Inconstitucionalidade da MP 873 e a receita dos sindicatos

Maurício Rands
Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
twitter: @RandsMauricio

Publicado em: 15/04/2019 03:00 Atualizado em: 15/04/2019 08:23

A MP 873, de 1º/03/2019, revoga a obrigação dos empregadores e da administração pública de descontar em folha as contribuições dos empregados e servidores públicos para suas entidades sindicais. Exige uma inexequível autorização individual expressa e impõe a cobrança por boleto bancário. Um ato de iniciativa de cada trabalhador comunicando a intenção de que o desconto seja implantado em seu contracheque.

A jurisprudência do STF reconhece três espécies de receitas sindicais: (i) a contribuição sindical prevista em lei (CLT, art. 578), que até a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017) era descontada compulsoriamente de toda a categoria; (ii) a contribuição confederativa do art. 8º, IV, da CF, destinada ao custeio regular das entidades do sistema confederativo (sindicatos, federações e confederações), e (iii) a contribuição assistencial destinada ao custeio da mobilização sindical e da negociação coletiva. Com o fim da obrigatoriedade da primeira, o art.8º, IV, da CF, passou a disciplinar a autorização de todas as contribuições, inclusive as mensalidades sindicais. E essa disciplina obriga o desconto em folha quando aprovado em assembleia geral. Ou seja, a CF não exige a autorização individual, como pretende a MP 873. Que, por isso, ataca todas as modalidades de receita sindical. Volta-se ao individualismo estrito, num assunto em que o Direito do Trabalho, aqui e alhures, já evoluiu para tratá-lo coletivamente.
Porque somente assim pode-se equilibrar uma relação, a do capital com o trabalho, que é ontologicamente assimétrica.

A MP vem sendo alvo de liminares suspendendo sua eficácia, diante da ‘fumaça do bom direito’ e do perigo da demora. Elas fundamentam-se na inconstitucionalidade do procedimento, pois o art. 62 da CF não autoriza a via da MP num assunto cuja relevância e urgência seria difícil de sustentar. Como também a proíbe em matéria de direitos de cidadania (art. 62, § 1º, I, a).  Mas a MP ainda afronta o direito material à autonomia e liberdade sindical. Entre outros, choca-se com os seguintes princípios e regras da CF/88: arts. 1º; 2º; 5º, caput e incisos II, XVII, XVIII, XXXVI e LV; 7º, inciso XXVI; 8º, caput e incisos I, III, IV, V e VI.

A reforma trabalhista não chegou a tanto em seus objetivos de enfraquecimento dos sindicatos. Tanto que a tarefa precisou ser completada por uma MP. Aliás, a concepção de fundo da Lei 13.467 é a prevalência do negociado sobre o legislado. Para que se tenha mais flexibilidade nos contratos de trabalho, permitindo-se que negociação coletiva entre sindicatos e empresas adapte as normas à situação específica da empresa ou setor econômico. Foi em valorização do negociado que os tribunais do trabalho, inclusive o Tribunal Superior do Trabalho, iniciaram uma solução para a contribuição sindical que passa pela negociação coletiva. Legitimando acordos em que as empresas se comprometem a descontar em folha uma ‘contribuição negocial’ ou ‘cota negocial’, mediante a qual a categoria de trabalhadores aprova em assembleia o desconto em folha de pagamentos a ser efetuado pelo empregador. Em muitos casos, previu-se um desconto de meio dia de trabalho para que os sindicatos possam sobreviver e dispor de meios para conduzir a negociação coletiva com eficiência. Ou seja, o negociado (meio dia de trabalho) substituindo o legislado (a antiga contribuição sindical de um dia de trabalho). Como noticiou O Valor (em 12/4/19), o próprio TST está conversando com o STF sobre a inconstitucionalidade da MP. Seu vice-presidente, o ministro Renato Paiva, tem mostrado que a MP atropela a solução que vem sendo costurada pelo TST depois que a reforma trabalhista tornou facultativa a contribuição sindical. Como ocorreu nos acordos que homologou nos dissídios da Vale com os Sindicatos dos Ferroviários do PA, MA e TO e nos da Infraero, Conab e outros.

O STF faria muito bem ao sistema de relações de trabalho e à democracia se julgasse inconstitucional a MP 873 nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas pela OAB (ADIn 6098) e outros entes (CSPB, PDT, Contratuh, Conascon, CNTI), que tramitam sob a relatoria do ministro Luiz Fux. Também andaria bem o Congresso Nacional se a rejeitasse ou a deixasse de aprovar no prazo de 120 dias, que vence em 1º/07/19 (art. 62, § 3º). Somente assim valorizaria o princípio da prevalência do negociado e o da liberdade e autonomia sindical. Como rejeitar um desconto em folha aprovado pela assembleia de trabalhadores no exercício de sua autonomia privada coletiva e acordado pela empresa? Uma lei que proíbe um tal desconto, como a MP 873, pratica o velho princípio dos ‘dois pesos, duas medidas’. De um lado, a reforma incentiva o negociado. Mas quando o desconto em folha é negociado, o negociado não prevalece? Difícil pensar em incoerência maior.

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