No coração da floresta - Primeiro capítulo

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No coração da floresta

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SÉRIE O POVO DAS ÁRVORES A filha do pastor das árvores No coração da floresta

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Gillian Summers

No coração da floresta

q Tradução Flávia Carneiro Anderson

Rio de Janeiro | 2012

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q 1 Canooga Springs, Nova York Área de acampamento do Festival da Renascença de Wildewood

Cinco dias na estrada com o pai, e Keelie Heartwood continuava

sem o seu piercing no umbigo. Seu meio que namorado, Sean, não tinha ligado nem uma vez para ela; e agora ia ter que aturar mais um Festival da Renascença. E o pior era que a sua amiga da Califórnia chegaria em breve para testemunhar o seu calvário. Uma corneta ressoou em meio à chuva lá fora, seguida de uma gargalhada estridente vinda da barraca dos Alegres Saqueadores, que estava abarrotada de gente, bem do seu lado. Keelie acrescentou um comentário no diário, lembrando que não tinha permissão de se divertir com os demais renascentistas e tinha que ficar no trailer. Que droga de vida, escreveu Keelie. Então, fechou o diário em que vinha registrando seu dia a dia digno de pena, deitou-se no beliche e ficou fitando o vazio. Seu olhar não foi muito longe, pois se limitava ao aconchegante ambiente de cinco metros quadrados. Ela precisou se esforçar muito para considerá-lo “aconchegante” em vez de “claustrofóbico”. Não era justo. Enquanto ela estava ali, enfurnada naquele 9

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acampamento, os outros elfos, inclusive a chata da elfo Elia, tinham se hospedado num alojamento de luxo na cidade, perto do Festival. Contavam com serviço de quarto e tudo, e ela, mal tinha espaço. Teoricamente, precisava ficar ali dentro até o pai voltar de uma incumbência. Já fazia horas que ele tinha saído. Ela passara o tempo escutando a farra barulhenta do quartel-general das festas do Festival da Renascença de Wildewood. Se sua amiga Raven estivesse ali, poderiam se juntar à festa. Só que ela fora para Manhattan depois do último festival, para fazer estágio na Doom Kitty, a famosa gravadora gótica. Com certeza uma atividade mais legal que arrancar ervas com a mãe dela, a velha amiga do pai de Keelie, Janice, a herborista que chegaria a Wildewood em breve; mas Keelie estava morrendo de saudades de Raven. A amiga, bonita e segura de si, tratava-a como uma igual e não como uma parasita de 15 anos. O tema de Wildewood era Robin e seus Alegres Saqueadores, e os companheiros de saque dele estavam cantando (ou pelo menos pensavam, de maneira otimista, que estavam cantando) uma canção animada, que tinha a ver com mulher casada e cerveja. Todo refrão terminava com um grito de “seu panaca”! Eles vinham repetindo a música havia umas duas horas, aumentando o volume e desafinando cada vez mais. Keelie sentiu as árvores mexerem-se ao seu redor; pelo visto, elas tampouco estavam gostando do concerto. Ela conseguira senti-las a vida inteira, mas fora apenas quando tinha ido morar com o pai que haviam se comunicado com ela e permitido que visse suas faces espirituais. Os carvalhos ancestrais, maiores que as árvores do Colorado, enviavam sua energia para ela naquele momento, solicitando que saísse e se mostrasse para eles. Havia também olmos silenciosos e vidoeiros farfalhantes, bem como pequenas cerejeiras e salgueiros pendentes, que gostavam de manter as raízes úmidas às margens do rio, o qual passava, profundo e silencioso, nos limites do acampamento do Festival. As lições de magia terrena de Sir Davey tinham ajudado Keelie a bloquear as 10

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árvores a maior parte do tempo, para que ela não enlouquecesse, mas, naquela noite, como se sentia entediada, cansada e sozinha, ela não conseguiu se concentrar nas palavras simples que o bom amigo do pai lhe ensinara. Restavam ainda três lições a fazer, de acordo com a agenda que ele tinha deixado, mas a garota não estava em condições de prestar atenção nelas naquele momento. Keelie estendeu a mão e passou-a sobre a pequena estante de madeira (cedro, das florestas do norte) incorporada ao seu beliche. Seus dedos agarraram o quartzo-rosa que tinha comprado num impulso, no Festival da Renascença de Montanha Alta. Ela o segurou à sua frente, fechou os olhos e começou a meditar, concentrando-se em si mesma. Respirou fundo e soltou o ar, depois imaginou que os pés assemelhavam-se a raízes de árvores em busca de terra, arraigando-a. Suas mãos formigaram, e ela escutou um leve zumbido, similar a diminutas campainhas, o que atenuou a maior parte da energia esverdeada que a circundava. O exercício teria sido totalmente eficaz, não fossem as inúmeras interrupções causadas pelos gritos de “Hurra” na barraca ao lado. Pelo visto “Hurra” era o equivalente medieval de “Aê”, e os Alegres Saqueadores o usavam o tempo todo. Keelie abriu os olhos. Um brilho róseo banhou o trailer. É isso aí! Tinha conseguido! A garota vinha trabalhando com Sir Davey havia semanas para evocar a proteção do cristal. Mal podia esperar para lhe mostrar o que conseguira fazer. Então, recostou-se na parede, e deixou escapar um suspiro. Se ao menos pudesse usar a pedra para ir de novo à praia ou até mesmo para trazer logo o pai de volta. A motocasa minúscula e ridícula, construída artesanalmente pelo pai, era boa para se pernoitar, como os dois tinham feito na viagem do Festival no Colorado até onde estavam, no de Renascença de Wildewood, ao norte do estado de Nova York. Aquela seria a última parada da turnê anual de festivais de verão feita por ele. O pai participava de três durante o ano, nos quais vendia os móveis de madeira 11

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bonitos e exclusivos que fabricava nos meses frios. Quando os dois terminassem ali, rumariam para a casa de inverno dele, no Oregon. Keelie já superara o constrangimento de ser vista saindo da pequena motocasa de conto de fadas, minuciosamente decorada, montada na carroceria da velha caminhonete. Parecia uma casa de boneca — minúscula demais para os três dias em que estavam enfurnados ali, enquanto o pai montava a loja. Keelie sentia falta do apartamento espaçoso do Festival da Renascença de Montanha Alta. Lembrou-se saudosa da banheira com pés em forma de garra e das tapeçarias com flores e unicórnios. Lá fora, a chuva ressoava no telhado de metal, nas laterais de madeira da motocasa e nas diminutas janelas. Até mesmo a portinhola do gato, que estava com o trinco aberto para que Knot pudesse entrar e sair, rangia um pouco. Os pingos a golpeavam, como se minúsculos soldados aquáticos estivessem sitiando o trailer. Keelie estremeceu, recordando-se do Espírito da Água que ela salvara no Colorado. O que, por sua vez, fez com que se lembrasse do Barrete Vermelho, o duende malvado que ela havia derrotado. Nada mal para uma adolescente que, até dois meses atrás, não tinha a menor noção dos poderes mágicos que possuía. Ela deu uma olhada no relógio, um objeto proibido segundo as normas do Festival. Tudo o que os visitantes viam tinha que condizer com o tema: “... itens destoantes devem ser deixados na moradia dos funcionários, de maneira que não chamem a atenção em meio ao clima de época.” Era o que se lia no Manual dos Renascentistas. Que piada. Se fosse assim, então todo mundo com mais de 15 anos nem devia ter dentes. Keelie manjava de história, sabia muito bem como se vivia naquela época. O mundo do Festival da Renascença era uma tremenda farsa. Embora fosse divertido, não devia ser levado a sério, e algumas regras podiam ser ignoradas. De acordo com o marcador de tempo proibido de Keelie, passava da meia-noite. Zeke, seu pai, saíra às dez para se encontrar com Sir Davey e lhe mostrar como chegar ao novo local da loja de pedras e cristais. Sir Davey tinha acabado de chegar com a gigantesca 12

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motocasa Winnebago, que havia estacionado na seção de veículos de grande porte. Seria ótimo se pudessem ficar com ele. Keelie teria que dormir no sofá-cama, claro, mas tinha ouvido falar que na motocasa de Sir Davey tinha um banheiro de verdade. Um banho quente cairia superbem, sem falar na ida ao banheiro sem ter que atravessar toda a área de acampamento. Talvez, se ela ficasse na “caverna sobre rodas” de Sir Davey, conseguisse dormir em paz — sem sentir as árvores e a magia formigar por seu corpo. O pai tinha lhe prometido que teria o próprio quarto na sua barraca, supostamente linda de morrer. Keelie ainda não a vira, pois, como andava chovendo muito, ela não pôde ser montada. A barraca continuava guardada na loja dele, junto com os móveis que ele tinha mandado para lá. Zeke estava atrasado. Talvez tivesse ficado tão ocupado que se esquecera dela ou talvez houvesse se distraído com alguma árvore. Ou pior ainda, com uma mulher. O fascínio que seu pai exercia na mulherada era impressionante, e ela não estava nem um pouco a fim de dividi-lo com ninguém, agora que o tinha reencontrado. Keelie precisava trocar o celular arrebentado. Não queria usar o de Zeke, uma caixinha retangular, de madeira, que ele utilizava para ligar para os outros elfos. Na única vez em que tinha tentado usá-lo, para telefonar para Sean no Festival da Renascença da Flórida, acabara se conectando telepaticamente com um abeto vermelho em Alberta, no Canadá. Depois disso, ela tentou convencer o pai a lhe comprar um iPhone. Sua mãe usava um BlackBerry, e Zeke até poderia se interessar por um, por causa do nome tão natural e terroso, só que nenhuma das amigas da filha usaria um. A mãe. Keelie deu uma fungada, torcendo que relampejasse, trovejasse ou ocorresse algo dramático climaticamente. A chuva tediosa começava a deixá-la emotiva, lembrando-lhe de que a mãe tinha morrido havia apenas três meses. Não que Keelie não se sentisse mais triste; muito pelo contrário, ultimamente andava chorando por 13

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qualquer coisa. Achou que já tivesse se acostumado a ficar sem ela, os shoppings, as amigas da escola particular, as aulas de tênis e a praia. Talvez só precisasse se manter mais ocupada, postergando assim a pior parte de sua dor. Keelie andava sentindo muitas saudades de Ariel, também. Tinha criado um vínculo com o falcão-fêmea cego do qual cuidara no Colorado. Cameron, a especialista em aves de rapina do Festival de Montanha Alta, havia levado Ariel para uma clínica de reabilitação na Pensilvânia. Nenhum veterinário tinha conseguido ajudar a ave. Ariel fora amaldiçoada por uma elfo e, até aquele momento, ninguém fora capaz de desfazer isso. Outro ruidoso “Seu panaca!” interrompeu seus pensamentos. Keelie cobriu as orelhas para abafar a cantoria dos homens, o que não fez a menor diferença. Os caras estavam berrando tanto que até a galera da cidade devia estar escutando. A rapariga no meu colo se sentou, E em seguida, arteira, suplicou, Mais forte, meu capitão, por favor... Keelie cobriu a cabeça com o travesseiro. Não havia sinais de que os Alegres Saqueadores iam desanimar e dormir. Algo bateu na lateral da motocasa. Ela imaginou a mão do pai apoiada na lateral do veículo, enquanto ele, ferido, buscava ajuda, sem conseguir chegar à porta. Ergueu o quartzo-rosa reluzente. Ele brilhou ainda mais, e pequenos raios prismáticos de tom róseo espalharam-se pelo ambiente. Bobagem. Mas a imagem do pai machucado perdurou. Keelie empurrou a coberta leve que a cobria, levantou-se e foi abrir a porta. Grossas gotas de chuva tamborilavam no solo, do outro lado da parede de madeira decorada com arabescos, lembrando uma casinha de gengibre. A chuva reluzia em meio à escuridão, iluminada pelas luzes da barraca dos Alegres Saqueadores. Dali de fora, ela ouviu gargalhadas femininas vindas de lá, junto com o bramido grave de vozes masculinas. Não ia dar uma espiada. 14

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Uma lata de Budweiser brilhou em meio à luz oriunda da fenda da entrada da barraca. Sem sombra de dúvida era o que causara o barulho na parede. Os idiotizados deviam tê-la jogado por ali. E nem era cerveja de época — embora ela não desse a mínima. Keelie deixou escapar um suspiro. Nada de o pai chegar. Só um bando de farristas boêmios. Ela começava a se sentir tentada a desobedecer ao Zeke e unir-se a eles, mas sabia que ele teria um troço se fizesse isso. Keelie havia ido, junto com Raven, para uma daquelas baladas mal-afamadas de barraca, no outro Festival, e ficara boquiaberta. Garrafas de hidromel passavam de mão em mão, junto com um cigarro que ela sabia não se tratar de tabaco. Os caras que faziam os papéis de piratas no Festival estavam lá. Eram tão gatos quanto os cavaleiros da justa, só que levavam a sério demais seus personagens maliciosos. Raven tinha dançado para eles, e um dos piratas aproveitara a distração da moça para se sentar bem perto de Keelie. Havia sido ao mesmo tempo divertido, assustador e empolgante. Só que quando Raven viu que o cara estava começando a passar a mão em Keelie, parou de dançar e tirou-a dali, felizmente sem fazer escândalo. A adolescente se sentiu grata por isso, mas, naquele momento, já sabia que não podia ir até uma sozinha. Não que estivesse louca para ir até aquela. Mais cedo, Keelie entreouvira alguns dos Alegres Saqueadores comentarem que, embora a área de festas Rivendell estivesse tranquila naquele momento, ficaria agitada quando o Festival começasse. Os justadores mantinham os cavalos em uma estrebaria no prado, perto das barracas deles, na seção denominada zombeteiramente Rivendell por algum sabichão ciente de que a maior parte dos justadores era constituída de elfos. Justadores. Keelie tinha uma queda por um deles — Sean. Seu coração acelerou quando se recordou do momento em que se beijaram. Mas ficou apertado quando ela se lembrou de que Sean não entrara em contato desde que partira. E tinha lhe prometido que o faria. Keelie precisava falar com Raven, só que a amiga não estava ali, e ela continuava enfurnada naquele lugar, sem telefone. Não podia 15

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nem dar uma escapada para procurar por um, pois não tinha carteira de habilitação. Aquele era outro assunto chato. O pai não lhe ensinara a dirigir, e sempre se esquivava quando ela pedia que lhe desse aulas. Algo se moveu na floresta, atrás das barracas. Erguendo o cristal de quartzo-rosa como uma lanterna, Keelie semicerrou os olhos, mas não viu nada. Estava prestes a dar um passo atrás e fechar a porta quando o vulto se destacou entre as árvores. Era um cavalo, embora não tão grande e forte quanto os dos justadores. Talvez fosse árabe. Seu pelo branco brilhava bastante, até mesmo em meio à escuridão e à floresta ensombrecida. Na certa era um daqueles animais treinados, um pônei ágil que apresentava truques engenhosos nos intervalos das justas. Talvez tivesse escapado do prado. Alguém ia ficar bem encrencado por tê-lo deixado sair da estrebaria de Rivendell. Keelie não estava a fim de ficar encharcada na tentativa de capturá-lo. Como as estradas em torno do Festival não eram nada movimentadas, o cavalo não correria muito risco. Não haveria problema aguardar até a manhã seguinte. As árvores começaram a balançar, apesar de não estar ventando. Então Keelie sentiu um burburinho clorofilado tentando se formar em sua mente. O quartzo-rosa começou a esquentar em sua mão, e ela sentiu a magia inundá-la. Conforme a pedra protetora se tornava cada vez mais brilhante, a mão da garota formigava. De repente, a luz apagou, e a noite ficou escura de novo. À medida que os sentidos de Keelie se dissolviam na energia verde em espiral, até mesmo os sons da barraca dos Alegres Saqueadores esvaíram-se. Ela estava sozinha, com as árvores. Instantes depois, um único feixe de luz, similar a um laser, saiu do quartzo-rosa e foi até o outro lado, transformando-se em um forte brilho prateado, que circundou o chifre espiralado na cabeça do cavalo. Então, o animal virou-se abruptamente e correu rumo à floresta, com o chifre reluzente ainda visível. 16

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Keelie, com o coração batendo forte, deu-se conta do que acabara de ver. Ah. Meu. Deus. Adrenalina fluiu por seu corpo. Os músculos de suas pernas contraíram-se. Dispostos a entrar em ação. Prontos. Ela deu um passo em direção à floresta. Porém, sobrepujada por uma tremenda ansiedade que lhe avisava perigo, ela percebeu que não conseguia se mover. Alguma magia a obrigou a permanecer no lugar, arraigada no solo. O aroma de canela a circundou. Instantes depois, seu pai a encontrou, segurando o quartzo-rosa e fitando, intrigada, as sombras cor de anil.

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