robbins, cujas pesquisas publicadas foram fundamentais para que eu desenvolvesse meu tema, que desde nosso primeiro contato mostrou-se totalmente disponível para tirar minhas dúvidas. Agradeço, também, aos colegas pesquisadores que sempre me incentivaram e que confiaram mais em mim do que eu mesma e que me deram várias oportunidades, seja com convites para publicações, seja me incluindo em projetos e em propostas de trabalho. São eles, Amaro Braga, Iuri Andreas Reblin, Valéria Fernandes da Silva, Geisa Fernandes, Sávio Queiroz, Márcio dos Santos Rodrigues e Gazy Andraus. Não posso esquecer os amigos que sempre acreditaram no meu trabalho, seja ele com quadrinhos, educação ou história, aqui representados pelas amigas Renata Arantes, Claudia Conte, Karla Leonora Dahse Nunes e pelos amigos Abdeljalil Akkari e Galba Ribeiro. Agradeço, também, a todos os colegas de trabalho, principalmente àqueles que se prontificaram a mudar seus horários de trabalho para que eu pudesse frequentar as aulas de mestrado e aos colegas de pós-graduação, que muito me apoiaram durante o curso. Um agradecimento especial para Rodrigo Fialho, que acreditou em mim e me incentivou a fazer a seleção. Sem ele eu não estaria aqui hoje, encerrando mais esta etapa da minha vida acadêmica e profissional. Agradeço, também, o apoio da minha família que, em alguns momentos, teve que fazer sacrifícios para que eu pudesse ter hoje a formação que tenho. Reservo um agradecimento, também especial, à Dona Juraci, que me acolheu em sua casa, em Niterói (RJ), fazendo-se merecedora de todo meu respeito e carinho. Agradeço aos amigos Glaucia Costa e Luiz de Melo Sobrinho, que sempre tiveram disposição e boa vontade para ler e revisar meus textos, e Alexandre Moreira, que me ajudou com muitas traduções. Reconheço aqui que, em alguns momentos, cheguei a abusar dessa boa vontade. Por fim, agradeço a atenção e dedicação da minha orientadora, Mary del Priore, que me incentivou a escrever e pesquisar desde o primeiro dia de aulas, e a todos os professores do curso de pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira pelo seu empenho e dedicação como docentes. RESUMO A presente pesquisa tem por objetivo identificar as muitas representações femininas presentes nos quadrinhos norte-americanos nas décadas de 1940 e 1950. Nosso objeto de pesquisa são os quadrinhos protagonizados por superheroínas, em especial os quadrinhos da Miss Fury, considerada a primeira super-heroína criada por uma mulher, a cartunista June Tarpé Mills. Por meio do estudo destes quadrinhos pretendemos identificar as mudanças ocorridas na sociedade norte-americana durante o período da Segunda Guerra Mundial, com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho em ocupações até então quase que exclusivamente masculinas. Ao mesmo tempo, desejamos identificar a participação feminina na indústria dos quadrinhos, especialmente nos gêneros aventura e superaventura. Para isso, vamos analisar a trajetória de June Tarpé Mills e, em escala menor, de outras cartunistas norte-americanas, consideradas, como ela, pioneiras, na produção de quadrinhos. Acreditamos que podemos identificar, também, a resistência de personagens, por meio de suas criadoras, em manterem intactas representações positivas do feminino numa sociedade que oscila entre o avanço e o retrocesso das relações de gênero e onde as mulheres ora são representadas como seres ativos e capazes, ora como elementos passivos e dependentes da tutela masculina. Finalmente, nossa proposta envolve a produção de uma história das mulheres nos quadrinhos como uma forma de não apenas tirar autoras e personagens do esquecimento mas, principalmente, trazer à luz um amplo universo feminino excluído da memória e, portanto, da história. Palavras-chave: Representação. Histórias em Quadrinhos, História das Mulheres, ABSTRACT The presented research has as goal to identify the many female representations on American Comic Books during the decades of 1940 and 1950. Our research object is the comics starred by super-heroines, specially the comics of Miss Fury, considered the first super-heroine created by a woman, the cartoonist June Tarpé Mills. In this study we try to identify the changes occurred in the American society during the II World War with the increase of the participation of women in the labor market in jobs until then almost exclusively occupied by men. At the same time, we want to identify the female participation in the comic book industries, specially, in the adventure and superadventure genre. In order to accomplish that, we analyze the trajectory of June Tarpé Mills and, in a minor scale, of other American cartoonist considered pioneers in the production of comics, like Mills. In our study we try to identify the resistance of characters in maintaining intact positive representations of women in a society that oscillates between advances and throwbacks regarding gender relations, in which women are whether represented as active and capable people, whether as passive and dependent on men guardianship. Finally, our proposal involves the production of a History of Women on Comics as a way not just to extract those women and those characters from ostracism, but mainly to bring up to light a wide female universe excluded from memory and, thus, from history. Keywords: Comic Books. Women History. Representation LISTA DE FIGURAS Figura 01 - Retrato de Rose O'Neill 19 Figura 02 - The Kewpie Korner Kewpiegram, 1918 22 Figura 03 - Foto de Dale Messick, 1955 23 Figura 04 - Capa da revista Brenda Staar, n. 13 25 Figura 05 - Candy 34 Figura 06 - Patty-Jo ‘n’ Ginger 34 Figura 07 - Touchy Brown Heartbeats 36 Figura 08 - Sheena 42 Figura 09 - Sheena 42 Figura 10 – Fantomah 46 Figura 11 – Fantomah 47 Figura 12 - Fantomah "Daughter of the Pharaohs” 49 Figura 13 - June Tarpé Mills 52 Figura 14 - Marla Drake 52 Figura 15 - Zelda Jackson Ormes 53 Figura 16 - Touchy Brown 53 Figura 17 – Miss Cairo Jones 55 Figura 18 – Marla Blake colocando o uniforme de Miss Fury 60 Figura 19 – A baronesa Erica vom Kampf 60 Figura 20 - Marla e Erica se enfrentam pela primeira vez 61 Figura 21 – Capa da Kaänga Comics 62 Figura 22 – Capa da Jungle Stories 62 Figura 23 - Tensão do reencontro de Marla e Gary 64 Figura 24 - Série Diana Deane in Hollywod, um dos primeiros 66 trabalhos de Mills, gênero tarzanide, publicado em 1938 na Funny Pages #1 Figura 25 - Série Fantastic Feature Films, produzida por Tarpé Mills e 66 publicada em Target Comics, 1940. Figura 26 - Série Mann of India, de Tarpé Mills, publicada na Reg’lar Fellers Heroic Comics, em 1940 67 Figura 27 - Série de ficção científica e aventura de Mills, Purple 67 Zombie, publicada na Reg’lar Fellers Heroic Comics, em 1940 Figura 28 - Origem da Miss Fury 70 Figura 29 - Marla tem seu primeiro combate como Miss Fury. 71 Figura 30 - Dary Hale casa-se com Erica 74 Figura 31 – Baronesa Erica von Kampf 78 Figura 32 - Baronesa Érica Von Kampf, agredida pelo General Bruno 79 Figura 33 - Erica tem uma suástica marcada em sua testa a “ferro 81 quente” pelos irmãos Manero Figura 34 – Reencontro da Baronesa com o filho. 83 Figura 35 - Monsieur Charles 84 Figura 36 - "And then in my spare time...". Cartum publicado em 1943 88 faz uma crítica às mulheres que trabalhavam nas fábricas, no esforço de guerra. Figura 37 - Women serving in World War II 89 Figura 38 - Pat Parker, War Nurse 93 Figura 39 - Girl Commados 94 Figura 40 - Miss Victory 97 Figura 41 - Miss Victory 99 Figura 42 - Página que contém dois projetos de ilustrações da primeira 101 Mulher Maravilha Figura 43 - Miss America usando seu uniforme patriótico 103 Figura 44 - Miss América. Uniforme vermelho com capa azul. Escudo 103 faz referência aos Estados Unidos Figura 45 – Capa de Miss Fury # 02 105 Figura 46 – Capa de Miss Fury # 03 105 Figura 47 – Capa de Miss Fury # 04 105 Figura 48 – Capa de Miss Fury # 05 105 Figura 49 – Era confronta Pepe Manero 107 Figura 50 - Albino Jo se apresenta a Miss Fury 109 Figura 51 - Millie the Model 118 Figura 52 – Patsy Walker 119 Figura 53 - Foto mais famosa de Ruth Atkinson, tirada durante o 120 período em que foi diretora da Fiction House Figura 54 – Paper doll de Patsy Walker 123 Figura 55 – Paper doll da de Marla Blake 124 Figura 56 - Paper doll da Baronesa von Kampf 124 Figura 57 –Paper doll de Millie 124 Figura 58 – Paper doll de Hesy. Patsy and Herdy. 124 Figura 59 – Imagem usada como propaganda contra a leitura dos 132 quadrinhos. Figura 60 - Romantic Secrets 137 Figura 61 - Romantic Secrets 137 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 01 CAPÍTULO 1 - HISTÓRIA DAS MULHERES, HISTÓRIA DOS 12 QUADRINHOS 1.1 - As mulheres também fazem quadrinhos nos Estados Unidos? 12 1.2 - Rose O'Neill: a primeira cartunista norte-americana 18 1.3 - Dale Messick: Brenda Starr, mulher e aventureira 22 1.4 - Jacquie Ormes: a primeira mulher negra a publicar quadrinhos nos 31 Estados Unidos CAPÍTULO 2 - SUPER MULHERES & SUPER-HOMENS: O 39 NASCIMENTO DAS SUPER-HEROÍNAS NA DÉCADA DE 1940 2.1 – Sheena, a rainha das selvas: a primeira heroína a ter sua própria 39 revista 2.2 - Os super-heróis invadem os quadrinhos 43 2.2.1 – Super mulher ou super-heroína? 45 2.3 – June Turpé Mills: a primeira mulher cartunista a criar uma super- 50 heroína CAPÍTULO 3 - AS MULHERES E A SENSUALIDADE NO UNIVERSO 58 DE MISS FURY 3.1 – Heroínas super femininas 58 3.2 – Marla Drake: uma heroína relutante 68 3.3 – Baronesa Erica Von Kampf, a espiã 75 CAPÍTULO 4 - AS MULHERES VÃO À GUERRA! 86 4.1 – As norte-americanas e a Segunda Guerra Mundial 86 4.2 – Heroínas e super-heroínas defendem a liberdade 90 4.2.1 – As “Victory Girls”: Super-Heroínas patrióticas 95 4.2.2 – Miss Fury e os Nazistas 103 4.2.3 – As diversas representações das mulheres nos quadrinhos 111 da década de 1940 CAPÍTULO 5 - OS COMICS, O PÓS-GUERRA E O RETROCESSO 114 5.1 – O mercado editorial norte-americano e a juventude 114 5.1.1 – Cativando o público leitor feminino: heroínas para todas 116 as idades 5.1.2 – As garotas amam paper dolls 5.2 – As Mulheres e a (super)aventura do pós-guerra 5.2.1 - A perseguição aos quadrinhos 121 126 130 5.2.2 - Novas tendências nos quadrinhos, velhas barreiras para 134 as mulheres CONCLUSÃO 140 ANEXO 144 Entrevista com Trina Robbins REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 148 INTRODUÇÃO Definir o que são Histórias em Quadrinhos é uma tarefa que tem ocupado as mentes de estudiosos e profissionais da área por décadas. Will Eisner as considera uma forma de arte sequencial, ou seja, uma forma de narrativa que utiliza imagens em sequência. Segundo Eisner, a Arte Sequencial é “um veículo de expressão criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística e literária que lida com a disposição de imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia”.1 Mas arte sequencial é um termo abrangente, que envolve todas as formas de narrativa sequencial por meio de imagens como, por exemplo, o cinema e a animação. Scott McCloud irá, a partir do termo arte sequencial, definir os quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. 2 As histórias em quadrinhos são uma forma de narrativa que pode usar imagem e texto3 e onde o leitor precisa interagir com as informações a ele apresentadas para decifrar o significado da narrativa. Além disso, elas são um produto da era industrial e do avanço dos meios de comunicação. Como produto cultural, elas representam um registro específico de um dado contexto. Os quadrinhos se inserem no âmbito da História Cultural como objeto e fonte de pesquisa. A História Cultural é aqui entendida como sendo um campo da historiografia voltado para o estudo, usando as palavras de José D’ Assunção de Barros, “da dimensão cultural de uma determinada sociedade historicamente localizada”. 4 Nesse sentido, as histórias em quadrinhos oferecem ao pesquisador a possibilidade de identificar, analisar e compreender as representações, os discursos e ideologias presentes em um dado contexto histórico. Utilizaremos para isso o conceito tirado do Roger Chartier5, segundo o qual é possível compreender o funcionamento de uma sociedade ou mesmo 1 EISNER, Will. Quadrinhos e Arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 05. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 09. 3 O texto nem sempre é necessário, pois as Histórias em Quadrinhos podem ser construídas tão apenas por meio de uma disposição de imagens em sequência deliberada, daí a denominação Arte Sequencial, dada por Will Eisner. 4 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidade e abordagens. 5. Ed. – Petrópolis: Vozes, 2008, p. 56. 5 . CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. 2ª ed. Lisboa: Difel, 1988. 2 2 definir as operações intelectuais que nos permitem a apreensão do mundo6. Esse mundo como representação é moldado a partir de uma série de discursos que o apreendem e o estruturam.7 A partir do conceito de representação, de Roger Chartier, pretendemos analisar gestos e comportamentos, individuais e coletivos, não somente como reflexos exatos ou não da realidade, mas “entidades que vão construindo as próprias divisões do mundo social”8 Esses quadrinhos possuem um discurso e são, portanto, formadores de mentes, de opinião. O leitor interage e reproduz ideias e valores. A leitura é um processo construtivo, dinâmico. As obras de ficção têm, também, um papel a desempenhar nesse processo. Ainda citando Chartier: As obras de ficção, aos menos algumas delas, e a memória, seja ela coletiva ou individual, também conferem uma presença ao passado, às vezes ou amiúde mais poderosa do que a que estabelecem os 9 livros de história. Tal como o livro, os quadrinhos são também um produto da cultura material, entendida aqui como aquilo que o homem produz em sua vida social, gerada e organizada materialmente. Os quadrinhos, também, vêm ganhando espaço na cultura digital (definir), tornando-se cada vez mais parte de uma cultura global, circulando por diferentes meios. Eles são, portanto, produtos culturais humanos que foram integrados à sociedade e acabaram por desenvolver um papel específico dentro dela, variando de acordo com o contexto. Seus autores incorporam o papel de produtores culturais, e o leitor, por sua vez, no ato da leitura, torna-se consumidor de cultura. A leitura dos quadrinhos é, portanto, uma prática cultural, que se estabelece a partir da transmissão (narrativa) e da recepção (leitura). A leitura ultrapassa o limite das próprias palavras. Ainda citando Chartier: A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. (...) Toda História supõe em seu princípio, esta liberdade do leitor que se desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas essa liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada de limitações derivadas das capacidades, convenções, hábitos que caracterizam em suas diferentes práticas e lugares. Os gestos mudam segundo os 6 CHARTIER, 1988, p. 17. Ibidem, p. 23-24. 8 CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo – 2ª ed – Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 07 9 Ibidem, 2010, p. 07. 7 3 tempos e os lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventas, outras se extinguem 10. Os quadrinhos não fogem ao propósito da leitura e não podem, também ser analisados sem que se levem em consideração as motivações para sua criação e toda a carga social que envolve o ato de ler. Não se pode fazer uma história dos quadrinhos sem que se faça uma história da leitura. Pesquisar a história nos quadrinhos é, também, um exercício de memória. É não apenas o ato de lembrar, como de identificar aquilo que foi esquecido, uma vez que o próprio esquecimento é parte constitutiva da narrativa histórica. Entendemos a memória como matriz da história e, também, como um canal de reapropriação do passado histórico através dos relatos. Nas palavras de Paul Ricoeur “... não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu ou se passou antes que declarássemos nos lembrar dela”11. Temos como testemunho desse passado toda uma produção material, os quadrinhos, assim como o relato de quem a eles dedica sua vida. Visões de mundo de pessoas diferentes, sexos diferentes, que, por meio da narrativa, escrita ou iconográfica, nos deixaram seu testemunho. O resgate da memória por meio dos quadrinhos surge como uma forma de se colocarem novos olhares sobre o passado, sobre atores históricos cujas realizações ficaram obscurecidas ou foram propositadamente ignoradas por gerações futuras. Segundo Eisner12 uma imagem é uma “memória ou experiência gravada pelo narrador”. Na condição de memória, os quadrinhos tornam-se uma fonte de informações que podem ser utilizadas de formas variadas pelo historiador. Ao mesmo tempo, eles são um produto cultural, um objeto de estudo que deve ser analisado a partir de critérios pré-estabelecidos, que levem em consideração os objetivos do leitor/pesquisador. O historiador dos quadrinhos é um agente da memória e da História, na medida em que as HQs não podem ser estudadas como dissociadas do contexto em que foram produzidas nem de quem as produziu. Assim, muito mais do que falar de personagens, devemos voltar nossos olhares para as 10 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: convenções com Jean Lebrum. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Editora UNESP, 1998, p. 77. 11 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: UNICAMP, 2007, p. 40. 12 EISNER, Will. Narrativas Gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. 2ª Ed. – São Paulo: Devir, 2008, p. 19. 4 mentes criativas que lhes deram vida e forma. Nesse sentido, acabamos por mergulhar, também, num universo biográfico. Trajetórias de vida, valores, ideias e traços da própria personalidade do autor (a) são elementos fundamentais para se entender aquilo que ele deseja representar na sua obra. No caso dos quadrinhos, temos uma leitura complexa que se faz não apenas a partir do texto escrito, mas, também, por meio do texto iconográfico. A imagem complementa a narrativa sendo, para o leitor dos quadrinhos, fundamental associar texto e imagem (quando há texto). Os quadrinhos, como fonte de pesquisa histórica, devem ser compreendidos tanto do ponto de vista do produtor quanto do receptor. É preciso que se estabeleçam critérios para sua leitura, levando sempre em conta o contexto em que foram produzidos, o público para que se destina e a mensagem que inicialmente se pretende passar. O historiador dos quadrinhos, mais do que qualquer outro, deve sempre estar atento às armadilhas que a fonte lhe oferece e buscar a melhor forma de interagir com seu objeto. O importante no estudo de imagens como fontes históricas é buscar metodologias próprias com a atenção de que existe uma diferença clara entre o discurso visual e o discurso escrito. Deve-se evitar, naturalmente, aquela tentação ou até mesmo inocência de se utilizar a fonte iconográfica como mera ilustração que confirma o que o historiador já percebeu através do discurso escrito de outra fonte que está sendo trabalhada paralelamente. A imagem visual, é o que queremos ressaltar, tem ela mesma algo a ser dito. É preciso fazê-la falar com as perguntas certas, ou, para utilizar a metáfora de Vovelle, 13 “arrancar da imagem certas confissões involuntárias.” No Brasil as Histórias em Quadrinhos têm despertado interesse de pesquisadores e estudiosos há muitas décadas. Nos anos de 1960, o professor Francisco de Araújo criou na Universidade de Brasília a primeira disciplina de graduação do país sobre a linguagem dos quadrinhos. Durante a década de 1970, a Universidade de São Paulo se tornou um polo de referência de estudos sobre quadrinhos, tendo como centro de referência a Escola de Comunicações e Artes14. As décadas de 1980 e 1990 viram crescer o número de pesquisas, principalmente nas áreas de comunicação e artes. Atualmente, são realizados 13 BARROS, 2004, p. 106. FLEXA, Rodrigo Nathaniel Arco e. Super-Heróis da Ebal: A publicação nacional dos personagens dos ‘comic books’ dos EUA pela Editora Brasil-América (EBAL), décadas de 1960 e 70. Dissertação apresentada à Área de Concentração Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Ciências da Comunicação, São Paulo, 2006, p. 30. 14 5 encontros acadêmicos em várias partes do país e vêm surgindo, também, núcleos de pesquisa envolvendo profissionais das mais variadas áreas. 15 Os estudos acadêmicos sobre os quadrinhos têm se multiplicado nos últimos anos em várias áreas. Nas pesquisas em história vêm surgindo grupos de historiadores cada vez mais especializados. De fato, o crescimento das pesquisas sobre quadrinhos na área da história tende a superar áreas onde, até então, esses estudos se concentravam, como nos campos da comunicação, da arte e da educação. Como fonte de pesquisa, os quadrinhos oferecerem e constroem representações e contextualizações que podem ajudar a entender tanto as relações sociais, políticas e raciais, quanto suas próprias transformações no tempo e no espaço. Tabus, preconceitos e formas de pensamento podem ser encontrados nos quadrinhos produzidos durante todo o século XX. Os historiadores estão descobrindo as histórias em quadrinhos e, com elas, novas formas de aplicação das teorias históricas. Os quadrinhos podem ser instrumentos axiológicos e políticos. Eles alternaram visões de mundo que, em muitos momentos, eram conflitantes. Nos comics norte-americanos, podemos identificar as mudanças pelas quais passaram as relações humanas e políticas em determinados períodos. Partindo desse pressuposto, é possível afirmar que as histórias em quadrinhos são documentos importantes para se entenderem as ideias e os valores dominantes de uma época. Nos quadrinhos, estão as representações do real ou daquilo em que se deseja transformar a realidade. Citando Douglas Kellner e sua teoria da Pedagogia Crítica Dialética, (...) a cultura contemporânea da mídia cria formas de dominação ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo tempo em que fornece instrumental para a construção de identidades e fortalecimento, resistência e luta. Afirmamos que a cultura da mídia é um terreno de disputa no qual grupos sociais importantes e ideologias políticas rivais lutam pelo domínio, e que os 15 As Jornadas Internacionais de Quadrinhos, realizadas em 2011 e 2013, na USP; A Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial que vem promovendo encontros anuais, envolvendo pesquisadores de todas as aéreas; núcleos de pesquisa como o Observatório de Histórias em Quadrinhos – ECA/USP., o NuPeQ - Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos (MS) , e Núcleo de Vivências e Experimentações em HQ no Laboratório Experimental de Arte-Educação & Cultura, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) citando apenas alguns, promovem iniciativas e vem estimulando o estudo dos quadrinhos. 6 indivíduos vivenciam essas lutas através de imagens, discursos, mitos e espetáculos veiculados pela mídia.16 Ao adentrar neste mundo de ficção, o leitor (a) acaba por assimilar ideias nele contidas, valores que são reforçados pelo autor (a) e, sem perceber, acaba formando opiniões muitas vezes aproximadas sobre temas cotidianos, política e mesmo economia. Quadrinhos, como qualquer outra mídia, são formadores de opinião. Por conter aspectos inerentes à época e contexto em que foram produzidos, eles acabam se tornando, também, objetos de pesquisa. Os quadrinhos se tornaram muito mais do que simples transmissores de informação, passaram a fazer parte da formação social de jovens e adultos, tornaram-se instrumentos políticos e ideológicos. Os quadrinhos saíram dos jornais e passaram a ocupar, também, espaços nas revistas. Revistas em quadrinhos são um subproduto de um movimento que transformou arte e comunicação em importantes artefatos culturais que podem ser dirigidos a indivíduos de todas as faixas etárias, de todos os sexos, credos e etnias. Na condição de um trabalho de pesquisa acadêmica que se propõe a utilizar os quadrinhos como fonte para analisar as representações do feminino veiculadas nos anos de 1940 e 1950 nos Estados Unidos, esta dissertação busca revisitar debates já iniciados e abrir caminho para novas possibilidades de diálogo entre a história e a cultura jornalística. O estudo das representações femininas nos quadrinhos permite uma aproximação com as relações de gênero, que se desenvolviam nos Estados Unidos dentro do recorte estudado, mas também ajuda a entender a extensão dos meios de comunicação e sua influência na sociedade. As relações de gênero são entendidas aqui como as relações entre homens e mulheres a partir das representações criadas pela sociedade sobre o que é um homem e o que é uma mulher, sobre as relações entre mulheres e as relações entre homens; os valores e as oposições entre feminino e masculino, que envolvem hierarquias, relações de poder e de resistência. É necessário pensar o conceito de gênero nas relações sociais e institucionais sejam elas fenômeno do universo real ou fictício. O gênero se expressa, também, nas páginas das histórias em quadrinhos, da mesma forma como se fazem presentes nas práticas sociais cotidianas. Assim, quando 16 KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 10. 7 analisamos a presença feminina e as relações de gênero presentes nas histórias em quadrinhos, com foco em determinado personagem e contexto, estamos, na verdade, buscando identificar os mecanismos de dominação de uma determinada configuração.17 É também uma forma de se estudar a história das mulheres, tanto aquelas que participam do mercado, que produzem quadrinhos, quanto das personagens que povoaram estes inúmeros universos ficcionais. Voltamos ao tema memória partindo do esquecimento. Personagens e autoras, esquecidas pela história e pelos quadrinhos, podem nos oferecer relatos e informações importantes para se entender a forma como se estruturavam as relações sociais no período a ser estudado. Os quadrinhos exteriorizam dramas e aspirações, são fortemente influenciados por ideologias e possuem um discurso que produz significados. Eles são parte de toda uma configuração cultural que, de momentos em momentos, vai se modificando e se adaptando às necessidades da sociedade e do mercado. Essas obras de ficção, tal como a memória, também conferem uma presença ao passado, em alguns momentos mais poderosa do que os próprios livros de história.18 Ao analisar as representações sociais e culturais femininas nos quadrinhos de June Tarpé Mills, estamos, também, promovendo uma análise histórica acerca de uma cultura e sociedade em mudança, transformação. Homens e mulheres, não apenas norte-americanos, mas de outras partes do continente e do mundo, passaram por momentos de mudanças semelhantes, se em menor ou maior grau, não nos cabe aqui determinar. Nosso objeto nos permite dialogar com todo um universo ficcional e comercial que marcou a primeira metade do século XX e cuja influência cultural extrapolou as fronteiras norte-americanas. Mills é considerada a primeira mulher a criar uma personagem com superpoderes 19 , ou seja, uma superheroína, a Miss Fury. Entender a importância do que isso significou nos anos 17 SAMARA, Eni de Mesquita (org). Gênero em debate: trajetória e perspectivas da historiografia contemporânea. São Paulo: EDUC, 1997. 18 CHARTIER, 2010. 19 Quando se trabalha com quadrinhos é muito difícil categorizar como pioneiro determinado autor ou autora, o mesmo podemos dizer acerca dos personagens. No entanto, no caso de Mills, e de outras cartunistas aqui citadas ao longo da pesquisa, estamos nos arriscando, com base nos estudos sobre a personagem e sua autora, realizados por pesquisadores como Mike Madrid e Trina Robbins. 8 de 1940 significa entender como as mulheres estavam inseridas na indústria dos quadrinhos e, ainda, entender como o contexto histórico contribui tanto para suas conquistas quanto para o surgimento de obstáculos não apenas ao talento feminino mas às mulheres em sua totalidade. Já a personagem Miss Fury nos conduz por um universo onde as mulheres são as protagonistas e são representadas de formas diversas. São quadrinhos de aventura feitos por uma mulher e que carregam uma gama enorme de significados, apontando para realidades muito diferentes daquelas que a grande mídia procurou, por muito tempo, nos impor. Miss Fury nos guia, também, para um universo feminino bem mais amplo, influenciado e incentivado pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, onde outras mulheres, reais ou de papel, protagonizaram seus próprios dramas. Esses quadrinhos são, portanto, uma forma de se estudar a cultura material, arte e produção literária de um dado momento, numa determinada sociedade, a partir da visão de mundo de roteiristas e desenhistas, pessoas reais influenciadas diretamente pelo contexto em que viveram. É um exercício de memória, na medida que recupera uma parte da ação das mulheres na história e coloca em xeque alguns estereótipos que são regularmente reproduzidos, seja na academia, seja nos próprios meios de comunicação, como jornais, revistas e, claro, revistas em quadrinhos. No primeiro capítulo, introdutório ao tema, vamos destacar a presença feminina na indústria dos quadrinhos nas primeiras décadas do século XX e sua inserção nesse campo de trabalho. Apresentaremos algumas das pioneiras dos quadrinhos, com destaque para Rose O’Neill, Dale Messick e Jackie Ormes. Essas três autoras representam muitas outras, a maioria delas esquecida pela História das Histórias em Quadrinhos. Ao longo do primeiro capítulo iremos perceber que as mulheres nos quadrinhos constituíram um número significativo de profissionais, que conquistaram seu lugar dentro de um mercado competitivo e que devem também ser lembradas pela forma como uma parte da sua produção se inseriu dentro do contexto das lutas feministas da época. No segundo capítulo, partimos para a análise dos gêneros aventura e superaventura, o surgimento dos primeiros super-heróis dos quadrinhos, ainda na década de 1930, e das primeiras heroínas e super-heroínas, necessário 9 para que nos possamos adentrar no universo dos quadrinhos dos anos de 1940 e seu impacto social. Não é demais esclarecer que o período que vai de meados da década de 1930 e toda a década de 1940 faz parte da chamada Era de Ouro dos Quadrinhos, onde os gêneros aventura e superaventura possuem uma importância fundamental. Nesse capítulo apresentaremos a cartunista June Tarpé Mills, levantando parte da sua biografia e os obstáculos que enfrentou enquanto profissional dos quadrinhos. No terceiro capítulo iremos nos adentrar no universo da Miss Fury, analisando as formas como o feminino é representado nos quadrinhos norteamericanos e o tratamento que Tarpé Milss oferece às suas personagens, destacando duas, a Miss Fury e sua nêmesis, a Baronesa Erica Von Kampf. Conhecer a trajetória dessas duas personagens nos permite entender os tipos de representações femininas que Mills insere em sua obra. Além disso, é necessário contar a história da Miss Fury para que a análise de seu conteúdo alcance o objetivo desejado. Trata-se não apenas do estudo da obra de Mills e de suas personagens, mas da forma como suas personalidades foram moldadas e do diálogo que se faz entre quadrinhos e sociedade. No quarto capítulo iremos nos ater a um tema que está presente em quase toda a narrativa desse período e que influenciou a criação e releitura de muitos personagens dos quadrinhos na década de 1940: a Segunda Guerra Mundial. A maior inserção das mulheres no mercado de trabalho e a criação de personagens classificadas como patrióticas serão temas abordados. Nesse capítulo iremos analisar a temática do nazismo nos quadrinhos da Miss Fury e voltaremos a falar das representações femininas nos quadrinhos nesse período, tendo em vista o esforço concentrado de guerra presente em vários países. O quinto capítulo encerra nossa pesquisa analisando o mercado editorial norte-americano, suas tendências e as dificuldades encontradas pelas mulheres para nele se manterem, principalmente no período pós-guerra, o backlash, o retrocesso nos direitos femininos, resultante do retorno dos homens da guerra, a perseguição aos quadrinhos, a emergência de novos gêneros e as mudanças impostas pela sociedade às personagens femininas, principalmente nos quadrinhos de aventura e superaventura. 10 De uma forma geral, a grande referência para a elaboração desta pesquisa foram os escritos da cartunista e historiadora das mulheres nos quadrinhos, Trina Robbins, que possui uma vasta obra dedicada ao estudo da participação feminina na indústria dos quadrinhos, nos Estados Unidos. Entre os anos de 2011 e 2013, essa autora lançou duas grandes coletâneas, com tiras da Miss Fury produzidas por June Tarpé Mills e publicadas e distribuídas em jornais norte-americanos, entre os anos de 1941 e 1949. Esse material, somado à leitura e análise de seis das oito revistas publicadas Timely Comics, entre os anos 1942-1946, foi a nossa principal fonte de pesquisa. Somados a esses quadrinhos, outros títulos lançados durante o período, com gêneros que vão da aventura ao romance, também foram analisados, em virtude da necessidade de se entender a lógica do mercado daquela época e, também, para estabelecer parâmetros de comparação. Foram analisadas 157 revistas em quadrinhos, das quais foram efetivamente utilizadas na pesquisa 30 revistas em quadrinhos, publicadas entre os anos de 1938 e 1955, além das 351 páginas de quadrinhos coletadas por Trina Robbins. É relevante destacar que só foi possível pesquisar esse material graças à existência de museus e arquivos virtuais nos Estados Unidos, como o Comic Book Plus e ao Internet Archive, que permitem acesso direto ao material digitalizado. Por fim, cabe aqui justificar a escolha de uma autora norte-americana e a análise de um contexto externo. Primeiramente temos a questão do pioneirismo. Os Estados Unidos foram os pioneiros nos gêneros aventura e superaventura, surgidos na década de 1930. Mills, por sua vez, foi uma pioneira entre as mulheres e homens da sua época tanto por criar uma personagem tão complexa como Miss Fury quanto por assumir integralmente sua produção, No Brasil, pelo menos no recorte estudado, não possuíamos uma produção significativa de quadrinhos nem foram encontrados registros sobre a participação feminina relacionados a essa indústria. Tivemos, claro, nossas pioneiras nas artes gráficas, como Nair de Teffé e Hilde Weber, por exemplo, mas sua produção se resumia à caricatura e à charge, Por outro lado, o material produzido nos Estados Unidos foi amplamente distribuído na América do Sul. No Brasil, quadrinhos de aventura, superaventura, crime e terror eram consumidos avidamente, assim como se consumia o discurso e as representações neles contidos. Aliás, representações 11 do Brasil e do povo brasileiro estão dispostas nos quadrinhos da Miss Fury. A América Latina era, e ainda é, foco da política externa norte-americana e considerada região estratégica para o combate ao avanço nazista. Assim, se estamos aqui propondo um estudo das representações femininas nos quadrinhos da Miss Fury, estamos indiretamente estudando as formas como o Brasil e mesmo as mulheres brasileiras estão representados nos comics da década de 1940. Além disso, dado o intercâmbio cultural intenso entre os Estados Unidos e o Brasil, fruto da política de boa vizinhança, é possível verificar que modelos de comportamento feminino e masculino foram aqui reproduzidos. CAPÍTULO 1 - HISTÓRIA DAS MULHERES, HISTÓRIA DOS QUADRINHOS 1.1 - As mulheres também fazem quadrinhos nos Estados Unidos? Sim, mulheres fazem quadrinhos, e o fazem muito bem. Elas também estão presentes na história dos quadrinhos, embora sua atuação seja ainda hoje invisibilizada pelo olhar masculino. A História das Mulheres nos quadrinhos também precisa ser construída a partir da pesquisa em fontes, tanto na sua produção quanto na trajetória das primeiras cartunistas. Nos Estados Unidos existem grupos de pesquisadores (as) dedicados a recuperar a obra e memória de quadrinistas, esses sujeitos históricos que se escondem muitas vezes por detrás de seus personagens. Se levarmos em conta os quadrinhos, como produto cultural e de cunho popular, que já estão há mais de um século entre nós, é razoável imaginar que o número de quadrinistas, cartunistas, chargistas e caricaturistas que já desfilaram pelos jornais e revistas publicados nos estados Unidos nos últimos 100 anos é excepcionalmente expressivo. Proceder a um levantamento minucioso acerca dessa produção material e intelectual é uma tarefa que demanda muito esforço, pesquisa e persistência. Mas, no caso das mulheres cartunistas, esse trabalho é ainda mais delicado. A identidade das mulheres nos quadrinhos algumas vezes se esconde por trás de pseudônimos masculinos e na própria condição de anonimato, muitas vezes imposta pela sociedade às mulheres. Assim, um dos objetivos, e creio que o mais nobre, da presente pesquisa é de iniciar um debate acerca da presença feminina nos quadrinhos, começando com as pioneiras, as mulheres de carne e osso, que produziram personagens marcantes e se tornaram símbolos do talento, mas geralmente deparavam-se com as barreiras erguidas pelo preconceito. Em 2001, Trina Robbins publicou uma obra que se tornaria uma referência para a História das Mulheres nos quadrinhos. Trata-se de The Great Women Cartoonists. No livro, a pesquisadora apresenta ao público leitor dezenas de mulheres que se destacaram na produção dos quadrinhos, do final do século XIX até a década de 1990. Das pioneiras até autoras contemporâneas. A obra nos mostra como é vasto o universo das mulheres 13 nos quadrinhos, a começar pelas autoras, a grande maioria delas hoje esquecida. Na década de 1920, Harry Wildenberg e Max Gaines, dois pioneiros na produção de histórias em quadrinhos em forma de revista, investiram na popularização dos quadrinhos - cujas edições continham propagandas que estimulavam a venda de produtos de consumo- e acabaram chegando ao formato adequado para a época: folhas de jornal tamanho padrão, dobradas ao meio, considerado compacto e conveniente para uma revista em quadrinhos. Centenas de milhares de revistas em quadrinhos eram distribuídas 20 gratuitamente, numa arrojada estratégia de marketing. Em meados da década de 1930, as revistas em quadrinhos chegaram às bancas, agora para serem vendidas. Em 1934, a Eastern Color Printing Company publicou a revista Famous Funnies e vendeu 200 mil exemplares. Foi, então, imitada por outras empresas. Se, inicialmente, os quadrinhos foram usados como uma estratégia para atrair o consumidor, seja para jornais, seja para produtos de consumo dos tipos mais variados, agora eles se transformaram em uma mercadoria. Seu custo de produção era relativamente barato e muitos dos personagens já eram populares, uma vez que eram publicados nos jornais e conhecidos do público em geral. Essas revistas, por sinal, poderiam ser uma mistura de quadrinhos com matérias informativas, direcionadas a um público específico. A republicação de tiras foi substituída pela criação de novos personagens. Durante a década de 1930 surgiram novas editoras, especializadas em quadrinhos, e, a partir de 1937, estúdios foram criados para abastecê-las, gerando mais empregos21 As revistas em quadrinhos caíram no gosto popular e ofereciam elementos que estavam ausentes nas tiras publicadas em jornais. As revistas tinham um extra que os jornais não tinham como almejar. Tinham durabilidade, ao contrário dos jornais diários, que eram descartáveis; podiam virar coleções e serem emprestadas. O formato 20 CHENAULT, Wesley .Working the Margins: Women in the Comic Book Industry. A Thesis Submitted in Partial Fulfillment of Requirements for the Degree of Master of Arts in the College of Arts and Sciences Georgia State University, 2007, p. 17-18. 21 HOWE, Sean. Marvel Comics: a história secreta. São Paulo: LeYa, 2013, p. 19-20. 14 maior permitia que elas apresentassem histórias mais longas e mais detalhadas22. No início do século XX, essas mulheres criaram histórias estreladas por crianças, um tema popular na época. No final da década de 1930, elas passaram, também, a trabalhar com personagens de aventura e, posteriormente, superaventura. Algumas mulheres, no entanto, optaram por tornar-se apenas ilustradoras de livros infantis, abandonando o ramo dos quadrinhos. Mas outras permaneceram. Temos casos como o de Ruth Thompson, por exemplo, que não apenas permaneceu na indústria dos quadrinhos como chegou a ocupar o cargo de editora do David McKay Company, até 1945.23 Durante a década de 1940, as comic shops 24 contrataram muitas mulheres roteiristas e desenhistas. Muitas editoras não davam crédito às produções femininas, mas outras o faziam, possibilitando assim identificar seu trabalho e seus personagens. Nelas as artistas foram autorizadas a assinar seu trabalho e produzir tiras completas individualmente. A maioria das mulheres nas comic shops da década de 1940 trabalhou para os estúdios dirigidos por Jack Binder, Lloyd e Grace Jacket, Eisner & Iger (mais tarde Iger & Roche) e Harry Chesler.25 É preciso ter em foco que a indústria que surgiu nos Estados Unidos em torno da produção de quadrinhos cresceu e se expandiu enormemente, abrindo oportunidade para a absorção de uma mão de obra que se tornou cada vez mais especializada. Durante os anos de 1930, trabalhar com quadrinhos era uma forma de vencer os desafios financeiros impostos pela Grande Depressão. As HQs eram um entretenimento barato, nem sempre de boa qualidade da arte e do roteiro, mas que atraia os jovens e oferecia um certo conforto naquele momento de grande dificuldade pela qual passava toda a nação. Muitos homens e mulheres entraram para a indústria dos quadrinhos, entre os anos de 1930 e 1940, praticamente por duas razões: necessidade e oportunidade. Nos anos de 1930, a crise econômica e a recessão haviam 22 SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. – São Paulo: Globo, 2013, p. 75. 23 CHENAULT, W., 2007, p. 36. 24 Diferentemente do que conhecemos atualmente como comic shops, essas lojas funcionavam como estúdios e havia uma verdadeira linha de montagem de revistas, onde as mulheres eram contratadas para as mais variadas atividades. 25 CHENAULT, Ibidem, p. 37. 15 gerado uma verdadeira legião de desempregados. Apesar de toda a propaganda e da euforia gerada pelo crescimento econômico nas duas primeiras décadas do século XX e a expansão da classe média, o que se tinha, na verdade, era uma grande concentração de renda em uma pequena parcela da sociedade, que atingiu o pico em 1928 e declinou durante os anos 1930 e 1940.26 A grande maioria da população norte-americana era assalariada, o que, muitas vezes, exigia que vários membros da família trabalhassem fora a fim de complementar a renda familiar e, desta forma, manter um padrão mínimo de vida. A indústria dos quadrinhos torna-se, assim, uma saída para quem tinha algum talento (como letrista, roteirista ou desenhista) e precisa trabalhar para ajudar a complementar a renda familiar. Talvez por isso não é de se admirar que muitos daqueles que foram empregados em estúdios fossem muito jovens. Pagava-se pouco, mas eram escassas as oportunidades de emprego naquele momento. Para a maioria dos envolvidos na produção, trabalhar com quadrinhos não era motivado pelo desejo de se construir uma carreira. Entre os próprios artistas havia preconceito. Por exemplo, artistas que trabalhavam com revistas em quadrinhos eram considerados inferiores aos artistas que trabalhavam produzindo tiras para jornais. Muitos artistas que produziam histórias para revistas em quadrinhos preferiam não revelar sua profissão, considerando-a provisória e esperando a oportunidade de ascender a uma posição de prestígio. Isso talvez explique o fato de muitos dos artistas que trabalharam com quadrinhos terem se tornado, mais tarde, ilustradores. Ainda por muito tempo os quadrinhos seriam considerados “uma mídia ignorada ou ridicularizada por grande parte da sociedade”. 27 Se alguns autores/artistas conquistaram popularidade junto ao público-leitor com seus personagens e até mesmo conseguiram acumular um capital significativo, a atividade ainda estava longe de oferecer status social ou profissional. Stan Lee, um dos grandes mitos dos quadrinhos, afirmou em depoimento que 26 SAEZ, Emmanuel. Striking it Richer: The Evolution of Top Incomes in the United States (2008). Disponível em <http://elsa.berkeley.edu/~saez/saez-UStopincomes-2006prel.pdf>, acesso em: 24 jan. 2014, p. 03. 27 HOWE, 2013, p. 11 16 Escrever quadrinhos era considerado o nível mais baixo da área criativa. Ninguém tinha respeito pelos quadrinhos – nem a pessoa para quem eu trabalhava. Meu editor achava que eles só eram lidos por crianças bem pequenas ou adultos semianalfabetos. Não havia por que tornar as histórias mais complexas nem se preocupar em 28 desenvolver melhor os personagens nem nada disso. Uma considerável parcela do público das revistas em quadrinhos eram os adolescentes e eles passaram a ser o público alvo das editoras, que encomendavam aos estúdios personagens com aventuras repletas de ação, romance, humor e mulheres bonitas, geralmente usando roupas sensuais. Quando os estúdios começaram a produzir personagens e quadrinhos sob encomenda, seguia-se uma fórmula pré-estabelecida. Os roteiros nem sempre primavam pela qualidade. As revistas, de forma geral, acabavam sofrendo críticas rígidas e os cartunistas eram considerados artistas inferiores. Nesse ambiente, as mulheres eram minoria. Muitas delas passaram pelos estúdios de forma quase anônima. Neles a esmagadora maioria dos funcionários eram homens e o ambiente de trabalho era considerado inapropriado para mulheres. Mulheres eram extremamente raras no mundo dos quadrinhos daquela época a não ser como secretárias. Os estúdios, assim como os clubes de beisebol, eram ambientes exclusivamente masculinos, habitados por adultos envolvidos em um jogo juvenil. O comportamento e o palavrado de mau gosto, as pegadinhas, o humor de baixo calão, as bebedeiras depois do batente e, em alguns casos, a total vadiagem eram práticas comuns. Ninguém ligava para a 29 reprovação feminina. Casos como o de Toni Blum (Audrey Anthony "Toni" Blum), que começou sua carreira trabalhando pela Eisner & Iger, não foram muitos. Toni, que teve destaque pela sua produção nas décadas de 1940 e 1950, trabalhava com quadrinhos de aventura e superaventura. Ela não apenas desenhava, mas roteirizava histórias, tornando-se um dos destaques do estúdio. Toni Blum chegou a participar anonimamente, como fantasma, da produção de Spirit, quando Eisner estava servindo, durante a Segunda Guerra Mundial, e de Lady Luck. Quando Toni começou sua carreira no Eisner & Iger, trabalhava no estúdio juntamente com o pai Alex Blum, o que facilitou sua inserção no meio, 28 29 SCHUMACHER, 2013, p. 48. Ibidem, p. 65. 17 mas não impediu, por exemplo, que sofresse assédio por conta de colegas.30 Toni é considerada uma das pioneiras dos quadrinhos nos Estados Unido, tendo trabalhado para grandes estúdios como o Quality Comics. Na década de 1950, ocorreu uma redução do número de mulheres que trabalhavam com quadrinhos. Estima-se que em 1950 esse número havia caído para um terço, em comparação com os anos de guerra. As mulheres de todos os setores foram incentivadas a abandonar seus postos de trabalho, que seriam novamente ocupados pelos homens. Aquelas que permaneceram na produção de quadrinhos foram sendo gradativamente retiradas dos títulos de ação e aventura. Para muitas delas restaram os quadrinhos com temas para adolescente e os romances em quadrinhos. Assim, para muitas mulheres a atividade de cartunista, o trabalho em estúdios e a produção de histórias em quadrinhos foi uma profissão efêmera. A própria Toni Blum, apesar do prestígio que construiu entre seus pares, abandonou a carreira, na década de 1950, para tornar-se dona de casa e cuidar dos filhos. Mas essas pioneiras deixaram sua marca a partir do trabalho que desenvolveram para pequenos e médios estúdios. Em geral, o cartunista não era dono da sua criação. Ela pertencia aos estúdios, que não tinham preocupação em arquivar ou resguardar a memória dos quadrinhos que lá eram produzidos. A maioria da arte original era descartada, considerada inútil ou sem valor. Assim, muitos trabalhos feitos por homens e mulheres foram perdidos, o que pode dificultar o estudo dos quadrinhos, principalmente até a metade do século XX. Um obstáculo para os pesquisadores dos quadrinhos. Um outro desafio é identificar a obra dos cartunistas. O número enorme de pseudônimos que um mesmo artista utilizava dificulta seu reconhecimento. Isso se aplica tanto a homens quanto a mulheres. A já citada Toni Blum assinou seu trabalho com diversos nomes. Embora possamos citar esse ou aquele personagem, essa ou aquela revista como sendo obra de um determinado artista, ou tendo a participação de certo roteirista, é improvável que se possa fazer um levantamento completo de toda a produção de um profissional dos quadrinhos nesse período. 30 SCHUMACHER, 2013, p. 59 18 Na indústria dos quadrinhos, era prática comum que a editora ou o syndicate assumisse os direitos sobre os personagens. Os syndicates, que surgiram na década de 1840, nos Estados Unidos, para abastecer os jornais rurais com material para publicação, tiveram um papel muito importante na indústria dos quadrinhos.31 Com o sucesso das tiras, eles se multiplicaram e passaram a contratar cartunistas famosos e a distribuir seu trabalho por todo o país, sendo responsáveis pela popularização das HQs. Por outro lado, eles podiam assumir os direitos de publicação e distribuição desse material. Como, para muitos artistas, trabalhar para os quadrinhos era uma tarefa temporária, até que conseguissem uma colocação melhor, abrir mão dos seus direitos sobre suas criações não era um problema. Para outros, que mais tarde viriam a se profissionalizar e construir um nome e uma carreira, abrir mão de um personagem, deixar que outros artistas assumissem sua produção, era penoso. Levando em conta essas informações, e o propósito de melhor demarcar o território ocupado pelas mulheres cartunistas nos Estados Unidos, ao longo deste capítulo estaremos apresentando algumas dessas pioneiras, de forma mais detalhada. Para esse fim selecionamos três cartunistas que atuaram notadamente na primeira metade do século XX. Elas foram reconhecidas pelas suas criações e tiveram, cada uma à sua maneira, impacto não penas sobre a nona arte32, mas também sobre a inserção social da mulher na sociedade da época. 1.2 - Rose O'Neill: a primeira cartunista norte-americana Rose Cecil O'Neill nasceu em 25 de junho de 1874, em Wilkes-Barre, Pensilvânia. Aos 14 anos de idade ela ganhou um concurso de arte para crianças e passou a criar uma série de desenhos semanais para o Omaha World Herald. Aos 16 anos já fazia ilustrações para o Excelsior e The Great Divide. Recebendo pelo seu trabalho, Rose ajudou os pais a sustentar sua família, muito numerosa33. 31 IANNONE, Leila Rentroia. O mundo das histórias em quadrinhos. – São Paulo: Moderna, 1994, p. 44. 32 Classificação recebida pelos quadrinhos. 33 ROSE O'Neill's Biography. Disponível em http://www.roseoneill.org/mainpage.html#/, acesso em: 31 mar. 2012. 19 Em 1893, com o apoio do pai William Patrick O'Neill, Rose foi morar em Nova York, em um convento. Lá passou a oferecer seu trabalho, um portfólio com cerca de 60 ilustrações, para jornais e revistas. Seu pai era um sonhador e depositou no talento da filha todas as expectativas familiares. Aos 18 anos, já era uma ilustradora popular e requisitada. Ela assinava suas ilustrações com as iniciais C.R.O como uma forma de esconder o fato de que ela era uma mulher. Uma prática comum entre as mulheres que iniciavam carreiras nas artes e na comunicação. Em 1896, ela se tornou a primeira mulher artista da equipe na Revista Puck, sendo oficialmente reconhecida pela indústria dos quadrinhos como a primeira mulher cartunista norte-americana. 34 Figura 01 - Retrato de Rose O'Neill cartunista e defensora dos direitos da mulher. Robbins 35 chama a atenção para o fato de Rose O'Neill iniciar sua carreira profissional quase ao mesmo tempo em que Richard Outcault lança seu Yellow Kid. Dois pioneiros dos quadrinhos, Outcault e Rose O'Neill, marcam o início de uma era na comunicação em massa, tanto para homens 34 Documentar as Gilded Age Destaques. Disponível em <http://gildedage2.omeka.net/exhibits/show/highlights/artists>, acesso em: 19 mar. 2014. 35 ROBBINS, Trina. The Great Women Cartoonists. New York: Watson-Guptill Publications, 2001, p. 02. 20 quanto para mulheres. A história dos quadrinhos esqueceu Rose O'Neill e escolheu celebrar a produção de Richard Outcault. O relevante número de mulheres que participaram desse mercado, na primeira década do século XX, é um dado revelador e pode sustentar a tese de que, apesar de restrito e competitivo, o mercado editorial norte-americano estava aberto a novos talentos, inclusive o feminino. O que, claro, não tornava a conquista de espaço profissional mais fácil para as mulheres, que ainda precisavam vencer os preconceitos quanto a seu sexo e provar serem tão capazes quanto os homens. Um detalhe importante que não deve passar despercebido é a idade das jovens cartunistas/ilustradoras. Rose começou bem cedo, aos 14 anos, e se profissionalizou aos 18 anos. Mas ela não era necessariamente um prodígio, ou uma exceção. Na mesma época outras cartunistas iniciavam suas carreiras, também jovens, como Grace Drayton, que começou a publicar suas ilustrações na mesma época que Rose O'Neill, em 1895, aos 18 anos; Nell Brinkley, que aos 16 anos publicou suas ilustrações no Denver Post, em 1902; ou ainda Fanny Y. Corg, que começou sua carreira como ilustradora aos 18 anos e, em 1902, já tinha uma carreira bem sucedida.36 Havia, possivelmente, outros fatores envolvidos na escolha da profissão, que iam muito além do talento e da vocação. As mulheres, meninas ainda, começaram a se tornar valiosos recursos econômicos para suas famílias. Nas famílias que careciam de mais recursos, geralmente por serem numerosas, mas onde ainda se podia garantir alguma instrução para os filhos, as meninas eram incentivadas a assumir uma forma de complementar a renda familiar. Em períodos de crise, como a I Guerra Mundial, a grande depressão ocasionada pela quebra da bolsa de valores em 1929 e a II Guerra Mundial, o trabalho feminino foi um recurso que não pôde ser ignorado. O trabalho como ilustradora e/ou cartunista era uma boa opção, pois poderia ser realizado na própria casa, sem contato muito direto com pessoas do outro sexo e sob os olhares dos pais e mães zelosos da reputação de suas filhas, o que agradava aos pais das moças. Estas, por sua vez, conseguiam conquistar certa autonomia financeira e, até mesmo, a oportunidade de, com o sucesso, mudar 36 Cf. ROBBINS, 2001. 21 para uma cidade maior sem precisar estar presa ao compromisso do casamento. Por sua vez havia uma demanda crescente de cartunista no mercado norte-americano, no início do século XX. O jornalismo se expandia cada vez mais e os editores reconheciam a importância de caricaturas, charges, cartoons e quadrinhos como elementos importantes para estimular as vendas. O próprio contexto histórico, nas primeiras décadas do século XX, pode ter influenciado. As Guerras Mundiais e os abalos na economia liberal estimularam as mulheres de classe média a se tornarem, dentro da mentalidade capitalista, membros produtivos da sociedade, não podendo mais se limitar aos trabalhos domésticos, enquanto os homens estavam de alguma forma impedidos de prover de bens básicos a sobrevivência de sua família. Voltando à produção de Rose O'Neill, sua criação mais famosa, e que lhe garantiu um bom suporte financeiro, foi o grupo de cupidos que ela batizou de Kewpies, em 1905. O cartoon foi um sucesso tão grande que, em 1912, um fabricante de porcelana alemã começou a fazer bonecas Kewpie, sob supervisão de Rose. Eles foram publicados até a década de 1930. Graças aos Kewpies, O'Neill fez uma fortuna de US$ 1,4 milhões, que hoje estaria equiparada a um valor próximo a US $15 milhões. A American Visuals, empresa fundada por Will Eisner, em 1948, trouxe de volta as aventuras dos Kewpies, em quadrinhos, mas não obteve sucesso.37 Rose O'Neill nunca hesitou em se envolver com política ou questões referentes a direitos das mulheres. Usou seu talento para criar e ilustrar programas, cartazes, charges onde expressava seu apoio a causas como o sufrágio feminino. Utilizou, também, sua fama como cartunista para chamar atenção da sociedade para a forma desigual com que as mulheres eram tratadas. Muitos dos Suffrage posters (Cartazes Sufrágio) feitos por O'Neill foram guardados e preservados e se tornaram uma parte da memória do movimento sufragista norte-americano. Entre os anos de 1917 e 1918, criou uma série de ilustrações, The Kewpie Korner Kewpiegram, com pequenos poemas que defendiam o sufrágio feminino ou tratavam de outro tema polêmico, relacionado na maioria das vezes às mulheres. 37 SCHUMACHER, M. 2013, p. 146. 22 38 Figura 02 - The Kewpie Korner Kewpiegram, 1918. Apesar de todo o sucesso que atingiu, O'Neill acabou perdendo quase todo seu patrimônio por conta de uma série de fatores, dentre eles sua falta de controle sobre suas finanças, o que a levava a cometer algumas extravagâncias, seu mecenato e problemas familiares. Rose O'Neill viveu sua vida intensamente. Foi escultora, sufragista, inventora, empresária, filósofa, poeta, romancista, autora de livros infantis, e compositora. Morreu em 1944, empobrecida. 1.3 - Dale Messick: Brenda Starr, mulher e aventureira Dale Messick pode ser considerada uma das cartunistas norteamericanas mais importantes do século XX. Ela mostrou que as mulheres podiam fazer quadrinhos de aventura e ter sucesso dentro desse gênero. Geralmente, as cartunistas se dedicavam a produzir quadrinhos com personagens caricatos ou fofos. 38 SFCGA - San Francisco Academy of Comic Art Collection, The Ohio State University Billy Ireland Cartoon Library & Museum. Disponível em: <http://goo.gl/O3snhn>, acesso em: 31 mar. 2013. 23 Dalia Messick nasceu em South Bend, Indiana, no dia 11 de abril de 1906 e faleceu em 05 de abril de 2005. Foi a criadora de Brenda Starr, Repórter - personagem feminina popular que atingiu seu auge na década de 1950, quando chegou a ser publicada em cerca de 250 jornais. Dalia vinha de uma família humilde; era filha de uma costureira e seu pai era pintor. Ela aprendeu com a mãe o ofício de costureira - que foi, por muito tempo, fonte do seu sustento - e foi incentivada pelo pai a desenvolver o desenho. Figura 03 - Foto de Dale Messick.39 Chegou a cursar a Ray Commercial Art School, em Chicago. Abandonou o curso para trabalhar como ilustradora em uma empresa de cartões de felicitação (greeting card company), mas acabou desistindo do emprego quando, durante a grande depressão da década de 1930, sua remuneração foi cortada pelo chefe para dar aumento a outro funcionário. 40 Ela largou o emprego, saiu de Chicago e foi morar em Nova York, em 1934, e conseguiu trabalho, também como ilustradora de cartões.41 39 ROBBINS, 2001, p. 56. SULLIVAN, Patricia. Cartoonist Dale Messick Dies: Creator of 'Brenda Starr' Strip (2005). Disponível em <http://zip.net/bnqSq5>, acesso em 02 de abr. de 2013. 41 LEGER, Jackie. Dale Messick: A Comic Strip Life (2000). Disponível em: http://www.awn.com/mag/issue5.04/5.04pages/legermessick.php3, acesso em: 02 abr. 2013. 40 24 Nessa mesma época, começou a criar quadrinhos e a oferecê-los em jornais. Teve que trocar o nome de Dalia para Dale, como uma forma de burlar o preconceito contra as mulheres cartunistas. Criou várias séries de quadrinhos, mas nenhuma foi aprovada para publicação. Foi a pessoa mais improvável que lhe deu uma chance: Joseph M. Patterson, editor do New York Daily Newsand e cabeça do Chicago Tribune-New York News Syndicate. Patterson era considerado um chauvinista e avesso a mulheres cartunistas.42 Joseph Patterson, o poderoso chefão do Chicago Tribune-New York Syndicate promoveu a sua auxiliar direta Mollie Slott, amiga de Messinck. Surgiu então a oportunidade da criação de uma “girl Strip” desenhada por Messick, que realizou para as páginas dominicais 43 Brenda Starr, Reporter Assim, a personagem Brenda Starr, 44 heroína e aventureira é apresentada ao público, em 1940. Brenda é uma audaciosa jornalista que trabalha para o jornal The Flash, vivendo aventuras profissionais e amorosas. Brenda era uma jornalista insatisfeita com seu trabalho, que se limitava a notícias da coluna social. Ela desejava algo mais, queria investigar os fatos, queria a ação que seus colegas do sexo masculino vivenciavam na procura de notícias. Ela busca mais espaço dentro da sua atividade profissional. Brenda representa, de certa forma, a mulher que deseja oportunidade para mostrar seu potencial a uma sociedade que não lhe oferece abertura. Dale Messinck, com Brenda Starr, rompeu com a hegemonia masculina nessa área e criou uma personagem que fez sucesso por mais de setenta anos. Ela simplesmente invadiu o território masculino nos quadrinhos. 45 Ao longo de toda a sua carreira, Dale deparou-se com muita resistência dos homens. Era muito mais julgada pela sua aparência do que pelo seu talento. Sua personagem recebia críticas, mas era muito mais complexa do que outras repórteres mulheres dos quadrinhos, como Lois Lane, que precisava sempre 42 LEGER, J., 2000. GOIDANICH, Hirton Cardodo. Enciclopédia dos quadrinhos Goida. – Porto Alegre: L&PM, 1990, p. 236. 44 A personagem foi inspirada fisicamente na atriz Rita Hayworth. Seu nome foi inspirado numa famosa debutante, Brenda Frazier, e seu sobrenome foi escolhido porque seria o repórter estrela em The Flash. In: SEVERO, Richard. Dale Messick, 98, Creator of 'Brenda Starr' Strip, Dies (2005). Disponível em <http://zip.net/bdqSF7>, acesso em 09 mai. 2013. 45 ROBBINS, 2001, p 58. 43 25 ser resgatada pelo Superman. Ela desmaiava, chorava, sentia medo, mas não fugia dos desafios nem dependia de um herói para salvá-la.46 Dale recebia muitas cartas de fãs perguntando sobre a personagem, fazendo sugestões e críticas. O interessante é que, mesmo muitos anos depois de os quadrinhos de Brenda Starr estarem circulando em jornais e, posteriormente, em revistas em quadrinhos, ainda havia fãs que não acreditavam que a autora fosse realmente uma mulher. Em um texto publicado na revista Brenda Starr # 13, de 1955, editada pela Chalton Comics, aparece uma foto da autora e uma breve biografia. O texto começa justamente levantando a questão do sexo de Dale. Ela é mulher, afirma o editorial, e bonita. O mesmo texto segue afirmando que mesmo que as histórias não fossem boas, os cabelos ruivos de Brenda garantiam por si só a devoção dos fãs do sexo masculino, reforçando a objetificação da personagem. Figura 04 - Capa da revista Brenda Starr, n. 13, publicada pela A four Star Comics, em 1947. Ressaltar o fato de a autora ser bonita é algo que deve ser analisado. Persistia e persiste até hoje uma representação da mulher eficiente e talentosa 46 SULLIVAN, P., 2005. 26 como feia e sem vaidade. Um estereótipo que vem sendo reproduzido há décadas, como uma forma de desqualificar as mulheres que trabalham e conquistam sucesso. Tal como Dale Messick, tantas outras cartunistas de sucesso como Rose O’Neal, Toni Blum, Tarpe Mills e Jackie Ormes eram talentosas e bonitas, segundo os padrões de beleza da época. Mas eram, acima de tudo, mulheres inteligentes, cheias de energia, criatividade e idealismo, que conquistaram sucesso com seus/suas personagens marcantes. Não foi a sua aparência física a responsável pelo seu êxito na profissão. Ainda, afirmar que os leitores homens, pois o texto não faz referência às leitoras do sexo feminino, acompanham as tiras de Brenda porque ela é ruiva (e aí subentende-se ruiva bonita e sensual) contrasta com o fato de Dale ter sido citada como uma das poucas cartunistas bem sucedidas dos Estados Unidos naquela época. A autora e sua personagem são subestimadas e desqualificadas. A beleza feminina sob o olhar masculino é o que, segundo o editor, vende os quadrinhos. O quadrinhista, de uma forma ou de outra, transpõe para seus personagens, em parte, aquilo que supõe-se que o leitor deseja ler, afinal os quadrinhos são um produto de consumo, que deve ser atrativo. Daí a presença constante de clichês e estereótipos, que são absorvidos vorazmente pelo consumidor/receptor. Por outro lado, o quadrinho não deixa de ser uma forma de o autor exprimir aquilo que pensa, que sente. Ele estabelece um diálogo com o seu interlocutor por meio de imagens e palavras, estabelece uma troca silenciosa. O autor é o sujeito que “sabe” que há um interlocutor; um sujeito que deve seguir injunções da racionalidade social, disposições do uso social da linguagem. Se o sujeito abriga, em princípio, opacidades e contradições, o autor, ao contrário, tem um compromisso com a clareza e a coerência: ele tem que ser visível pela sociedade, sendo responsável pelos sentidos que sustenta. 47 Os anos de 1950 foram marcados por um discurso reacionário voltado para a desqualificação do trabalho feminino, em todos os setores da sociedade. Era o backlash, uma reação aos avanços dos anos anteriores, onde as mulheres têm suas conquistas ameaçadas. Uma fase, também, de perseguição à mulher que estuda e/ou trabalha fora de casa, garantindo sua independência. Essa perseguição era justificada em teorias pseudo-científicas que buscavam 47 ORLANDI, E., 2007, p. 103. 27 desestimular a independência feminina. No caso das mulheres afro- americanas, por exemplo, até mesmo o controle de natalidade era sugerido, como forma de conter o crescimento da população negra nos Estados Unidos.48 Ao final da Segunda Guerra Mundial, seguiu-se, também, um período obscuro para os quadrinhos, que passaram a ser perseguidos e censurados, ora pelo Macartismo 49 , ora pelo ataque de moralistas como o psiquiatra Fredric Wertham que, em seu livro A sedução dos inocentes, condena os quadrinhos alegando que eles corrompiam a juventude. 50 Mas Brenda Starr sobreviveu, manteve-se ainda por muitas décadas como uma personagem popular, em grande parte graças à persistência de sua criadora, que impediu que grandes mudanças ocorressem nas histórias de Brenda e em sua própria personalidade, como aconteceu com outras personagens, como a Mulher Maravilha, por exemplo. Os quadrinhos eram publicados nas páginas dominicais do Chicago Tribune Syndicate, como parte do suplemento experimental do jornal, o Chicago Sunday Tribune, no formato de revista. Era uma história completa a cada edição. Mas os editores não tinham grandes expectativas com relação ao sucesso da tira, que inicialmente foi desacreditada. No entanto, Brenda Starr agradou tanto ao público que em 1945 surgiu como um seriado, “Brenda Starr, reporter”, com Joan Woodbury no papel da heroína.51 Assim, em meio a loiras e morenas, uma ruiva conquista o coração dos leitores norte-americanos. A ideia era criar uma tira com uma personagem feminina, cuja carreira como repórter permitisse-lhe viajar pelo mundo e ter grandes aventuras. Os quadrinhos de Brenda Starr eram a mistura de romance, aventura e uma boa dose de humor, que acabou agradando a homens e mulheres. Se os heróis serviam de inspiração para os rapazes, heroínas como Brenda Starr brincavam com a criatividade das meninas, que podiam se 48 FALUDI, Susan. Backlash. O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Trad. Mário Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 49 O termo Macartismo é usado para definir o período de intensa perseguição anticomunista e desrespeito aos direitos civis nos Estados Unidos, comandada pelo senador americano Joseph McCarthy. 50 REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua potencialidade teológica. – São Leopoldo: EST/PPG, 2012, p. 232. 51 CHAMBLISS, Julian. Comic Milestone: The Brenda Starr Byline Has Ended (2010). Disponível em: <http://zip.net/bjqSj1>, acesso em: 02 de abr. de 2013. 28 imaginar saltando de paraquedas de um avião, explorando florestas ou fugindo de vilões. Brenda Starr fez parte do esforço de guerra, junto ao grande panteão de personagens masculinos, que vez ou outra deram lugar a algumas heroínas e super-heroínas como Sheena e Mulher Maravilha. Para Howell,52 seu sucesso foi, em parte, um produto da força de trabalho feminina que se destacou durante a Segunda Guerra Mundial. Ela era uma girl power, que inspirava outras mulheres a experimentar uma vida diferente daquela vivida por suas mães e avós. No momento em que as mulheres eram impelidas a retornar para suas casas e cuidar do lar, uma personagem feminina, inteligente, liberada e funcional, circula livremente pelas páginas de centenas de jornais, inspirando moças a abraçarem uma carreira, a sonharem com viagens a lugares exóticos, a serem destemidas e determinadas. Brenda Starr, a corajosa repórter, recusa-se a assumir o papel de esposa e dona de casa que a sociedade norteamericana impunha às mulheres após a Segunda Guerra Mundial. Brenda foi uma inspiração para as jovens desejosas em romper com os tabus machistas para a sociedade. Mas ela é, também, uma mulher inspirada em outras mulheres. Brenda não tem vergonha de ser sensual, de vestir-se bem, gosta de estar sempre bonita e tem uma vida amorosa agitada. Em muitos sentidos, Brenda Starr é um reflexo da própria criadora, se não fisicamente, na forma de viver sua vida sem se importar com as críticas que recebe. É uma heroína, mas também é uma mulher do seu tempo. Ela é uma Glamor Girl, como tantas outras personagens femininas que surgiram na década de 1940 e que fizeram muito sucesso até a década 1950. Brenda quer uma carreira, mas não rejeita a possibilidade de viver um grande amor. Esse é um tema que está presente em suas histórias, invariavelmente. Nelas, homens se declaram a Brenda, oferecem seu amor e devoção. Ela até aparece, em certos casos, fazendo papel de cupido para as amigas, mas sua vida amorosa é sempre complicada. A heroína teve muitos pretendentes que foram seduzidos pelos seus encantos, mas ela os recusava, pois nutria uma grande paixão pelo químico 52 HOWELL, Daedalus. Brenda Starr's Dale Messick is a firecracker (1998). Disponível em <http://www.metroactive.com/papers/sonoma/02.19.98/comics-9807.html>, acesso em: 02 de abr. de 2013. 29 Basil St. John, seu eterno noivo. Basil era um homem misterioso, usava um tapa-olho preto, desaparecia por meses e sua vida estava ligada a uma orquídea negra rara que só existia na selva amazônica. Basil retirava dela um soro, a única cura para uma doença rara que possuía53. Antes de anunciar sua aposentadoria, Messick realizou, finalmente, o casamento de Basil com Brenda. Eles tiveram uma filha, Starr Twinkle St. John. Mas, Brenda não era feita para o casamento e acabou de divorciando. Se Brenda não foi feliz no casamento, sua criadora teve o mesmo destino, divorciou-se duas vezes. Ao se aposentar, na década de 1980, Dale exigiu que a personagem continuasse a ser produzida, mas apenas por mulheres. Na época, Linda Sutter (roteirista) e Ramona Fradon (ilustradora) assumiram a função de manter a personagem viva. Em uma indústria onde o autor não era dono de sua obra, Dale não apenas controlou a produção dos quadrinhos de Brenda Star até sua aposentadoria como ainda impôs condições para sua continuidade. E isso foi fundamental para manter a identidade de sua personagem. Seis anos após a morte de sua criadora, em 2011, a personagem Brenda Starr encerrou sua carreira nos quadrinhos. Os quadrinhos de Brenda Starr eram avidamente consumidos por um público masculino, que cultuava as belas formas da repórter ruiva, mas Dale escreve, também, para as mulheres que sonham com um futuro que possa lhes oferecer um pouco mais do que uma vida doméstica e para mulheres casadas, de classe média, que se encantam com o charme e a ousadia de Brenda Starr. Essa geração que se alimenta das oportunidades geradas pela Segunda Guerra Mundial irá lutar pelo desejo de independência que lhe será negado na década seguinte. Brenda Starr mantém sua personalidade nos anos que seguem e consegue se firmar como personagem popular até sua última publicação em 2011. Ela representou aquele grupo de mulheres que rejeitava a ideia de simplesmente retornar para a vida doméstica, porque a guerra acabou. Aqui está um grupo determinado a buscar reafirmar seus direitos e afirmar sua capacidade produtiva e intelectual na sociedade norte-americana pós-guerra. 53 SULLIVAN, P., 2005. 30 Selma Regina Nunes Oliveira54 lista Brenda Starr dentro do estereótipo da mulher moderna, criado nos quadrinhos na década de 1920. Segundo esse modelo, característico das girls strip, esse modelo de mulher moderna é multifuncional. A mulher dinâmica, que se desdobra entre o trabalho, a casa, os filhos e o marido. Segundo a autora, essa mulher moderna dos quadrinhos possuía três características: seduzir, amar e viver.55 Ouso contrapor a essa análise uma outra. Brenda Starr era uma releitura do estereótipo da mulher moderna. Essa nova mulher, que se destaca nos anos de 1940, é independente, continua sendo dinâmica mas, agora, ela desloca essa energia para empreendimentos que vão lhe render prazer pessoal e profissional. Ela não se preocupa com a casa, não sonha com a maternidade e não está à caça de um marido. Claro, Brenda tem seu interesse romântico, mas não faz dele a meta de sua vida. O casamento não foi o final de sua carreira, foi apenas uma experiência pela qual ela passou e que ajudou a aumentar seu desejo pela independência. Apesar de todo o discurso difundido pela indústria cultural, através dos quadrinhos, romances e outros meios de comunicação de massa, a mulher moderna norte-americana não podia ser resumida a um único estereótipo. Havia uma pluralidade de mulheres, nem todas compartilhando do mesmo ideal de família e de felicidade, discurso que era produzido e reproduzido na sociedade, mas que não necessariamente encontrava abrigo em todos os corações femininos. Da mesma forma, os homens não compartilhavam a mesma representação idealizada de mulher. Fosse assim, heroínas como Brenda Starr e tantas outras não teriam sua legião de fãs do sexo masculino. Mulheres dinâmicas e independentes tinham seu lugar na sociedade. Apesar de reconhecer que os quadrinhos, assim como outros meios de comunicação, foram e são ainda usados como ferramentas, veículos para a imposição, solidificação de valores, a partir de representações que são apresentadas e absorvidas como verdades, é preciso sempre ter em mente que isso ocorre de forma plural. Essa não é uma via de mão única, usando uma expressão coloquial. 54 Cf. OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado - as representações femininas nos quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). – Brasília: Universidade de Brasília: Finatec, 2007. 55 OLIVEIRA, S., 2007, p. 51 31 Nenhum discurso é neutro, nenhum discurso é único e nenhum discurso é inocente. Todo discurso produz sentidos. É a análise desses sentidos, que nascem das ideias e ideologias de quem os produz, que nos permite enxergar além dos modelos impostos. É possível perceber e identificar reações, tensões, resistências. É sempre preciso levar em consideração o fato de que o leitor não é um agente passivo, ele interage, ele tem suas próprias ideias, ele absorve a informação de forma diferente, de acordo com o contexto. Por maior que seja o controle sobre a sociedade, ele não é total como fazem crer os donos do poder, uma vez que é incapaz de colocar fim nas relações de força e impor totalmente sua hegemonia (usando um termo marxista) sobre a sociedade. Os padrões culturais que predominam ou são impostos por um grupo dominante, em determinada sociedade ou contexto histórico, ao mesmo tempo em que separam e legitimam as distinções, estabelecem a separação e o distanciamento entre as demais expressões culturais.56 Embora seu discurso tente alcançá-las, irá esbarrar nas próprias distinções que ajudou a criar. Sendo assim, por mais convincente que seja a ideologia nele contido, a interpretação do receptor vai estar intimamente ligada aos símbolos e valores sobre os quais pesa a sua formação. Assim, a formação do leitor interfere diretamente no nível em que ele apreende o conteúdo que encontra nos quadrinhos ou em qualquer outro tipo de leitura. Há leitores que não são criteriosos ou estão preocupados em avaliar o conteúdo que têm em suas mãos. Eles absorvem a informação para compensar uma falta de conhecimento ou mesmo de experiência. Nesse caso, o conteúdo, o discurso presente no texto, encontra uma recepção maior. Mas é justamente essa particularidade, essa pluralidade na formação geral do leitor que estabelece um contraponto. Diferentes leitores, diferentes pontos de vista e experiências acumuladas de vida significam diferentes leituras da realidade. 1.4 - Jackie Ormes: a primeira mulher negra a publicar quadrinhos nos Estados Unidos Nascida em uma família de classe média, no ano de 1911, em Monongahela, Pensilvânia, Jackie Ormes foi batizada como Zelda Mavin 56 BOURDIEU. Pierre. O poder simbólico. - 2ª ed. - Rio de Janeiro, Betrand Brasil, 1998, p. 1011. 32 Jackson, tendo adotado o sobrenome Ormes depois de casada. Ainda jovem, destacou-se no curso secundário pelo seu talento com artes. Depois de se formar, em 1930, pela Monongahela High School, em Pittsburgh, Ormes trabalhou como repórter freelance e revisora para o Pittsburgh Courier, um jornal semanal afro-americano que saía todo sábado. Foi no Pittsburgh Courier, em 1937, que publicou sua primeira tira de quadrinhos, Torchy Brown in “Dixie Harlem”, que conta a história de uma jovem negra do Mississipe que busca por novas oportunidades nas metrópoles do norte.57 Com humor, as peripécias da jovem eram uma forma de refletir sobre as dificuldades enfrentadas por quem sai do Sul em busca de novas oportunidades no Norte. Chegou-se a um total de doze tiras, publicadas em 1937 e 1938, no Pittsburgh Courier. Torchy representa a primeira personagem negra independente. Ormes investiu em um gênero que vinha fazendo sucesso e que atraía o leitor do sexo feminino, a girl strip, tiras de garotas ou ainda história de garota.58 Segundo Trina Robbins, apenas três afro-americanos cartunistas conseguiram quebrar a barreira da cor nos quadrinhos durante toda a primeira metade do século XX, e todos eram homens. Para ela, Jackie Ormes, uma mulher afro-americana, não iria tentar vender seus quadrinhos em um jornal para brancos. Daí a escolha de um jornal destinado ao público negro, o que a livrava da barreira da cor, mas ainda corria o risco de ser recusada por ser mulher, o que não aconteceu. Torchy Brown in “Dixie Harlem” estreou em um jornal para negros e foi distribuída para mais outros quatorze jornais, também para negros, espalhados por todo o país.59 Ormes mudou-se para Chicago em 1942 e passou a contribuir para a coluna social de outro jornal afro-americano, o Chicago Defender, considerado um dos principais jornais norte-americanos destinado aos negros. Em 1945, lançou outra personagem, que apareceu em algumas tiras, de quadro único (painel), publicada durante quatro meses: Candy, uma empregada doméstica sexy e atrevida que está sempre fazendo observações astutas sobre seus patrões e sobre a sociedade de um modo geral. 57 GREEN, Karen. Black and White and Color (2008). Disponível em: <http://pulllist.comixology.com/articles/96/Black-and-White-and-Color>, acesso em: 02 jan. 2013. 58 OLIVEIRA, S., 2007, p. 50. 59 ROBBINS, 2001, p. 96-97. 33 O traço da personagem lembra sua própria autora, que passa a interagir com sua produção, não apenas colocando nela suas ideias e suas críticas, mas se personificando, apresentando uma nova mulher negra norte-americana, que não se intimida frente à sociedade, que não tem medo de expor seu pensamento e sua sensualidade. A partir de Candy, traços físicos e da personalidade de Ormes estarão cada vez mais presentes em suas personagens. Ainda em 1945, lançou uma tirinha, também de quadro único (painel), chamada Patty-Jo ‘n’ Ginger. Ginger era uma mulher jovem, elegante e de corpo escultural, sempre às voltas com as travessuras de sua irmã caçula Patty-Jo. A cada semana, Patty-Jo emitia algum tipo de comentário referente a uma situação polêmica. Esses comentários podiam ser inócuos, mas, frequentemente, refletiam preocupações e interesses da própria Ormes, bem como os acontecimentos do dia.60 A personagem Patty-Jo acabou se tornando, também, um sucesso de vendas nas lojas infantis. Transformada em boneca, foi produzida entre os anos de 1947 e 1949. A boneca era dedicada às meninas afro-americanas, uma forma que Ormes encontrou de levar às meninas negras um brinquedo com o qual pudessem se identificar. Segundo Nancy Goldstein, a boneca representou uma importante referência para essas crianças e suas famílias, um marco na história do negro nos Estados Unidos. 61 É importante destacar aqui o papel dos jornais afro-americanos na divulgação dos quadrinhos e mesmo sua influência na obra de autores como Ormes. Os jornais destinados à população afro-americana têm uma longa história, que começa oficialmente em 1827, quando Samuel Cornish e John Brown Russwurm fundaram o primeiro Jornal Africano-Americano, o Freedom’s Journal (Jornal da Liberdade). Esses jornais se tornaram um grande instrumento de luta pela liberdade dos escravos e, posteriormente, contra o racismo e a injustiça social. 60 GREEN, K., 2008. GOLDSTEIN, Nancy. The First African American Woman Cartoonist. University of Michigan, 2008, 04. 61 34 Figura 05 - Candy, 30 de junho de 194562 Figura 06 - Patty-Jo ‘n’ Ginger, 06 outubro de 1945.63 O Correio Pittsburgh, primeiro jornal onde Ormes trabalhou e onde começou sua carreira como cartunista, foi criado em 1907 por Edwin Harleston. Além de lutar pelos direitos dos afro-americanos, o jornal teve como uma de suas principais metas capacitar os negros tanto econômica quanto politicamente. Naquele jornal, Ormes teve oportunidade de desenvolver várias atividades como jornalista, chegando até a ser comentarista esportivo. O Chicago Defender foi fundado em 1905 para leitores afro-americanos. O Editor e fundador Robert Sengstacke Abbott teve um papel importante em influenciar a migração de afro-americanos do sul para o norte, tema das aventuras de Torchy Brown in “Dixie Harlem”. Usando de recursos, como charges, reportagens e editoriais, o jornal promoveu Chicago como um destino. Para isso, denunciou os crimes contra os negros no sul, apresentou exemplos bem sucedidos de negros que conseguiram conquistar espaço social e econômico no norte e apresentou a cidade como aberta a muitas oportunidades. A comunidade afro-americana teve, nessas publicações, acesso a uma gama de informações que possibilitaram seu fortalecimento como comunidade e conseguiu, também, instrumentos para exigir direitos e participar mais ativamente da sociedade civil. Elas abriram oportunidades para jovens talentos 62 63 GOLDSTEIN, N., p. 78. Ibidem, p. 87 35 como Ormes e prestaram serviços importantes na área social, principalmente educacional. Nem mesmo obstáculos, como a falta de anunciantes, problemas com distribuidores e fornecedores, impediram seu crescimento, estando presentes nas grandes cidades norte-americanas, em muitas delas com circulação nacional. Em 1950, Jackie Ormes lança a série “Touchy Brown Heartbeats”, em cores, publicada no Chicago Defender, até 1954. Ormes, na verdade, reinventou Torchy transformando-a numa heroína bem diferente da menina ingênua que se migra do sul para viver em Nova York. Ela remodela a personagem, dando a ela outro significado, outra meta. Uma das qualidades das personagens dos quadrinhos é justamente a possibilidade de se fazerem releituras; as representações personagens das histórias em quadrinhos materializam que são constantemente retomadas, reatualizadas e normatizadas, abrindo a possibilidade de se recriarem e fundamentarem modelos e saberes.64 A nova Torchy é uma enfermeira e tem um relacionamento romântico com um jovem médico, Paul Hammond, com quem emplaca uma luta contra o racismo e a poluição ambiental em uma cidade chamada "Southville". Torchy é uma história de aventura e romance e envolve, ao mesmo tempo, um trabalho pedagógico de conscientização contra os problemas que atingem os Estados Unidos e o mundo, como a segregação racial, política externa dos EUA, democratização da educação, bomba atômica e poluição ambiental.65 A consciência política e social da personagem era um diferencial. Ormes abre espaço para discutir relações afetivas, sociais, políticas e ambientais em uma tira estrelada por uma mulher negra, o que torna a sua personagem ainda mais rica, tendo em vista o contexto no qual foi concebida. Ormes foi uma pioneira de muitas formas. Ao criticar questões relacionadas ao meio ambiente nos quadrinhos Touchy Brown, por exemplo, ela demonstra seu pioneirismo e um nível de conscientização muito além do de outras mulheres e outros homens de sua época. É, também, uma produção ousada que exalta o poder da sensualidade feminina. Torchy é uma afro-descendente que encarna o papel da heroína que antes se aplicava apenas às mulheres brancas, nos romances, nas revistas 64 65 OLIVEIRA, S., 2007, p. 23. ROBBINS, 2001, p. 97. 36 feminimas e nos quadrinhos. Ela apresenta para as leitoras negras que o que vai definí-las não é a cor da pele; assim como as heroínas brancas, as negras poderiam, também, ocupar seu espaço na sociedade, ter sua independência, realizar-se na sua individualidade. Figura 07 - Touchy Brown Heartbeats , 08 de maio de 1954. 66 Tanto a tira como os personagens marcam o amadurecimento de Ormes como autora e desenhista. A qualidade da arte é superior assim como a narrativa, muito mais sofisticada. Touchy Brown Heartbeats foi seu trabalho que mais se destacou e é, ocasionalmente, lembrado pelos historiadores de quadrinhos devido à sua atitude prospectiva para com a justiça social. Com essa personagem, Ormes apresentou a imagem de uma mulher negra que contrasta com as representações estereotipadas da mídia contemporânea. Torchy é confiante, inteligente e corajosa. Uma mulher que se 66 GOLDSTEIN, N., 2008, p. 157. 37 recusa a representar um papel subalterno na sociedade e que não tem medo de lutar pelo que acredita. Em pleno blacklash, sua personagem é ousada e se recusa a aceitar o confisco dos direitos e conquistas femininas que tiveram início no final da Segunda Guerra Mundial e que marcaram a década de 1950. Os quadrinhos de Ormes são uma reação a esse retrocesso imposto à sociedade norte-americana e, especialmente, às mulheres. Eles disseminaram um discurso diferente daqueles que tradicionalmente eram direcionados às leitoras do sexo feminino. Eles refletem e transmitem uma visão de mundo diretamente relacionada a sua autora e à sociedade em que se vive. Analisando esse discurso, temos a possibilidade de ir além das representações impostas pela sociedade machista e racista daquele período. Mulheres como Ormes foram fundamentais para o movimento feminista no século XX. Mais do que isso, o feminismo negro tornou-se uma manifestação de repúdio ao preconceito, que atingia duplamente as mulheres negras, não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. As escritoras, jornalistas e quadrinistas tiveram um papel fundamental na expansão e nas conquistas femininas ao longo do século XX. Bell Hooks destacada feminista afro-americana corretamente afirma que o que as mulheres compartilham não é a mesma opressão, mas a luta para acabar com o sexismo, ou seja, pelo fim das relações baseadas em diferenças de gênero socialmente construídas. Para os negros é necessário enfrentar esta questão não apenas porque a dominação patriarcal conforma relações de poder nas esferas pessoal, interpessoal e mesmo íntimas, mas também porque o patriarcado repousa em bases ideológicas semelhantes às que permitem a existência do racismo à crença na dominação construído 67 com base em noções de inferioridade e superioridade É inegável a importância de Ormes para a comunidade afro-americana em seu todo e, especificamente, para a mulher afro-americana. Seu legado pode ser encontrado, por exemplo, na The Ormes Society, uma organização dedicada a apoiar mulheres afro-americanas que criam histórias em quadrinhos e que promovem a diversidade dentro da indústria e entre os leitores. Essas mulheres, pioneiras nos quadrinhos, fazem parte de uma galeria de personagens esquecidos pela História e que estão retornando por meio da História das Mulheres nos Quadrinhos, um campo que tem crescido nos Estados Unidos e dá seus primeiros passos no Brasil. E se tivemos mulheres 67 BAIRROS, LUIZA. Nossos feminismos revisados. Estudos Feministas, n. 02, 1998, p. 458463. Disponível em <http://zip.net/bkqSp8>, acesso em: 07 fev. 2013, p. 462. 38 ousadas que se destacaram como cartunistas, tivemos, também, personagens femininas marcantes. Essas heroínas dos quadrinhos, aventureiras que povoaram os sonhos e instigaram a imaginação dos seus leitores, voariam ainda mais alto com a chegada das rainhas da selva e das primeiras superheroínas, como veremos no capítulo seguinte. CAPÍTULO 2 - SUPER MULHERES & SUPER-HOMENS: O NACISMENTO DAS SUPER-HEROÍNAS NA DÉCADA DE 1940 2.1 – Sheena, a rainha das selvas: a primeira heroína a ter sua própria revista O primeiro grande herói dos comics de aventura foi Tarzan, criado por Edgar Rice Burroughs, em 1912, e posteriormente adaptado para os quadrinhos e para o cinema. Tarzan estreou em tiras diárias de jornal, desenhado por Hal Foster, em 1929. Em 1937, o desenhista deixou de ilustrar as aventuras do rei das selvas para trabalhar em outro personagem que também se tornou mundialmente conhecido, o Príncipe Valente. 68 Enquanto Tarzan era o herói das selvas, representando a superioridade do homem branco no exótico mundo africano, o Príncipe Valente era um herói de capa e espada que projetava em suas aventuras os valores antigos da cavalaria associados ao ideal civilizatório burguês.69 O gênero da aventura rompe com o estilo caricatural, tornando o traço dos quadrinhos mais realistas. Os quadrinhos de aventura eram publicados em tiras nos jornais e, posteriormente, nas revistas em quadrinhos. Heróis capazes de ultrapassar todos os obstáculos, detetives, piratas, aventureiros do futuro, justiceiros e selvagens, entre outros, tornaram-se ícones de toda uma geração. Dentro desse gênero, um dos enredos que mais faziam sucesso eram justamente as aventuras na selva, que deram origem a várias publicações com personagens que, mais tarde, foram denominados de Tarzanides. Homens, mulheres, meninos e meninas da selva, lutando contra invasores, nativos e animais selvagens. Uma personagem, em especial, irá ganhar destaque: Sheena, a rainha das selvas, que acabaria se tornando um sucesso de vendas e uma das mais populares heroínas da década de 1940. Sheena foi criada em 1937 por ninguém menos do que Will Eisner. Segundo Hirton Cardoso Goidanich,70 para os quadrinhos, Willian Erwin Eisner é uma figura tão importante quanto Orson Welles para o Cinema. 68 FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de histórias. –São Paulo: Moderna, 1997, p. 26. 69 MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 115-117. 70 GOIDANICH, H., 1990, p. 112. 40 Eisner começou a trabalhar aos 13 anos, vendendo jornais. Aos 16 anos publicou sua primeira arte, ilustrando um artigo de jornal e aos 19 anos, em 1936, fundou, em parceria com Jerry Iger, a Eisner & Iger, estúdio responsável pela produção de quadrinhos para editoras. Havia naquele momento uma demanda expressiva por histórias em quadrinhos e estúdios pequenos como o Eisner & Iger. Aqui estava, portanto, um mercado a ser abastecido. Sheena, assim como outros personagens criados pelo estúdio, foi um produto feito por encomenda e acabou se tornando um grande sucesso comercial. Ela é uma versão feminina de Tarzan, uma tarzanide. Sheena assemelha-se ao Tarzan em vários aspectos, como sua vida aventureira na selva, o dom de compreender e ser compreendida pelos animais, a coragem e habilidade em lidar com a natureza. Sheena fez sua estreia na revista britânica Wags # 01, em 1937. Nas revistas em quadrinhos norte-americanas ela faz sua primeira aparição no ano seguinte, na Jumbo Comics # 01. Foi um sucesso tão grande que, em 1942 ela ganhou sua própria revista. Will Eisner assinava as histórias com o pseudônimo “W. Morgan Thomas”. Esse vai ser o nome que vai aparecer nas histórias de Sheena até a década de 1950. No entanto, tratava-se de um pseudônimo que iria ser utilizado por vários cartunistas, entre homens e mulheres. Inicialmente, Eisner roteirizava as histórias que eram ilustradas por Mort Meskin e a arte da capa ficava geralmente a cargo de Eisner.71 Posteriormente, Eisner irá abrir mão dos direitos sobre a personagem ao encerrar sua sociedade com Jerry Iger Na década de 1940, as heroínas, como personagens principais, tornaram-se muito comuns. Embora a ideia da power woman trouxesse alguma resistência, ela estava dentro do espírito da época, quando mulheres começavam a ocupar espaços antes destinados aos homens, principalmente durante o período da II Guerra Mundial. Os quadrinhos incentivavam e elogiavam, à sua maneira, a competência feminina, embora não se possa falar necessariamente de igualdade dos sexos. Sheena foi uma heroína cuja criação era direcionada ao público masculino. As premissas das suas aventuras giravam em torno da proteção dos animais (o que contrasta de certa forma com o fato de ela aparecer na maioria das capas da Fiction House lutando contra um grande felino ou 71 SCHUMACHER, 2013. p. 54-55. 41 enfrentando um elefante furioso), dos nativos (ela interfere em conflitos tribais com certa frequência e é mediadora entre brancos e negros) e exploram as paisagens exóticas de uma África que muito mais é produto da imaginação de desenhistas e roteiristas do que a representação de um ambiente real. A personagem irá servir de matriz para outras tarzanides, surgidas posteriormente. Sheena surgiu por causa da enorme popularidade dos livros de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e como extensão natural do tipo de conteúdo que se esperava da Jungle Stories da Fiction House. Tão minimamente vestida quanto sua versão masculina, Sheena enfrentava homens e feras numa série de aventuras divertidas, embora absurdas. Era o sonho dos garotos: uma mistura de pinup com ação, e aparentemente não importava que a jovem, nascida nas profundezas africanas, sempre estivesse com os cabelos loiros bem aparados e escovados, falasse inglês exemplar e usasse trajes que, embora feitos de pele de leopardo, pareciam criados por estilistas de 72 Hollywood. Em suas aventuras, Sheena está sempre acompanhada de seu parceiro, Bob. Este conta com a heroína para salvá-lo na maioria das vezes. Bob geralmente assume o papel da “mocinha em perigo”. Apaixonado por Sheena, ele escolheu viver na selva, em uma casa na árvore, e acompanhar Sheena em suas aventuras. Vai ser Bob que dará um toque de humor nas aventuras da heroína. Um homem solteiro, que vive maritalmente com uma bela mulher numa selva. Essa representação agradava aos jovens que consumiam os quadrinhos da heroína. Mais do que atiçar a imaginação de adolescentes, os quadrinhos de Sheena trazem uma novidade, uma inversão dos papéis de gênero: são os homens agora que têm que ser salvos pelas mulheres. Suas roupas minúsculas, que colocavam à mostra boa parte do corpo, contribuíram para o sucesso da personagem junto à juventude da época. Apesar do apelo ao físico que apresentava, Sheena não era uma personagem sensual ou erótica, embora esta leitura pudesse ser feita pelo público masculino. Ao contrário da outra grande heroína dos quadrinhos, a Mulher Maravilha – que era voltada para o público feminino -, Sheena atingia em cheio o jovem público masculino, raramente acostumado com tamanha exuberância como a que era mostrada em suas páginas, 72 SCHUMACHER, p. 55. 42 numa época em que os puritanos dos quadrinhos norte-americanos raramente enveredavam pela trilha do erotismo. 73 Cabe acrescentar que, apesar de toda uma vigilância com relação à publicação de quadrinhos eróticos ou pornográficos, eles circulavam entre jovens e adultos. Contribuiu para isso a própria expansão dos meios de comunicação no final do século XIX. Com o desenvolvimento da fotografia, do cinema e com a maior circulação dos quadrinhos, o público masculino passou a ter acesso, com maior ou menor facilidade, a esse tipo de material (filmes, revistas e quadrinhos eróticos). Seus defensores acreditavam serem benéficos para o desenvolvimento masculino. De outro lado, foram radicalmente condenados por grupos que os enxergavam como uma forma de perversão da juventude. Era comum o uso de personagens populares nesses quadrinhos, que podiam circular de forma clandestina. Figura 8 - Sheena usa roupas que mostram menos o corpo e acessórios como pulseiras, colares e braceletes que, dificilmente, uma menina criada na 74 selva teria tido acesso. 73 Figura 9 – Quatro anos depois a personagem é representada na capa da revista com quase sem nenhum acessórios mas, também, com muito menos roupa.75 D’ ASSUNÇÃO. Otacílio. Sheena, a rainha das selvas – Clássicos HQ. Rio de Janeiro, EBAL, 1984,p. 02. 74 JUMBO Comics. Fiction House, n. 06, 1939, p. 31. 75 JUMBO Comics. Fiction House n. 55, 1943. 43 Em 1920, surgiram os quadrinhos pornográficos de grande circulação nos EUA. Eram chamados de dirty comics ou quadrinhos sujos. Neles, não faltava humor e muitos dos principais atores eram conhecidos, não dos papais, mas da criançada: Mickey Mouse, Betty 76 Boop ou Popeye. Assim Sheena e suas roupas minúsculas atiçavam a imaginação de rapazes, embora suas aventuras fossem consideradas inocentes. É interessante notar que outras garotas da selva, criadas posteriormente, passaram a usar vestimentas semelhantes. A própria Sheena viu suas roupas, com o tempo, diminuírem cada vez mais. Na Jumbo Comics, a personagem foi publicada por quinze anos e sua revista teve dezoito volumes, até ser cancelada, em 1953. Sheena, assim como muitos outros personagens, foi vítima das pressões moralistas “que culminaram com a criação do famigerado Comic Code Authority (Código de Ética), que provocou o maior massacre na História dos Quadrinhos Americanos. 77 2.2 - Os super-heróis invadem os quadrinhos Em 1938, com a criação do Superman, por Jerry Siegel e Joe Shuster, publicado pela primeira vez na revista Action Comics. Os super-heróis são seres fictícios capazes de realizar proezas impossíveis para um herói comum. Eles possuem poderes que nos fazem lembrar deuses da mitologia antiga, vestem uniformes coloridos e possuem uma identidade secreta. Com o surgimento da superaventura, “nascia o arquétipo do herói perfeito, um ser de habilidades quase divinas, que, além de possuir extraordinários poderes, era possuidor de um caráter incorruptível.”78 Os super-heróis, tal como os conhecemos e com suas características definidoras, são produtos da sociedade moderna. Os deuses antigos são superpoderosos, mas são vistos como verdadeiros por seus produtores e reprodutores até serem transportados para o mundo da ficção, enquanto que os super-heróis são reconhecidos como produtos fictícios, tanto por seus produtores quanto por seus leitores. 79 76 DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011, p. 131. 77 D’ ASSUNÇÃO. O., 1984,p. 02. 78 GUERRA, Fábio Vieira. Super-Heróis Marvel e os conflitos sociais e políticos nos Estados Unidos (1961-1981). Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011, p. 05. 79 VIANA, Nildo, REBLIN, Iuri (Org). Super-heróis e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre quadrinhos. Aparecida: Ideias & Letras, 2011, p. 19. 44 Um sucesso imenso, os primeiros super-heróis, que lutavam contra bandidos comuns que ameaçavam as pessoas comuns, passaram a fazer parte da vida dos jovens, a trazer mensagens, valores e esperança. A proximidade da guerra pode ser entendida como um fator que impulsionou o gênero. Muitos dos super-heróis criados nesse período inevitavelmente lutaram contra os nazistas. Eles são, portanto, produtos históricos e sociais e precisam ser entendidos e analisados como tal. O super-herói de quadrinhos é uma parte integrante do mito criado pela cultura americana, um meio de lidar com o medo, e a incerteza, alimentado por grandes crises que marcaram a primeira metade do século XX, como a Quebra da Bolsa de Valores (1929) e a II Guerra Mundial (1939-1945). Indivíduos superpoderosos apresentam-se para combater as forças do mal, que podiam ser simples bandidos, que ameaçavam o cidadão comum ou mesmo os nazistas. Eles garantiam que o bem prevalecesse. Esse dualismo seria mantido e reproduzido nas décadas seguintes e tornou-se uma característica essencial dos quadrinhos de superaventura. Os super-heróis são, assim, narrativas míticas que orientam os norte-americanos na compreensão da verdade, da justiça e do próprio modo de vida americano. Suas provações e triunfos são alegorias nascidas dos obstáculos enfrentados pelos habitantes daquela nação e suas ações vão guiá-los na tarefa de estabelecer a distinção entre o certo e o errado; fixar normas e moderar atitudes. O poder da narrativa mítica vai fornecer a orientação necessária para que o indivíduo possa se encaixar dentro da sociedade. A narrativa da superaventura molda o presente e o futuro, criando um sistema em que a cultura se desenvolve e persiste. As histórias em quadrinhos de superheróis, portanto, nos dizem o que os Estados Unidos e o povo americano devem ser 80. Os super-heróis foram, assim, apropriados pelo governo norteamericano como armas ideológicas, usados tanto junto à juventude quanto junto aos aliados dos Estados Unidos. Em tempo de guerra, era necessário garantir que a vitória acontecesse, também, no reino da ficção, onde a justiça está presente e onde a vitória do “bem” é elemento motivador e reconfortante. 80 HAYES, Jacki Renee. Goddess in a cape: Feminine divine as comic book superhero (2012). Graduate Theses and Dissertations. Paper 12684, p. 28. 45 A criação do Superman abriria caminho para o surgimento de um panteão de super-heróis que lutam pela liberdade e contra a opressão que, naquele momento, era representada pelas ditaduras totalitárias europeias. Entre esses personagens, veremos mais adiante, surgiram as primeiras super mulheres, que, durante a II Guerra Mundial, irão, sozinhas ou ao lado dos homens, combater os principais inimigos dos Estados Unidos naquela época: os nazistas. 2.2.1 – Super mulher ou super-heroína? O que teria surgido primeiro? A super-heroína ou a super mulher? O conceito de super-herói teria sido construído a partir do final da década de 1930, com o surgimento do Superman e vai muito além do simples fato de se possuir super-poderes. O heroísmo em si é uma noção que dispensa a existência ou não de habilidades super-humanas. Tanto é que temos exemplos de atos heróicos todos os dias: uma mãe que protege o filho do ataque de um cão feroz, um bombeiro que arrisca a vida para salvar pessoas em um prédio em chamas, um soldado que enfrenta a linha de tiros para salvar um companheiro ferido, ou mesmo pessoas cujas ações, direta ou indiretamente, podem beneficiar ou inspirar outras pessoas. (...) os heróis são indivíduos detentores de capacidades e/ou qualidades consideradas excepcionais, como habilidades físicas, mentais ou morais, sendo a coragem o atributo mais típico de um 81 herói. Os heróis e super-heróis dos quadrinhos têm como qualidades primordiais a coragem e o fato de estarem dispostos a fazer sacrifícios pelo bem de outras pessoas, mesmo aquelas que eles não conhecem. Eles são representantes do bem e lutam contra o mal. Suas ações devem ser exemplares e altruístas. Eles precisam ser benevolentes, quando necessário, e devem, acima de tudo, respeitar as normas sociais e defender a vida. Levando todos esses pontos em consideração não é possível dizer que um personagem é um super-herói ou uma super-heroína apenas por possuir super poderes. 81 REBLIN, Iuri Andréas. Para o alto e avante: uma análise do universo criativo dos superheróis. Porto Alegre: Asterisco, 2008, p. 22. 46 Então, antes da construção da noção de super-herói (o herói com super poderes), noção que vem sofrendo mudanças e se adaptando aos diversos contextos históricos desde o surgimento do primeiro super-herói, surgiram os “super homens” e as “super mulheres”. Seguindo essa linha de pensamento, encontramos aquela que pode ser considerada a primeira super mulher: Fantomah, Mystery Woman of the Jungle, 82 criação de Fletcher Hanks, que às vezes assinava seus quadrinhos como Barclay Flagg. Fantomah é uma tarzanide e foi publicada pela primeira vez na Jungle Comics #2, em fevereiro de 1940. Personagem movida muito mais pela razão do que pela emoção, essa super mulher age como protetora da selva. Sua origem estava ligada ao Egito antigo, sendo ela representante de uma antiga linhagem de faraós. Fantomah era uma princesa egípcia que retorna à vida para proteger a selva africana. Ela tem vastos poderes mágicos que a tornam invencível e não tem fraquezas aparentes. Figura 10 – Fantomah - Jungle Comics, n. 11, Fiction House’s, p. 30, nov.1940. Linda, branca e loira, como muitas das mulheres da selva e heroínas nos quadrinhos daquele período, a personagem não tem carisma, não expressa emoções e é um anjo da vingança, pronta para punir aqueles que invadem ou 82 MISIROGLU, Gina. A The Superhero Book: The Ultimate Encyclopedia of Comic-Book Icons and Hollywood Heroes. Visible Ink Press, 2004, p. 557. 47 tentam saquear a selva. Algumas vezes, ao usar seus poderes, ela se transforma em uma espécie de fantasma azul, que em alguns momentos lembra uma múmia, deixando de ser uma bela mulher para se transformar numa criatura pavorosa. Noutras, perde o corpo físico e aparece como um cometa, onde apenas sua cabeça flutuando nos permite identificá-la. Fantomah causava medo e era implacável. Fantomah is described as "the most remarkable woman in the universe", which sound less like a superhero, and more like a goddess. Fantomah best fits that ancient image of the goddess who could be both benevolent and terrifying. Like all deities, Fantomah is 83 all-knowing and all-seeing, and has established a set of laws. 84 Figura 11 - Fantomah Suas histórias são sempre marcadas pela violência, seus poderes não têm limites e não são bem definidos. Ela praticamente pode fazer de tudo, é basicamente onipotente. Fantomah não corre riscos, porque eles simplesmente não existem para ela. Nas suas ações não há verdadeiro altruísmo ou sacrifício, o que nos leva a caracterizá-la muito mais como uma super mulher do que uma super-heroína. Como valor moral, o heroísmo não faz parte das suas ações. 83 Fantomah é descrita como "a mulher mais notável no universo", o que soa menos como uma super-heroína, e mais como uma deusa. Fantomah melhor se adapta a imagem de deusa antiga que poderia ser tanto benevolente e aterrorizante. Como todas as divindades, Fantomah é onisciente e tudo vê, e estabeleceu um conjunto de leis (tradução livre do original). MADRID, Mike. Divas, Damages & Daredevils: lost heroines of Golden Age. [Minneapolis?]: Exterminating Angel Press, 2013, p. 776. 84 JUNGLE Comics. Fiction House’, nº 02, 1940 p. 64. 48 Em uma aventura, Fantomah derrota sozinha um exército inteiro85. Noutra, ela ordena a um bando de gorilas que arranquem os membros de um cientista que deseja criar uma raça de guerreiros com gorilas modificados.86 Seus inimigos normalmente são invasores, conquistadores e ladrões. O desenho é, em geral, grotesco, a narrativa é pobre e suas histórias sempre terminavam com um ato de vingança. Fantomah parecia muito mais uma personagem de terror do que uma tarzanide tradicional. É difícil enxergar nela as qualidades de uma super-heroína. Em 1942, na Jungle Comics # 19, a personagem muda. Ela fica morena e se torna Fantomah, Daughter of the Pharaohs. Fletcher Hanks abandona os quadrinhos e deixa a personagem nas mãos de outros artistas, que a transformam numa garota das selvas mais tradicional, sem os fabulosos poderes mágicos de uma deusa, mas ainda descendente dos faraós, parte mais explorada nas suas aventuras. Ela agora é a rainha de uma civilização perdida. Tem uma pantera negra como animal de estimação. As histórias passaram a ser melhor desenhadas e com uma narrativa mais rica e bem trabalhada. Fantomah tem agora características de heroína, não sendo mais um espírito vingativo. Quando Hanks deixou a série em 1941, a personagem aproximou-se mais do modelo de uma típica rainha da selva, como Sheena. Ela ainda possuía poderes mágicos, mas não eram mais infinitos. A personagem passou por um processo de humanização, se podemos assim dizer. A mudança maior veio em 1942, quando Fantomah tornou-se a governante de uma cidade egípcia perdida. Essa nova Fantomah não tinha mais nenhum poder. Suas aventuras na Jungle Comics terminaram em 1944.87 85 JUNGLE Comics. Fiction House’s, nº 12, 1940, p. 31-37. JUNGLE Comics. Fiction House’s, nº 04, 1940, p. 52-58. 87 MADRID, 2013, p. 787. 86 49 88 Figura 12 - Fantomah "Daughter of the Pharaohs . 88 JUNGLE Comics. Fiction House’s, nº 30, 1942, p 15. 50 Se Fantomah foi a primeira mulher nos quadrinhos a possuir habilidades sobrenaturais incríveis, por outro lado não parecia haver interesse do autor em criar uma personagem que se aproximasse do público leitor feminino. Demoraria ainda mais algum tempo para ver surgir uma super-heroína com quem as mulheres pudessem se identificar, com sonhos, temores e dúvidas e lutar contra inimigos mais concretos, mais próximos. 2.3 – June Turpé Mills: a primeira mulher cartunista a criar uma super-heroína Não demoraria muito para que uma personagem muito mais complexa e que vestisse, literalmente, a manta de uma super-heroína chegasse aos quadrinhos. Em 1941 June Tarpé Mills criava Miss Fury. Mills foi uma pioneira, por ter sido a primeira mulher a escrever e ilustrar uma história em quadrinhos de super-herói tendo como protagonista uma super-heroína. June Tarpé Mills Mills nasceu em 191289, no Brooklyn, bairro de Nova York. Ainda jovem, começou a trabalhar como modelo para poder pagar seus estudos no Pratt Institute 90 , em Nova York, onde se graduou em artes. Pretendia trabalhar com escultura, mas uma experiência desastrosa com máscaras de gesso fez com que mudasse de ideia 91 Possivelmente influenciada pelo trabalho como modelo, acabou se especializando em desenhos de moda. No início de sua carreira como cartunista, June Tarpé Mills, assim como muitas mulheres cartunistas antes dela, escondeu seu sexo assinando como Tarpé Mills. Tratava-se de uma estratégia para conseguir chamar a atenção dos editores para o seu trabalho. Tarpé Mills Inicia sua carreira aos vinte e seis anos, em 1938, quando ela fez sua estreia nos quadrinhos com Amazing 89 Nas biografias da autora na internet a data do seu nascimento consta em 1915. No entanto, optamos por usar a data que consta no livro Tarpé Mills & Miss Fury: Sensational Sundays (1944-1949) – The first fenale superhero cread & Drawn by a woman cartoonist, de Trina Robbins, publicado em 2011. 90 O Pratt Institute é uma instituição privada sem fins lucrativos de ensino superior localizada no bairro de Clinton Hill, em Brooklyn, Nova York. Surgiu em 1887 com cursos em engenharia, arquitetura e artes plásticas. Muitos cartunistas de renome frequentaram suas salas. 91 ROBBINS, Trina. Tarpé Mills & Miss Fury: Sensational Sundays (1944-1949) – The first fenale superhero created & Drawn by a woman cartoonist. San Diego: IDW Publishing, 2011, p. 07. 51 Mystery Funnies e Funny Pages. 92 Seu primeiro trabalho foi Daredevil Barry Finn, para a Centaur Publishing. Depois produziu The Purple Zombie e Mann of India, para a Eartern Color’s Reg’lar Fellers Heroic Comics e Fantastic Feature Films para a Target Comics. 93 O sucesso viria, no entanto, com Miss Fury, uma história em quadrinhos muito mais sofisticada. Em 05 de abril de 1941, publicou as primeiras tiras dominicais da superheroína Miss Fury, cujo nome original era Black Fury. As tiras ocupavam uma página inteira de jornal, sendo publicadas nesse formato até 1952. No Brasil, as aventuras da Miss Fury foram publicadas no Suplemento Juvenil, durante o ano de 1944, com o nome de Mulher Pantera, e no Almanaque do Águia Negra, em 1962. Circulando principalmente em jornais, os quadrinhos da Miss Fury colocaram Mills no hall das cartunistas norte-americanas bem sucedidas. No formato de revista em quadrinhos, teve oito números publicados pela Timely Comics (hoje Marvel Comics), entre 1942-1946. Suas revistas, na época em que foram lançadas, venderam mais do que as da Mulher Maravilha.94 Ao criar sua super-heroína, Mills, sem o pretender, acabou abrindo caminho para que outras mulheres cartunistas tivessem oportunidade de se destacar no campo da aventura e da superaventura. Não é exagero colocar a criação da Miss Fury como um momento de mudança dentro da indústria dos quadrinhos, uma mudança que afetaria diretamente as mulheres cartunistas. When Tarpe Mills created her superheroíne Miss Fury in 1941, it signaled a change for female comic artist, By the early 1940s, artists like Ruth Atkinson, Ann Brewster, Barbara Hall and Fran Hopper were drawing superhero stories for a number of different comic books. When male artists were drafted to serve in WWII, it provided even 95 more opportunities for women to draw heroic stories in comics. Um dado que chama a atenção é a relação entre personagem e sua criadora. Marla Drake, a Miss Fury, é inspirada fisicamente na própria Mills. A 92 ROBBINS, 2011, p. 07 Idem. 94 MISS Fury. Disponível em: <http://ladyscomics.com.br/tag/june-tarpe-mills>, acesso em 12 dez. 2011. 95 Quando Tarpe Mills criou sua super-heroína Miss Fury em 1941, sinalizou uma mudança para as artistas de quadrinhos do sexo feminino. No início da década de 1940, artistas como Ruth Atkinson, Ann Brewster, Barbara Hall e Fran Hopper estavam desenhando histórias de super-heróis para um número de diferentes revistas em quadrinhos. Quando os cartunistas do sexo masculino foram chamados para servir na Segunda Guerra Mundial, surgiram ainda mais oportunidades para as mulheres desenhares histórias de heróis nos quadrinhos (tradução livre do original). MADRID, M., 2013, p. 578 93 52 autora se transporta para os quadrinhos na forma de uma super-heroína, embora não tenha vivido literalmente suas aventuras nem possuído qualquer poder especial. Além da aparência física, Mills ainda cria um outro vínculo entre ela e Miss Fury, ao dar a Marla um gato persa, que, na verdade, era seu próprio gato, Peri-Purr. E o pequeno animal não era simplesmente decorativo. Ele atuava nas histórias, chegando até a salvar a Miss Fury de vilões. Não havia como negar: June Tarpé Mills era a Miss Fury. Tarpé Mills created Miss Fury in her own image – literally – and was able to have on paper adventures she could never havein real life. (…) Lest readers think it was mere coincidence that Marla Drake loocked exactly like her creator, a newspaper article from the strip’s first year included a photo of Millsand was headlined, “Meet the Real 96 Miss Fury – It’s All Done With Mirrows”. 97 Figura 13 - June Tarpé Mills . 98 Figura 14 - Marla Drake Uma de suas características pessoais, que ela transfere para suas histórias, é o fato de apreciar o glamour. Então, nada mais natural que suas mulheres sejam bonitas e bem vestidas. No auge de sua popularidade, os 96 Tarpé Mills cria Miss Fury a sua imagem - literalmente - e foi capaz de ter, no papel, as aventuras que ela nunca poderia ter na vida. (...) Para que os leitores que achavam que era mera coincidência Marla Drake parecer exatamente como sua criadora, um artigo de jornal publicado a partir do primeiro ano da tira incluía uma foto de Mills e tinha como título "Conheça a Verdadeira Miss Fury – Tudo é Feito com Espelhos" (tradução livre do original). ROBBINS, 2011, p. 08. 97 JUNE Tarpé Mills. Disponível em: <http://ladyscomics.com.br/tag/june-tarpe-mills>, capturado em 12 dez. 2011. 98 MISS Fury. Timely Comics, n. 07, 1945, p. 34. 53 quadrinhos da Miss Fury foram impressos em centenas de jornais nos Estados Unidos, bem como em Europa, América do Sul e até mesmo na Austrália.99 Will Eisner afirmava: “Quem trabalha com quadrinhos de super-heróis e coisas do tipo sempre se esconde sob a fantasia”.100 No caso de Tarpé Mills, isso não apenas é evidente, como foi usado como forma de promover a série. Mills não foi a única. Outras cartunistas deram vida às suas personagens tendo a si mesmas como pontos de referência. Aconteceu o mesmo com Jackie Ormes, cujas personagens femininas adultas assemelham-se a ela. Em Touchy Brown, a semelhança com a autora é inegável, e não se limita apenas ao aspecto físico. Touchy compartilha das paixões e do idealismo de sua criadora. Figura 15 - Zelda Jackson Ormes 101 102 Figura 16 - Touchy Brown Dale Messick, apesar de ter se inspirado em Rita Hayworth para caracterizar fisicamente Brenda Starr, deu a ela traços da sua própria personalidade, como seu gosto pela moda e por viver bem. Messick chegou a tingir o cabelo de ruivo para combinar com os de Brenda. Quando dava entrevistas costumava dizer: "Eu sou Brenda Starr."103 99 MISIROGLU, G., 2004, p. 349. SCHUMACHER, 2013, p. 120. 101 TORCHY Brown. Disponível em: <http://museumofuncutfunk.com/2009/10/05/torchybrown/>, acesso em: 02 jan. 2013. 102 Idem. 103 SEVERO, R., 2005. 100 54 As personagens femininas produzidas por essas mulheres parecem ter uma relação empática com suas criadoras. Aparência física, traços de personalidade, ideais e ideias. São mulheres reais transportadas para os quadrinhos, vivendo aventuras, passando por dramas, protagonizando verdadeiros romances em quadrinhos. Isso talvez explique o fato de elas terem sido produzidas quase que exclusivamente por suas criadoras, ao contrário de outros tantos personagens que passaram pelas mãos de dezenas de desenhistas e roteiristas. Quando Messick é praticamente forçada a se aposentar, escolhe suas sucessoras. Ormes encerra a tira Touchy Brown, que para de ser publicada. É como se apenas elas pudessem ser capazes de entender aquilo que movia suas personagens. Como a maioria das tiras de aventuras, Miss Fury atingiu o pico de sua popularidade durante a II Guerra Mundial, quando ela foi tema de artigos de jornal e até mesmo de um texto publicado na Time Magazine, em 1943. As tiras publicadas em jornais foram reunidas em publicações semestrais, num total de oito, na forma de revistas em quadrinhos e chegaram a vender um milhão de cópias. Essas revistas estão, atualmente, entre os itens de colecionador considerados de grande valor monetário.104 Tarpé Mills começou a ter problemas com prazos de entrega do material, o que pode ter relação com problemas de saúde que a cartunista enfrentava. Ela sofria fortes crises de asma que chegavam a resultar em sua hospitalização. Mills também sofria com crises de artrite. A artista teve que interromper momentaneamente o trabalho para cuidar da saúde.105 Em 1947 as tiras da Miss Fury deixaram de ser publicadas por seis meses. Mills, por orientação de seus advogados, teve que interromper temporariamente a produção das tiras da Miss Fury, devido a um processo de plágio. Uma personagem, lançada em 1945, cujo nome era Miss Cairo Jones, criada por Jerry Albert e Bob Oksner, teria sido inspirada na Miss Fury. A questão é que as aventuras da Miss Cairo Jones eram distribuídas por um syndicate filiado ao Bell Syndicate, que distribuía as tiras da Miss Fury.106 104 ROBBINS, 2011, p. 17. Ibidem, p. 14. 106 Ibidem, 2011, p. 13-14. 105 55 Figura 22 – Miss Cairo Jones. Personagem que gerou processo de plágio era uma detetive sem superpoderes. O grande pivô foi o uso da palavra “Miss” antes do nome da personagem 107 que, segundo seus criadores era uma homenagem a Miss Fury. Mills parou de produzir os quadrinhos da Miss Fury em 1952. A autora praticamente se aposentou da indústria dos quadrinhos. Fez um breve retorno em 1971, para ilustrar uma produção para a Marvel, um romance chamado Our Love Story, para a Marvel Comics. No entanto, não obteve o mesmo sucesso das décadas de 1940 e 1950. Inspirada nas primeiras aventuras da Miss Fury, Mills investiu em uma Graphic Novel, que tentou lançar em 1979, com uma história protagonizada no Brasil, com seu personagem masculino favorito, o índio brasileiro Albino Jo. Reforçava seu fascínio pelo país que nunca chegou a conhecer. A revista não foi lançada nem terminada, mas as páginas que Mills desenhou mostram um Albino Jo mais moderno, bem no estilo dos anos de 1970, assim como retrata paisagens brasileiras, com direito até a uma passista de escola de samba. De 1979 até sua morte em 1988, a artista tentou, sem sucesso, vender quadrinhos 107 MISS Cairo Jones Comics. Croydow Publication.CO, vol. 01, n. 01, 1945, p. 03. 56 baseados em seu herói de guerra, Albino Jo, mas o material não agradou aos editores.108 Albino Jo, o homem com olhos de tigre, foi um personagem coadjuvante em Miss Fury. Ele era um aventureiro que havia percorrido o mundo e colecionava histórias. Algo que agradava a Mills, cuja produção envolvia narrativas em lugares exóticos e não se concentrava nos Estados Unidos. No entanto, como protagonista de suas próprias histórias, Albino Jo não agradou às editoras. Sua tentativa de atualizar seu estilo noir, por meio de um personagem masculino, não deu certo. Talvez um dos grandes méritos da obra de Mills seja o fato de que suas mulheres são plurais e sua personalidade é explorada de forma profunda. Elas representam outras mulheres de sua época, das mais comportadas às mais ardilosas. Mesmo as vilãs são carismáticas. O universo feminino de Miss Fury representa a diversidade e apresenta as mulheres não apenas como um pano de fundo para a aventura. Elas não precisam ser salvas pelos homens, elas mesmas podem se salvar; elas expressam seus sentimentos de forma intensa; elas são sensuais de uma maneira tão espontânea e natural que não cativam o leitor apenas pela sua beleza física mas pelo conjunto de suas características. Aliás nenhuma autora, além de Mills, talvez tenha tido, na época, capacidade de explorar tão bem a sensualidade feminina sem dar a ela uma conotação negativa. Há uma grande área cinza presente na forma como as mulheres são representadas, das heroínas às simples coadjuvantes. Se, por um lado, temos homens com uma visão machista e sexista das mulheres, de outro há mulheres que reproduzem a mesma visão. O machismo não é exclusivamente masculino, nem seu oposto. Mas homens e mulheres, independentemente da visão de mundo que possuem, acabam chegando a um acordo. Eles contam a história de uma forma muito parecida, reproduzem estereótipos e, em certos momentos, chegam às mesmas conclusões. Em maior ou menor grau, a ideologia antinazista e o discurso em defesa da liberdade são um ponto comum, um ponto de união. 108 ROBBINS, 2001, p. 63. 57 A década de 1940 aproxima homens e mulheres que não podem ser resumidos a uma visão simplificada de gênero. As relações de gênero desse período em especial são marcadas pela mesma diversidade que caracteriza os quadrinhos e seus personagens. Nos quadrinhos de Mills essas relações se apesentam ora de forma sutil, ora de forma bem clara. Ela consegue nos trazer personagens que traduzem bem a diversidade de papéis assumidos por homens e mulheres apresentando uma multiplicidade de ações e relações que vão de encontro ou se chocam com o modelo socialmente estabelecido das relações de gênero. A partir dos seus personagens, dos quais a mais complexa foi a Miss Fury, podemos entender essa diversidade e construir uma História das Mulheres que não vai excluir os homens, mas que vai compor um quadro mais amplo da participação feminina na História. CAPÍTULO 3 - AS MULHERES E A SENSUALIDADE NO UNIVERSO DE MISS FURY 3.1 – Heroínas e super-femininas As mudanças sociais e crises políticas e econômicas que marcaram a primeira metade do século XX forçaram mudanças sociais. As relações de gênero tiveram que ser adequadas aos diversos momentos em que os homens não puderam mais arcar sozinhos com o ônus gerado pelas crises. No entanto, era preciso manter vivo todo um discurso que lembrava a mulher do seu papel subalterno. Era preciso ter sempre um modelo idealizado de mulher. Nos quadrinho não era diferente. As heroínas dos quadrinhos deveriam representar o ideal da mulher moderna. Bela, frágil, recatada e romântica... essa é, finalmente, a mocinha das histórias em quadrinhos da era de ouro – anos de 1930 e 1940. Ela é a eterna namorada ou noiva. Modelo de virtude a ser seguido; mulher idealizada para ser sonhada. Mas essa mulher, como não podia deixar de ser, tem seu duplo: a vilã109 Se por um lado havia a mulher ideal, aquela que reunia todas as qualidades que fariam dela a boa namorada, a boa noiva, a boa esposa e boa mãe, havia seu inverso, a vilã. Ela é o oposto da mocinha, ela é sensual, ela usa maquiagem que ressalta seus olhos, roupas que deixam à mostra partes do seu corpo e possui uma beleza quase selvagem. Ela não respeita os homens, ela os enfrenta, representando tudo aquilo que a sociedade burguesa condena. Ela deve ser observada e até desejada, mas deve ser combatida. A beleza da vilã representa o desconhecido que amedronta, mas fascinava e reunia tantas significações que era possível associá-la, diferentemente da mocinha, a vários tipos de desvios – beleza glacial, 110 beleza demoníaca, beleza cortesã, beleza superficial, etc . Tanto a mocinha quanto a vilã seduzem o herói e o leitor de formas diversas. Elas representam dois modelos femininos antagônicos e sua existência tem um caráter pedagógico. Elas ensinam aos meninos/rapazes a distinguirem entre a santa e a vagabunda, a mulher que serve para ser esposa 109 OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao Quadrado - as representações femininas nos quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). – Brasília: Universidade de Brasília: Finatec, 2007, p. 67. 110 Ibidem, p. 70 59 e mãe daquela com quem eles devem apenas manter relações superficiais. A mocinha representa o ideal do amor conjugal, que edifica e constrói; a vilã representa por sua vez a paixão, tida como destruidora de espíritos e cujo fogo rapidamente se esvai. Uma característica dos meios de comunicação, que se acentua na década de 1920, é de construir imagens superficiais de mulheres. Nos quadrinhos, ela pode ser sedutora na forma da eterna namorada, subserviente, ou da esposa cúmplice do seu cônjuge, aquela que se sacrifica para a felicidade do marido e da família. Quando solteiras, elas exalam sensualidade, uma vez casadas tornam-se modelos de pureza.111 As mulheres nos quadrinhos de June Tarpé Mills, embora ainda conservem alguns estereótipos, sinalizam para uma mudança de comportamento nas mulheres da década de 1940. Não apenas pela sua independência, afinal alguma independência é tolerada e necessária na mulher moderna, mas pelas suas iniciativas. Elas lutam pelo que desejam, são decididas e não têm vergonha de seu corpo ou de expressar sua sensualidade. Não são simplesmente decorativas. São elas que dão aos quadrinhos da Miss Fury o tom de um grande romance de aventura. São mulheres sem medo de serem mulheres e, ao mesmo tempo, mostrando que não existe fragilidade em ser feminina. Se as leitoras se encantam com o glamour das personagens, com os feitos da Miss Fury, ao mesmo tempo elas têm contato com um universo onde estão sempre no comando, sejam elas as mocinhas ou as vilãs. Embora o erotismo não esteja explicito, ele está presente em várias situações, numa frase de efeito, no ato de despir uma roupa na frente do espelho ou num banho de espuma. Elas não têm vergonha do seu corpo e têm consciência do poder da sua beleza. Mesmo vilãs e mocinhas, em Miss Fury, exploram sua sensualidade. Elas representam anseios e desejos femininos. Os leitores, os homens, por sua vez, deixam a imaginação voar longe com as cruzadas de perna ousadas, decotes generosos e cenas onde as personagens usam apenas lingerie ou perdem parte da roupa após uma luta ou uma fuga. Mills tem o dom de dar à trama uma pitada certa de erotismo, sem 111 KLEIN, Sheri (1991) "Breaking the Mold with Humor: Images of Women in the Visual Media," Marilyn Zurmuehlen Working Papers in Art Education: Vol. 10: Iss. 1, Article 9, p. 30. Disponível em: <http://ir.uiowa.edu/mzwp/vol10/iss1/9>, acesso em: 19 jan. 2014. 60 cenas apelativas ou que exponham exageradamente e desnecessariamente o corpo feminino. Figura 18 – Marla Blake colocando o uniforme 112 de Miss Fury. Figura 19 – A baronesa Erica vom Kampf. 113 Tarpé Mills nos traz um corpo feminino belo e sensual, nem completamente revelado, nem completamente escondido dos olhares mais curiosos. Suas mulheres estão sempre bem vestidas. Suas roupas, das mais simples às mais glamourosas, valorizam o corpo e tornam o cenário mais interessante. As mulheres, quando liam os quadrinhos, podiam de lá tirar ideias para roupas novas, os homens podiam apreciar as formas femininas, imaginando mulheres reais no lugar das fictícias. Fosse como fosse, o(a) leitor(a) interagia com a obra, recebia, decodificava e assimilava as informações visuais transformando aquela leitura numa prática cultural. Prática essa que, de alguma forma, era coerente com a realidade vivida ou que se desejava viver. Uma passagem (Figura 20) chama atenção já nos primeiros capítulo de Miss Fury. É uma luta na varanda de um prédio, entre Marla Drake, a mocinha, e a Baronesa Erica Von Kampf, a vilã. Na cena, temos duas belas mulheres, uma delas usando apenas uma lingerie. Mais do que toda a ação envolvida, o 112 113 MISS Fury. Timely Comics nº 03, 1943, p. 25. MISS Fury. Timely Comics nº 02, 1942, p. 14. 61 lingerie de Marla e o decote da baronesa que vão provocar a imaginação masculina. Mills sabe seduzir e envolver o leitor masculino. O uso do lingerie na cena é um exemplo de como ela entende, também, o universo masculino. As peças íntimas eram usadas como uma necessidade mas, também, eram uma questão de estilo e sensualidade, tornando-se um fator determinante para a beleza estética feminina114 Figura 20 - Marla e Erica se enfrentam pela primeira vez (fragmento). Quadrinho publicado originalmente em 22 de junho de 1941.115 Graças à lingerie, o corpo passou a ser um objeto estético, fonte de desejo e contemplação, não só o santuário de virtudes vitorianas e hipocrisia. O pudor começava a recuar. Inculcado desde a primeira infância e reforçado nas meninas durante a adolescência, doravante ele iria se articular com as exigências do casamento 116 114 JORGE, Juliany Aparecida. Coleção de vestuário pela marca Santa Madre. Monografia apresentada como requisito para a obtenção do título de Bacharel de Moda pela Universidade do Vale do Itajaí. Centro de Educação. II, Balneário Camburiú, 2008, p. 38. 115 ROBBINS, 2011, p. 15. 116 DEL PRIORE, M., 2011, p. 109. 62 As roupas minúsculas, transparentes ou decotadas, que colocavam à mostra boa parte do corpo, faziam das personagens femininas da época um fetiche para os jovens. Foi um recurso muito usado pelos quadrinhos na década de 1940. Trata-se da Good Girl Art (GGA), que abundou nos anos de 1940 e 1950. São quadrinhos que utilizam um tipo de versão narrativa de uma pin-up. A Good Girl Art poderia ser encontrada com bastante frequência na capa de revistas. Durante a II Guerra Mundial, esse tipo de representação feminina fez um grande sucesso, sendo muito popular entre os soldados.117 118 Figura 21– Capa da Kaänga Comics. Figura 22 – Capa da Jo-Jo Congo King. 119 As GGA podem apresentar uma imagem de fragilidade, sendo exploradas situações onde elas se encontram amarradas (bondage), sob ameaça ou prestes a serem salvas pelos heróis. Essa imagem foi a que mais se perpetuou durante a guerra, sendo usada como forma de inspirar os soldados que estavam no front. Suas roupas podem estar rasgadas ou são propositalmente desenhadas de forma a deixar perna e seios quase totalmente 117 SCOTT, Kevin Michael. Images of women in the popular culture publications of Fiction House, 1941-1952. A Thesis Submitted to the Graduate Faculty in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree of MASTER OF ARTS. Iowa State University, 1991, p. 28. 118 KAÄNGA Comics.Fiction House, nº. 04, 1950. 119 JO-JO Congo King. Foz Feature Syndicaten, nº. 11, 1948. 63 à mostra. É uma mulher que exala sensualidade e que está presente em muitos quadrinhos da época, desenhados por homens e por mulheres. A princípio, ela será representada como a mulher sexualmente passiva, que não age de acordo com sua vontade. A vítima que precisa sempre ser resgatada. Nesse caso específico, é a mulher sem domínio sobre o próprio corpo, que precisa ser protegida pelos homens. Para os soldados em guerra, ela representa uma visão idealizada da feminilidade e da pureza. Sexualmente desejável, mas sem ter consciência do poder da sua feminilidade. Esse tipo de recurso aparece com muita evidência nas capas de revistas em quadrinhos da selva, muito populares naquele período. A sexualidade das mulheres em propagandas e nos quadrinhos é a fórmula encontrada para atrair o leitor do sexo masculino. Assim, a partir da lógica machista das editoras, as mulheres são vistas a partir do olhar do homem, do leitor em potencial.120 Essas imagens de mulheres transformadas em objeto de desejo e admiração nos conduzem a uma reflexão acerca da feminilidade e sexualidade como discursos construídos que geram significados. Nos quadrinhos da Miss Fury, há relações amorosas mas não existem cenas de sexo explicitas. Os pares românticos que se formam durante a trama não são platônicos, pelo contrário. Em algumas cenas pode-se perceber uma forte tensão sexual, mas existe um controle das emoções que deixa o(a) leitor(a) curioso(a) em saber o “final” da trama. Mills explora muito bem o potencial do romance e sabe equilibrá-lo com a aventura. Uma característica das histórias da Miss Fury é que a autora faz questão que o(a) leitor(a) tenha contato com os sentimentos dos personagens. As mulheres se abrem, mostram suas inseguranças, suas dúvidas. Elas podem exprimir seu ciúme, sua tristeza, sua raiva e seu medo. O(a) leitor(a) entra em sua mente e compartilha de seus pensamentos mais íntimos. São personagens de papel mas que não passaram para o(a) leitor(a) uma sensação de artificialidade. 120 Cf. KLEIN, S., 1991. 64 121 Figura 23 - Tensão do reencontro de Marla de Gary . Elas têm ideais e inspiram os(as) leitores(as) a serem pessoas melhores. São quadrinhos de aventura/superaventura onde a ação é uma fórmula usada para promover uma parte do entretenimento, mas vão ser as atitudes pessoais, as emoções dos personagens que realmente dão à trama forma e vigor. Se Stan Lee é até hoje muito festejado pelo fato de ter trazido ao público super-heróis mais humanizados, como o Homem Aranha, por exemplo, Tarpé Mills descobriu a fórmula muito antes disso. A narrativa que dá forma às aventuras de Miss Fury está repleta de dramas psicológicos, e revela as dúvidas, sentimentos e dramas que poderiam ser vividos, em maior ou menor proporção, por pessoas reais, homens ou mulheres. Miss Fury representa o amadurecimento de Mills enquanto cartunista. Nessa história em quadrinhos a autora recicla ideias e cria personagens 121 MISS Fury. Timely Comics, nº 07, 1945, p. 09 e 10. 65 baseados em trabalhos anteriores, em séries como Fantastic Feature Films, Diana Deane in Hollywood e Mann of Índia. Mills fashioned her characters as actors in adventure movies and was already giving those characters as actors in adventure movies and was already giving those characters names she would recycle in Miss Fury: Gary Hale, the explorer whom she turned into Marla Drake’s handsome but weak fiancé; Karen Drake, whose last name would be appropriated for Marla Drake, the socialite alter ego of Miss Fury; and Darron Davis, a first name she would resurrect for Marla’s adopted son, Darron Drake. Mills obviously liked the surname “Hale” because she used it again for the young scientist Kinberly Hale, creator of The Purple Zombie. In later “Purple Zumbie” stories Mills introduced a hunchbacked, red-haired mad scientist improbably named Chico, a name she gave the dashing Argentine fighter and pride of the Pampas, Don Chico, in Miss Fury. The “white goodness” swinging on vines though the jungle in “Diana Deane in Hollywood” is called Ora, a 122 name Mills charges to Era in the newspaper strip. Mills estabelece um diálogo entre o cinema e os quadrinhos. Ela não está apenas utilizando elementos culturais presentes naquele momento, mas demonstra conhecimento e domínio sobre eles. Ela se interessa por filmes de aventura e ação. Ela também gosta de romance, mas é a aventura que a atrai. Lugares exóticos que estão na moda naquele momento, como o continente africano e a exótica índia, além das terras paradisíacas da América do Sul que lhe parecem ser um atrativo maior, o que será mais à frente analisado. 122 Mills construía seus personagens como atores em filmes de aventura e já tratava os personagens como atores em filmes de aventura, dando a esses personagens nomes dos personagens que ela iria reciclar no Miss Fury : Gary Hale, o explorador a quem ela transformou no noivo bonito, mas fraco (covarde), de Marla Drake; Karen Drake, cujo sobrenome seria apropriado para Marla Drake, o alter ego “socialite” da Miss Fury, e Darron Davis, o primeiro nome que iria ressuscitar para o filho adotivo de Marla , Darron Drake. Mills, obviamente, gostava do sobrenome "Hale", tanto que ela tornou a usá-lo para o jovem cientista Kinberly Hale, criador de The Purple Zombie. Nas histórias seguintes do “The Purple Zombie” Mills introduziu um cientista corcunda ruivo e louco, com o improvável nome de Chico, um nome que ela deu ao lutador argentino arrojado e orgulho dos Pampas , Don Chico, no Miss Fury. A "bondade branca" balançando-se em cipós através da selva em " Diana Deane em Hollywood" é chamada Ora , nome que Mills atribuiu a Era na tira de jornal (tradução livre do original). In: ROBBINS, 2013, p. 07. 66 Figura 24 - Série Diana Deane in Hollywod,um dos primeiros trabalhos e Mills, gênero tarzanide, publicado em 1938 na Funny Pages #10.123 Figura 25 - Série Fantastic Feature Films, produzida por Tarpé Mills e publicada em Target Comics, 1940. Na apresentação dos personagens pode-se perceber não apenas familiaridade nos nomes, mas no traço de personagens que lembram aqueles que iriam formar o universo da 124 Miss Fury, em 1941. 123 124 ROBBINS, 2013, p. 14 Ibidem, p. 12. 67 Figura 26 - Série Mann of India, de Tarpé Mills, publicada na Reg’lar Fellers Heroic Comics, em 125 1940 Figura 27 - Série de ficção científica e aventura de Mills, Purple Zombie, publicada na Reg’lar Fellers Heroic Comics, em 1940.126 125 126 ROBINNS, 2013, p. 20. Idem. 68 Como cartunista, Tarpé Mills invade o mundo da aventura de forma elegante e versátil, aproveitando bem os estereótipos produzidos e largamente reproduzidos nos personagens, heróis ou vilões, da época de ouro dos quadrinhos. Por outro lado, a composição de sua obra vai muito além da mera reprodução de uma fórmula pré-concebida. Ela nos diz muito da Mills mulher, seus gostos, seus interesses, colocando em xeque a representação feminina corrente naquele momento. A mulher moderna de Mills possui peculiaridades que podem ser identificadas no discurso e nas ações dos personagens. Dentre as muitas personagens femininas criadas por Mills, duas mulheres se destacam nas tiras da Miss Fury. A super-heroína, Marla Drake e sua principal arquiinimiga, a Baronesa Erica Von Kampf. Nessas duas mulheres procuraremos identificar as representações femininas que Tarpé Mills traz para os quadrinhos e até que ponto essas representações estão ou não relacionadas às mulheres reais das décadas de 1940 e 1950. 3.2 – Marla Drake: uma heroína relutante Marla Drake era uma das mulheres mais ricas de Nova Iorque, uma socialite que cultivava uma vida luxuosa e sem muitos riscos. Solteira, vivendo em sua cobertura, tinha como única preocupação sua vida amorosa. Essa é a mulher que Mills escolhe para se tornar a Miss Fury. Ela pertence a uma classe privilegiada e nunca teve que enfrentar dessabores e infortúnios. Seu futuro já estava planejado: ela entregaria o controle da sua vida a um marido e se contentaria em ter filhos, participar de festas de caridade e bailes. Marla é o paradigma da mulher de elite presente nas revistas de moda e nas colunas sociais. Mas tudo muda numa noite, por conta de uma futilidade. Conversando ao telefone, a socialite descobre que outra mulher usaria uma roupa idêntica à sua em um baile de máscaras pra o qual ela se preparavar. Irada, ela rasga a roupa, que havia perdido sua originalidade. Francine, a empregada, oferece uma solução. Ela sugere que ela use a manta de pantera negra, uma veste cerimonial de origem africana que havia ganhado de seu tio. Marla experimenta a manta e, como não tem opções, resolve ir à festa com a fantasia, sem saber que sua roupa era um artefato que continha magia negra. A vida de Marla Drake começa a mudar a partir de então. A caminho da festa ela é abordada numa estrada deserta por um desconhecido. Assustada, 69 acreditando tratar-se de um perigoso assassino, cuja perseguição estava sendo noticiada pelo rádio, Marla reage quase que instintivamente, desarmando e nocauteando o suposto criminoso. Quase em seguida, outro carro chega e ela percebe que havia cometido um erro. Na realidade Marla havia derrubado o detetive Dan Carey, que estava perseguindo o assassino. O verdadeiro criminoso a rende e ameaça. Mais uma vez ela reage e, usando força e inteligência, derrota o criminoso, deixando-o inconsciente e algemado ao lado do detetive. Marla retorna assustada para casa e descobre, no dia seguinte, que sua pequena aventura havia se tornado destaque nos jornais, que comentavam a prisão do assassino pela misteriosa mulher vestida de pantera. A polícia, mais especificamente o detetive Carey, passa a investigar aquela que foi apelidada de Black Fury. Assim têm início as aventuras de Miss Fury. Esse pequeno evento desencadeia uma série de outros que levam Marla a uma jornada de autoconhecimento, descobertas e amadurecimento. A manta de pantera era mágica e dava super poderes, aumentando a força e dando habilidades acrobáticas a quem a usasse. No entanto, a magia tinha um preço. Toda vez que a heroína vestisse a roupa alguma coisa seria cobrada ou tirada dela. Marla, a partir de então, foi forçada a sair da sua vida confortável e protegida, a conhecer o sofrimento e a passar por provações que iriam colocar em xeque as certezas que ela cultivara ao longo da vida. Quanto mais luta contra seu destino, mais a jovem fica envolvida em aventuras e mistérios. Dessa forma, a fantasia se torna uniforme e a socialite vira super-heroína. Para manter sua identidade secreta, Marla conta com a ajuda de Francine e de seu porteiro Cappy, que se desdobram para que, nem a polícia nem seu namorado Gary Hale, descubram seu segredo. Marla, ao contrário de outros super-heróis, é prática: ela simplesmente não quer sua vida exposta. Seu disfarce era apenas um último recurso para que as pessoas não descobrissem as confusões nas quais havia se metido. 70 Figura 28 - Origem da Miss Fury. Marla veste pela primeira vez o a roupa de pantera que irá lhe 127 dar super-poderes. 127 MISS Fury. Timely Comics, 1942, nº 01, p. 03. 71 Figura 29 - Marla tem seu primeiro combate como Miss Fury.128 128 MISS Fury. Timely Comics, 1942, nº 01, p. 05. 72 Entender a origem de um super-herói é importante para entender aquele em quem ele vai se tornar. Nos quadrinhos os super-heróis são, em geral, pessoas comuns que se deparam com situações incomuns e são obrigados a fazer escolhas. Essas escolhas estão constantemente afetando suas vidas e a vida das pessoas que os cercam. Elas serão, também, definidoras de seu caráter. Quando Marla veste a roupa de pantera e usa suas habilidades, ela começa uma jornada marcada por angústia e sofrimento. Ela vai se tornando uma nova mulher. Miss Fury não é uma representação das mulheres que estão sendo forçadas a mudar? A sair do conforto e segurança de seus lares para enfrentar longas jornadas de trabalho? Elas não estão se sacrificando, também, no esforço de guerra? Se levarmos em conta o contexto em que as aventuras de Miss Fury foram escritas, a reposta seria repetidamente “sim”. A década de 1940 foi um período de grande incerteza, onde todos, homens e mulheres, foram chamados a lutar contra a ameaça das ditaduras totalitárias. A mulher foi considerada abertamente mão de obra reserva. 129 Diferenças de gênero à parte, as mulheres assumem o comando de seus lares, ocupam postos de trabalho que antes eram de seus pais, irmãos ou maridos, elas são chamadas a colaborar com seu país como nunca antes havia ocorrido. Quando contextualizamos o período somos levados a crer que a inserção das mulheres no mercado de trabalho foi necessária e temporária; que antes da guerra elas não estavam lá, nas fábricas, lojas, hospitais, escolas e escritórios; que depois da guerra elas simplesmente voltariam para suas casas e retomariam suas vidas sem que nada houvesse mudado. Esse era o discurso oficial. Mas entre o oficial e o real existe uma grande lacuna a ser preenchido. É fato que as mulheres sempre estiveram presentes no mercado de trabalho, como também é fato que a sociedade machista sempre resistiu a reconhecer o valor do trabalho feminino. Em maior ou menor quantidade, as mulheres estavam ativas. A eclosão da II Guerra Mundial abriu uma brecha para que um maior número delas pudesse ser inserido no mercado de trabalho norte-americano. 129 OLIVEIRA, S., 2007, p. 84. 73 Não apenas se ampliaram as oportunidades como, pelo menos nesse período, as mulheres tiveram reconhecido o seu valor como força de trabalho. As mulheres norte-americanas foram tão competentes quanto os homens e a sociedade, em nome do bem da nação, incentivou e reforçou esse sentimento de autoestima. Então, se familiares relutantes acreditavam que as meninas deveriam ter uma educação básica e não muito aprofundada, pois seu destino era o casamento, esses mesmos familiares se viram obrigados a incentivar essas mesmas meninas a trabalharem fora de casa. Se as esposas antes contavam com a renda do marido para manter a casa e os filhos, agora elas vão ter que trabalhar, pois seus maridos estão na guerra e impedidos de suprir todas as necessidades domésticas. Marla Drake representa essa transformação. Essa necessidade de tomar as rédeas, de assumir outras responsabilidades, de fugir de padrões impostos. Ela se descobre uma mulher capaz de vencer obstáculos, de superar expectativas. E isso não se deve exclusivamente aos poderes que adquire quando veste sua manta de pantera. Na verdade, uma das coisas que mais chama atenção nas histórias da Miss Fury é o fato de Marla raramente usar a roupa. Usar os poderes mágicos da veste pode lhe trazer problemas. A magia irá lhe cobrar, tirar dela algo importante. Então, na maioria das vezes, ela conta com a sua inteligência, seus reflexos naturais, e com sua capacidade de observação para escapar de situações perigosas. Ela é simplesmente inteligente, corajosa e desenvolve um forte senso de justiça. A princípio, Marla é uma heroína relutante, que deseja retornar para sua confortável e ociosa vida de mulher rica, mas é sempre puxada para alguma missão, como se a manta não lhe permitisse novamente ter uma vida normal. Começa, então, a mergulhar cada vez mais profundamente em uma vida de segredos e perigos. O grande drama da sua vida é perder o amor de Gary Hale, para quem teve que mentir a fim de não revelar sua dupla identidade. Uma série de acontecimentos separa o casal, apesar dos esforços de Marla. Mas a heroína não se deixa abater, tendo até outros interesses românticos (o detetive Dan Carey, por exemplo), embora Gary ocasionalmente retorne à cena, balançando o coração da Miss Fury. Mills usa muito a ideia de 74 amor predestinado, à medida em que cria circunstâncias que sempre aproximam os ex-namorados. Marla chega a adotar uma criança, sem saber que era filho de Gary. Figura 30 - Dary Hale casa-se com Erica e Marla lamenta seus infortúnios colocando a culpa 130 na pele de leopardo mágica . Principalmente por atrapalhar sua vida pessoal, Marla odeia sua identidade secreta. Tenta ao máximo se afastar dos problemas, mas circunstâncias acima do seu controle sempre levam Miss Fury a ter que usar o traje para consertar algum erro.131 Segundo Mike Madrid, 132 as super-heroínas, cujas aventuras foram escritas por homens, tiveram um destino parecido com o de seus pares masculinos, sendo submetidas a uma vida dupla, que elas abraçavam voluntariamente e com obstinação, a fim de lutar contra as injustiças. Já Tarpé Mills tem uma abordagem diferente com relação à identidade secreta de Marla. Ela é mais realista e prática. Marla não abre mão da sua vida para manter seu segredo. Sua identidade como Miss Fury foi um meio para atingir determinados fins e não corresponde a seus sonhos. Marla não aprecia ser uma superheroína, embora não tenha tido controle sobre os eventos que a conduziram a isso. As histórias de Miss Fury são as histórias de Marla Drake e não o contrário. A personagem não desejava a responsabilidade que a manta de pantera negra havia lhe dado. Não queria superpoderes nem se envolver em tantas 130 ROBBINS, 2011, p. 20. MADRID, Mike. The Supergirls: Fashion, feminism, fantasy, and the history of comic book heroines. [Minneapolis?]: Exterminating Angel Press, 2009, p. 08 132 Ibidem, p. 09 131 75 aventuras. Talvez por isso Marla, e não a Miss Fury, seja o foco central de toda a trama. Ela é Miss Fury porque na maioria das vezes não tem opção. Mas sua identidade secreta não anula sua personalidade civil. Marla é a mesma pessoa, com ou sem o uniforme. Este traço em especial é o que dá mais autenticidade à personagem criada por Mills e a diferencia das futuras super-heroínas. Usar a manta e colocar-se em risco permitiu a Marla descobrir uma outra pessoa dentro dela, capaz de enfrentar situações difíceis, de refazer sua vida, de lutar pelos seus interesse e passar em cima de tabus sociais que ela mesma já havia defendido. Ela se torna uma nova mulher, Marla ganha uma nova perspectiva, uma nova visão sobre a sociedade de sua época. Se a Marla dos primeiros anos da tira era uma sonhadora, uma mulher que estava atrás do amor e de uma família nos moldes tradicionais, uma mulher mais amadurecida e senhora de si vai surgindo aos poucos. Ela teve sua família, embora não tenha sido exatamente uma família convencional. Ela torna-se mãe solteira. Salva e adota uma criança, que na verdade, é filho de Gary Hale com sua arqui-inimiga, Baronesa Erica Von Kampf. A antiga Marla Drake não seria tão ousada. Uma nova mulher começa a ser talhada a partir dos eventos que se sucederam ao dia em que vestiu pela primeira vez a manta de pantera que lhe deu poderes. De certa maneira ela marca a transformação de Marla, que vai abrindo espaço em sua vida para novas opções, rompendo com antigos padrões de comportamento e se adequando aos novos tempos. Difícil não relacionar essa mulher de papel com as mulheres reais, que na década de 1940 são forçadas a mudar suas vidas em função do esforço de guerra. Difícil não pensar em como mais de meia década de independência financeira, de reconhecimento pelo esforço, de estímulo ao trabalho, à participação e à ação não teria feito da mulher norte-americana uma mulher diferente daquela de anos anteriores. Mais complicado ainda acreditar que essas mulheres simplesmente deixaram tudo isso para trás com o final da guerra. 3.3 – Baronesa Erica Von Kampf, a espiã nazista Todo bom quadrinho de superaventura tem que ter um vilão carismático. É ele que vai dar o tom da história, a emoção, e trazer uma dose de suspense. 76 Afinal, o herói ou a heroína precisam de desafios que só um bom antagonista pode oferecer. No caso das aventuras da Miss Fury, a baronesa Erica Erica Von Kampf, a espiã nazista é a vilã preferida, tanto do público quanto da própria autora. Erica é aquilo que se espera de uma espiã de guerra: bonita, inteligente e muito ardilosa. Ela manipula, mente, mata e engana se isso lhe trouxer algum benefício. Seu sobrenome é uma referência direta ao nazismo Kampf, inspirado no livro de Adolph Hitler, Mein Kampf, base da ideologia do Nacional Socialismo. Ela não entra na vida da Miss Fury propositadamente, muito pelo contrário. Vai ser Marla que acidentalmente vai interferir nos planos da baronesa e de seu parceiro de vilania, o General Bruno. A partir de então a vida dessas duas mulheres passa a se cruzar constantemente. Se a princípio Marla age de forma a atrapalhar os planos de Erica, num segundo momento, é a baronesa que interfere diretamente na vida de Marla. Essa interferência se faz sentir com mais intensidade no plano pessoal. Erica atrapalha o romance de Marla com Gary Hale, seu namorado, que já vinha sofrendo problemas devido aos segredos de Marla (no caso, ela esconde que é Miss Fury e que se envolve em várias aventuras combatendo o crime). Interesseira, Erica seduz Gary Hale e casa com ele. Um Gary deprimido, acreditando que Marla não o ama, parte para o Brasil. A vinda de Gary para terras brasileiras é um marco, um divisor de águas. Nos quadrinhos da Miss Fury o país sul americano se torna o palco de momentos cruciais na vida da heroína. É sempre bom lembrar (e trataremos disso com mais detalhes no próximo capítulo), que nosso país, por algum tempo, oscilou entre o Eixo e os Aliados. Os quadrinhos da Miss Fury estão sendo publicados num momento de estreita aproximação dos Estados Unidos com o governo Vargas. Uma aproximação que envolve tanto relações diplomáticas quanto culturais e não deixa de ser representada, também, nos quadrinhos. Erica, que estava no Rio de Janeiro, envolvida em um complô político, vê no belo rapaz americano uma oportunidade de conseguir entrar novamente nos Estados Unidos. A baronesa havia permanecido nos Estados Unidos como exilada política, mas teve que ir para o Brasil, a mando de Bruno, em missão. Feita sua parte, desejava retornar. 77 Ardilosa, a vilã vê no casamento com um jovem norte-americano uma forma de garantir um visto em seu passaporte. Gary é um alvo perfeito. Segundo a baronesa, nada mais fácil de manipular do que um homem de coração partido. Ela se aproxima sutilmente, se faz presente e até se arrisca para salvá-lo. Seduz Gary e se casa com ele. A baronesa não é a causa direta da separação de Marla e Gary, mas ela contribui muito para isso Érica é uma vilã típica dos quadrinhos, um reflexo distorcido do caráter da mocinha, o seu oposto. Ela usa sua beleza como uma arma, que pode levar os homens à ruína. Existe a plena consciência do seu poder de sedução, que pode ser percebido, por exemplo, quando manipula Gary de forma a levá-lo a um casamento que, de fato, ele não queria. Ela cria uma ilusão de amor que se desfaz quando não é mais necessária. Érica, enquanto vilã, é o pior pesadelo de uma sociedade patriarcal, uma vez que não valoriza a família e os laços conjugais. Ela representa a sombra, o erro, o vício, o mal que deve ser subjugado, punido e exorcizado. A antagonista é a personagem sempre presente, não só nas histórias em quadrinhos, mas também na literatura, nos filmes, nas novelas. Enfim, ela é a outra face da mulher idealizada e personifica os maiores temores da sociedade 133 patriarcal. Invariavelmente envolvida em alguma armação, seja com bandidos comuns ou com golpistas, Erica procura sempre tirar vantagem da situação. Algumas vezes consegue, mas, como todo vilão merece um castigo, ela acaba, em algum momento, vendo seus planos frustrados, direta ou indiretamente pela Miss Fury. A baronesa foi a vilã preferida dos leitores. Ela oferecia às aventuras da Miss Fury uma dose extra de emoção, com sua personalidade forte e perversa. Segundo a própria Mills, numa entrevista dada em 1944, os fãs enviam mais cartas para a vilã do que para a própria Miss Fury.134 133 134 OLIVEIRA, S., 2007, 68. ROBBINS, 2011, p. 09. 78 135 Figura 31 – baronesa Erica von Kampf. Erica era uma personagem ousada. Ela atraía a atenção não apenas pelas suas maldades, mas pela forma sedutora com que aparecia nas tiras. Sempre com um olhar fatal, roupas decotadas e uma expressão diabólica. Ela era uma mulher ao mesmo tempo odiada e desejada, seja nos quadrinhos, seja pelos leitores. A baronesa é naturalmente uma personagem provocante. Representa aquilo que as meninas não devem ser e aquilo que os meninos desejam ter. Numa tira muito sugestiva, ela aparece se despindo, tomando banho, se enxugando e vestindo um lingerie. A vida da baronesa é marcada pela violência, seja ela física ou moral. A começar pela relação com seu comparsa, General Bruno. Ele a ofende e agride inúmeras vezes. Em algumas delas, Érica reage, mas em outras fica tomada pelo medo. E o medo não é o sentimento que cimenta a relação entre os dois vilões. Ela se baseia em uma mistura de admiração, raiva e amor. As escolhas de Érica são resultado da violência que ela sofre, mas se há momentos em que ela questiona essas escolhas, isso não necessariamente indica que a vilã está em busca da sua redenção. Mills, através da personagem, nos chama a 135 MISS Fury. Timely Comics, n. 08, 1945, p.08 79 atenção para um problema atual, a violência contra a mulher, que também estava presente nos anos de 1940. Tanto nos quadrinhos quanto na vida real as mulheres estavam sendo tratadas de forma violenta por homens que se achavam superiores a elas. Figura 32 - Baronesa Érica Von Kampf, agredida pelo General Bruno, na edição #01 de Miss 136 Fury. O general Bruno é um dos principais vilões da série. Um expert em intrigas internacionais. Ele é careca, maneta, usa um monóculo. Sua aparência é intimidadora. Bruno acredita que no futuro a guerra não precisará mais de soldados, apenas de cientistas e engenheiros. Mas, para isso, ele precisa de dinheiro. A baronesa acaba auxiliando-o em alguns de seus planos. Mas nem por isso recebe dele o reconhecimento que acredita merecer. Ele a agride, ofende e, mesmo assim, Erica não consegue deixar de amá-lo. Ao ser rejeitada depois de declarar seu amor, ela fica dividida entre o desejo de destruí-lo ou amá-lo137. Erica é vítima da violência simbólica, como muitas mulheres o foram e ainda o são. Ela deve se submeter às ordens de Bruno e, durante vários momentos, ao jugo de outros homens. É nítida a determinação desses homens de dominá-la, seja pela força física ou pela intimidação. Erica está constantemente sendo lembrada da sua inferioridade física. Afinal, ela é mulher. Segundo Bourdieu138, uma das formas de se justificar a dominação da mulher pelo homem é o critério biológico. Ele determina uma divisão social de 136 MISS Fury. Timely Comics, vol 01, nº 01, 1942, p. 11. ROBBINS, 2011, p. 16. 138 Cf. BOURDIEU. P., 1998. 137 80 papéis cabendo à mulher um papel de submissão, uma vez que elas mesmas aplicam a toda realidade e, em particular, às relações de poder nas quais elas estão presas, os esquemas de pensamento que são o produto da incorporação dessas relações de poder e que se exprimem nas oposições fundadoras da ordem simbólica.139 Assim, ela acaba aceitando a violência simbólica como natural. Exercida através de um conjunto de mecanismos de conservação e reprodução das estruturas de domínio, a violência simbólica se perpetua, fazendo parte tanto do universo masculino quanto do feminino. Os dominados, inconsciente e involuntariamente, assimilam os valores e a visão do mundo dos dominantes, o modo de ver, a maneira de valorar. As concepções de fundo são as dos dominantes, mas os dominados ignoram totalmente esse processo de aquisição e partem ingenuamente do princípio de que essas ideias e esses valores são os seus. Estes valores são reproduzidos de várias formas, por vários canais. Os quadrinhos são um dos veículos de disseminação dessa violência, ao apresentarem padrões perfeitos de comportamento tidos como socialmente aceitáveis. Mas no caso específico da baronesa, temos uma reação ao estado de coisas. Ela é obrigada a se submeter, mas sempre encontra uma forma de tentar fugir do controle dos homens. Ela é usada por Bruno, mas também manipula e usa Gary. Ela sofre a violência, mas não se conforma com ela. Ela é vítima, mas uma vítima que está constantemente reagindo, que não se entrega passivamente. Numa passagem publicada na revista Miss Fury # 02, Erica envolve-se com os irmãos Manero, a mando de Bruno, que estão organizando um movimento golpista, com objetivo de criar uma nova ordem na América do Sul. Ela acaba atirando em um deles para salvar Gary, a quem pretende usar para retornar aos Estados Unidos. Diogo, o irmão mais velho, descobre e se vinga de uma forma brutal, marcando a ferro quente uma suástica em sua testa. 139 BOURDIEU, P., 1998, p. 40. 81 Figura 33 - Erica tem uma suástica marcada em sua testa a “ferro quente” pelos irmãos Manero. O símbolo nazista será uma lembrança permanente da violência que ela sofreu nas aos dos homens.140 140 MISS Fury. Timely Comics, 1942, nº 02, p.28. 82 Ao invés de se lamentar, a jovem foge, vai atrás dos seus opressores e não pensa duas vezes em matá-los. É possível notar a tensão que a cena passa. Mesmo Erica sendo uma personagem má, a violência que sofre é brutal e inspira piedade. Além disso, é uma rara descrição da violência sofrida por uma mulher feita do ponto de vista de outra mulher. As personagens dos quadrinhos de Mills podem estar feridas, podem ser vítimas de humilhações, podem estar em desespero, mas elas se levantam e enfrentam os obstáculos. São vítimas, mas não aceitam permanecer como vítimas. Erica não se considera má, embora seja capaz de atos hediondos. Quando Bruno transforma o gato de estimação de Marla em um “gato bomba” a fim de cometer um atentado, ela enfrenta o comparsa e implora para que ele não mate o animal. Ela é agredida e repreendida por Bruno, que lembra que eles estão em guerra e centenas de pessoas morrem todos os dias. Um gato não faria diferença. Em outros momentos, ela é capaz de deixar transparecer sentimentos nobres, chega a chorar com sinceridade. Ela tem um filho com Gary, que desconhece a existência da criança, pois seu casamento com Erica dura pouco tempo. Ela entrega a criança nas mãos de um amigo médico, Dr Diman Saraf. A criança, Gary Hale Jr, que tem aproximadamente dois anos, foi criada sem família, desconhece o próprio nome, pois nunca foi chamada por ele. O reencontro entre mãe e filho é tenso. Erica não sabe lidar com a situação. A vilã está sempre buscando justificativas para suas ações com relação à criança. A começar pelo nome. Ela o chamou de Gary Hale Jr não por nutrir qualquer sentimento pelo ex-marido, mas porque a criança, segundo ela, era a própria imagem dele. A maternidade para Erica é um estorvo. Ela é uma espiã, um filho é uma distração. A criança, por sua vez, é exposta a todo tipo de violência, seja ela moral ou física. Dr. Diman a castiga, agride de várias formas. Erica não sabe, ela mesma, agir de outra forma, afinal, sua vida foi perpassada pela violência. A vilã não conhece outra forma de lidar com as situações, não sabe expressar seus sentimentos, não sabe dar nem consegue receber afeto e está sempre pagando o preço pelas suas escolhas. A baronesa sente algo próximo de remorso quando percebe como a criança foi criada. Arrepende-se de ter deixado o filho com Diman, ainda mais 83 quando descobre sobre os experimentos científicos. 141 Uma referência aos experimentos nazistas com pessoas que, ao que parece, já eram de conhecimento público no final da II Guerra Mundial. Ela vive um conflito moral que a faz questionar os rumos da situação. A baronesa tem sentimentos e é capaz de atos de bondade. Não é uma vilã caricatural e, talvez por isso, tenha conquistado o público. Figura 34 – Reencontro da Baronesa com o filho. Já no primeiro contado depois de anos de 142 separação a violência marca a relação entre mãe e filho. A espiã não nega seu interesse por dinheiro e poder, mas não é desprovida de valores. Ao se envolver com os irmãos Manero, ela o faz pela Pátria Mãe (Alemanha). A baronesa se considera uma patriota e não vê razão para não ser recompensada por isso, tirando proveito financeiro, por exemplo. Ela demonstra possuir um certo juízo de valor, dedicando lealdade ao seu país, correndo riscos por ele. Erica também faz parte do esforço de guerra, embora esteja atuando do lado inimigo. Não são apenas as mulheres norte-americanas que foram convocadas para lutar, são todas as mulheres, de todos os países envolvidos, reais ou fictícias. A Segunda Guerra Mundial não é uma guerra apenas dos homens. Tarpé Mills preocupa-se em dar complexidade a seus vilões. Eles não são apenas nem somente maus, existe toda uma justificava para suas ações. 141 142 ROBBINS, 2011, p. 40. MISS Fury. Timely Comics, nº 08, 1945, p. 21. 84 Que Marla é a mocinha, a heroína, ninguém duvida, mas outros personagens têm suas ações justificadas de várias formas. Além disso, o panteão dos vilões chega a ser mais interessante do que os próprios heróis. Mills é ousada, por exemplo, ao incluir um vilão gay, Monsieur Charles. Figura 35 - Monsieur Charles. 143 Monsieur Charles não é um figurante. Ele tem lugar de destaque na trama. Não nos foi possível identificar outros personagens gays na década de 1940, até porque isso demandaria tempo e uma pesquisa bem mais ampla e específica, desviando-nos do nosso objetivo. Mas podemos afirmar que personagens homossexuais, se existiam nessa época, eram muito raros e puramente decorativos. O personagem de Monsieur Charles é uma produção pós-guerra, portanto num momento em que os quadrinhos começavam a enfrentar uma dura campanha difamatória, portanto, Mills é duplamente ousada. Mesmo na atualidade, personagens gays encontram resistências nos quadrinhos. Na última década, a homossexualidade vem sendo representada timidamente nos quadrinhos. No caso dos super-heróis, inicialmente foram escolhidos personagens secundários ou que participavam apenas de alguns arcos de aventura. As grandes editoras ainda tateiam e tratam o tema com 143 ROBBINS, T., 2011, p. 98. 85 desconfiança, com medo do reação do mercado. Mas alguns autores têm se arriscado e obtido sucesso nessa empreitada. Por exemplo, Archie, personagem popular e duradouro, criado na década de 1940, assumiu sua homossexualidade em uma história em quadrinhos publicada em 2012, que apresenta o primeiro casamento gay dos quadrinhos. CAPÍTULO 4 - AS MULHERES VÃO À GUERRA! 4.1 – As norte-americanas e a Segunda Guerra Mundial Não demorou muito para que as lideranças dos países envolvidos no conflito percebessem que teriam que convocar as mulheres para a guerra. Inicialmente, elas foram conclamadas a se voluntariarem, mas, com o avanço do conflito, passaram a ser recrutadas. Se na Primeira Guerra Mundial elas estiveram em fábricas e foram enfermeiras, na segunda fabricavam e até pilotavam aviões. A Segunda Guerra Mundial foi um confronto de homens e mulheres. Nunca antes em toda a história tantas mulheres, em diferentes países, foram chamadas a contribuir com um esforço de guerra como entre os anos de 1939 e 1945. Elas ocuparam cargos que antes eram considerados masculinos, como engenheiras, supervisoras de produção e motoristas de caminhão, por exemplo, e também se alistaram nas forças armadas. A entrada maciça de mulheres no mercado de trabalho, seja para suprir o vazio deixado pelos homens que estão no front de batalha, seja para preencher uma demanda surgida com a eclosão da guerra, irá causar um grande impacto social, durante e depois do conflito. Elas não são super-heroínas, mas desempenharam um papel bem parecido, inspiradas no dever cívico e muitas, possivelmente, naquelas mulheres de papel, corajosas e audaciosas, como a Mulher Maravilha e Miss Fury e muitas outras personagens populares daquela época. Reais ou imaginárias, elas estão envolvidas na guerra. A participação das mulheres nas forças armadas merece destaque. Antes de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial, várias empresas já tinham contratos com o governo para a produção de equipamentos de guerra para os aliados. Com a entrada do país no conflito, a produção aumentou, fábricas de automóveis foram adaptadas para a construção de aviões, houve ampliação de estaleiros e novas fábricas foram abertas. A demanda por trabalhadores ultrapassou as expectativas dos empresários e do próprio governo. Eventualmente, foi necessário apelar para o 87 trabalho feminino a fim de cumprir com os contratos assinados com o governo.144 Assim, é possível dizer que, bem mais do que substituir os homens enviados para a guerra, as mulheres supriram a demanda de um grande mercado em expansão. A guerra foi lucrativa para os empresários norteamericanos. Novos postos de trabalho foram criados, mas faltava mão de obra. Ao convocar a força de trabalho feminina para fábricas, o governo garantia a expansão de suas indústrias e os lucros com a venda de armas, equipamentos e suprimentos militares. É notável o esforço para se passar a ideia de que o trabalho feminino é uma novidade. O fato é que elas sempre trabalharam, apenas não eram valorizadas, estavam invisíveis. Ou seu trabalho era considerado uma extensão do doméstico, ou ainda um dom que poderia ser apropriado pelo patriarca da família, ou um complemento e, portanto, extensão do trabalho do “homem da casa”. O padrão de família da classe média, que tem a esposa que se ocupa dos trabalhos domésticos e dos filhos, enquanto o marido provedor passa o dia trabalhando, era uma representação idealizada da sociedade norte-americana. Em boa parte das famílias, especialmente as de baixa renda, as meninas trabalhavam desde cedo, em várias atividades. O que a guerra irá fazer é trazer à luz e valorizar essa mão de obra e, em alguns casos, possibilitar a muitas mulheres driblar preconceitos de classe, adquirir conhecimentos técnicos e conquistar independência econômica. A guerra iria abrir novas possibilidades para a participação feminina no mercado de trabalho, principalmente em áreas dominadas pelos homens, como, por exemplo, a engenharia. Foi lançada uma intensa campanha na mídia a fim de atrair a força de trabalho feminina para o esforço de guerra. Quando os Estados Unidos entraram na guerra, havia 11,3 milhões de mulheres trabalhando. Esse número representava cerca de um terço da força de trabalho nacional. Ao final da guerra, eram 18 milhões. Dessas, 4 milhões trabalhavam nas fábricas de armamentos. Quando o número de mulheres solteiras não foi suficiente para suprir a demanda, as mulheres casadas foram atraídas para trabalhar. Muitas resistiram à ideia, preferindo permanecer em 144 SORENSEN, Aja. Rosie the Riveter: Women Working During World War II. Disponível em: http://www.nps.gov/pwro/collection/website/rosie.htm, acesso em: 05 mai. 2013. 88 casa. As que aderiram ao esforço de guerra, cerca de 10%, acabaram sofrendo críticas da sociedade sendo, inclusive, responsabilizadas pelo aumento da delinquência juvenil. Cartoons publicados durante esse período ora detratavam as mulheres que trabalhavam nas linhas de montagem, ora reforçavam o discurso acerca da necessidade do trabalho feminino, Mulheres que serviam no exército também eram vítimas de piadas maldosas e de preconceito por parte de cartunistas. Alguns, de grande mau gosto, tentam desqualificar a presença feminina no exército. Figura 36 - "And then in my spare time...". Cartum publicado em 1943 faz uma crítica às mulheres que trabalhavam nas fábricas, no esforço de guerra. Reforça o argumento sobre a questão do abandono dos filhos e da delinquência juvenil. 145 145 BOB Barnes for OWI. ca. 1943, Library of Congress. Disponível em: <http://ows.edb.utexas.edu/site/women-homefront/political-cartoons-primary-sources>, acesso em: 23 jan. 2014. 89 Figura 37 - Women serving in World War II (s/d).146 Além do trabalho nas fábricas e da ocupação em outras atividades no mercado formal, as norte-americanas também iriam ingressar nas forças armadas, em parte seguindo o exemplo da Grã-Bretanha. Cerca de 350 mil mulheres foram alistadas e serviram tanto em solo americano quanto no exterior. Em maio de 1942, o Congresso instituiu o Women's Auxiliary Army Corps, mais tarde renomeado Women's Army Corps. Na aeronáutica, foi criada a Women's Airforce Service Pilots, ou WASPs. Essas mulheres já tinham licença para pilotar antes da guerra e realizaram missões de transporte de aviões e cargas para bases militares e participaram de simulações de combate. Mais de 1.000 WASPs serviram durante a guerra, e 38 delas perderam a vida durante o conflito mundial. O general Spaatz, comandante em 1945 das forças aéreas estratégicas do Pacífico, chegou a afirmar que não via diferença entre homens e mulheres, além do fato de as últimas usarem saias.147 As mulheres da Airforce Serviço Pilots (WASP) eram também um sucesso na mídia, tanto que ganharam um logo desenhado especialmente para 146 WOMEN serving in World War II (s/d). Disponível em <http://zip.net/brqSBp>, aceso em 23 jan. 2014. 147 QUÉTEL, Claude. As mulheres na guerra – vol 02. São Paulo: Larousse, 2009, p. 143. 90 elas pelos estúdios da Walt Disney, com uma personagem chamada Fifinella148. No entanto, a guerra abranda, mas não acaba com os preconceitos e isso fica claro quando ela termina. As WASP, por exemplo, eram consideradas pilotos civis e só na década de 1970 receberam status militar completo e todos os privilégios a ele advindos. Elas pilotaram, contudo, 77 tipos de aviões, entre os quais B26 e B29 (Superfortalezas), totalizando 90 milhões de quilômetros de voo para “somente” 38 acidentes mortais, isto é, uma porcentagem equivalente a de seus homólogos masculinos. A injusta manutenção de um status civil, no entanto, as impedirá de beneficiar-se das pensões militares em caso de invalidez. Pior, a concorrência direta e bem-sucedida que terão feito aos homens, aos refratários das tarefas domésticas, nas quais foram acantonadas muitas vezes as mulheres até no exército, levará o alto comando americano a dissolver o corpo da WASP desde 149 o final de 1944. Essas mulheres deixaram sua marca na história e, embora nem todas tenham lutado ao lado de homens, muitas estiveram no front, sujeitas aos mesmos perigos. Pilotos, foram abatidas por causa de suas cargas, o que as colocava em combate. Enfermeiras, tiveram que se arriscar para salvar a vida ou pelo menos diminuir o sofrimento de soldados no front. Atiradoras e pilotos soviéticas, causaram muitos danos às tropas germânicas. O que dizer das mulheres anônimas, que arriscaram suas vidas para esconder judeus? Ou mesmo daquelas que se arriscaram espionando o inimigo, em ambas as frentes, para passar informações importantes para seus exércitos? As mulheres estiveram na guerra de todas as formas. Sem elas os rumos da Segunda Guerra Mundial poderiam ter sido outros. Elas são as verdadeiras heroínas que não podem ser encontradas nos quadrinhos, mas podem ter servido de inspiração para muitos personagens da ficção. 4.2 – Heroínas e super-heroínas defendem a liberdade Se as mulheres estavam presentes na construção civil, nas fábricas de armas e no front, as mulheres de papel contribuíam também, nas páginas das histórias em quadrinhos, na luta contra o nazismo. Personagens como Brenda Starr colaboraram com o esforço de guerra perseguindo espiões. Na ficção, as mulheres também estavam sendo convocadas para lutar contra as ditaduras 148 WASP on the web. Disponível em <http://wingsacrossamerica.us/wasp/free/index.htm acesso>, em 23 jan, 2014. 149 QUÉTEL, C., 2009 p. 143. 91 fascistas. Na década de 1940, os Estados Unidos viram surgir uma série de personagens patriotas, que literalmente vestiam a bandeira do país. Não apenas os homens, mas também as mulheres. Elas defendiam os Estados Unidos dentro e fora de suas fronteiras, uma vez que o nazismo era um inimigo global e que deveria ser combatido de todas as formas e em todos os lugares. Enfrentando espiões, soldados, tanques de guerra ou mesmo mantendo a ordem local, colocando bandidos na cadeia. Essas mulheres irão representar não apenas a força da “América” mas, sobretudo, a força feminina. Em tempos de guerra, as mulheres dos quadrinhos, assim como as mulheres da vida real, se igualam aos homens e até mesmo os superam. Nos quadrinhos nós tivemos uma série de personagens e histórias que retratavam o dia a dia dos combatentes na Segunda Guerra Mundial. Ases dos céus, marines, soldados entrincheirados. Todos eles foram lá representados, em seus atos de heroísmo. Mas as combatentes também tiveram sua chance de mostrar do que eram capazes. Uma personagem que podemos inicialmente destacar é Pat Parker, a War Nurse. Pat Parker é uma enfermeira britânica com muitas habilidades que vai representar não apenas as mulheres que se arriscam nos campos de batalha, cuidando dos feridos, mas, também, a mulher combatente, guerreira, que não se conforma em ficar em abrigos ou trabalhando apenas como auxiliar. A War Nurse foi uma personagem feminina inspirada no esforço de guerra e criada pela ilustradora Jill Elgin. Ela fez sua primeira aparição na Speed Comics #13, em 1941, revista publicada pela Harvey Publications. Ela não tinha poderes, mas muita atitude. Suas primeiras histórias eram mais realistas e buscavam mostrar um pouco da vida das enfermeiras no front, sua bravura e os riscos que corriam para salvar pessoas. No entanto, a personagem não emplacou como outras heroínas e acabou sendo reformulada, ganhando um uniforme e máscara, e dando outra direção às suas aventuras. Isso acontece na sua segunda aventura, quando sozinha captura um navio alemão, no litoral da Grã-Bretanha, o que levou-a a criar a identidade secreta de War Nurse.150 Havia uma demanda pela fantasia, onde o herói ou heroína 150 MADRID, M., 2013, p. 393. 92 eram idealizados e a guerra apresentada de uma forma menos cruel, onde o mocinho ou a mocinha saiam sempre vitoriosos. Em 1942, passa para as mãos de outra cartunista, Barbara Hall, e tornase líder de um grupo internacional de combatentes chamado Girl Commandos. Essa equipe teria sido a primeira nas revistas em quadrinhos totalmente formada por mulheres, cada uma com uma nacionalidade diferente. Além de Pat Parker, faziam parte da Gilr Commandos Ellen Billings, britânica e amiga de Pat, Tanya, uma "fotógrafa oficial soviética", Penelope "Penny" Kirt, uma repórter de rádio americana e Mei-Ling, uma chinesa que se junta à equipe para vingar a morte de sua família nas mãos do exército japonês.151 São as auxiliares tomando frente no campo de batalha. Mulheres de todos os países representados em um grupo de heroínas que se arriscam em combate, enfrentam nazistas e japoneses, contando apenas com suas habilidades físicas naturais (e normais). Uma equipe multinacional, para lembrar que a Segunda Guerra Mundial só pode ser vencida a partir da união dos países aliados contra a ameaça do EIXO. A Girl Commandos foi publicada até 1947. É relevante destacar que o Girls Commados foi uma história em quadrinhos produzida por mulheres, Jill Elgin e Barbara Hall. Esta última passou a assinar como Barbara Calhoun. Ao sair da série Girl Commandos, Barbara Hall (ou Calhoun) assumiu a arte de Black Cat, uma super-heroína que também tinha suas histórias publicadas na Speed Comics e que, segundo Trina Robbins152 foi a primeira super-heroína em uma revista em quadrinhos. Vale lembrar que Miss Fury era publicada inicialmente em tiras de jornal. Tanto Barbara Hall quanto Jill Elgin abandonaram os quadrinhos. A primeira para se dedicar à pintura a óleo (o marido teria influenciado sua decisão) e a outra para se dedicar à ilustração de livros infantis. Atividades vistas como “mais femininas” e, talvez, com uma escala de trabalho mais flexível, podendo, assim, conciliar o lar e o emprego. 151 GIRL Commandos. Disponível em <http://pdsh.wikia.com/wiki/Girl_Commandos>, acesso em: 11 mai. 2013. 152 ROBBINS, 2001, p. 69. 93 Figura 38 - Pat Parker, War Nurse. 153 SPEED Comics. Harvey Comics, nº 13, 1941, p. 22. 153 94 Figura 39 - Girl Commados. 154 154 SPEED Comics. Harvey Comics, nº 26, 1943, p. 50. 95 Essas heroínas, criadas dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial, irão fazer parte de um grupo de personagens, com e sem super poderes, cujo maior objetivo é a defesa da Pátria e a luta contra o EIXO, representado geralmente por japoneses e alemães. São heróis e super-heróis patriotas. Muitos deles desapareceram após a guerra. Outros tiveram suas histórias adaptadas para os novos contextos históricos, para as novas demandas do mercado. The American people were being told that a specter was casting its shadow across the country. Comic books presented stories of evil foreign spies working within the nation’s borders, and the heroic efforts of valiant Americans to crush this vermin. The Nazis and the Japanese were presented as cruel and insidious foes perfectly suited for the grand drama of comic books. A veritable battalion of patriotic, star-spangled, Axis-bashing superheroes would be created to deal 155 with this secret menace. Na Golden Age (Era de Ouro) dos quadrinhos norte-americanos é fácil identificar esses personagens, principalmente em publicações como a Speed Comics, que exploram a temática desde o início da guerra. Trata-se de um vasto universo de heróis e super-heróis, homens e mulheres, que representam o esforço de guerra, que guardam parte da memória desse período e que, aos poucos, vêm sendo redescobertos pelos pesquisadores. Interessam-nos aqui as super-heroínas patriotas, que Mike Madrid 156 chama de “Victory Girls”: mulheres atraentes e corajosas, uma mistura de pin-up com uma heroína destemida, que, com suas roupas curtas e corpo escultural, está pronta para salvar o mundo e sacrificar sua vida pela liberdade e pela Pátria. E elas foram muitas. Selecionamos algumas, que serão apresentadas adiante. 4.2.1 – As “Victory Girls”: Super-Heroínas patrióticas O ano de 1941 pode ser considerado um marco para o surgimento das heroínas de guerra e das heroínas patrióticas, que literalmente vestiam a 155 Ao povo Americano foi dito que um fantasma estava espalhando sua sombra por sobre todo o país. Os comic books apresentavam estórias de espiões estrangeiros maus atuando dentro das fronteiras da nação e os heroicos esforços de corajosos Americanos para exterminar esses vermes. Os Nazistas e os Japoneses eram mostrados como cruéis e pérfidos inimigos, perfeitamente adequados para o grande drama dos comic books. Um verdadeiro batalhão de super-heróis patrióticos, sob a proteção da bandeira nacional, combatentes do Eixo, seria criado para lutar contra essa ameaça secreta (tradução livre do original). MADRID, M., 2013, p. 346. 156 MADRID, M., 2009, p. 15 - 21. 96 bandeira de seu país e enfrentavam diversos perigos. A princípio, mulheres comuns, com habilidades de luta que as deixavam em pé de igualdade com os homens e, na maioria dos casos, até melhores do que eles. Eram inteligentes e bonitas. Se as enfermeiras faziam sucesso comandando equipes de heroínas, as pilotos de caças estavam entre algumas das personagens preferidas do público leitor. Uma das heroínas criadas em 1941 e que trilhou um longo caminho até se tornar uma referência para a força aérea dos Estados Unidos foi a Miss Victory. A Miss Victory, cujo nome era Joan Wayne, foi publicada pela primeira vez na revista Captain Fearless #1 pela Holyoke Publishing Company, ou Holyohe Comics157, em agosto de 1941. Uma das primeiras heroínas patriotas, tendo sido lançada meses antes da Mulher Maravilha, lutou contra o crime e contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Na sua primeira aventura ela enfrenta uma organização criminosa, que envolve políticos corruptos. Já de imediato a temos em ação. Não houve, no caso da personagem, uma história de origem. Ela já é apresentada ao público como uma combatente do crime. Sua roupa tem as cores da bandeira norte-americana. Sua origem não era bem clara e, incialmente, ela não apresentava superpoderes, estes vieram depois e só foram realmente explicados quando a personagem foi reformulada e revitalizada, décadas mais tarde. Seu nome foi inspirado em um ídolo norte-americano da época, John Wayne, de quem, com certeza, vai herdar qualidades como coragem e determinação. Há quem defenda que a escolha pelo nome da heroína era, também, uma forma de atrair leitoras femininas, dando a elas uma personagem feminina que se equivalesse a um ídolo masculino. A heroína, é claro, também possuía os atributos que agradavam aos rapazes: era bonita, suas roupas eram curtas (e foram ficando cada vez mais curtas com o tempo) e foi se tornando uma personagem sensual. 157 A Holyoke é muitas vezes confundida com empresas de propriedade de Frank Z. Temerson, como a Helnit. Em 1943 era conhecida como Continental Publishing. 97 158 Figura 40 - Miss Victory 158 . CAPTAIN Fearless Comics. Holyoke Publishing Company, nº 01, 1941, p. 47. 98 Joan era um estenógrafa que trabalhava para o escritório da Secretary of Commerce, em Washington (DC). Ela usava sua posição para obter informações sobre as atividades inimigas e usá-las para defender os Estados Unidos.159 Depois de várias promoções tormou-se piloto de missões de voo. Participou de várias missões perigosas na Europa e no Pacífico enfrentou japoneses e lutou contra sabotadores nazistas alemães. Tornou-se um ás da aviação: a Capitã Joan Wayne. Ela foi criada por Charles M. Quinlan, que assinou a arte, embora não se saiba ao certo quem tenha sido responsável pelo roteiro. Duas mulheres estiveram, posteriormente, à frente da personagem. Uma delas foi Alberta Tews (Al Tews), que passou a ser responsável pelo roteiro. Tews iniciou sua carreira como letrista freelance para Timely Comics, no início da década de 1940, tendo trabalhado em vários estúdios. Outra foi Nina Albright, uma das mais destacadas artistas femininas do período, que trabalhava com quadrinhos de aventura. Albright assumiu a personagem a partir da edição Captain Aero # 17. Foi ela que redesenhou o uniforme da Miss Vitory, tornando seu decote mais revelador e sua roupa mais curta e sexy160. Na década de 1950, Nina Albright deixou os quadrinhos e passou a trabalhar apenas com ilustração. A Miss Victory era apresentada como uma mulher forte, corajosa e determinada a lutar contra injustiça e pelo seu país. Ela representa um modelo feminino que irá caracterizar vária personagens durante o período da Segunda Guerra Mundial. Durante a Era de Ouro dos Quadrinhos sua última aparição foi registrada na revista Captain Aero nº 26, agosto de 1946, quando então os heróis patriotas já não despertavam mais tanto interesse161. 159 THE Evolution of Ms Victory. In.: Hangerhouse Archives, n. 06. The Complete Miss Victory Collection. The Evolution of Ms Victory. 2013, p. 01. 160 PARDUCCI, James CCI: Comic Character Investigation #39. Disponível em: <http://www.comicbox.com/index.php/articles/cci-comic-character-investigation-39/>, acesso em: 08 jul. 2014. 161 MISS Victory (01 - 40's). Disponível em: <http://comicbookdb.com/character.php?ID=5633>, acesso em: 09 jul. 2014. 99 162 Figura 46 - Miss Victory 162 . Captain Aero. Holyoke Publishing Company, nº 26, 1946, p.19. 100 Apesar de seus talentos e sua habilidade para a luta, Miss Victory não era uma super-heroína; não, se levarmos em consideração a definição do super-herói como sendo alguém com habilidades que superam as de uma pessoa normal, como super-força, por exemplo. Neste caso, quando falamos em super-heroína patriota norte-americana, possivelmente vem à mente a já imortalizada Mulher Maravilha, uma das personagens femininas de maior sucesso nos quadrinhos em todos os tempos. A mulher Maravilha, que nem é norte-americana, veste uma roupa inspirada na bandeira daquele país e aparece para combater o caos da guerra em nome da harmonia do amor. A personagem foi concebida para ser um símbolo, um exemplo da perfeição e superioridade feminina. A Mulher Maravilha surgiu em 1941, pelas mãos do psicólogo William Moulton Marston. “Consta que Moulton era um teórico feminista, e ao observar que a galeria de heróis e super-heróis pertencia ao sexo masculino quis, então, fazer uma personagem feminina que pudesse servir de modelo para as mulheres da sua época. Ele acreditava que as fortes qualidades do sexo feminino haviam sido desprezadas e resolveu criar uma protagonista tão forte como o Super-Homem, mas com o fascínio de uma bela mulher.163 Marston apresenta a personagem a partir de suas qualidades superiores, que podem remeter ao ideal do amazonismo, definido décadas mais tarde por Sal Randazzo como expressão extrema da mulher guerreira, que considera o patriarcado, assim como os homens, essencialmente opressivo.164 Em tempos de guerra, a Mulher Maravilha representava a força das mulheres norte-americanas, que deveriam trabalhar para que seu país se mantivesse firme e unido, enquanto os homens lutavam na guerra contra os nazistas e em nome da liberdade. Ela é a mulher que vai à luta pelos seus ideais e se sacrifica por eles, mas sem perder sua identidade feminina. Segundo Dave Coustan A Mulher Maravilha incorporou a visão que Marston tinha das mulheres: inteligentes, honestas e gentis. Ela possuía grande força de persuasão. Como amazona, tinha habilidade em combates corpoa-corpo. Ao contrário dos outros super-heróis, a sua missão não era 163 164 OLIVEIRA, S., 2007, 108. Ibidem, p. 07. 101 só acabar com o crime, mas também reformar os criminosos e tornálos cidadãos de bem.165 A Mulher-Maravilha é uma mulher forte e autossuficiente, age de acordo com o código das amazonas não admitindo a ajuda dos homens e mostrando todo o espírito feminista representado na personagem. Mas ela também é feminina, é atraente, bonita, adoradora de Afrodite, a deusa grega da beleza e do amor, sendo a beleza e a capacidade de amar consideradas qualidades ideais da mulher. Mas se a Mulher Maravilha é a mais conhecida, outras super-heroínas também deixaram sua marca no panteão das Victory Girls da década de 1940. Nenhuma talvez tenha sido tão patriótica quando a Miss América, uma jovem repórter do Daily Star, Joan Dale. Figura 42 - Página que contém dois projetos de ilustrações da primeira Mulher Maravilha (uma 166 figura de perfil, a outra de frente). Desenhos assinados por Peter H.G.(1941). Joan Dale é uma pessoa comum que, certo dia, tem um sonho onde o espírito da liberdade, representado pela estátua da liberdade, lhe faz uma visita e lhe confere poderes mágicos, para que ela possa lutar contra os inimigos da liberdade. Ela acorda e percebe que tem realmente superpoderes. Miss 165 COUSTAN, Dave. "How Stuff Works - Os segredos proibidos da Mulher Maravilha" (2008). Disponível em: <http://lazer.hsw.uol.com.br/mulher-maravilha.htm>, acesso em: 16 ago. 2008. 166 WONDER Woman Original First Draft Illustration. Disponível em <http://www.wonderwomancollectors.com/origart-1.html>, acesso em: 28 abr. 2013. 102 América foi criada por Elmer Wexler e publicada pela Quality Comics (que mais tarde vendeu os direitos de publicação de seus personagens para a DC Comics), aparecendo pela primeira vez na Militar Comics # 01, em 1941. Assim como a Miss Fury, a Miss America surgiu um pouco antes da Mulher-Maravilha. Mas se sobrava patriotismo para os roteiristas e desenhistas nos anos de 1940, faltou um pouco de originalidade, pelo menos na escolha dos nomes. Muitos personagens eram descaradamente plagiados. Mudava-se uma característica física ou outra, mas a fórmula básica, que iria garantir o sucesso era mantida. Outra Miss América, Madeline Joyce Frank, seria lançada anos mais tarde, em novembro de 1943, pela Timely Comics, na Mystery Comics # 49, criação do roteirista Otto Binder e do desenhista Al Gabriele. Mesmo nome, uniforme parecido, mas atitudes e origens um tanto diferentes iriam caracterizar essas duas super-heroínas patriotas. A Miss América da Timely Comics ganhou seus poderes de um experimento científico. É uma mulher frustrada com sua condição feminina que considera fraca e inútil. Ela acredita que para fazer diferença teria que ter a força intimidadora de um homem. Acabou ganhando a força de mil. Ela é a mulher que precisa ocupar o lugar do homem para manter a ordem e lutar pela justiça. Em seu discurso ela aceita o ônus da masculinidade (força, poder) para compensar a fraqueza feminina no mundo e no contexto (guerra) em que ela vive.167 Se a Mulher Maravilha enaltece a superioridade feminina e deseja vencer o “mal” através do amor, a Miss América não acredita na capacidade feminina de vencer obstáculos, ela deseja atingir a justiça por meio da força e ressalta o discurso da inferioridade feminina. É interessante notar que as três super-heroínas têm em comum o fato de seus uniformes serem, direta ou indiretamente, referência aos Estados Unidos. As cores de seus uniformes são combinações de azul, vermelho e branco, com maior ou menor predominância de uma dessas cores. Neles podem estar presentes estrelas, listras, escudos ou qualquer outro símbolo patriótico, como a águia, por exemplo, uma característica presente em muitos dos heróis e super-heróis patrióticos, antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. 167 SMITH, Colin. On Wonder Woman & Miss America In The Golden Age: "If I Were Only A Man!" (2013) Disponível em: <http://zip.net/bvqkPN>, acesso em: 27 abr. 2013. 103 Figura 43 - Miss America usando seu uniforme patriótico. Destaque para as 168 estrelas e listras . Figura 44 - Miss América. Uniforme vermelho com capa azul. Escudo faz referência aos Estados Unidos. No fundo, 169 uma suástica ressalta a luta contra o nazismo . A primeira Miss América usava um vestido vermelho nas suas primeiras aventuras, depois trocou por um uniforme com símbolos patrióticos. A mulher maravilha, desde seus primeiros rascunhos, já possuía um uniforme com referências à bandeira norte-americana e a segunda Miss América já traz, desde o início, um grande brasão em destaque. Características à parte, nas histórias em quadrinhos norte-americanas as mulheres tiveram oportunidade de participar do esforço de guerra. Um grupo representativo de patriotas vestiram seus uniformes coloridos e mostraram que também eram boas de briga. As Victory Girls são uma mistura de soldado patriota e pinup, elas mostraram que todos tinham um papel a desempenhar na guerra. 4.2.2 – Miss Fury e os Nazistas Quatro das oito edições em quadrinhos da Miss Fury trazem capas que fazem referência direta à luta contra as ditaduras fascistas. Nelas, a super- 168 169 MILITARY Comics. Quality Comics, nº. 07, 1942, p. 46. MARVEL Mistery Comics, Timely Comics, nº. 76, 1946, p.01. 104 heroína luta contra soldados alemães e até japoneses. Em duas delas Hitler aparece em um retrato e “pessoalmente”, dando a impressão de que a Miss Fury havia invadido seu quartel. Uma forma, talvez, de lembrar aos leitores que todos os super-heróis estavam unidos contra a ameaça nazista. Uma jogada de marketing, obviamente, que segue uma tendência. Nada mais comum nos anos de guerra do que personagens fictícios aparecerem em animações ou revistas em quadrinhos, socando ou humilhando, de alguma forma, o ditador alemão. A verdade é que nenhum vilão fez ou faz tanto sucesso quanto Hitler e os roteiristas aproveitaram ao máximo a vocação do ditador alemão para a vilania. Era um personagem pronto, não havia o que acrescentar, o antagonista perfeito para todos os heróis e super-heróis, sempre prontos para combatê-lo e a seu bando de nazistas. E o melhor de tudo, ele era real. Talvez isso explique o sucesso desses quadrinhos durante a guerra, entre os soldados. Reforçava a autoestima do combatente ao saber que seu inimigo não tinha chances nem no reino da ficção. A Miss Fury pode não ter vestido a bandeira dos Estados Unidos, nem ter feito discursos emocionados sobre a defesa da liberdade, mas ela também entrou no esforço de guerra e, a seu modo, pode ser considerada uma superheroína patriota. Sua luta contra o nazismo acontece de forma quase acidental, mas ela tem papel importante na defesa da liberdade na América. Nesse caso, quando dizemos América, não estamos nos limitando aos Estados Unidos. Ela vai ultrapassar as fronteiras nacionais, vindo para a América do Sul e, aqui, ajudando a desmantelar os planos no Eixo. Se o conteúdo das suas aventuras não se resume ao combate ao crime e à defesa da Pátria, isso se deve, sobretudo, à habilidade narrativa de Tarpé Mills que transformou a série numa grande novela, devidamente contextualizada. Miss Fury era uma heroína patriota, na medida em que combatia nazistas, mas essa não era a essência de suas histórias, apenas um pano de fundo devidamente aproveitado por sua autora. 105 Figura 45 – Capa de Miss Fury # 02. 170 Figura 47 – Capa e Miss Fury # 04172 170 MISS Fury. Timely Comics, nº. 02, 1943. MISS Fury. Timely Comics, nº. 03, 1943. 172 MISS Fury. Timely Comics, nº. 04, 1944. 173 MISS Fury. Timely Comics, nº. 05, 1944. 171 Figura 46 – Capa de Miss Fury # 03 171 173 Figura 48 – Capa e Miss Fury # 05 106 E muitas cenas dessas aventuras se passam no Brasil, onde ela vai encontrar uma resistência armada contra o nazismo. No Brasil, também, entra em cena uma outra personagem feminina, a bela e perigosa Era, personagem brasileira, líder de uma milícia armada que procura acabar com os planos golpistas dos já citados Irmãos Manero de implantar uma nova ordem na América do Sul, com a ajuda do General Bruno. Era é uma combatente, temida pelos seus inimigos. É também um estereótipo da mulher latino-americana. Trina Robbins a descreve como a Carmem Miranda local. 174 Ela fuma, tem um temperamento explosivo, é destemida e movida pela paixão. Suas feições são sempre severas, menos quando está com Chico, um argentino dos pampas, seu interesse amoroso. Ela tem muito ciúme de Marla. Inicialmente Era desconfiava que Marla fosse uma espiã. Num segundo momento, passa a ser vista como uma rival na atenção de Chico. Era não é uma vilã. Sua relação com Marla, a Miss Fury, é de pura rivalidade. A guerrilheira brasileira vê na norte-americana uma usurpadora que atrai a atenção para si, atenção que antes era concentrada nela. As duas se revezam em cenas cômicas, rolam pelo chão aos tapas e uma acaba salvando a outra de alguma situação perigosa. Estão longe de ser amigas, mas não são necessariamente inimigas. Mills usa dessa rivalidade feminina como uma forma de fazer humor e dar certa leveza à narrativa. Em seu primeiro encontro, Era resgata Marla, que havia sido capturada pelo General Bruno, quando tentava impedir o casamento de Gary com a Baronesa. E, já nessa oportunidade, as duas partem para a agressão física. Em outros momentos, a guerrilheira irá provocá-la, mas Marla aprende a lidar com Era e suas emoções afloradas. Mills brinca com essa rivalidade e explora a sensualidade da personagem sul-americana. Era é mais uma das suas personagens fortes e decididas. Ela manda e desmanda em seus homens, encara o campo de batalha vestindo uma longa saia rodada, com o cabelo trançado, e não tem medo de enfrentar os perigosos irmãos Manero. Ela é uma mexicana estereotipada cuja representação é aplicada para qualquer mulher latina. 174 ROBBINS,T., 2011, p. 10 107 Ela é um meio termo entre mocinha e vilã. Tem as boas intenções de uma heroína e a independência e ousadia de uma vilã. Figura 49 – Era confronta Pepe Manero. 175 Era é um líder, uma mulher destemida que deseja defender seu país da ameaça representada pelo General Bruno e seus comparsas. Isso a torna uma heroína brasileira, que luta contra o nazismo, não como enfermeira, mas como soldado, líder. Mills dá às suas mulheres um papel de destaque, força e liderança que contradizem outras representações femininas do período, mas que, como já pudemos constatar, não significa que não houvesse mulheres assim, fossem elas norte-americanas, russas, britânicas ou mesmo brasileiras. Já em sua primeira aparição (Figura 49) nas aventuras de Miss Fury, nós podemos perceber a falta de informações sobre o Brasil. Quando Era chega sorrateiramente e surpreende Pepe Manero, ela anuncia a morte do inimigo falando seu nome completo: Pepe José Maria Umberto Rodrigo 175 MISS Fury. Timely Comics, nº. 03, p. 09. 108 Fulgêncio Juan Manero. A aventura na América do sul pode confundir um pouco o leitor, pois Mills brinca com as nacionalidades dos personagens e com a própria geografia. O estranhamento constante entre as duas personagens sempre acabava quando o assunto era enfrentar as arbitrariedades e a violência masculina. Em tira publicada em 1943, Era e Marla são capturadas por criminosos e seus comparsas nazistas e agredidas fisicamente. Apesar de toda a rivalidade e ciúmes que tem de Marla, Era coloca-se em perigo para salvá-la e quase sofre abuso sexual por parte do agressor.176 Mas, se suas personagens em certos momentos sofrem agressão física (e reagem), Mills não permite em seus quadrinhos que ocorra agressão sexual. Na mesma tira, o violento Bruno impede um possível estrupo de Era. O general, vilão mor dos quadrinhos de Miss Fury, podia distribuir tapas aleatoriamente em mulheres, mas havia um limite quando a questão era o estupro. Bruno tinha rígidos padrões morais e fazia questão que estes fossem seguidos por seus subalternos e aliados. Assim como a baronesa, Bruno não se considera um “vilão”, mas alguém disposto a sacrifícios pelo que acredita. Os Irmãos Manero são argentinos que querem implantar uma ditadura na América do Sul, com o apoio da Alemanha. O Brasil é um país estratégico, um alvo em potencial. Assim, não se admira que tenhamos uma guerrilheira brasileira e seu parceiro argentino, Chico. Mas é possível perceber que as referências que Mills tem sobre o Brasil são muito limitadas. A aventura começa no Rio de Janeiro e, de repente, parece que tudo é transportado para os pampas gaúchos ou para uma floresta tropical. Albino Jo, e seus olhos de tigre, é outro personagem que também faz sua primeira aparição em Miss Fury # 03. Ele é um índio brasileiro albino, formado em Havard. Um aventureiro que percorre o mundo e que demonstra um profundo conhecimento das propriedades mágicas do traje de Marla, que é africano. Albino Jo tem algum conhecimento sobre magia e explica a Marla a origem da sua roupa/manta de pantera. É ele que vai alertá-la sobre o preço de se usar a manta. 176 ROBBINS, 2013, p. 124. 109 Figura 50 - Albino Jo se apresenta a Miss Fury. 177 Algum tempo depois das aventuras no Brasil, Albino Jo e Marla reencontram-se. Ele agora aparece com trajes elegantes, comportamento aristocrático e até acompanha Marla a um restaurante, onde reencontram Era. Albino Jo era um ideal de herói: exótico, versátil, inteligente e sabia ser sedutor. Tem uma personalidade muito mais trabalhada do que os demais “mocinhos” das tiras da Miss Fury. O Brasil vai se tornar palco fictício de uma série de combates entre nazistas e aliados, representados pelos brasileiros. É perceptível a importância que o país tem não apenas na luta contra a ditadura nazista (é sempre bom lembrar que vivíamos naquela época uma ditadura no Brasil, o Estado Novo), mas dentro das estratégias de guerra norte-americanas, daí sua presença constante em quadrinhos estadunidenses. Também é possível perceber as representações que a autora constrói acerca do Brasil e dos brasileiros, baseadas em estereótipos produzidos e reproduzidos durante a primeira metade do século XX acerca da população latino-americana. Segundo Trina Robbins 178 , Mills tinha uma grande fascinação pelo Brasil. Mas a forma como ela via o país era idealizada, uma vez que Mills nunca chegou a visitá-lo. Observando atentamente os quadrinhos da Miss Fury, podemos supor que o Brasil que ela idealizava era aquele mais romântico, representado nos filmes de Hollywood, como os estreados por Carmem Miranda ou presente nas animações da Disney, dos anos de 1940. 177 178 MISS Fury, Timely Comics, nº 03, 1943. Em entrevista concedida no dia 07 de setembro de 2014. Cf. Anexo. 110 A escolha do Brasil como cenário da luta contra os nazistas pode estar relacionada, também, à Política da Boa Vizinhança, implementada pelos Estados Unidos durante a década de 1940. Nesse período, os Estados Unidos procuraram aproximar-se dos países latino-americanos, por meio de uma ofensiva política ideológica em torno da defesa das Américas (panamericanismo). Mesmo antes de entrar na guerra, os Estados Unidos já haviam traçado um perímetro de segurança que incluía a América do Sul, especialmente as regiões Norte e Nordeste do Brasil. Em 1940, o multimilionário Nelson Rockefeller criou Office for Coordination of Commerce and Cultural Relations between the American Republics (OCIAA), que em 1946 tornou-se Office of Inter-American Affairs, uma agência por meio da qual o presidente Roosevelt conseguiu implantar a Política da Boa Vizinhança no Brasil. O trabalho desta agência tinha como base a propaganda ideológica norte-americana, trazendo para o Brasil não apenas produtos norte-americanos, mas o próprio modo de vida cultivado por aquele país. Na época, o Brasil era uma área estratégica, visada pela Alemanha e pelos EUA. Nelson Rockefeller vislumbrava que a tomada de posição do Brasil não se daria pela intervenção, mas pela sedução. (...) Rockefeller entendia que se o governo, a população e as instituições brasileiras considerassem que o modelo de desenvolvimento capitalista norteamericano era o ideal, o Brasil se tornaria um aliado natural dos 179 EUA. Os EUA apresentavam-se como um paradigma a ser seguido pela América Latina e o Brasil era considerado um país estratégico e, portanto, um dos alvos preferenciais da Política da Boa Vizinhança. Sendo assim, a agência investiu nas mídias da época. Cinema, jornal, revistas e quadrinhos eram veículos usados para disseminar a cultura e as ideologias do capitalismo norteamericano.180 O Repórter Esso, por exemplo, foi criado em 1941 para ajudar a combater a propaganda nazista, tendo sido o principal noticiário radiofônico brasileiro, trazendo notícias sobre a II Guerra, entre os anos de 1941-1945 e era patrocinado pela Standart Oil Company (Exxon) poderosa companhia de 179 BARBOSA, Alexandre. A Comunicação sedutora: aspectos da influência norte-americana na comunicação brasileira. Cenários da Comunicação, São Paulo, v. 4, 2005, p. 15. 180 Ibidem, p. 16-19. 111 petróleo norte-americana. Este programa seguia o modelo de jornalismo idealizado nos estúdios comandados pelo escritório de Rockefeller. O mesmo acontecia com os cinejornais e o cinema. Incentivavam-se produções cinematográficas ambientadas na América Latina como uma forma de aproximação cultural.181 Assim como a própria guerra, as aventuras e Miss Fury reúnem personagens das mais diversas procedências, sejam eles aliados ou inimigos. Também está presente a ideia de que os Estados Unidos são o grande guardião da América, que estão presentes em todos os lugares, vigilantes, sempre buscando combater as ameaças externas. O fato de boa parte da trama se desenvolver na América do Sul traz para os quadrinhos a própria política da boa vizinhança, ao mesmo tempo que demonstra o pouco conhecimento do povo norte-americano sobre a região e o povo que pretende “proteger”. 4.2.3 – As diversas representações das mulheres nos quadrinhos da década de 1940 Tivemos aqui vários exemplos de representações de mulheres nos quadrinhos que tiveram seu papel no esforço de guerra, com destaque para as super-heroínas. São modelos que foram oferecidos à juventude norteamericana, meninos e meninas, homens e mulheres, leitores que, de uma forma ou de outra, dialogaram com os personagens, compartilharam de suas aventuras e desventuras. A primeira Miss América, uma patriota com o mais elevado sentimento de amor à Pátria, é inspirada na própria encarnação da Liberdade expressa por seu símbolo maior, a “Estátua da Liberdade”. Ela representa toda mulher norte-americana disposta a se sacrificar pela nação em tempos de guerra. Um segundo exemplo é a Mulher Maravilha, fruto de uma visão idealizada da mulher. Ela é perfeita, segundo a ideia de perfeição desenvolvida pelo autor. É um modelo ideal de mulher, superior aos homens, defensora do amor, em oposição à imperfeição masculina, que segue o belicismo e a guerra. O terceiro modelo é a segunda Miss América, que reafirma a superioridade masculina ao defender que a mulher tem que se igualar ao 181 KLÖCKNER, Lucian. O Repórter Esso e Getúlio Vargas. Disponível em: <http://zip.net/bnqSqS >, acesso em: 16 de out. 2014. 112 homem em força física para fugir da sua inferioridade. Ela considera que apenas a força bruta (masculina) é sinal de poder e que apenas ela irá trazer respeito. As mulheres são impotentes, elas precisam da força masculina. E, por fim, temos a Miss Fury. Ela não adota as cores da Pátria nem faz propaganda explícita pela defesa da liberdade, mas, mesmo assim, participa do esforço de guerra. Ela o faz, principalmente como mulher, com suas imperfeições e limitações. Recorre aos seus poderes apenas em última instância e não nega o valor de sua condição feminina. De todas é a que mais se aproxima da mulher real, com suas dúvidas, seus erros e seu amadurecimento e crescimento enquanto pessoa. Miss Fury luta contra nazistas mas não está fadada a salvar o mundo. A narrativa é mais densa; o roteiro, envolvente. Em muitos momentos tem um tom de humor, noutros de drama. Mas qual a leitura que se pode fazer dessas quatro personagens, destacadas entre o panteão de outras super-heroínas que surgiram no período? Qual delas atinge, de forma mais intensa, o público leitor? São questões difíceis de ser respondidas. Diante dessas representações tão distintas do feminino, nos deparamos com mulheres reais que também possuem valores e objetivos distintos. Elas são constantemente bombardeadas por informações, que são retiradas da sua rotina familiar, e são, muitas vezes, privadas do poder de opinar, de escolher. Se, antes, a família e seus altos valores morais limitavam suas relações ao espaço privado, agora o Estado, a Nação precisa que elas rompam com essas limitações e assumam um novo papel social. Isso é temporário, mas de fundamental importância. Pela primeira vez a mulher é chamada a colaborar, por ter sua capacidade reconhecida. Ela é capaz, é competente. Ainda ganha menos que o homem, ainda enfrenta muitas barreiras, mas o reconhecimento do seu valor social é uma grande conquista dentro de uma sociedade tradicionalmente machista. Mas, para muitas delas, a mística feminina ainda é forte, ainda é aceita como a única alternativa para as mulheres. A mística feminina estabelecia que o papel social da mulher está em ser esposa, mãe e dona de casa. As meninas não eram educadas para ser independentes, autônomas, mas para desenvolver habilidades apenas para se casar e viver em função dos filhos e 113 do marido. Fugir deste padrão significava, então, dar as costas para a felicidade. Segundo este pensamento, a raiz do problema feminino no passado, é que as mulheres invejavam os homens, tentavam ser como eles, em lugar de aceitar sua própria natureza, que só pode encontrar realização na passividade sexual, no domínio do macho, na criação dos filhos, e no amor materno.182 Portanto, a forma como o discurso será apropriado e reproduzido pelo leitor vai depender, acima de tudo, de práticas específicas. Não existe um sujeito universal, cada indivíduo, cada grupo, possui uma maneira própria de ler a realidade, fundamentada na sua bagagem cultural, social e institucional. No caso do jovem leitor, pelas influências que sofre no âmbito familiar, na escola ou em outro espaço onde se relaciona com outros atores, ele está sujeito a uma variedade de discursos dos quais ele se apropria de elementos que considera adequados à sua formação pessoal. Como já foi comentado anteriormente, a leitura, enquanto prática cultural, não pode ser dissociada do ato de ler, que por si só é pessoal e também passa a ser um ato de consumo e de produção. Este ato não se limita ao texto, nem aos comportamentos vividos nas interdições e nos preceitos que pretendem regulá-lo 183 . Assim, as representações femininas contidas nos quadrinhos poderiam receber inúmeras leituras. Havia, no caso das mulheres, aquelas que certamente se identificavam com super-heroínas como a Miss Fury, inicialmente relutante, mas que se acaba percorrendo um caminho de sofrimento, de entrega, saído da sua concha dourada, recebendo fortes golpes da vida e se tornando uma mulher cada vez mais independente. Aquelas que viam na Mulher Maravilha um ideal de mulher forte, da amazona destemida que cultivava os valores mais nobres. Mas temos aquelas que se identificam com a Miss América da Timely Comics, para quem, apesar de todo o seu poder, reforça o discurso da superioridade masculina. O heroísmo era incômodo e deveria ser temporário, assim como a participação da mulher real no esforço de guerra. 182 183 FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Petrópolis: Ed. Vozes, 1971, p. 40. Cf. CHATIER, R., 1990. CAPÍTULO 5 - OS COMICS, O PÓS-GUERRA E O RETROCESSO 5.1 – O mercado editorial norte-americano e a juventude O mercado dos quadrinhos estava em plena expansão. Os investimentos na área cresciam. A cada ano, novas editoras estavam sendo abertas e novos títulos lançados no mercado. Entre os anos de 1938 e 1940, o número de histórias em quadrinhos, de títulos e de editoras aumentou vertiginosamente. Em outubro de 1954, mais de 650 títulos já haviam sido publicados nos Estados Unidos, somando um total de 150 milhões de exemplares por mês e uma receita anual de US$ 90 milhões.184 Essa expansão teve seu momento maior nos anos de 1940, quando a II Guerra Mundial trouxe uma demanda enorme de revistas e personagens que tratavam da guerra, sendo sua temática principal o cenário para as aventuras e superaventuras de personagens populares. Como já vimos no capítulo IV, dezenas deles foram produzidos, a maioria deixou de circular depois da guerra. A guerra servia de vínculo ideal entre leitores de quadrinhos de todas as procedências. O patriotismo – e o ódio profundo pela Alemanha e pelo Japão – tomou o país, criando alguns deveres compulsórios – o dever de envolvimento, o dever de ter bravura, o dever de triunfar sobre as forças do mal -, e quem melhor para fornecer um vislumbre de segurança que não os heróis e heroínas figura dos quadrinhos? As editoras sabiam disso e, antes de a guerra acabar, parecia que todo super-herói do mercado já tinham tido uma refrega com o 185 inimigo Nos anos de 1940 as oportunidades eram inúmeras para quem trabalhava com quadrinhos. A expansão da indústria cultural elevou a produção de revistas em quadrinhos, voltada para públicos cada vez mais específicos. A produção desse material era cada vez mais um bom negócio e chegou a gerar grandes fortunas, beneficiando empresários, editores e, em menor proporção, cartunistas mais ambiciosos. Podia-se viver de quadrinhos, apesar das limitações impostas por muitas editoras aos cartunistas. Nos anos de guerra, os quadrinhos também foram utilizados pelo governo norte-americano. Eram comprados e distribuídos aos milhares para as tropas e o próprio exército chegou a produzi-los para os soldados com 184 185 CHENAULT, W., 2007, p. 22-24. SCHUMACHER, 2013, p. 112. 115 objetivos educativos. Will Eisner, então servindo como soldado, criou manuais sobre manutenção preventiva de equipamentos que foram distribuídos para soldados durante a II Guerra Mundial. A popularidade dos quadrinhos atingiu o pico nos anos de guerra. Eles não eram mais entretenimento apenas para garotos tontos de Kansas City; eram também para irmãos mais velhos, primos e tios deles, que vestiam uniforme e tentavam vencer uma guerra que, no início de 1943, parecia que não ia ter fim. Os militares vinham de todas as partes do país com formação e níveis educacionais variados e amavam quadrinhos. Eisner acertou ao prever, durante as discussões com diretores da Army Motors, que os soldados teriam 186 forte atração pelas HQs. A Timely Comics foi uma das editoras que mais lucrou com a venda dos exemplares de quadrinhos durante a II Guerra Mundial, tendo o Capitão América como seu principal título. O volume mensal de revistas em quadrinhos vendidas após dois anos de guerra havia pulado de 15 milhões para 25 milhões. No ano de 1943 esse número atingiu a marca de 30 milhões, a grande maioria destinada para os soldados em guerra187 Segundo Vince Fago188, a tiragem média de uma revista em quadrinhos da Timely era de aproximadamente meio milhão por edição, durante a guerra, e várias edições eram lançadas durante uma semana. É bom lembrar que os quadrinhos da Miss Fury foram publicados durante a guerra pela Timely Comics, que, entre 1942-1946, em edições de férias (inverno e verão), vendia até um milhão de exemplares. Os quadrinhos haviam se tornado um empreendimento milionário. As oportunidades para essa indústria em expansão eram muitas e foram aproveitadas pelos editores e donos de estúdios. Mesmo quando o governo solicitou que se fizesse o racionamento de papel e zinco, as editoras tentaram manter o ritmo da produção. Embora tenha diminuído o número de títulos, pois não valia a pena arriscar o suprimento limitado com personagens inéditos, que poderiam não cair no gosto do público, resultando em revistas encalhadas nas bancas, o volume total de revistas impressas aumentou, assim como seu consumo. Embora os quadrinhos de crime, aventura e superaventura fossem muito populares e a temática da guerra estivesse constantemente presente, muitos 186 SCHUMACHER, 2013, p. 110. HOWE, S., 2013, p.33. 188 Ibidem, p. 34. 187 116 outros gêneros também fizeram sucesso neste período e continuaram fazendo após a guerra, como veremos adiante. 5.1.1 – Cativando o público leitor feminino: heroínas para todas as idades Como um produto de consumo, as revistas em quadrinhos estão abertas aos gostos diversos de seus leitores. Meninos ou meninas, homens ou mulheres, todos podem consumir histórias de aventura, humor, terror ou romance. Quanto maior o público leitor, maior o lucro dessa indústria. Mesmo quando publicados nos jornais, os quadrinhos tinham alvos específicos. As tiras poderiam ser lidas por um público variado, afinal, os jornais são, de uma forma geral, um meio de comunicação que atinge toda a família, ainda mais depois da criação dos suplementos. Mas, o surgimento das revistas em quadrinho, como produto, levaria a uma maior especialização do setor. Os gêneros dos quadrinhos passam a respeitar uma divisão etária (infantil, juvenil e adultos) e sexual (feminino/masculino). A princípio, foram lançadas revistas em quadrinhos com vários personagens, misturando humor, aventura e superaventura. Os personagens que ganhavam o gosto do público poderiam ter suas próprias revistas, o que acontecia com frequência. Essas revistas passavam a ter um público alvo específico. Nas décadas de 1940 e 1950, os adolescentes e as donas de casa foram dois segmentos contemplados com essa especialização, se assim podemos dizer. Em 1941, por exemplo, o personagem chamado Archie, um dos mais populares até hoje entre os jovens norte-americanos, foi publicado pela primeira vez na Pep Comics # 22, pela editora Archie Comics. Archie é um adolescente típico norte-americano. Ele cursa o ensino médio, pratica esportes e namora. Seus quadrinhos fizeram tanto sucesso que deram origem a vários outros títulos, com personagens que fazem parte do seu universo. Seu principal público consumidor eram as adolescentes. A Pep Comics, onde Archie foi inicialmente publicado, era uma revista de ação, com histórias em quadrinhos de aventura e superaventura envolvidas e/ou interessadas no esforço de guerra. Archie era apenas uma, dentre muitas das histórias publicadas na revista. Uma revista que bem provavelmente era 117 lida também por meninas. Outro título, a Jumbo Comics, que circulou no mesmo período, publicava em suas páginas as aventuras de Sheena, histórias de detetive, de pirata e quadrinhos cômicos. É uma hipótese válida sugerir que essa multiplicação de títulos foi uma forma encontrada pelas editoras de multiplicar, também, o público leitor. A princípio, um leitor ou leitora poderia adquirir a revista para ler tanto uma história de aventura, quanto um romance adolescente ou, possivelmente, ler as duas coisas. Posteriormente, as publicações vão ficando mais específicas, agregando quadrinhos de apenas um gênero, como terror, humor e superaventura, sendo direcionadas a um público preferencial (meninos ou meninas, homens ou mulheres). No pós-guerra, os quadrinhos para adolescente apresentaram um crescimento significativo. A Timely Comics, atualmente Marvel Comics, lançou nesse período muitos títulos, como Millie the Model e Patsy Walker.189 Esses títulos exploravam o lado adolescente dos personagens e criavam uma imagem desejada do(a) jovem norte-americano(a). Além do lucro gerado pela expansão do mercado dos quadrinhos, havia, também, a questão da moderação dos comportamentos. Os quadrinhos são um instrumento social pedagógico à medida que passam a determinar o tipo de leitura que cada faixa etária e gênero devem consumir. Ficava, então, socialmente determinado que as meninas devem ler os romances e as aventuras cômicas de personagens adolescentes; os meninos podem ler quadrinhos de terror, crime, aventura e superaventura. Mas, muitos quadrinhos ainda eram publicados em jornais e os jornais eram de leitura livre para todos. Assim, personagens como Brenda Starr e Miss Fury, continuaram a cativar ambos os públicos e permitiam às meninas adentrarem no universo da aventura, burlando de certa maneira o senso comum, que estabelecia que os quadrinhos de aventura e superaventura são para meninos e não para meninas. As meninas, por sinal, foram um público consumidor ávido, daí o grande sucesso de alguns personagens criados para serem lidos por adolescentes. Vejamos dois exemplos fazendo uma breve análise de dois títulos de sucesso da época: Millie the model e Patsy Walker. 189 MISIROGLU, G., 2004, p. 91. 118 Millie the Model foi uma personagem de humor muito popular, publicada de 1945 a 1973. Millie é uma jovem bonita que trabalha como modelo profissional na agência Hanover. O título começou investindo em situações engraçadas e depois evoluiu para uma espécie de aventura romântica. No Brasil, a personagem ficou conhecida como Lili, a garota modelo. Ela fez tanto sucesso que, quando o material vindo dos Estados Unidos começou a diminuir, a editora La Selva contratou o desenhista brasileiro Gedeone Malagola para escrever novas histórias. Os leitores brasileiros adoraram e a série continuou sendo vendida durante muitos anos ainda190. 191 Figura 51 - Millie the Model Comics. Millie vive às voltas com um mundo da moda, que atrai a atenção das meninas, que poderiam se imaginar em sessões de fotos, em desfiles e festas. Ao mesmo tempo, é uma personagem sensual e provocante, sempre com roupas curtas ou decotadas, tomando banhos de espuma ou na praia, bem ao gosto dos rapazes. Uma verdadeira GGA. 190 RIBEIRO, Antônio Luiz. Lili, A Garota Modelo. Disponível em: <http://www.guiadosquadrinhos.com/personbio.aspx?cod_per=9849>, acesso em: 16 jun. 2013. 191 MILLIE the Model Comics. Marvel Comics, nº. 21, 1946 p. 03. 119 A personagem Patsy Walker foi lançada um pouco antes, em 1944. Ela estreou na revista Miss America (não confundir com a super-heroína Miss America), dedicada ao público feminino. A revista trazia quadrinhos e matérias direcionadas a moças. 192 As histórias de Patsy Walker seguem um rumo diferente das de Millie the Model, mas também são voltadas para um público adolescente e, também, têm a intenção de formar uma juventude moralmente saudável, dentro dos padrões estabelecidos na época. Patsy Walker é uma jovem de classe média que frequenta o curso secundário. Tem um namorado, fofoca, sai com as amigas, sonha com lindos vestidos e é romântica. Representa o modelo ideal e desejado de uma garota norte-americana “saudável” e “consumista”. Suas roupas são elegantes, seguindo a moda da época. Nas revistas de Patsy optou-se por um padrão de beleza mais discreto e realista, realçando-se as roupas e os acessórios. Embora as curvas do corpo feminino possam ser percebidas nitidamente, os vestidos e os decotes agora são mais comportados. 193 Figura 52 – Patsy Walker . Quando Timely Comics torna-se Marvel Comics, muitos personagens sofrem reformulações ou deixam de ser publicados. A editora passa a se especializar em quadrinhos de superaventura. Assim, em 1965, Patsy’s foi integrada ao universo dos super-heróis Marvel, sendo figurante no casamento do Sr. Fantástico com a Mulher Invisível. Uma fã declarada do Quarteto Fantástico, Patsy sonhava em se tornar uma super-heroína. 192 ROBBINS, 2001, p. 88. PATRICIA “Patsy” Walker (Hellcat), 2011. Disponível em: <http://zip.net/brqSBd>, acesso em: 16 jun. 2013. 193 120 Em 1973, casada, ela se torna coadjuvante do Fera na revista Amazing Adventures. No ano de 1976, divorciada, realiza seu sonho e assume a identidade de Felina (Hellcat), uma super-heroína, deixando de ter qualquer semelhança com a personagem criada em 1944. Patsy Walker surgiu como uma personagem padrão de uma série de histórias para adolescentes, como protagonista de uma comédia romântica e acabou se transformando em uma super-heroína dos quadrinhos, um caso raro para uma personagem feminina. Patsy Walker e Millie Model foram criações da canadense, naturalizada norte-americana, Ruth Atkinson, nascida em 1912 e que estreou nos quadrinhos no ano de1944, como freelancer. Em seu primeiro trabalho creditado, ela apresentava um avião chamado Hellcat, curiosamente, o codinome assumido por Patsy Walker quando se torna uma super-heroína, na década de 1970. Figura 53 - Foto mais famosa de Ruth Atkinson, tirada durante o período em que foi diretora da 194 Fiction House. Atkinson pode ser considerada uma das pioneiras nos quadrinhos, tendo chegado a assumir o posto de editora chefe da Fiction House e ter participado da produção de títulos como Wing Tips, Tabu e Sea Devil, esses, notadamente, 194 ROBBINS, 2001, p. 74. 121 quadrinhos de aventura. Mas, ela também produziu romances em quadrinho, colaborando com títulos como Lover’s Lane. Sua produção foi eclética e seguiu as tendências do mercado. Uma curiosidade é o fato de Millie the Model ter nascido do lápis de Ruth Atkinson, que colaborou com a primeira edição da revista, assinada, também, pelo editor chefe da Timely Comics, Stan Lee. 195 Mas, a cartunista dedicou mais tempo ao título Patsy Walker, no qual ficou por cerca de dois anos. Essas duas revistas foram o maior sucesso teen da editora e as duas personagens tiveram uma vida longa. No caso de Patsy, ela pode ser considerada a personagem feminina da Marvel mais antiga em atividade. Ruth Atkinson faleceu em 1997, vítima de câncer. Ela foi uma das poucas cartunistas que trabalharam na Marvel Comics e que conquistaram reconhecimento e influência com seu trabalho.196 Nos anos de 1950 menos mulheres estavam trabalhando nos estúdios e editoras de grande porte. Na Marvel, por exemplo, havia apenas duas. Se, durante a era de ouro, os quadrinhos de aventura protagonizados por mulheres estavam muito mais focados na aventura, agora era o romance, o glamour e o humor que predominava em quadrinhos como os de Millie.197 5.1.2 – As garotas amam paper dolls Uma das estratégias utilizadas para seduzir o público feminino eram as paper dolls, bonequinhas de papel para recortar e colar que vinham como uma espécie de encarte, tanto nos jornais quanto nas revistas em quadrinhos. As leitoras (ou leitores) podiam vestir a personagem com roupas de papel. Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, quando o papel era barato, havia espaço suficiente na seção de quadrinhos dos jornais de domingo para imprimir bonecos de papel das personagens de quadrinhos dos mais variados tipos. Em 1931, a personagem Blondie, criada por Murat Bernard Chic Young, conhecida no Brasil como Belinda, exibia seu guarda-roupas em Blondie and Some Evening Clothes. Mas as paper dolls não eram apenas de personagens femininas. Até o famoso detetive dos quadrinhos, Dick Tracy, foi vestido e despido pelos fãs que 195 ROBBINS, 2001, p. 87 WOMEN of the Golden Age: Ruth Atkinson. Disponível em: <http://www.comicvine.com/ruthatkinson/4040-56287/>, acesso em: 10 ago. 2013. 197 MADRID, 2013, p. 648. 196 122 compravam o Chicago Sunday Tribune, no ano 1940. 198 Uma verdadeira manobra de propaganda para os quadrinhos, mencionada por Trina Robbins 199 em Paper Dolls from the Comics. Segundo a pesquisadora, as bonecas de papel eram um chamariz para as leitoras200. Em um artigo sobre a história da moda nos quadrinhos, Nádia Senna chama a atenção para essa prática editorial que, segundo ela, era uma atividade comum entre as meninas. Algumas revistas traziam encartes com roupas para serem recortadas e coloridas, brincadeira de vestir as “bonecas de papel”, atividade típica das meninas da época para os dias de chuva ou de resguardo 201 na cama. Mais do que um passatempo, as paper dolls tinham um objetivo mercadológico. Essas bonecas de papel chegaram aos quadrinhos como uma forma de ampliar o mercado consumidor feminino para aquele produto. Elas conhecem um grande sucesso na década de 1940, quando passaram a acompanhar histórias em quadrinhos publicadas em jornais e, depois, em revistas. O resultado positivo fez com que as editoras incentivassem sua publicação. As vendas de quadrinhos aumentaram e, em alguns casos, os(as) leitores(as) eram convidados a contribuir enviando desenhos com modelos que poderiam ser usados pelos(as) personagens202 Na figura 54, temos uma amostra de desenhos enviados pelas fãs. Nas margens da folha, podemos identificar a autora de cada parte do manequim. Inclusive com o endereço postal. Eram meninas de várias cidades enviando seus desenhos para serem publicados em uma revista de circulação nacional. As pequenas modistas ganhavam destaque e a revista encontrava mais uma forma de cativar seu público, afinal, as meninas adoram paper dolls. 198 ROBBINS, Trina. Paper Dolls from the comics. Forestvolli: Eclipse Books, 1987, p. 12 Idem 200 Ibidem, p. 03 201 SENNA, Nádia Cruz. Moda e HQ. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001. Disponível em: <http://zip.net/bfqj8Y>, acesso em: 07 fev. 2013. 202 JOHNSON, Judy M. History of Paper Dolls (1999). Disponível em <http://www.opdag.com/History.html>, acesso em: 07 fev. 2013. 199 123 Figura 54 – Paper doll de Patsy Walker. 203 PATSY Walker. Bard Publishing Corp., nº. 73, 1957, p. 14 203 124 204 Figura 55 – Paper doll da de Marla Blake Figura 57 –Paper doll de Millie. 204 206 . Figura 56 - Paper doll da Baronesa von 205 Kampf . Figura 58 – Paper doll de Hesy. MISS Fury, v. 01, n. 02, Timely Comics, 1943, p.16. Miss Fury, v. 01, n. 02, Timely Comics, 1943, p.15. 206 MILLIE the Model Comics. Male Publishing Corp., n. 94, 1960, p.16. 207 PATSY and Herdy. Male Publishing Corp., n. 71, 1960, p. 12. 205 207 125 A ocorrência das paper dolls, primeiro em jornais e depois nas revistas em quadrinhos, nos traz duas importantes evidências. Primeiro, o reconhecimento de um mercado consumidor feminino; segundo, o fato de que as mulheres eram leitoras tanto de jornais quanto de quadrinhos. Se levarmos em conta que essas bonequinhas eram publicadas, também, em revistas de quadrinhos de aventura, como Dick Tracy e Terry and the Pirates, podemos considerar, mais uma vez, que as meninas liam e gostavam de gêneros variados de quadrinhos ou mesmo a possibilidade de que os meninos também gostassem de colecionar e brincar com paper dolls. Em Miss Fury, o recurso das paper dolls foi usado, tanto nos jornais quanto nas revistas em quadrinhos. Nelas, temos Marla, Erica e até a geniosa Era exibindo seus modelos de festa. Tarpé Mills gostava de vestir bem suas personagens. Elas raramente repetiam suas roupas. Isso refletia um pouco a própria personalidade de Mills, que estava sempre bem vestida. Na análise de Trina Robbins,208 por Mills ter sido modelo antes de se dedicar aos quadrinhos, ela demonstrou ter um extraordinário senso de moda em sua tira. Suas personagens eram elegantes, da protagonista Marla Drake, passando pela vilã, Erica, possivelmente inspirada na atriz hollywoodiana, Marlene Drietrich, até a personagem Era, o líder de uma unidade de Guerrilha antinazista. Na revista em quadrinhos Miss Fury # 02, as paper dolls de Marla e Erica ocupam, cada uma, uma página inteira. De uma forma geral, a ocorrência das paper dolls em uma revista em quadrinhos indica que ela tem como público principal, mas não único, o feminino. A idade varia muito. Supõe-se que as adolescentes gostem das revistas teen, mas que também se interessem pelas histórias de aventura e superaventura. As mulheres mais velhas e, possivelmente, as casadas leem quadrinhos de humor e romances em quadrinhos, mas também podem se interessar por aventura ou superaventura. Por que não? Essas personagens direcionadas ao público feminino têm características diferentes, estilos diferentes e sugerem representações particulares do feminino. As aventureiras e super-heroínas surgidas no início da década de 1940 são mais maduras, mais velhas e se envolvem em tramas muitas vezes complexas. As adolescentes que estampam as capas das revistas teen são 208 Cf. ROBBINS, 2011. 126 moças despreocupadas, sonhadoras e superficiais. Essa diferenciação, longe de tentar gerar uma simplificação generalizante, aponta para uma série de mudanças nas relações de gênero que vão caracterizar o período pós-guerra. 5.2 - As Mulheres e a (super)aventura do pós-guerra No início dos anos de 1940, as jovens heroínas eram decididas, tinham planos, buscavam sua realização, principalmente por meio de uma profissão. Eram independentes e pensavam no futuro como um campo inexplorado de possibilidades. Essas heroínas possuíam as qualidades e os valores que estavam presentes, em menor ou em maior escala, nas mulheres comuns. A maioria das heroínas das principais revistas femininas — Ladies Home Journal, McCall's, Good House keeping, Woman's Home Companion — eram mulheres atraentes, que tinham sua carreira e viviam felizes, orgulhosas, amando e sendo amadas pelos homens. E a energia, a coragem, a independência, a determinação, a força de vontade que manifestavam no trabalho de enfermeira, professora, artista, atriz, escritora, comerciária, faziam parte dos seus atrativos. Davam a nítida impressão de que sua individualidade era algo a ser admirado, e que os homens se sentiam atraídos tanto por sua energia 209 e caráter, como por sua aparência.” No entanto, o período pós-guerra irá fazer uma releitura da condição feminina, tanto na ficção quanto na realidade. Chamadas a colaborar com o esforço de guerra, agora as mulheres são instruídas a retornarem para seus lares e reassumirem seu papel doméstico. Elas não eram mais necessárias nas diversas posições que assumiram, os homens voltaram. Esse discurso não estava direcionado a todas as mulheres, mas, sim, para aquelas que haviam recentemente sido alocadas no mercado de trabalho formal. Como já foi afirmado, as mulheres sempre trabalharam, elas apenas eram invisíveis. Pouco se falava do trabalho feminino, mas ele existia e era essencial. Mas as mulheres pobres é que deviam trabalhar. Mulheres de classe média, moças que pertenciam à fina flor da sociedade deveriam manter-se em suas casas. Elas estudavam, mas seu objetivo deveria ser o casamento. A guerra fez com essas moças, solteiras ou casadas, enfrentassem o mundo do trabalho de uma forma que nunca haviam imaginado, assumindo postos e papéis que antes eram de seus pais e irmãos e maridos. 209 FRIEDAN, B., 1971, p. 36. 127 Como já vimos, elas participaram ativamente do esforço de guerra e se tornaram símbolos da luta contra o EIXO. Quando a guerra terminou, as mulheres representavam 57% da força de trabalho. Dessas, 75% pretendiam continuar trabalhando mesmo depois da guerra e 88% sonhavam em ter uma carreira profissional A força da participação feminina chegou, inclusive, a sensibilizar legisladores, que apresentaram leis que promoviam os direitos das mulheres nos Estados Unidos.210 Mas com o fim da II Guerra Mundial toda essa euforia foi colocada em xeque. Apenas dois meses depois do fim do conflito cerca de 800 mil trabalhadoras da indústria aeronáutica perderam seus empregos. Em menos de um ano mais de 2 milhões de mulheres foram demitidas na indústria pesada.211 Era preciso devolver aos homens que retornavam da guerra seus postos de trabalho. Foram ressuscitadas proibições contra o trabalho de mulheres casadas, salários foram severamente reduzidos, creches foram fechadas. Em 1948 os Estados Unidos, de 22 países do continente americano, foram o único país a se recusar a assinar um parecer da ONU a favor de direitos para as mulheres. A maior parte das conquistas femininas foram combatidas tanto pela mídia quanto pelo governo e pelos mesmos empresários que, anos antes, louvavam as qualidades do trabalho feminino. As mulheres casadas foram as mais prejudicadas. As que insistiram em continuar trabalhando eram alvos de preconceito. As solteiras eram incentivadas a trabalhar, caso necessário, mas somente até casarem, afinal, a maternidade deveria vir em primeiro lugar. A mão de obra feminina, considerada reserva, foi dispensada e, para que não houvesse maiores resistências foi elaborada uma pauta cujos pontos foram eficientemente executados pela indústria cultural. Essa pauta determinou a promoção dos valores femininos e 212 transformou o lar em um verdadeiro paraíso feminino. Tratava-se da instalação do backlash (retrocesso) que atinge todos os setores da sociedade norte-americana, inclusive a indústria de entretenimento norte americana. Os backlashes são reações contra o progresso das minorias. No caso das mulheres, os backlashes geralmente ocorrem quando elas estão próximas de ter conquistas significativas. Ele, normalmente, não tem 210 FALUDI, 2001, p. 70. Idem. 212 OLIVEIRA, 2007, p. 88. 211 128 conotações políticas (ou aparenta não ter). Apresenta-se como uma manifestação dos medos da sociedade civil, que se sente ameaçada pelas mudanças provocadas pelo sucesso das mulheres. Ele se baseia em argumentos pseudocientíficos, em pesquisas, por exemplo, publicadas em revistas e jornais, noticiados em rádio e TV que afirmam, por exemplo, que mulheres com curso superior têm menos chances de se casar, ou que determinada porcentagem de casos de delinquência juvenil envolvem filhos de mulheres que trabalham fora ou que determinadas doenças podem ser desenvolvidas por mulheres solteiras depois de determinada idade, etc. Enfim, argumentos que justifiquem a opção pelo casamento e pela maternidade. Os publicitários inverteram a sua mensagem dos tempos de guerra a de que a mulher podia trabalhar e gozar da vida familiar - e afirmavam agora que as mulheres deviam optar pelo lar. Como descobriria mais tarde uma pesquisa sobre a imagem da mulher nas revistas de ficção do pós-guerra, a carreira para as mulheres estava sendo apresentada numa ótica mais desencorajadora do que em qualquer outra época desde o começo do século; aqueles pequenos contos representavam "o mais duro ataque contra a carreira feminina" desde 1905. Nas histórias em quadrinhos, até a Mulher Maravilha do 213 pós-guerra não ia lá muito bem das pernas. Na prática, o backlash dos tempos da mística feminina não mandou as mulheres de volta para casa, ele agiu de uma forma muito mais sutil, mas não menos eficiente. A sociedade passa a ridicularizar as mulheres que trabalhavam fora de casa e eram discriminadas pelos patrões assim como pelo próprio governo, que promoveu novas políticas de emprego. O número de mulheres que trabalhavam não se reduziu drasticamente nos anos de 1950, mas elas passaram a ser confinadas a empregos mal remunerados. Segundo Susan Faludi, “o backlash dos anos 50 não transformou as mulheres em ‘felizes donas-de-casa em horário integral’; apenas as rebaixou à condição de secretárias mal pagas”. 214 Os homens querem de volta o espaço que deixaram vago na sociedade durante a guerra. O trabalho das mulheres, sua ausência do lar e sua independência financeira atingiam a autoestima dos homens, naturais provedores da família. Muitas mulheres se recusaram a abandonar sua vida profissional recém-conquistada e a retornar para as limitações do trabalho 213 214 FALUDI, 2001, p. 70. Ibidem, p. 71 129 doméstico. O governo lançou, então, uma campanha nos meios de comunicação para convencê-las a reassumirem seu papel de donas de casa.215 De acordo com essa campanha, seria um dever patriótico das mulheres entregar aos homens o seu lugar no mercado de trabalho. Elas deviam isso a eles, que haviam se sacrificado na guerra pela segurança da Pátria. Quase que por mágica se esquece que as mulheres também fizeram sacrifícios e algumas até foram consideradas baixas de guerra. É preciso levar em conta que todo um mercado de trabalho havia sido modificado e se expandido durante os anos de guerra. No período pós-guerra a economia norte-americano continuou crescendo. Ora, o país não podia se dar ao luxo de dispensar praticamente metade da sua força de trabalho. Cerca de dois anos depois da guerra, muitas mulheres retomaram o trabalho. A década de 1950 foi marcada pelo aumento da participação da mulher no mercado de trabalho. O que ocorreu foi que a força de trabalho foi deslocada para atividades menos remuneradas, onde não competiam com os homens. Entre as mulheres dos grupos economicamente inferiores, muitas tiveram que voltar ao trabalho para ajudar o marido a manter o padrão razoável de vida para a família. Outras se revoltaram com o governo por afirmar que as mulheres só seriam felizes realizando trabalhos domésticos, sendo uma dona de casa ideal. Temia-se uma mudança permanente no papel feminino. Segundo Selma Regina Nunes Oliveira,216 a década de 1950 foi marcada pelo antifeminismo nos Estados Unidos e houve um significativo aumento das pressões moralistas sobre as mulheres. O backlash não estava impedindo as mulheres de trabalharem, mas colocava o trabalho em segundo plano, reforçando a importância da família. A família era considerada a base da organização social e contava com noções tradicionais dos papéis masculino e feminino na família. Era um modelo marcado por uma série de estereótipos. Uma família tradicional onde a mulher desempenhava o papel de esposa e mãe. O casamento era uma instituição poderosa. Segundo Vanessa Martins Lamb, 217 as pessoas não perguntavam se iam se casar, mas quando e com quem. As jovens não tinham dúvidas 215 LAMB, Vanessa Martins. The 1950’s and 1960’s and the American Woman: the transition from the “housewife”. Université du Sud Toulon-Var UFR Lettres et Sciences Humaines Master civilisations contemporaines et compares, 2011. 216 OLIVEIRA, 2007, p. 34. 217 LAMB, 2011, p. 10-11. 130 sobre ter filhos, mas sobre quantos bebês teriam. O casamento era um mundo seguro, organizado, privado, rodeado por bens de consumo, crianças e expectativas. 5.2.1. A perseguição aos quadrinhos As mulheres de papel assim como as mulheres de carne e osso sofrem no pós-guerra os efeitos do backlash. No caso das personagens dos quadrinhos, elas vão pouco a pouco perdendo parte da sua autonomia. Passaram a ser definidas muito mais pelos seus super poderes do que pela sua inteligência. As heroínas como A Mulher Maravilha, Sheena e Miss Fury que passavam para as leitoras e os leitores uma imagem de independência e segurança ou sofrem uma releitura (são reinventadas) ou desaparecem. Mas, esse moralismo não se aplica a certas práticas como, por exemplo, a adoção de roupas decotadas e curtas para personagens femininas. A roupa de Sheena, por exemplo, ficava cada vez mais curta, principalmente nas capas das revistas. Millie Model estava sempre tomando seu banho de espuma e Brenda Starr não dispensava uma boa cruzada de pernas. A verdade é que muitas personagens, super-heroínas ou não, estavam ficando menos inteligentes, mais dependentes e suas aventuras superficiais. As campanhas contra os quadrinhos marcaram o final dos anos de 1940 e a década de 1950. Uma onda de conservadorismo varreu os Estados Unidos e exigia-se o controle de toda forma de arte que ameaçasse o status quo. A moda, o rádio, televisão e o rock também sofreram com o controle sobre a produção cultural. Era preciso proteger a juventude de influências negativas. Na verdade, essa preocupação nada mais era do que uma forma de abordar outros problemas sociais, surgidos após a guerra218 A igreja foi uma das inimigas declaradas dos quadrinhos nos Estados Unidos. Grupos religiosos os acusavam, já em 1944, de causarem danos morais às crianças e não cumprirem com os padrões de uma boa leitura. Segundo eles, a maioria dos quadrinhos era inapropriada para a juventude.219 Em 1947, com o declínio dos quadrinhos de super-heróis e o aumento da 218 GOLDSTEIN, Andrew, "Depravity for Children -- Ten Cents a Copy!": Hartford and the Censorship of Comic Books, 1948 - 1959" (2003). Hartford Studies Collection: Papers by Students and Faculty. Paper 14, p. 01-02. 219 FREDRIC Wertham, Censorship & the Timely Anti-Wertham Editorials. Disponível em: <http://zip.net/blp4zF>, acesso em: 09 ago. 2013. 131 popularização de gêneros como terror e crime, as críticas aumentaram e tomaram uma proporção alarmante nos anos seguintes. Quanto maior era o sucesso desses gêneros, maiores eram as críticas feitas por meio de artigos em jornais e revistas. Essa situação se agrava com a publicação, e o sucesso, do livro de Fredric Wertham, intitulado A sedução do Inocente, em 1954. Os quadrinhos seriam um dos fatores que poderiam levar à delinquência. Alguns gêneros, em especial, eram considerados mais perigosos, uma vez que neles eram comuns cenas de violência. Wertham se tornou o crítico mais importante, dedicado a alertar a sociedade sobre o impacto negativo dos meios de comunicação de massa sobre as crianças, especialmente as histórias em quadrinhos. Wertham já estava engajado na campanha contra os quadrinhos já há algum tempo. Em 1948, a revista Collier’s publicou o artigo “Horror in the Nursery” (Terror no berçário), assinado por Judith Christ, onde eram apresentadas delinquência. as teorias 220 de Wertham relacionando os quadrinhos à Neste mesmo ano, já eram feitas manifestações públicas, organizadas por escolas e igrejas, que incluíam a queima de revistas em quadrinhos. Wertham chegou a afirmar que os quadrinhos eram uma influência pior do que o próprio nazismo. Acredito que Hitler era um principiante se comparado à indústria de quadrinhos”, declarou Wertham ao comitê. “Eles ensinam ódio às outras raças aos quatro anos, antes de as crianças saberem ler”. Wertham não se deu ao trabalho de explicar como uma criança seria influenciadas por palavras ofensivas publicadas numa revista que ela 221 não podia ler. Inicia-se uma perseguição até então nunca vista contra os quadrinhos e um dos gêneros que mais sofreu foi o de superaventura. As super-heroínas, claro, não foram poupadas. Para Wertham, as representações das mulheres nas histórias em quadrinhos significavam uma deturpação masculinizada do desenvolvimento humano e moral e um péssimo exemplo para meninos e meninas, em especial, os quadrinhos da Mulher Maravilha, que ele considerava uma afronta à família, à moral e aos bons costumes. 222 A resposta a este 220 SCHUMACHER, 2013, p.133. Ibdem, p. 167. 222 REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua potencialidade teológica. Tese de Doutorado Para obtenção do grau de Doutor em Teologia 221 132 discurso, que encontra eco em vários setores da sociedade civil, é uma mudança radical em muitos personagens assim como o desaparecimento de outros. Figura 59 – Imagem usada como propaganda contra a leitura dos quadrinhos. O fragmento retirado do artigo de John Mason Brown, publicado na Saturday Review Literature, de 29 maio 223 de 1948, onde Wertham reforça suas declarações dadas anteriormente à revista Collier’s. Wertham questiona ainda o papel das histórias em quadrinhos na representação do masculino e do feminino. Ele contra-argumenta a afirmação de que as histórias em quadrinhos expressam uma equidade entre o papel social de homens e mulheres. Para o psiquiatra, não existe nenhuma compreensão avançada do masculino e do feminino, mas um retrocesso perverso. Mais ainda, as histórias em quadrinhos estimulam (e aqui o tom é de acusação) as relações homoafetivas masculina e feminina, representado na relação entre Batman e Robin e nas histórias da Mulher Maravilha224. Muito mais do que uma ação destemperada de um psicólogo que queria se promover publicamente, as ações de Wertham eram guiadas pela crença de que os quadrinhos eram realmente nocivos. Wertham foi discípulo de Freud, tendo uma formação sólida em psiquiatria. Ele realizava importantes trabalhos Escola Superior e Teologia Programa de Pós-Graduação Área de concentração: Religião e Educação – São Leopoldo, 2012, p. 40. 223 FREDRIC Wertham, Censorship & the Timely Anti-Wertham Editorials. Disponível em: <http://zip.net/blp4zF>, acesso em: 09 ago. 2013. 224 Ibidem, p. 37-38. 133 sociais, tendo fundado uma clínica psiquiátrica em Harlem, a Lafargue, onde atendia gratuitamente a população negra de baixa renda.225 Fredric Wertham não achava necessário censurar os quadrinhos para os adultos e não creditava unicamente aos quadrinhos o aumento da delinquência juvenil. Mas, suas ideias, muitas delas afirmações sem qualquer fundamento científico ou teórico, tiveram um forte impacto numa sociedade que vivia um momento de conservadorismo, que tentava refazer a família patriarcal em moldes rígidos. Para se protegerem, as editoras criaram o Comic Code Authority (CCA), em 1954, uma forma de autocensura, a fim de salvaguardar títulos e personagens. Como consequência, os quadrinhos mudaram, os roteiros ficaram mais superficiais, muitos personagens - em especial personagens femininas, como a Mulher Maravilha - sofreram mudanças visíveis em seu comportamento. Se por um lado o selo de aprovação do Comic Code Authority tranquilizava os pais quanto ao seu conteúdo, por outro, representou um retrocesso para os quadrinhos, enquanto expressão artística e das relações de gênero neles representadas. Para a MM (Mulher Maravilha), o CCA representou o final de sua postura como símbolo feminista. Tornando-a uma personagem quase anódina. Esta combinação permaneceu (...) até os anos 70, quando as coisas começaram a mudar. Não apenas para ela, mas nos 226 quadrinhos em geral . Os anos imediatamente após a instituição do Código foram turbulentos para a indústria de quadrinhos. Em 1954 editoras já tinham fechado as portas.227 Em 1956, muitas empresas foram vendidas ou fecharam as portas. No final da década de 1950, das dezenas de editoras existentes no mercado até o final da II Guerra Mundial, apenas nove sobreviveram: American Comics Group, Archie Comics Publishing, Charlton Comics, Dell Publishing Company, DC Comics, Gilberton Publications, Harvey Comics, Marvel Comics, e Prize Publications.228 225 GOLDSTEIN, 2003, p. 05. CHACON, Beatriz da Costa Pan. A mulher e a Mulher Maravilha: uma questão de história, discurso e poder (1941-2002). Dissertação de Mestrado no Programa de Pós Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 31. 227 HOWE, 2013, p. 40, 228 CHENAULT, 2007, p. 33. 226 134 Muitos títulos foram cancelados e editoras desapareceram. Muitos cartunistas e outros profissionais ligados aos quadrinhos tiveram que mudar de ramo, trabalhando com ilustração em agências de publicidade. O número de mulheres que trabalhavam nos estúdios, que não era grande, diminuiu ainda mais. 5.2.2 - novas tendências nos quadrinhos, velhas barreiras para as mulheres A crise atinge também as cartunistas. Com fim da II Guerra Mundial, muitas cartunistas perdem seus empregos, principalmente aquelas que haviam sido contratadas para trabalhar com quadrinhos de aventura e superaventura. Elas tiveram que ceder espaço para os homens. Com o fechamento de editoras, as cartunistas que haviam permanecido em atividade são, em muitos casos, obrigadas a buscar outras atividades ou simplesmente abandonar os quadrinhos. A mudança, na verdade, atingia toda a indústria dos quadrinhos, e não apenas as mulheres. Personagens que fizeram sucesso durante a II Guerra começam a ser descartados. A onda de patriotismo que varreu a primeira metade da década de 1940 perde sua força. A era de ouro dos quadrinhos estava chegando ao fim. The end of WWII promised a new era of peace for the world. But it presented a challenge for comic books. The scores of red, white, and blue, star-spangled heroes and heroines who had fought so bravely during the war years were now obsolete. Peace had eliminated the perfect evil foe for freedom-loving heroes. Who needed a Mr. America, Liberty Belle, or Yankee Doodle Jones if there was no longer a great menace theatening democracy? Patriotc heroes disappeared quickly, as the anthology comics of the Golden Age began to change 229 to reflect the postwar world. Segundo Wesley Chenault. 230 os anos finais da década de 1940 e o início da década de 1950 foram marcados pela redução do número de 229 O fim da II Guerra Mundial prometia uma nova era de paz para o Mundo, porém representou uma ameaça para os quadrinhos. Os muitos heróis e heroínas americanos que haviam lutado tão valentemente durante os anos de guerra estavam agora obsoletos. A Paz havia eliminado a apropriada ameaça diabólica para esses heróis amantes da liberdade. Quem ainda precisava de um Mr. America, uma Liberty Belle ou um Yankee Doodle Jones se não havia mais a grande ameaça à Democracia? Heróis patrióticos desapareceram rapidamente das antologias de quadrinhos da Era Dourada começarem a mudar a fim de retratarem o Mundo pós-guerra. (tradução livre do original). In: MADRID, 2013, p. 1022. 230 CHENAULT, 2007, p. 30. 135 mulheres que trabalhavam com quadrinhos. Em 1950, esse número, entre roteiristas e desenhistas, havia caído para menos de um terço daquele do período da II Guerra Mundial. O ano de 1954 marca não apenas um momento crítico da indústria dos quadrinhos, mas também o fim de uma era de ouro para as mulheres cartunistas. Poucas conseguiram manter-se no ramo. As que decidem, e conseguem, permanecer na indústria dos quadrinhos migram para os títulos adolescentes, para os romances em quadrinhos (romance comics) e para os quadrinhos de animais (funny comics). Outras cederam às pressões da sociedade e do governo e adotaram o ideal da dona de casa e esposa. Editors of the post-war, who seemed to rejected the ideia of woman drawing actions strips, obviously found no fault with these artists drawing teenage comics. Another genre in which woman were welcome was the burgeoning field of romance comics, which had started in 1947. With few exceptions, the stories in these books were hackneyed an cliched, but the art was often stylish and elegant, allowing woman artists to draw what they seem to prefer drawing: Graceful closeups of woman's face. (...) If woman cartonist were still accepted in the more traditional teen and romance comics, one would expect to also find them in funny 231 animal comics. Eram nesses gêneros que elas tinham mais oportunidades. Poderiam, também, se dedicar à ilustração de livros, como aconteceu com muitas delas. Mas, se o mercado se fechava para as cartunistas, as que persistiram souberam aproveitar as poucas oportunidades que tiveram. Vale citar aqui o caso de Ruth Atkinson e sua participação na produção de quadrinhos para adolescentes e, posteriormente, nos romances em quadrinhos. E foi nos romances que essas cartunistas representaram um número maior de colaboradores. Mas, sua função era, na maioria das vezes, restrita à arte. Os roteiros foram majoritariamente assinados por homens, que colocavam ali suas representações de mulheres ideais e de como deveriam ser os 231 Editores do período pós-guerra, que pareciam rejeitar a ideia de uma mulher desenhar tiras de ação, obviamente, não encontraram nenhum problema com essas artistas desenhando quadrinhos de adolescentes. Outro gênero no qual a mulher era bem-vinda era a campo florescente dos quadrinhos de romance, que surgiram em 1947. Com poucas exceções, as histórias desses álbuns [livros] eram banais e cheias de clichês, mas a arte era geralmente estilosa e elegante, permitindo mulheres artistas desenhar o que elas pareciam preferir desenhar: closes graciosos dos rostos de mulheres. (...) se uma mulher cartunista ainda fosse aceita nos quadrinhos adolescentes e de romance mais tradicionais, seria de se esperar encontrá-las também nos quadrinhos cômicos de animais (tradução livre original). ROBBINS, 2001, p. 92. 136 desfechos dos relacionamentos amorosos. O público alvo eram mulheres adultas, casadas e solteiras, e adolescentes. Esses quadrinhos retratavam o amor romântico, falavam de ciúme, casamento, divórcio e traição. Os romances em quadrinhos tornaram-se um dos gêneros mais populares do final da década de 1940 até a década de 1970. No início da década de 1950 foram publicados dezenas de títulos. Ganhava força a ideia de que deveria haver uma rígida separação entre “quadrinhos para meninas” e “quadrinhos para meninos”. As meninas deveriam ler os romances; os meninos, os quadrinhos de ação e aventura. As meninas deveriam ler histórias onde as mulheres ficam noivas e se casam; os meninos deveriam ler histórias onde as mulheres eram resgatadas por um homem. As heroínas dos anos de 1950 se tornaram uma sobra daquelas bravas guerreiras da década anterior.232 Não por acaso, nesse período, as mulheres nos quadrinhos de superaventura tiveram seus poderes reduzidos, tornaram-se cada vez mais dependentes dos homens e passaram a ser modeladas aos padrões de fragilidade, docilidade e submissão exigidos. A Mulher Maravilha, por exemplo, passou a sonhar em se casar com o Major Steve Trevo, seu eterno namorado, mas não o faz, porque nunca conseguiria ser mais fraca que ele, algo fundamental em um casamento. Outro exemplo é a Super Girl, personagem lançada no final dos anos de 1950. Ao chegar à Terra para encontrar com seu único parente vivo, o Superman, a jovem é colocada em um orfanato. Ela vive um vida reclusa, onde sua principal preocupação é agradar ao primo famoso, mesmo que isso signifique sacrifícios pessoais como não ter uma família, esconder do mundo a sua existência ou evitar fazer amizades.233 Assim, dentro dessa nova lógica, que enfraquecia as mulheres e as tornava cada vez dependentes dos homens, os romances em quadrinhos eram um gênero aceitável para as mulheres, em geral donas de casa. Para as jovens solteiras eles representavam a promessa de um amor eterno e um estímulo para o casamento. Com a implementação do Comic Code Authority, em 1954, 232 MADRI, 2013, p. 273. NOGUEIRA, Natania A Silva. A fragilidade feminina nos quadrinhos de superaventura na década de 1960. Labrys, Études Féministes/ estudos feministas janvier / juin 2013. Disponível em: <http://www.labrys.net.br/labrys23/culturepop/natania.htm>, acesso em: 13 ago 2013. / junho 2013 233 137 as histórias passaram a dar enfoque a conceitos tradicionais patriarcais de comportamento feminino, aos papéis de gênero, amor, sexo e casamento. Figura 60 - Romantic Secrets. 234 235 Figura 61 - Romantic Secrets. Eles reforçavam o ideal representado pelo modo de vida americano, que enaltecia a mulher perfeita, na forma da dona de casa eficiente, esposa e mãe amorosa, um dos símbolos da riqueza e prosperidade da nação. Esses romances criticavam e desestimulavam a promiscuidade, mostrando o quanto ela era prejudicial para a mulher. Também criticavam o desejo feminino de buscar realização profissional mostrando que a verdadeira felicidade estava no casamento, pois uma mulher só poderia se sentir completa e segura com um homem ao lado. A imperfeição feminina contrastava com a perfeição masculina. Esses romances também serviam como forma de mostrar às meninas as consequências de se entregarem a paixões. Mostram a elas que ações destemperadas, fugas com namorados e escolhas baseadas na emoção podem levar à infelicidade. Toda e qualquer união deve ser fruto da razão e não da emoção. As mulheres são seres emocionais e os homens racionais. Uma reprodução de um pensamento preconceituoso, que afirmava a 234 235 ROMANTIC Secrets. Charlton Comics Group. V. 01, nº 20, 1959. ROMANTIC Secrets. Charlton Comics Group. V. 01, nº 20, 1959, p. 02. 138 inferioridade feminina. Uma reação ao aumento da presença feminina no mercado de trabalho. Nos anos 50, embora as mulheres pudessem até ficar na cozinha, também aumentava a sua presença nos escritórios - numa progressão que logo superou até a participação delas no trabalho durante a guerra. E foi justamente o contínuo afluxo das mulheres ao mercado de trabalho, e não a volta ao lar, que provocou e insuflou o furor antifeminista. Foi a realidade da mulher trabalhadora que provocou a exacerbação das fantasias culturais acerca do seu papel como dona-de-casa e parceira no sexo. Como as estudiosas de literatura Sandra M. Gilbert e Susan Gubar observam acerca da época pós-guerra, "quanto mais as mulheres eram pagas para usar o cérebro, mais os homens as descreviam em romances, peças e 236 poemas como sendo apenas corpos". Esses quadrinhos reforçavam a ideia de que as mulheres devem ser submissas e não devem se deixar levar pelos impulsos. Reforçam a submissão feminina, que se apresenta na forma da mãe e esposa devotada. As mulheres são classificadas como aquelas que servem e aquelas que não servem para casar. As solteiras são as que sempre sofrem com desilusões até encontrarem a felicidade conjugal. Se são independes, sofrem por não conseguir um marido. Se desejam ter uma carreira e não desejam se casar, são representadas como solteironas amargas. O preço da independência é a solidão e a infelicidade. Essa era a imagem que a mídia veiculava no final da década de 1940 e durante os anos de 1950. No do século XX a representação que a imprensa faz da mulher solteira assume ares de mentalmente perturbada, retraída e depressiva. As mulheres casadas, quando vítimas de traição, perdoam seus maridos, afinal, o casamento é uma instituição sagrada. O backlash usa todos os meios de comunicação para combater qualquer avanço, qualquer progresso das mulheres na conquista de mais espaço na sociedade, de direitos. Os quadrinhos de romance foram, também, utilizados para isso. Se pensamos em Miss Fury como um longo folhetim de romance, e não como uma surperaventura, veremos que Mills brinca com o “amor”. Marla é romântica, se apaixona, aparece muitas vezes como uma mulher frágil e atormentada pelos sentimentos, mas o casamento deixa de ser um opção para ela. Até a maternidade é um ato de coragem. Ela prefere adotar uma criança e 236 FALUDI, 2001, p. 72. 139 ser mãe solteira. Ela é financeiramente independente, não precisa ser sustentada nem se submeter a nenhum homem. O romance presente nas aventuras da Miss Fury, até o seu encerramento no final da década de 1952, embora possua algumas características do amor romântico (é sempre bom lembrar que as revistas em quadrinhos são um produto e que, como tal, têm que agradar ao consumidor), enfatiza que a mulher solteira tem o seu valor, independente de ter um homem ao seu lado. Ela não é amarga, ela não é mal amada e nem se sente inferior aos homens. Isso não se deve apenas ao fato de que Miss Fury foi desenhada e roteirizada por uma mulher. Os quadrinhos românticos também tiveram participação feminina em sua produção, mas eles obedeciam a uma fórmula pré-estipulada que funcionava como uma camisa de força. Em 1954, com o código de ética dos quadrinhos, ficava mais difícil fugir das exigências do mercado e da sociedade. CONCLUSÃO De uma sub-arte, banalizada pelos críticos, as histórias em quadrinhos foram se transformando em um produto de seu próprio contexto histórico, refletindo a necessidade e carências da sociedade ocidental e ocupando um espaço cada vez maior no cotidiano de adultos, jovens e crianças. Elas são elementos formativos da sociedade contemporânea. De um entretenimento, uma diversão para a família, as histórias em quadrinhos tornaram-se uma forma de linguagem quase universal, presente em todo o mundo, e extrapolaram seus objetivos primários. Nelas encontramos representados diversos papéis sociais, práticas e ideias de uma época, na forma de discursos que são reproduzidos e reinventados através da interfase entre autor/produtor e leitor/receptor. Ainda são poucas as iniciativas neste sentido, não apenas no Brasil, quanto em outros países. Os Estados Unidos estão construindo toda uma historiografia que se apropria dos quadrinhos para desvendar e entender melhor não apenas as mudanças nas relações sociais, mas também na política e na economia. Segundo Eni Orlandi237 todo discurso possui uma ideologia. Os quadrinhos, enquanto meios de comunicação, possuem um discurso, que nos leva a entender melhor ideias, ações e representações que marcaram uma época. Ao analisarmos a trajetória das pioneiras nos quadrinhos como Rose O’Neill, Toni Blum, Dale Messick, Jackie Ormes e Tarpé Mills e suas criações estamos não apenas fazendo um estudo sobra a participação feminina nos meios de comunicação em massa, mas, uma história das mulheres que quebram o silencio da história a partir das suas personagens. Ao mesmo tempo, o uso dos quadrinhos como fonte abre novos horizontes para a pesquisa em história cultural. Vimos que as representações do feminino nos quadrinhos obedeciam a paradigmas, estereótipos que eram produzidos e reproduzidos por uma sociedade machista, que temia a emancipação feminina. Nos estúdios, independentemente do gênero, roteiristas e desenhistas tinham que se ater a certos modelos, afinal, os quadrinhos eram uma indústria que devia atender a 237 Cf. ORLANDI, 2007. 141 uma demanda. Mas encontramos também a resistência daqueles que não aceitavam a forma submissa e superficial com que as mulheres eram representadas. Da mesma forma, as personagens femininas criadas por Tarpé Mills vão corresponder às representações de mulher que ela, em sua experiência, identifica dentro dos ambientes sociais em que circula. A própria Mills se retrata na sua personagem, Marla Drake, não apenas fisicamente. Mills insere elementos de sua vida pessoal, como, por exemplo, seu próprio gato e o desejo de conhecer a América do Sul. As aventuras da Miss Fury são quase que autobiográficas, na medida em que reproduzem, em determinada escala, os interesses de Mills. O discurso presente nas aventuras da Miss Fury está recheado de temáticas complexas, que envolvem o universo feminino e que normalmente não estão presentes nos quadrinhos produzidos na época. Ao abordar temas como a violência contra a mulher, ela faz desfilar várias representações de mulheres: as que sofrem abuso e buscam ajuda, as que reagem à violência masculina, as mulheres que se colocam contra a violência física e moral dos homens. Mills mostra que não existe apenas uma representação do feminino, nem nos quadrinhos, nem na sociedade. A questão da maternidade também é outro tema que Mills discute em seus quadrinhos. A vilã Erica vive a contradição de ter um filho mas sem desejar ser mãe. Ora, Tarpé Mills não coloca em xeque a questão da maternidade? Não seria um instinto natural da mulher amar e proteger seus filhos? Erica entende o discurso mas não consegue dele tirar um sentido. Ela não tem o chamado “instinto materno”. Como consequência, temos uma série de maus tratos contra uma criança pequena. Ainda no tema maternidade, temos Marla se afeiçoando pela criança que Erica não deseja, mas que ela resolve adotar. Saltamos aí para outra questão. Erica teve o filho como fruto de um casamento que, mesmo por interesse, é válido e legal. Marla, ao adotar a criança, faz a opção por ser mãe solteira. Ela forma uma família sem um homem mantenedor, sem um pai disciplinador. Conscientemente ou não, os quadrinhos de Mills estavam carregados de um discurso de resistência. Rompem com o modelo tradicional de família, o qual ela mesma defendia ao início de sua jornada como Miss Fury. 142 Nos quadrinhos de Mills temos um equilíbrio entre demanda de mercado e autoafirmação da capacidade feminina de assumir o controle de sua vida, independente dos homens. Como todo romance, as aventuras de Miss Fury possuem momentos onde os sentimentos se afloram. Como numa boa superaventura, Miss Fury sabe aproveitar o suspense e suas proezas, que nem sempre parecem “super”, dando ao leitor a sensação de que aquilo pode ser possível, de que existem mulheres como Marla Drake. Miss Fury, como super-heroína, não viaja por um universo de absurdos e fantasias, mas transita por uma realidade que apresenta contradições, que conduz o leitor a decifrar essas mesmas contradições a partir de uma realidade real e palpável. Se os anos de 1920 e 1930 negaram às mulheres maior participação na sociedade e valorização da sua capacidade de trabalho, os anos de 1940 trouxeram para o palco principal as “Miss Furys” que estavam escondidas atrás dos balcões de lojas, dos tanques de lavar roupa e dos escritórios. Essas mulheres desabrocharam durante a guerra, receberam honraria e elogios. Foram as pilotos audaciosas, as engenheiras, marceneiras e mecânicas. Foram aquelas mulheres arrancadas da fantasia criada pelos homens de que só o casamento e a maternidade seriam a fonte da realização feminina e de que mulher só encontraria felicidade se tivesse um homem ao seu lado. Com o fim da guerra e o novo blacklash, por meio de propagandas, por pesquisas pseudocientíficas ou por romances na forma de livros ou quadrinhos, esse discurso conservador é novamente reforçado. Muitas cartunistas vão optar pelo casamento e abandonar a carreira. Outras se afastam do ambiente dos estúdios e se dedicam à ilustração ou pintura, como vimos. Mas pioneiras como Tarpé Mills e Dale Messick ainda continuaram produzindo. Em 1949, a Timely Comics (Marvel Comics) parou de publicar as aventuras da Miss Fury em quadrinhos, mas ela ainda continuou a sair na forma de tiras dominicais, até inícios de 1952, quando Mills parou, então, de produzi-las. Ela não chegou a sofrer os efeitos do Comic Code Authoritye e resistiu ao antifeminismo que caracterizou o final da década de 1940 e os anos de 1950. Seu afastamento dos quadrinhos pode estar ligado aos seus problemas de saúde, que a impossibilitaram em alguns momentos de cumprir os prazos 143 determinados pelo syndicate. É difícil precisar. A historiadora dos quadrinhos Trina Robbins pesquisou a vida da cartunista mas encontrou vários hiatos. A vida pessoal de Mills é um mistério, assim como as atividades que desempenhou nos espaços de tempo em que esteve ausente da indústria dos quadrinhos. Mas sua paixão pelos quadrinhos não parece ter morrido. Embora tenha feito breves incursões na década de 1970, ela mostrou que era capaz de criar novos projetos, reaproveitar antigos personagens. As poucas páginas concluídas da graphic novel, de Albino Jo, mostram uma Tarpé Mills com um traço mais amadurecido e disposta a retornar ao mercado (mesmo que a tentativa tenha sido fracassada) mais de duas décadas depois de ter encerrado as tiras da Miss Fury. June Tarpé Mills morreu em 1988, aos 76 anos, mas deixou sua marca em suas personagens que têm sido redescobertas por meio da História e vêm causando fascínio entre leitores, homens e mulheres. ANEX0 Entrevista com Trina Robbins A cartunista Trina Robbins é uma das mais renomadas artistas gráficas em atividade nos Estados Unidos. Nascida em 1938, ela viveu sua infância e juventude em plena “Era de Ouro dos Quadrinhos”. ´Na década de 1950 atuava junto à “science fiction fandom”. Foi uma das primeiras mulheres a integrar e influenciar o movimento dos quadrinhos underground. Com uma carreira com mais de meio século, trabalhou em muitas editoras e suas ilustrações chegaram a ser exibidas em uma galeria de arte, em 2011. Ficou conhecida por sua participação em histórias de personagens famosas como Vampirella (1969), publicada pela Warren Publishing, da qual foi coautora. Trina desenhou sua roupa e deu a ela parte de suas características físicas, como o cabelo, por exemplo. Outra personagem que passou por suas mãos foi a Mulher Maravilha (1986). Dessa personagem destaca sua participação como desenhista em The Legend of Wonder Woman, escrito por Kurt Busiek, série que prestou homenagem às raízes da Era de Ouro do personagem. No final de 1990, Robbins colaborou ainda com Colleen Doran na graphic novel Wonder Woman: The Once and Future Story, sobre o tema da violência conjugal. Em sua trajetória profissional, Trina Robbins trafegou por todos os ambientes artísticos, desde jornais feministas clandestinos nos anos de 1970 até editoras de renome, como a DC Comics e a Marvel Comics. A biografia dessa autora é extensa e seu trabalho foi reconhecido com prêmios e menções honrosas que preencheriam várias páginas. Como cartunista e feminista, ajudou a promover a venda de quadrinhos feitos por mulheres. Robbins foi uma co-fundadora da Friends of Lulu, uma organização sem fins lucrativos, formada em 1994, para promover a leitura de histórias em quadrinhos feitas por mulheres e a participação das mulheres na indústria dos quadrinhos. Sua produção caracteriza-se pelo engajamento social e político. Trina nunca teve receio de colocar em público suas opiniões. Chegou a criticar abertamente o machismo e a misoginia de cartunistas consagrados, como Robert Crumbe e Mike Deodato. Em 1993 lançou um livro que pode ser considerado um clássico, A Century of Women Cartoonists. 145 Mas o que queremos aqui é destacar a importância da obra de nãoficção de Trina para a História das Mulheres nos quadrinhos. A cartunista tem se dedicado há mais de três décadas a pesquisar a história das mulheres que produziram quadrinhos nos Estados Unidos. Não é apenas um levantamento biográfico, mas uma pesquisa ampla que envolve o resgate de produções da “Era de Ouro” já há muito tempo esquecidas. Como historiadora dos quadrinhos, Trina Robbins pode ser classificada como uma pioneira na História das Mulheres nos Estados Unidos. Infelizmente, o acesso à sua produção é limitado, uma vez que nenhuma de suas obras de não-ficção foi ainda traduzida para o português. Um de seus objetos de pesquisa foram os quadrinhos da Miss Fury, produzidos por June Tarpé Mills. Sobre o trabalho das mulheres cartunistas nos Estados Unidos e sobre os estudos que realizou com a personagem e sua autora, Trina Robbins nos concedeu uma entrevista, via e-mail, no dia 07 de setembro de 2014238. ****** N. N - Sra Robbins, como a senhora tornou-se uma cartunista? Como surgiu o desejo de ser uma cartunista? T.R - Minha mãe, que era professora do 2º ano primário/fundamental, ensinoume a ler com a idade de 4 anos e logo eu estava lendo tudo o que havia em casa e na biblioteca, inclusive os gibis. Junto com a leitura veio a escrita. Na verdade eu escrevi meu primeiro poema aos 3 anos, antes mesmo de saber ler ou escrever. Eu sempre desenhei, então era natural que eu viesse a combinar a contação de histórias com os desenhos, e isso é o que as revistas em quadrinhos são. Lá pelos 11 anos eu pegava uma folha de papel ofício, dobrava ao meio, e fazia 4 páginas, o que é perfeito para os quadrinhos. N. N - Durante a sua carreira a Sra. encontrou algum tipo de obstáculo que um homem não teria enfrentado na mesma profissão? Qual? T.R - Ah! O maior obstáculo que eu enfrentei foram os homens que trabalham com quadrinhos, tanto os profissionais mais convencionais quanto os 238 A entrevista foi traduzida na íntegra por Carlos Alexandre Moreira. 146 alternativos. Eu não era convidada aos seus grupos e também não me sentia bem vinda. Tinha que fazer tudo sozinha, sem nenhuma ajuda, enquanto os rapazes estavam se convidando para participar dos seus trabalhos e oferecendo, uns aos outros, dicas em como desenhar e colorir. N. N - Na sua carreira a Sra. Sempre apoiou outras cartunistas mulheres, encorajando-as e colaborando na divulgação dos seus trabalhos. A Sra. acha que hoje em dia as cartunistas mulheres, e seus trabalhos, têm maior visibilidade que nos anos 1960 e 1970? Nos dias atuais ainda há obstáculos para as mulheres na indústria dos quadrinhos? Quais são as perspectivas para uma cartunista nos USA? T.R - Atualmente as perspectivas para as cartunistas são mais favoráveis que nunca! Devido ao sucesso dos quadrinhos (graphic novels), as mulheres podem desenhar e escrevê-los. Há muito mais mulheres desenhando superheróis, e desenhando-os bem, que antigamente. Mais mulheres estão nessa indústria e não há outra possibilidade senão ganharem mais e mais projeção. N. N - A Sra. organizou uma exposição, em 2010, com Takemiya Keiko. O que pode nos contar sobre essa experiência? O que a Sra. acha do trabalho das cartunistas japonesas comparadas às norte-americanas? T.R. Mesmo antes da exposição eu admirava shojou mangá: uma grande quantidade de quadrinhos para garotas e muito bem desenhados e roteirizados por mulheres! Nos USA os editores e distribuidores continuavam a insistir que garotas não liam quadrinhos. Foi a entrada do shojou mangá nos USA que provou aos editores e distribuidores que garotas LEEM quadrinhos e que existem revistas em quadrinhos que as meninas querem ler e irão lê-los. N. N - Em 1989 a Sra. tornou-se uma historiadora dos quadrinhos. Como entrou nessa área? Quais os motivos para essa mudança? T.R - Alguém tinha de fazê-lo! Se você ficasse só na história (dos quadrinhos) escrita por homens (e elas eram todas escritas por homens), você nunca saberia que as mulheres desenharam quadrinhos também. (Estes são os mesmos caras que diziam que garotas não liam quadrinhos, e eu sabia que isso era BOBAGEM!) 147 N. N - Quais são as maiores dificuldades que a Sra encontra quando pesquisa a história das cartunistas mulheres e da presença feminina nos quadrinhos? T.R- Foi mais difícil na minha primeira história, escrita em parceria com Catherine Yronwode. Isso foi muito antes da internet e nós garimpamos no escuro. Muito da nossa pesquisa apresentava erros porque as fontes continham erros. A cada nova história eu pude corrigir a informação anterior truncada e fazer novas descobertas excitantes (pelo menos para mim!). N. N - Como surgiu a vontade de pesquisar e reunir o trabalho de June Tarpé Mills? T.R - Na década de 1970, em Nova Iorque, um cara me disse que eu deveria dar uma olhada numa tirinha de 1940 chamada “Miss Fury” porque ele dizia ter certeza de que gostaria muito. Eu nunca havia visto essa tirinha antes, mas do momento em que a vi, amei-a! Eu gostaria de me lembrar do nome daquele cara e agradecer-lhe. Bem, ela foi uma grande artista e escritora e contou tantas excitantes, dramáticas aventuras de agradável leitura. Havia muitas tirinhas de impressionantes aventuras nos jornais daquela época, mas as dela eram as únicas onde o herói era uma mulher e, NATURALMENTE, criada também por uma mulher. N. N - Considerando outros personagens que surgiram no mesmo período, o que a Sra. acha que é a característica mais marcante de “Miss Fury”? Respondi isso acima. Foi a única tirinha de aventura criada por uma mulher e protagonizada por outra. E a aventura provém do ponto de vista feminino. N. N - Nos quadrinhos da “Miss Fury” existem personagens brasileiros. Mills parecia atraída pelo Brasil, assim também como outros cartunistas dos anos 1940. A Sra. tem alguma teoria que pudesse explicar esse interesse? T.R - Não é mesmo interessante? Mill estava obviamente fascinada pelo Brasil, ainda que nunca tivesse estado lá, pelo que eu pude saber. Eu penso que ela quisesse ir ao Brasil mas as viagens eram muito mais difíceis naquela época, e muito mais caras. Eu sinto que o Brasil que ela imaginava era muito romântico e muito diferente do verdadeiro Brasil! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Alexandre. A Comunicação sedutora: aspectos da influência norteamericana na comunicação brasileira. Cenários da Comunicação, São Paulo, v. 4, p. 13-24, 2005. BARROS, José d’Assunção. O campo da História. Especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004. BOURDIEU. Pierre. La domination masculine. Paris - Éditions du Seuil, 1998. ------. O poder simbólico. - 2ª ed. - Rio de Janeiro, Betrand Brasil, 1998. CHACON, Beatriz da Costa Pan. 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