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Este artigo é cópia fiel do publicado na revista NUEVA SOCIEDAD especial em português, dezembro de 2014, ISSN: 0251-3552, <www.nuso.org>. Geração, acontecimento, perspectiva Pensar a mudança a partir do Brasil RodRigo NuNes A vinculação entre a sociologia das gerações de Karl Mannheim e o conceito ilosóico de acontecimento habilita um olhar renovado sobre processos como os iniciados em junho de 2013 no Brasil, que deram forma a uma nova geração militante neste país. Mas a generalização de uma concepção perspectivista da política que se pode extrair daí permite também pensar a conjuntura latino-americana sem reduzir as diferentes perspectivas que nela se opõem a esquemas simplistas como «realismo versus idealismo» ou «traidores versus autênticos». É preciso, por um lado, reconhecer que a tensão entre perspectivas é necessária para toda política que se quer transformadora; e, por outro, compreender a incomensurabilidade dos diversos olhares nos momentos de ruptura. ■■■Geração e acontecimento Deve-se a Karl Mannheim o primeiro tratamento formal do «problema sociológico das gerações»1. A im de desvencilhar o conceito de suas associações biológicas e espirituais, o autor húngaro-alemão propôs distinguir entre Rodrigo Nunes: professor do Departamento de Filosoia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-Rio). É autor de The Organisation of the Organisationless: Collective Action After Networks (Mute, Londres, 2014), no qual discute a atualidade da «questão da organização» em tempos de redes. Editou um dossiê especial da revista francesa Les Temps Modernes (5-6/2014) sobre os desdobramentos dos protestos de junho de 2013 no Brasil. Palavras-chave: acontecimento, geração, perspectivismo, protestos de junho, Brasil. Nota: Tradução de Celina Lagrutta. A versão original deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad Nº 251, 5-6/2014, disponível em <www.nuso.org/upload/articulos/4027_1.pdf>. 1. K. Mannheim: «The Sociological Problem of Generations» em Essays on the Sociology of Knowledge, Routledge / Keegan Paul, Londres, 1952, pp. 163-195. 15 Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 Geração, acontecimento, perspectiva. Pensar a mudança a partir do Brasil geração como «fenômeno de localização», «copresença numa região histórica e social» que deine uma gama de experiências possíveis e uma zona de potencialidades; e geração como atualidade ou atualização desses potenciais, o que tem por condição a «participação no destino comum de [uma] unidade histórica e social»2. Apenas neste segundo caso – para o qual o primeiro é uma condição necessária, mas não suiciente – a palavra pode assumir um sentido para além da trivial referência aos ciclos biológicos e culturais de renovação de uma população. «Nem toda localização geracional – nem toda faixa etária – cria novos impulsos coletivos e princípios formativos originais e adequados a sua situação particular»3. Para que isso ocorra, é preciso «um laço concreto entre membros de uma geração em virtude de sua exposição aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de desestabilização dinâmica»4. Obviamente, não apenas a localização no tempo está estratiicada em outras diferentes localizações (no espaço, em posições sociais, de gênero, de etnia, etc.), como também à concepção molar de cada uma destas como «campo de experiência potencial»5 deveria ser acrescentada uma concepção molecular, no sentido em que falam Gilles Deleuze e Felix Guattari6. Isso nos permitiria conceber zonas de indiscernibilidade entre diferentes gamas e a possibilidade de movimento, contato e interferência mútua entre diferentes estratos. Mas o que interessa aqui é a relação que se pode estabelecer a partir de Mannheim entre a atualização de uma geração – a formação do que ele chama de «um novo estilo geracional», ou «uma nova enteléquia geracional»7 – e o acontecimento. O acontecimento é um conceito-chave da ilosoia contemporânea e perpassa, diretamente com este nome ou operativo sob outras denominações, a obra de pensadores tão diversos entre si como Heidegger, Whitehead, Bachelard, Althusser, Foucault, Deleuze, Derrida, Badiou e Rancière – embora possamos fazê-lo remontar ainda mais longe, ao occursus (encontro) de Spinoza, à occasione (ocasião) de Maquiavel ou à praga e o ictus (colisão) de Lucrécio8. Sua importância e ubiquidade provêm da quantidade de funções que é chamado a cumprir: explicar a possibilidade do novo; inserir a novidade não no sujeito 2. Ibid., p. 182 (ênfase do original). 3. Ibid., p. 189. 4. Ibid., pp. 182-183. 5. Ibid., p. 168. 6. V., por exemplo, G. Deleuze e F. Guattari: L’Anti-Oedipe, Minuit, París, 1972, capítulo 4. 7. K. Mannheim: op. cit., p. 189 (ênfase do original). 8. Sobre os três últimos, v. a excelente análise de Vittorio Morino: Il tempo della moltitudine. Materialismo e politica prima e dopo Spinoza, Manifestolibri, Roma, 2005. Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 16 Rodrigo Nunes ou no objeto, mas sim entre os dois ao mesmo tempo e, deste modo, promover a temporalização do transcendental, que deixa de ser uma estrutura estática para devir transformável (e assim, paradoxalmente, transformável a partir do empírico); propor a ruptura com a causalidade, a temporalidade e a historicidade lineares; assegurar o primado da prática sobre o pensamento ou a teoria, ao mesmo tempo que a impessoalidade: mais do que fazê-lo passar, o acontecimento (nos) passa. Seria possível transpor todas estas funções ao modelo proposto por Mannheim. Segundo ele, surge uma «nova geração» quando a velocidade da mudança social impede um processo contínuo e latente de adaptação. Ocorre que podemos dizer, por um lado, que a aceleração da mudança social não é outra coisa que a acumulação de acontecimentos de diferentes tipos em diferentes escalas, que implicam um deslocamento no tocante aos limites do que se pode pensar, dizer e fazer numa sociedade num momento dado. Isto é assim porque os acontecimentos acarretam transformações de diferentes tipos e escalas nos indivíduos, por meio das quais vão se estabelecendo novas identidades, atitudes e modos de pensar, dizer e fazer que poderão progressivamente se consolidar numa «nova geração» e em novas «unidades geracionais»9. Por último, embora esta dimensão não esteja explicitamente posta por Mannheim, existe a possibilidade de que todas estas mutações se condensem e precipitem num mesmo acontecimento de longo alcance, cujos efeitos se prolongam e ramiicam pela topologia do tecido social e pelo tempo, e frente aos quais a indiferença é praticamente impossível10. ■■■Junho de 2013 e uma nova geração política no Brasil Justamente, os últimos anos estão cheios de nomes que se referem a acontecimentos mais do que a «movimentos» no sentido tradicional: a «primavera árabe», o 15-m espanhol, o Occupy dos Estados Unidos, o Diren Gezi da Turquia; e, de forma ainda mais claramente limitada a uma identiicação temporal (que além do mais deixa de incluir tudo o que se passou depois), as 9. Com este conceito, Mannheim pretende designar os «grupos dentro da mesma geração atual que elaboram o material de suas experiências comuns em diferentes modos especíicos», o que signiica que, mesmo sendo os dois grupos polarmente opostos, continuam sendo unidades internas de uma mesma geração atual. K. Mannheim: op. cit., p. 184 (ênfase do original). 10. Embora Mannheim fale de uma tendência à «estratiicação da experiência» segundo a qual as experiências mais precoces na vida tendem a ter um peso maior, seria possível imaginar que um acontecimento desse tipo teria suiciente força para reescrever o «conjunto original» de experiências. K. Mannheim: op. cit., pp. 176-177. 17 Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 Geração, acontecimento, perspectiva. Pensar a mudança a partir do Brasil «jornadas» ou «acontecimentos» de junho no Brasil11. Mais do que entidades políticas e organizativas mais ou menos individualizáveis, esse nomes indicam momentos, imprevisíveis e intempestivos, em que um mal-estar difuso e uma gama de potencialidades até então latentes se cristalizam numa expresNo caso brasileiro, parece são visível, que se torna ao mesmo tempo possível airmar que, ponto focal de uma série de demandas socom os protestos ciais e centro irradiador de uma mudança subjetiva. multitudinários de junho de 2013, cristalizou-se uma No caso brasileiro, parece possível airnova geração política ■ mar que, com os protestos multitudinários de junho de 2013, cristalizou-se uma nova geração política. A de junho seria a primeira geração que poderia ser denominada como tal após a «geração da redemocratização», ou seja, a que se constituiu no «caldo de cultura» do qual, durante o período de transição do regime militar para a nova república, surgiram as principais instituições da esquerda brasileira até hoje: o Partido dos Trabalhadores (pt), a Central Única dos Trabalhadores (cut) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst), entre outros. Nem uma nem outra foi criada ex nihilo pelos acontecimentos que as deinem, mas em ambos os casos os acontecimentos operam como cristalizadores. A «geração da redemocratização» foi se conformando desde os anos 60, na resistência contra a ditadura, no trabalho de organização das comunidades eclesiais de base e inclusive na luta armada, mas é com a greve dos metalúrgicos de São Paulo no inal dos anos 70 que começa a se consolidar de maneira deinitiva. Do mesmo modo, embora só se torne visível a partir de junho, a «geração de junho» esteve quase uma década em formação. Está na natureza dos acontecimentos que, embora sejam imprevisíveis, uma vez passados é possível identiicar os sinais que anunciavam sua possibilidade; e especialmente desde o início do governo de Dilma Rousseff, quase universalmente percebido como um retrocesso político em relação aos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, os sinais abundaram. Quem estivesse atento teria podido observar uma proliferação de protestos e mobilizações nos últimos anos: contra as remoções de comunidades pobres causadas 11. Sobre a insuiciência do conceito de «movimento» para tratar esses fenômenos e para uma tentativa de desenvolver um novo vocabulário capaz de descrever suas formas organizativas características, v. R. Nunes: The Organisation of the Organisationless: Collective Action After Networks, Mute, Londres, 2014. Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 18 Rodrigo Nunes pelos megaeventos esportivos e pela especulação imobiliária desenfreada; contra a expansão da fronteira agrícola e de grandes projetos de energia e mineração sobre terras indígenas e os ataques aos direitos e à integridade física destes povos; contra a tomada de posição inequívoca do governo a favor de um modelo de desenvolvimento no qual as questões ambientais são consideradas como meros obstáculos ou, no melhor dos casos, como um verniz retórico; contra as concessões do pt ao conservadorismo social de certas forças que compõem a coalizão de governo, negociando com temas que são bandeiras históricas do partido, como os direitos reprodutivos e de orientação sexual; e, inalmente, uma grande revolta operária na obra da central hidrelétrica de Jirau, na Amazônia. Em todos estes casos estavam em questão basicamente dois conjuntos de problemáticas: as reivindicações provenientes dos que foram de maneira sistemática excluídos do desenvolvimento quantitativo da última década, isto é, daqueles que não apenas não se beneiciaram com o crescimento econômico, como foram diretamente prejudicados por ele; e as demandas por um desenvolvimento qualitativo. Por este último entende-se não apenas uma melhora dos serviços públicos à altura do novo status econôEm todos estes casos mico e geopolítico do país, mas também um modelo de desenvolvimento capaz estavam em questão de contemplar, para além da preocupabasicamente dois conjuntos ção exclusiva pela economia, uma nova de problemáticas: as relação do Estado com a população (em reivindicações provenientes especial a mais pobre), a criação de direitos e a expansão da participação polídos que foram de maneira tica e dos bens comuns (commons), comsistemática excluídos do preendido aí também – num lugar de desenvolvimento quantitativo destaque – o meio ambiente. Que tenha sido o transporte público a faísca que da última década ■ acendeu a insatisfação que se acumulava é relativamente contingente12, ao mesmo tempo em que faz muito sentido, já que se trata de um tema universalmente compartilhado e um exemplo claro de que algumas dimensões elementares da vida cotidiana da maioria da população não mudaram nada, apesar do sucesso internacional do país na última década. 12. Como é sabido, foi a resposta massiva gerada pela repressão policial às manifestações organizadas pelo Movimento Passe Livre contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo que desencadeou os protestos de junho de 2013. 19 Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 Geração, acontecimento, perspectiva. Pensar a mudança a partir do Brasil O que o acontecimento-junho fez, então, foi tornar visíveis os pontos cegos da política dos governos do pt para os quais apontavam pequenos focos de dissenso anteriores; e, mais importante, expor o quanto contribuíram certas opções políticas daqueles que estão no governo para inviabilizar a possibilidade de pensar em soluções (ou inclusive em problemas) para além dos limites da atual correlação de forças. Ou seja, expor em que medida tomar esta correlação como limite absoluto serviu para reforçá-la e endurecê-la, de modo que, após uma década de governos de centro-esquerda, o debate público parece ter icado menos e não mais permeável à discussão de mudanças mais profundas. Nesse contexto, junho fez crescer de forma exponencial a excitabilidade política que já se observava na sociedade brasileira – não só nos protestos nos centros das grandes cidades, mas também nas manifestações e confrontos com a polícia nas favelas e nas periferias, assim como nas «greves selvagens» de professores e trabalhadores de limpeza e do sistema de transporte. No entanto, embora os vínculos de solidariedade e às vezes de colaboração direta claramente existam, o abismo social que corta a sociedade brasileira implica uma distância ainda a superar entre aqueles que lutam contra a exclusão que resulta do desenvolvimento quantitativo e aqueles que lutam por diferentes dimensões do que seria um desenvolvimento qualitativo. Um dos desaios para esta nova geração será sem dúvida articular pontos e espaços de convergência, seja qual for a forma que estes tiverem, entre uma classe média politizada e as classes populares, como fez a geração anterior por meio das instituições que criou. Em todo caso, o que nos interessa aqui é a ideia de que uma nova geração implica a emergência de outra perspectiva, de outro olhar sobre a política e a conjuntura histórica. Das experiências e dos acontecimentos que se cristalizaram numa geração resultam maneiras qualitativamente diversas de sentir, perceber e pensar – e, portanto, maneiras qualitativamente diversas de fazer cálculos políticos –, que implicam que – parafraseando Roy Wagner – «o modo como a nova geração não compreende a velha é diferente de como a velha geração não compreende a nova»13. Isto é ainda mais o caso se, como no Brasil, onde a geração nova se formou durante os anos da velha no poder, inevitavelmente o processo de formação tem algo de oposicional: o novo olhar 13. R. Wagner: The Invention of Culture, University of Chicago Press, Chicago, 1981, p. 24. O esforço de incorporar o perspectivismo ao pensamento sobre a política tem uma dívida intelectual clara com a incorporação do perspectivismo como questão ao mesmo tempo substantiva e metodológica pela antropologia. Neste sentido, v. E. Viveiros de Castro: A inconstância da alma selvagem, Cosac & Naify, São Paulo, 2011. Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 20 Rodrigo Nunes se planta nos pontos cegos do anterior. Esta diferença fundamental de perspectiva signiica que, num momento de crise, pode ocorrer que o que para uma aparece como o limite absoluto do possível – quando forçar a situação só poderia resultar num desastre –, para a outra apareça como justamente o nó central que é preciso desarmar para que as coisas possam voltar a se mexer. Neste caso, o que para os primeiros é um imperativo da Realpolitik se manifesta aos olhos dos segundos como internalização e naturalização do status quo; e o que os primeiros veem como a cautela necessária para enfrentar a realidade, para os segundos não passa de miopia diante das restrições que, se não forem confrontadas agora, tenderão a se potencializar. ■■■Entre «esquerda» e «progressismo» Poderíamos aproximar a diferença entre perspectivas que hoje se observa no Brasil ao diagnóstico do ecologista uruguaio Eduardo Gudynas sobre a atual conjuntura latino-americana. Sua cartograia destaca dez temas que hoje opõem, de maneira mais ou menos aguda, duas tendências que denomina «esquerda» Eduardo Gudynas e «progressismo» nos diferentes países godestaca dez temas que vernados pela «nova esquerda»14. hoje opõem, de maneira Há reparos que poderiam ser apresentados a este diagnóstico. Por exemplo, até que ponduas tendências que to a generalização de casos tão diferentes denomina «esquerda» como Brasil, Venezuela, Bolívia e Argentina revela efetivamente uma tensão que se mae «progressismo» ■ nifestaria das mesmas formas em todos estes países. Também seria produtivo traçar as genealogias, bastante diferentes em cada um deles, de como se constituiu esta tensão e quais são as forças reais que se opõem nela. Neste sentido, as duas categorias centrais de «esquerda» e «progressismo» talvez confundam mais do que esclareçam, seja porque ao im e ao cabo «ser de esquerda» se aplica a ambas, seja pelas diferenças entre países, seja pelas diferentes trajetórias históricas. Ainal de contas, dizer que o «progressismo nasceu como uma expressão recente no seio da esquerda latino -americana», hibridizando «diferentes condições culturais e políticas», mas que «icou enquadrado nas ideias ocidentais do desenvolvimento»15, parece mini- mais ou menos aguda, 14. E. Gudynas: «10 tesis sobre el ‘divorcio’ entre izquierda y progresismo en América Latina» em Página Siete, 9/2/2014, <www.paginasiete.bo/ideas/2014/2/9/tesis-sobre-divorcio-entre-izquierdaprogresismo-america-latina-13367.html>. 15. Ibid. 21 Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 Geração, acontecimento, perspectiva. Pensar a mudança a partir do Brasil mizar inexplicavelmente a importância de certo progressismo nacional-desenvolvimentista na própria conformação histórica da esquerda latino-americana. Em todo caso, mesmo que os rótulos possam ser equívocos e o diagnóstico seja diacronicamente questionável, a cartograia identiica de modo certeiro uma série de diferendos políticos nos quais é possível visualizar com nitidez a tensão sincrônica (e a crescente divergência) entre duas perspectivas diferentes16. Além disso, o diagnóstico tem o mérito de apresentar os dois lados como componentes da esquerda em sentido amplo – duas posições legítimas dentro de um espectro político comum. Com isto, neutraliza os modos em que cada um deles pode desqualiicar o outro como «de direita» (os discursos pouco interessantes da «traição dos governantes» ou da «manipulação dos opositores pelas oligarquias/imperialismo»). Neutraliza também a opção por vezes feita por um destes dois lados – justamente aquele que Gudynas contraintuitivamente rotula de «esquerda» – por deixar de disputar o sentido da palavra «esquerda» para simplesmente aceitar sem críticas a redução desta a uma caricatura dos tempos da Guerra Fria (autoritária, produtivista, estatista, etc.)17. Há uma tripla vantagem em considerar que, em que pese sua oposição mútua, cada posição pode ser à sua maneira igualmente legítima e de esquerda. Primeiro, isto permite tomar a conjuntura regional como um todo (isto é, considerá-la para além da polarização interna à esquerda) de modo mais adequado: por mais que cresça a divergência entre os dois polos, esta ainda continua sendo menor do que aquela que os separa das forças sociais conservadoras que prefeririam reverter as conquistas das últimas décadas18. Segundo, identiicar os dois polos como internos à esquerda permite estabelecer o que eles têm em comum como, nos termos de uma deinição clássica da diferença entre «esquerda» e «direita», um compromisso com a igualdade social e política – 16. Estes diferendos seriam: quanto ao conceito de desenvolvimento (qualitativo ou quantitativo), à concepção de democracia (expansão da participação ou eleitoralismo), justiça social (em sentido amplo ou restringido à distribuição econômica), importância atribuída aos movimentos sociais, aos direitos humanos, à independência crítica, à luta contra a corrupção, à integração latino-americana, às novas constituições. 17. Sobre este ponto, v. R. Nunes: «Três motivos para não dizer ‘nem esquerda, nem direita’» em Fórum, 2/2/2013, <www.revistaforum.com.br/blog/2013/02/tres-motivos-para-nao-dizer-nemesquerda-nem-direita/>. 18. Em termos da prática política que daí poderia resultar para os «progressistas», isto deveria servir para lembrá-los que sua mais importante base social está entre «a esquerda» (no sentido em que fala Gudynas: os militantes e os movimentos «que se sentem decepcionados, afastados ou até enfrentados com este progressismo»); ao mesmo tempo que esta «esquerda» que se opõe ao «progressismo» poderia funcionar como alerta contra lertes oportunistas com setores que são, inalmente, contrários a seus propósitos. Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 22 Rodrigo Nunes com diferenças na interpretação destes termos, o que é, justamente, a origem do dissenso. Terceiro, assim é possível precisamente valorar sua condição de perspectivas diferentes dentro de uma mesma realidade: não um choque entre uma verdade e uma falsidade que pudessem ser objetivamente aferidas, mas entre duas verdades subjetivas que são verdadeiras para si. ■■■A tensão constitutiva Interessa menos saber se é possível no caso brasileiro associar a «geração da redemocratização» e a «geração de junho» com o que Gudynas chama de «progressismo» e «esquerda» do que extrair algumas conclusões gerais sobre a relação entre a oposição de perspectivas e a política transformadora, que possam ser aplicadas em maior ou menor medida aos diferentes casos latino-americanos. Da mesma forma, a questão não é saber se os diferendos entre «progressistas» e «esquerdistas» têm um fundo geracional nos demais países latino-americanos, mas sim investigar as lições que podem ser extraídas de uma concepção perspectivista da política para pensá-los. O que Gudynas chama À primeira vista, em especial se tomamos literalmente a ideia de que o «progressismo» de «esquerda» seria a teria surgido do interior da esquerda latidimensão do desejo, de no-americana após a sua chegada ao poder, tudo quanto se quis seria possível pensar que esta tensão não seria mais do que uma defasagem temporal, ou imaginou fazer antes por um lado, e vinculada aos limites da Rede chegar ao poder, alpolitik, por outro. O que Gudynas chama das virtualidades de «esquerda» seria a dimensão do desejo, de tudo quanto se quis ou imaginou fazer aparentemente ininitas antes de chegar ao poder, das virtualidades da mobilização social ■ aparentemente ininitas da mobilização social. O «progressismo», por sua vez, seria a perspectiva amadurecida pela experiência do governo, a que reconhece os limites daquilo que se pode fazer e trabalha estritamente dentro dos conins do possível. Em resumo: o princípio de prazer contra o princípio de realidade. Seria igualmente possível pensar a situação a partir da célebre frase de Deleuze segundo a qual «não existem governos de esquerda»19. Inevitavelmente, o 19. G. Deleuze e Claire Parnet: «‘G’ comme gauche» em L ฀abécédaire de Gilles Deleuze, entrevista, 1988-1989, disponível em <www.youtube.com/watch?v=uqp4hzse9k4>. 23 Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 Geração, acontecimento, perspectiva. Pensar a mudança a partir do Brasil «ser governo» e os compromissos que estão implicados na positivação de uma nova ordem política (o princípio de realidade e a «molaridade» necessariamente suposta pela «macropolítica») encontrar-se-iam em relação antitética com a abertura permanente aos devires e mutações moleculares (o princípio do prazer, o inconsciente social) que deinem, para além de qualquer programa político determinado, a atitude própria do «ser de esquerda». Seriam estas duas leituras diferentes, ou a mesma leitura com cargas valorativas invertidas, celebrando ou lamentando o fato de que o princípio de realidade, o pragmatismo da política concreta, deva no inal triunfar sobre o princípio de prazer, a radicalidade dos desejos e projetos? De fato, devemos ver as duas não somente como imagens especulares, mas também como imagens que, de certa forma, ocultam na sua exclusão mútua aquilo que devem supor: que a tensão entre os dois polos é constitutiva de uma política transformadora; que os dois polos se necessitam mutuamente. A radicalidade que não encontrar formas de positivar pelo menos aquilo que lhe proporcione uma base a partir da qual continuar se constituindo, ou se dissipará, ou se isolará num narcisismo mais apaixonado por si mesmo do que pelas mudanças que é capaz de promover no mundo20. Neste caso, teremos apenas a repressão do poder constituído sobre os impulsos de transformação ou a mera estetização e automarginalização destes. Por outro lado, um pragmatismo que se aliene dos processos de mudança que existem na sociedade e dos atores que os encarnam, que deixe de ter um horizonte mais amplo dentro do qual pensar as ações que pode realizar agora dentro do marco de como estas criam maior amplitude de ação no futuro, torna-se simples gestão do que já existe (o que não exclui, certamente, o recurso à repressão). Na maioria dos casos, a riqueza dos processos que conduziram os atuais governos latino-americanos no poder – bastante visível em seus primeiros anos, embora agora menos – consistia justamente em saber concretizar práticas e mecanismos políticos que incorporavam a necessidade desta tensão. O exemplo do mais antigo e mais consistente entre os partidos desta «nova esquerda», o pt brasileiro, deixa isso claro na medida em que soube ser um espaço onde a tensão entre movimento e partido, base e liderança, poder constituinte e poder constituído se manteve aberta durante muito tempo, e talvez ainda hoje, embora cada vez mais de modo residual. 20. Vale lembrar aqui que Deleuze também diz: «Não é que não existam diferenças entre os governos. O que se pode esperar talvez seja um governo favorável a certas demandas ou reivindicações da esquerda». Ibid. Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 24 Rodrigo Nunes Contudo, se há algo que poderia conirmar a hipótese de uma divergência crescente ou um «divórcio» entre as duas perspectivas, seria justamente o fato de elas deixarem de ver-se «sob o mesmo teto»; de passarem a se confrontar de maneira externa, não mediada pelo reconhecimento de um terreno comum. É isto o que se enxerga hoje no Brasil: como se opõem, de modo praticamente incomensurável, a nova geração política e aquela que está no poder. É também o que se vê em outros países latino-americanos: se em algum momento era em termos da tensão necessária entre desejo e realidade que o «progressismo» se justiicava ante a «esquerda» – «nós compartilhamos o mesmo desejo, mas estamos fazendo o que é possível dentro da realidade» – este parece se airmar agora cada vez mais como um projeto com identidade própria. Com isto, nega o território compartilhado e a possibilidade de uma tensão positiva com o outro lado, que termina desqualiicado, em última instância, como radicalização idealista e/ou instrumento mais ou menos consciente da direita contra o sucesso do projeto progressista. Seria, então, o im da tensão e o estabelecimento de um antagonismo aberto o início de um novo ciclo político para a esquerda, independentemente das posições até aqui conquistadas? ■■■Choque de perspectivas Em termos formais, podem-se distinguir os polos da tensão constitutiva de diversas maneiras. Do ponto de vista da iniciativa política, seria a tensão (para dizê-lo como Maquiavel) entre Povo e Príncipe, ou entre base e liderança; do ponto de vista da continuidade do processo, seria a tensão (para falar como Deleuze e Guattari) entre desterritorialização e reterritorialização, entre mudança desestabilizadora e estabilização ou estabilidade, entre entropia e ordem, acontecimento e estrutura. Ocorre que cada um desses polos representa, ao mesmo tempo, uma perspectiva diferente, outro olhar sobre cada situação. Estas perspectivas devem ser compreendidas num sentido formal e não substancial, ou seja: por um lado, são um aspecto não eliminável da política, a própria hesitação entre potencialidade e atualidade; por outro preexistem a qualquer sujeito determinado que as possa ocupar (o indivíduo que é «radical» perante uma questão pode ser «moderado» perante outra e vice-versa). Manter aberta a tensão entre os dois polos implica, portanto, o esforço conjunto de ambas as partes para se manterem sob «um mesmo teto», tanto em sentido igurativo quanto, amiúde, literal. Elas devem se ver como complementares e não antagônicas, necessárias uma para a outra, o que supõe se reconhecerem mutuamente como olhares legítimos lançados sobre a situação21. 21. Isso implica, por outro lado, reconhecer a si mesmo como perspectiva; ou, dito de outra forma, reconhecer no outro a possibilidade do meu próprio ponto cego: assim como eu vejo coisas que ele não vê, não posso excluir a possibilidade de que aquilo que aparece para ele não seja visível do lugar de onde eu olho. 25 Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 Geração, acontecimento, perspectiva. Pensar a mudança a partir do Brasil O que pode acontecer em momentos de Mao Tsé-Tung propunha crise? Precisamente que este reconheciresumir o marxismo na mento mútuo se rompa. Na crise, a comsimples fórmula: «É justo plementaridade torna-se incomensurabilise rebelar contra os dade e o que era tensão, antagonismo. Mao Tsé-Tung propunha resumir o marxismo reacionários». Nem toda na simples fórmula: «É justo se rebelar conrebelião é justa, apenas tra os reacionários». Esta frase, «tão simples aquelas que se fazem [e] ao mesmo tempo bastante misteriosa»22 opõe duas perspectivas supondo o suplecontra os reacionários ■ mento de uma terceira. Nem toda rebelião é justa, apenas aquelas que se fazem contra os reacionários; e se os rebelados não veem mais que reacionários do outro lado, os supostos reacionários não podem deixar de ver do outro lado apenas «esquerdistas» que servem objetivamente interesses reacionários, enquanto identiicam sua própria posição como «a linha justa». Apenas a partir de uma terceira perspectiva seria possível julgar se os rebelados têm razão em identiicar os outros como reacionários e, consequentemente, em se rebelar. Para Mao, esta seria naturalmente a perspectiva da história que acaba sempre dando a razão a quem de direito: se o que a história faz é inalmente derrotar os reacionários, terão sido os reacionários aqueles que saírem derrotados. Mas se suprimirmos a possibilidade desta terceira perspectiva (como fazemos hoje, quando perdemos a crença numa marcha necessária da história), icamos exatamente na condição que se abre numa situação antagônica, em que não há mais do que a verdade subjetiva de cada perspectiva, que se dá razão negando a razão da outra23. Nada permite decidir a priori se é possível forçar os limites da correlação de forças, no Brasil assim como nos outros países latino-americanos, para além de seu equilíbrio atual. É um problema cuja «decisão», isto é, a atualização, depende precisamente da continuidade de uma convicção subjetiva de veriicá-lo, e da capacidade política daqueles que se empenham nisso. Mas que a resposta majoritária do pt tenha consistido em negar o valor positivo dos protestos de junho não pode ter outro efeito, até aqui, a não ser conirmar a convicção subjetiva de uma nova geração que passa a ver o partido como obstáculo para as reformas mais profundas que aqueles eventos pareciam ao 22. Alain Badiou: Théorie de la contradiction, Maspero, Paris, 1976, p. 15. 23. Pode-se dizer que, no esforço por manter a tensão aberta e entender a outra perspectiva como complementar, tal como se descreve acima, também as partes pressupõem uma terceira perspectiva, mesmo que conscientemente tida como imaginária, que engloba as outras duas: aquela do «processo histórico». Nueva Sociedad eSpecial em portuguêS 2014 26 Rodrigo Nunes mesmo tempo demandar e possibilitar. O efeito paradoxal de negar o outro como «esquerdista» é se conirmar a seus olhos como «reacionário». O que deveria ser feedback negativo («Se continuarem os protestos, a direita vai se fortalecer»), desestimulando a mobilização, corre assim o risco de se tornar feedback positivo («Está vendo? É justo se rebelar»). Mais ainda se, como foi o caso, em vez de se concentrar no horizonte estratégico (que mudanças restam por fazer e como fazê-las), o discurso se resume na necessidade de defender o que já se conseguiu fazer (principalmente, o crescimento da renda e a inclusão pelo consumo). Ao invés de ver o maior movimento de massas na história do país desde os anos 80 como a melhor oportunidade de mudar uma correlação de forças que, mesmo após mais de uma década no poder, não para de ser apontada como impeditiva, o governismo no Brasil teme sobretudo as consequências que uma desestabilização deste equilíbrio possa ter para um projeto cujo horizonte estratégico parece cada vez mais restrito. Por isso chantageia os movimentos com a ameaça de que é o único katechon24 capaz de evitar o retorno da direita, aliás bastante debilitada eleitoralmente hoje. Não obstante, se olharmos de outra perspectiva, não seria natural que o fato de preferirem ignorar esta oportunidade fosse visto como a prova de que o governismo teria passado a funcionar como um katechon de outro tipo, ou seja, com sinal invertido: como o último (ou mais novo) obstáculo de um sistema político autorreferencial diante de uma nova onda de pressões populares? 24. Tomo a expressão («aquilo que refreia», em grego) de Carl Schmitt, que por sua vez a toma da Bíblia, onde São João a utiliza para falar de algo que atrasa a chegada do Anticristo. Ver C. Schmitt: The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus Publicum Europaeum, Telos Press, Nova Iorque, 2003.