labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2011 -janvier /juin 2012  - julho /dezembro 2011 -janeiro /junho 2012

 

       Gênero, poder e feminismos: as arapiracas pernambucanas e os sentidos de gênero da política feminista

>Alinne de Lima Bonetti

Resumo: Este texto propõe uma reflexão sobre um tema caro aos feminismos: o poder. A partir do referencial analítico e metodológico da Antropologia Feminista e da pesquisa etnográfica realizada em Recife/PE entre 2004 e 2005 sobre o campo política feminista e seus sentidos de gênero, neste texto se problematizará a uma dimensão particular do poder, a partir da sua íntima relação com a categoria epistemológica gênero, na configuração dos significados de gênero que  dotam de sentido as práticas do/no campo político feminista.

Palavras-chave: antropologia feminista, gênero, poder

 

 

Introdução – De gênero e Antropologia Feminista

Tema caro aos feminismos, tanto política quanto analiticamente, o poder tem sido alvo de grandes reflexões dentro do campo de estudos feministas e de gênero nas suas mais distintas manifestações, sobretudo quando se questiona a disparidade entre homens e mulheres nas instâncias institucionais de representação política (Pinto, 1998; Prá 1992).[1] Este texto se ocupará, entretanto, de outra manifestação do poder, a partir da sua intima relação com a categoria epistemológica gênero, na configuração dos significados de gênero que  dotam de sentido as práticas do/no campo político feminista. Para tanto, parto de reflexões feitas a partir da pesquisa etnográfica realizada em Recife/PE entre 2004 e 2005 sobre o campo política feminista e seus sentidos de gênero e do marco teórico-metodológico da antropologia feminista (Bonetti, 2007).

Como já sabemos, o campo dos estudos de gênero/feministas são complexos e multidisciplinares, com diferentes correntes e abordagens teóricas. Assim, faz-se necessário situar a produção desta reflexão, levando a sério a lição feminista, de Donna Haraway (1995), que propõe o posicionamento dos saberes para se alcançar uma objetividade corporificada e feminista para a produção de conhecimento, ao invés da objetividade masculinista característica da ciência ocidental.

Aliando-me à proposta da autora, neste texto apresento o meu olhar localizado e, portanto, parcial e limitado, a partir de certa perspectiva da antropologia feminista[2], que toma gênero como uma categoria teórico-epistemológica para se compreender os fenômenos socioculturais. E aqui já há duas explicitações a serem feitas: acerca das possibilidades da categoria gênero e sobre essa certa perspectiva da antropologia feminista.

Uma primeira implicação desta pluralidade de perspectivas que marcam os estudos feministas/de gênero diz respeito à polissemia da categoria gênero. Nem sempre quando falamos em gênero, estamos falando da mesma coisa. Assim, por vezes, misturam-se e confundem-se gênero como categoria: descritiva, analítica e teórico-epistemológica. Vejamos.

 Tomar gênero como categoria descritiva é tomá-la como relativa à mulher enquanto fenômeno empírico, ou como referente à relação entre o homem e a mulher ou, ainda, como sinônimo de mulher, em algumas situações de deslizes semânticos. Gênero, assim utilizado, acaba por ser utilizado como um sinônimo contemporâneo de sexo, referindo-se à diferença sexual tal como percebida empiricamente[3].

Já gênero como categoria analítica implica em tomá-la como relacional, que remete à produção simbólica, no plano dos valores, das convenções de feminilidades e de masculinidades de determinadas configurações sócio-históricas (Scott, 1989). Assim, assume-se que “gênero, em todos os grupos humanos, deve ser entendido em termos políticos e sociais, com referência não a limitações biológi­cas, mas sim às formas locais e específicas de relações sociais e particularmente de desigualdade social” (Rosaldo, 1995: 22). Tais formas locais podem ser compreendidas como “convenções de gênero”, ou seja, o conjunto de valores e ideais relativos ao imaginário sexual disponíveis na cultura e compartilhados, a partir dos quais os seres sociais pautam as suas ações e concepções de mundo, reproduzem e recriam estas mesmas convenções e as suas práticas. No mundo ocidental, tais convenções são informadas pela matriz falocêntrica, a centralidade do masculino como parâmetro positivo do qual se origina a assimetria de gênero, e pela “matriz heterossexual compulsória”, que pode ser entendida como:

(...) o modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, ex­presso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade (Butler, 2003: 216).

A partir dessas matrizes, que impõem um modelo de inteligibilidade de gênero, as convenções de gênero e sexualidade ocidentais pressupõem uma relação necessária e de coerência entre sexo, gênero, identidade, desejo e prática sexual. Além disso, estas matrizes instituem o sexo como pré-discursivo, um dado da natureza, e o gênero como construto cultu­ral, enquanto alguns estudos históricos apontam para o caráter social e politicamente construído tanto do sexo quanto do gênero[4].

Gênero como categoria analítica, constitutiva de convenções de gênero, vem substituir as categorias representações de gênero e papéis sexuais/de gênero, caudatárias da escola interacionista estadunidense, da teoria dos papéis, de caráter sistêmico e funcionalista. A sua principal crítica é que partem de um padrão normativo implícito associado, por exemplo, a um modelo abstrato de família nuclear, composta por uma divisão sexual tradicional do trabalho entre homem-provedor e mulher-cuidadora (Connell, 1987)[5]. Seu uso, por vezes,  representa uma amarra teórica que torna a análise mais limitada; tornando-se atraente, no entanto, porque significou uma abertura para se analisar as construções sociais e as expectativas direcionadas a cada um dos sexos na sociedade.

Segundo Robert Connell (1987) essa abordagem padece de vagueza analítica. A sua li­mitação mais séria, contudo, é a lacuna explicativa que deixa entre a agência individual, a estrutura social e a interação entre ambas[6]. Tal ausência acaba sendo suprida pela categoria sexo, tomada como uma base biológica invariável, sobre a qual a superestrutura social maleável atua. Ou seja, tomando-se como o exemplo as análises sobre família, no modelo tradicional de família formada por homem, mulher e filhos, há a possibilidade de variabilidade de papéis, mas não de contestação desta formação. Assim, a instituição família, entendida como um sistema, bem como as funções destinadas aos seus componentes, que são complementares entre si, se mantém.

As críticas apontam para um esvaziamento analítico relativo às relações de poder, que não permite uma visão mais ampla da organização sócio-simbólica e da influência da agência dos sujeitos sociais nas transformações das estruturas e sistemas sociais. No paradigma dos papéis sexuais não há espaço para as ten­sões oriundas da disjunção entre agência dos sujeitos sociais e concepções/visões de mundo. Tendo em vista tais limitações, a aborda­gem das convenções de gênero a partir da perspectiva de gênero em que implicam a  utilização da categoria analítica gênero tem maior rentabilidade analítica, em detrimento da abordagem dos papéis sexuais.

 Contudo, tomar gênero como categoria teórico-epistemológica é compreendê-la como um princípio fundante e constitutivo do social, impregnado pelo conceito de poder  - este, por sua vez, concebido a partir da tradição foucaultiana que o compreende como uma força que circula, que se produz e é produzida nas relações (Foucault, 1997). Ou seja, gênero diz respeito a uma forma de conceber e de produzir conhecimento sobre o mundo social. Essa concepção de gênero, portanto, não se restringe à relação corpo biológico-sexo-gênero, apesar de partir da imagética sexual (Strathern, 1990). Antes, ela abarca e dota de sentido a organização da vida social (Moore, 1988) e implica na evidência de uma trama de gênero e poder mais ampla e profunda, anterior às convenções e às práticas de gênero. Traduz-se, portanto, num princípio basilar e constitutivo do social, impregnado pelo conceito de poder, o que significa dizer que todas as coisas do mundo têm um atributo relativo a gênero e poder. Quando se fala em perspectiva de gênero, é desta abordagem que se parte. E é por meio dela que aqui se analisa como as formações sociais refletem assimetrias de gê­nero e desigualdades. Tal compreensão se prende à produção de antropólogas realizadas a partir do diálogo com a crítica feminista direcionada à Antropologia. E aqui há que se fazer outra explicitação sobre de que antropologia feminista se está falando.

Embora o adjetivo feminista, no nosso imaginário, leve a uma associação imediata ao empírico-fenomenológico, isto é, a feminismo associado à categoria empírico-descritiva mulher e à noção de luta política das mulheres, tal linha da antropologia feminista contemporânea enfrenta o grande desafio de se constituir prescindindo das mulheres, enquanto categoria sociologia e empírica, como seu objeto (ONO, 2003), apoiando-se cada vez mais na definição da categoria teórico-epistemológica gênero. Embora a categoria gênero tenha um lugar de destaque, ela não é a única implicada na produção de diferenças. Há, portanto, que se complexificar a análise sócio-histórica a partir da combinatória, ou da “articulação” como prefere Avtar Brah (2006), de distintos feixes de marcadores sociais empenhados na produção de sistemas/estruturas sociais de desigualdades, que não são conhecidos de antemão; antes, eles emergem dos dados em escrutínio produzindo alteridades complexas, esta, sim, o objeto da Antropologia feminista. Brah chama a atenção para a “importância de uma macro-análise que estude as inter-relações das várias formas de diferenciação social, empírica e historicamente, mas sem necessariamente derivar todas elas de uma só instância determinante” (Brah, 2006:331), sob risco de reducionismo.

A partir das alteridades complexas e da categoria epistemológica gênero, a Antropologia Feminista pretende revelar as experiências culturais relativas ao gênero, as variações de sentidos atribuídos a ele, os contrastes entre convenções constitutivas de seus repertórios e as variadas formas como esses repertórios são vivenciados e ressignificados. Ou seja, as complexas relações entre convenções e práticas. Além disso, busca iluminar como a agência humana, as convenções e práticas de gênero, as relações sociais empenhadas em sistemas de distribuição desigual de prestígios e privilégios (Ortner e Whitehead, 1985; Rosaldo, 1995 e Ortner, 1996) se originam, em que formação social estão situadas e quais suas condições de possibilidade.

É a partir desse olhar especialmente crítico e escrutinador desta Antropologia Feminista, sobretudo voltado para o questionamento das grandes categorias, que analisei as tramas constitutivas do campo política feminista em Recife/PE, a partir de uma etnografia sobre o ativismo feminino popular e seus trânsitos no universo feminista local (Bonetti, 2007). Ao lançar esse olhar especialmente crítico e escrutinador para a formação das relações sociais daquele contexto mais amplo, tomando gênero e poder como constitutivos das formações sociais, cheguei à compreensão de que as relações naquele campo político feminista se estabeleciam a partir de um sistema de distribuição desigual de prestígio e privilégios[7]. Esse sistema, por sua vez, pode ser compreendido fenomenologicamente a partir de duas categorias que se sobressaíram na etnografia: o “capital de articulação política” e a “coragem”.

A partir dessa perspectiva teórico-analítica, do meu material etnográfico selecionei uma reflexão sobre os sentidos de gênero que constituem o campo político feminista com vistas a problematizar as relações de poder internas ao feminismo como movimento social.

 

A etnografia: As arapiracas pernambucanas

Quando rumei para o lócus eleito para a pesquisa etnográfica fui preocupada em compreender a militância das mulheres das camadas de baixa renda nas suas mais distintas dimensões: o que resultava da sua interface com os movimentos feministas e como a prática política pervadia o cotidiano das militantes.

Além disso, fui imbuída da busca por preencher uma lacuna deixada na literatura sobre esse ativismo político que, desde a década de 80, era explicado pela matriz da “maternidade militante”[8]. Esta expressão foi cunhada por Sonia Alvarez (1988), cientista política, especialista em movimentos feministas latino-americanos em geral e brasileiros em particular, para descrever o ativismo politico das mulheres das camadas urbanas de baixa renda em meados da década de 1970 e início de 1980. Ele é derivativo do conceito “supermadre”, inaugural no campo de estudos sobre mulher e política na América Latina, que foi criado por Elsa Chaney para descrever a experiência de mulheres latino-americanas eleitas para cargos públicos na década de 1970, cuja presença na política era legitimada e explicada a partir da extensão de seus papéis de mães (Rakowski, 2003). Assim, tal modelo explicativo interpreta o engajamento dessas mulheres a partir da ênfase nos papéis de mães e esposas que desempenham. Tais papéis são, por sua vez, significados pelos atributos da abnegação, do altruísmo e do cuidado, associados a um determinado repertório de gênero ligado ao feminino.

No decorrer da pesquisa, ao me deparar com a multiplicidade de contextos produtores de relações e sentidos, tais como o Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE), os eventos promovidos pelo Movimento Feminista local, as reuniões políticas dos grupos de mulheres nas suas associações de origem, o cotidiano do próprio bairro em que viviam essas mulheres fui percebendo que a contestação da categoria explicativa “maternidade militante” era apenas um dos planos analíticos que se me apresentavam. Havia algo a mais para ser analisado e desvendado: uma trama de gênero e poder mais ampla e profunda, que dotava de sentido aquele conjunto de contextos mais uniformemente, constituindo um “sistema desigual de prestígios e privilégios” que marca o universo investigado. O que traz à baila um tema encarado ambivalentemente pelo próprio feminismo, enquanto uma ideologia política: as relações de poder entre as próprias mulheres, constituídas pela articulação entre diferentes marcadores sociais como gênero, raça, classe, sexualidade e geração. 

Tais questões nos levam à problematização e à transposição da crença no ideal político feminista da sororidade (sisterhood) (Fox-Genovese, 1992), que se baseia em concepções de solidariedade, de afeto, de ajuda-mútua de companheirismo que marcaria uma suposta prática política no feminino que, ao que parece, escamoteia relações de poder do próprio campo político feminista.

 

Os sentidos de gênero da prática política feminista

Uma das primeiras pistas para compreender os sentidos de gênero e poder que constituem o campo político investigado bem como a sua prática foi me apresentado por Alaíde, uma ativista local, representante de uma ONG feminista, o Coletivo Mulher Vida, criada na década de 90, de porte médio, que lida com questões relativas à violência contra as mulheres.

Conversávamos sobre as reuniões do Fórum de Mulheres de Pernambuco e o tom belicoso das reuniões. Eu disse-lhe que me sentiria intimidada de ter que, ao que me parecia, brigar o tempo todo. Brinquei com ela, afirmando que se tivesse de passar por situações como as que eu presenciara de forte e, aos meus olhos, agressivo embate, eu teria chorado.

 Alaíde, rindo-se muito do meu jeito, me sentenciou:

não mermã! Nunca chore no Fórum de Mulheres que daí mesmo que elas vêm pra cima de ti com tudo! Nunca chore! Ali mulher não chora!

O meu comentário a fez lembrar de uma lição que aprendera logo no início da sua participação no Fórum. Contou-me de uma ocasião em que tivera de ir a uma reunião a fim de reivindicar uma vaga para o Coletivo numa importante conferência nacional que ocorreria. Na ocasião, neófita no campo, estava temerosa de ir sozinha e enfrentar o grupo. A sua colega de trabalho Luana, mais acostumada com os códigos locais, incentivou-a que fosse à reunião e colocasse a arapiraca na mesa.

Estranhei de imediato a palavra e ela, entre risos tímidos, me explicou: arapiraca é o simbólico do pênis. É mais do que colocar o pau na mesa, é mais poderoso... Gargalhamos juntas. Ainda rindo-se, agora despachadamente, Alaíde continuou a contar que elas e suas colegas costumavam brincar com essa história de arapiraca, questionando se não dava para colocar o útero mesmo, ao invés da arapiraca, na mesa... (Diário de Campo, 02.11.04).

As formulações de Alaíde sobre os códigos que regem o FMPE são exemplares para se refletir sobre os significados de gênero que dotam de sentido a prática política sintetizada no FMPE e sobre questões importantes acerca do campo feminista de forma geral. Cabe ressaltar que a participação nessas conferências é alvo de grande disputa por conferir prestígio às instituições e reforçar o seu lugar de destaque no campo feminista.

A primeira impressão que se tinha quando se chegava numa reunião do FMPE é a de que era um espaço plural, de exercício democrático intenso, no qual as diferenças encontram espaço para a sua manifestação e, portanto, pejado de conflitos. Nas primeiras reuniões de que participei, um primeiro estranhamento que tive foi o tom beligerante que marcava as discussões, sempre contando com a exposição de diferentes pontos de vista defendidos com muito afinco. Ficava espantada de ver o tempo que se levava nas rodadas de discussão acerca de pontos de pautas mais polêmicos. Sobretudo, porque as opiniões me soavam muito parecidas e repetitivas. Era como se não se pudesse abrir mão do espaço de fala e que a afirmação da posição de cada uma era de crucial importância para o jogo político que se estabelecia ali.

O tom aguerrido e a assertividade estranhadas pelo meu olhar poderiam nos levar a interpretar que essas mulheres teriam se masculinizado. Acusação recorrente direcionada às mulheres que adentram o mundo político (Sartori, 1999), parece refletir a imagem de que esse não é um espaço legítimo para a presença das mulheres. A relação entre mulher e política se relativiza, entretanto, se tomarmos o campo político como um conjunto de significados, relativos ao plano do simbólico (Barreira, 1998) e, a partir disto, questionarmos sobre os significados de gênero que dotam de sentido o mundo da política. Assim, “considerar a associação do campo político com o masculino é entendê-lo como um conjunto de significados construídos cultural e historicamente a partir de atributos ligados ao masculino” (Bonetti, 2000:164), mais especificamente, às convenções de gênero que constituem modelos de masculinidade.

Há uma variedade de possibilidades de arranjos entre os atributos de gênero que são produzidos nesse campo, de acordo com cada contexto e com as relações que nele se estabelecem. Adotar essa perspectiva analítica contribui para complexificar a análise ao mesmo tempo em que desconstrói a crença da sororidade, que essencializa a prática política das mulheres.

No caso em questão, para além de uma interpretação simplista de que as mulheres teriam se masculinizado, podemos interpretar que colocar a arapiraca na mesa é um requisito para se adentrar no jogo político feminista local e um atributo masculino relativo ao poder. Em detrimento das metáforas do tecer, que remetem à cooperação e à não competitividade, associadas a um repertório feminino da irmandade de gênero, muito em voga no pensamento feminista na década de 1980, temos aqui o uso de metáforas masculinas para se falar do poder. Tais usos de metáforas masculinas em detrimento das femininas escancaram e, portanto, radicalizam os termos da disputa política, encarando frontalmente as relações desiguais de poder inerentes ao jogo político.

Pode-se também entender que a expressão utilizada por Alaíde informa sobre um modelo de feminilidade ali atualizado. Chorar frente ao conflito é uma saída que remete a um modelo de feminilidade frágil e dependente do qual parecem querer se afastar as mulheres que estão nesse jogo político. Para se estar ali, faz-se necessário ser valente e ter coragem para enfrentar as disputas, para articular e para angariar prestígio que será utilizado no estabelecimento de alianças.

Há, ainda, uma importante dimensão histórico-cultural que deve ser levada em conta nessa análise. Trata-se dos sentidos de gênero relativos à identidade regional nordestina que, ao que parece, é pervasiva ao contexto analisado. Num instigante estudo de gênero sobre a criação da região Nordeste e da sua identidade regional pela elite intelectual da região na década de 30, o historiador Albuquerque Junior (2003) depara-se com o atributo da coragem como o seu significante fundante. Na análise ele demonstra que a identidade nordestina é pensada e construída no masculino, ressaltando-se as características de virilidade, destemor, valentia e coragem.

Nessa configuração discursiva não há espaço para atributos femininos. Aqui, o modelo de feminilidade hegemônico é dotado de sentidos de gênero masculinos. Ou seja, as mulheres nordestinas se significam a partir de atributos masculinos, tendo de incorporar as características da valentia e da coragem para superar as adversidades de um meio tão inóspito. Assim, esse modelo de feminilidade nordestino, que constitui o imaginário regional, é marcado pela força, pela valentia, pela coragem; todos atributos masculinos.

 Elemento recorrente na pesquisa, o atributo da coragem parece ser um importante traço que compõe o repertório simbólico do fazer político nesse campo, pervasivo às mais diferentes situações do contexto de pesquisa.

 Logo na chegada no campo da pesquisa, chamou-me a atenção o slogan de campanha à vereança de Olívia Lima, presidente da Associação Pró Mulher: Não basta ser mulher, tem que ter coragem. Nesse contexto pejado de conflitos, não basta ser uma mulher, há de se ser uma mulher com arapiraca.

O atributo da coragem dota de sentido uma determinada concepção de feminilidade, que de acordo com cada agente político em disputa na arena do FMPE tem nuances diferenciadas. Essas diferenças revelam marcas singulares do fazer político e remetem às relações de poder que se estabelecem ali dentro. Reclamação recorrente dentre as participantes do FMPE, nas mais diversificadas situações, tais relações revelam como o prestígio ali se distribui e também  apontam, para as distintas alteridades em disputa.

No entanto, colocar a arapiraca na mesa nem sempre garante o sucesso na disputa política. Nem sempre há espaço para a sustentação da voz; no jogo relacional entre as alteridades, a arapiraca circula de acordo com a configuração de prestígio do campo político local.

***

Esse já é, contudo, tema para outra reflexão. Registro aqui, o aprendizado tido com a perspectiva da Antropologia Feminista adotada para as minhas análises e com a sua categoria analítico-epistemológica gênero de provocação e de embaralhamento às nossas possibilidades compreensivas sobre gênero e poder.  Esse legado, que merece ser levado radicalmente a sério em nossas pesquisas e análises sobre o campo político feminista e, em grande medida, sobre as nossas próprias práticas, tem grande potencial transformador do campo dos estudos de gênero/de mulheres/feministas.

Foi com esse olhar provocador que analisei os sentidos de gênero que compõem o campo político feminista de Pernambuco, que pode ser tomado, metaforicamente, como ponto de partida para a compreensão do campo político feminista brasileiro contemporâneo.

 

Dados biográficos:

Alinne de Lima Bonetti é antropóloga, doutora em Ciências Sociais, área de concentração Estudos de Gênero (Unicamp), professora adjunta Universidade Federal da Bahia, atuando no Bacharelado em Gênero e Diversidades e no Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo e pesquisadora permanente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher – NEIM/UFBA. Contato: alinne.bonetti@gmail.com

 

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. 2003. Nordestino, uma invenção do falo: Uma história do gênero masculino (Nordeste . 1920/1940). Maceió: Edições Catavento.

ALVAREZ, Sonia E. 1988. Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia. In STEPAN, A. (Org.) Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

BARREIRA, Irlys. Entre mulheres: Jogo de identificações e diferenças em campanhas eleitorais.1998. In BARREIRA, Irlys e PALMEIRA, Moacir (Orgs.). Candidatos e candidaturas - Enredos de campanha eleitoral no Brasil. São Paulo: Annablume Editora, 1998.

BONETTI, Alinne de Lima. 2009. Etnografia, gênero e poder: Antropologia Feminista em ação. Revista Mediações (UEL), n 14.

_____ Não basta ser mulher, tem de ter coragem - Uma etnografia sobre gênero, poder, ativismo feminino popular e o campo político feminista de Recife- PE. 2007. Tese de Doutorado [Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais – área de concentração Estudos de Gênero]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.

 ______.Entre feministas e “mulheristas: Uma etnografia sobre Promotoras Legais Populares e novas configurações da participação política feminina popular em Porto Alegre. 2000. Dissertação de Mestrado [Departamento de Antropologia Social]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina.

BONETTI, Alinne e FONTOURA, Natália. 2009. Convenções de gênero em transição no Brasil? Uma análise sobre os dados de família da PNAD 2007. In CASTRO, Jorge abrahão e RIBEIRO, José Aparecido. (orgs). Situação Social Brasileira, 2007. Brasília: IPEA.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. 2006.cadernos pagu (26), janeiro-junho. pp.329-376.

CONNELL, Robert. 1987. Gender and Power – society, the Person and sexual politics. Stanford: Stanford University Press.

Foucault, Michel. 1996. “Soberania e disciplina”. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

FOX-GENOVESE, Elizabeth. 1992. Para além da irmandade. Revista Estudos Feministas 0. pp. 31-56.

Haraway, Donna. 1995. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu. n. 5, pp. 7-41.

IPEA. 2010. Políticas Sociais: acompanhamento e análise. Vol 18.

MOORE, Henrietta. 1988. Feminism and anthropology. Minneapolis: University of Minnesota Press.

ONO, Sarah. Feminism without women: Experimentation and expansion in feminist anthropology. 2003. In ONO, Sarah e COMITO, Jacqueline (Orgs.). Whos afraid of Margery Wolf: Tributes and perspectives on anthropology, feminism and writing ethnography . An anthology by students of Margery Wolf. University of Iowa, Working Paper n. 277.

ORTNER, Sherry B. 1996. Making gender. The politics and erotics of culture. Boston: Beacon Press.

ORTNER, Sherry e WHITEHEAD, Harriet. 1981. Sexual meanings: The cultural construction of gender and sexuality. Cambridge: Cambridge University Press.

PINTO, Céli. 1998. Afinal, o que querem as mulheres na política? Candidatas à Câmara Municipal em Porto Alegre. In BARREIRA, Irlys e PALMEIRA, Moacir. (Orgs.) Candidatos e candidaturas: Enredos de campanha eleitoral no Brasil. São Paulo: Annablume Editora.

PRÁ, Jussara. 1992. Representação política da mulher no Brasil (1982-1990): A articulação de gênero no sul do Brasil e a questão institucional. Tese de Doutorado [Departamento de Ciência Política]. São Paulo: Universidade de São Paulo.

 RAKOWSKI, Cathy. 2003. Women as political actors: The move from maternalism to citizenship rights and power. Latin American Research Review 38(2).

 Rosaldo, Michele. 1995. O uso e o abuso da antropologia: reflexões sobre  o  feminismo e o entendimento intercultural. Revista Horizontes Antropológicos - Gênero. PPGAS/UFRGS. Porto Alegre.

SARTORI, Ari. 1999. Homens e as políticas de .empoderamento. das mulheres. A emergência do .gênero. entre sindicalistas de esquerda em Florianópolis. Dissertação de Mestrado [Departamento de Antropologia Social]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina.

Strathern,  Marilyn. 1990. The Gender of the Gift – problems with women and problems with society in Melanesia. Berkeley: University Of California Press.


 

[1] Tal disparidade de representação política também tem sido foco de atenção do poder executivo, que por demanda da sociedade civil incorporou no II Plano Nacional de Políticas para Mulheres (IIPNPM) um eixo de atuação voltado exclusivamente para o fortalecimento da participação das mulheres nos espaços de poder e decisão. Dentre suas ações estão a criação da Plataforma Política das Mulheres, a campanha “Mais Mulheres no Poder: Eu assumo esse compromisso!”, ensejando incidir sobre o processo de reforma eleitoral (IPEA, 2010)

[2] Assim como o campo dos estudos de gênero/feministas são plurais, também o é o campo da Antropologia Feminista, de forte tradição estadunidense. As divisões internas ao campo fogem do foco dessa discussão aqui. Para maiores detalhes sobre o assunto, ver Bonetti (2009).

[3] Parece-me ser este também o uso que se vê correntemente do gênero flexionado no plural: gêneros. Muito embora se pleiteie este uso no sentido de desconstruir os binarismos ocidentais que dotam de sentido a categoria gênero (masculino e feminino), acenando para de existência de outras possibilidades de gênero, penso que ainda não há outros referentes disponíveis no repertório ocidental das convenções de gênero para tanto. Muitos estudos do campo queer tem feito esta opção conceitual, o que penso ser uma armadilha auto-imposta, posto que reforça o equívoco em aparentemente tomar sexo como gênero e vice-versa. (para este uso, ver Butler, 2003).

[4] Laqueur (2001) demonstra que o dimorfismo sexual, enquanto uma categoria biológica tal como a conhecemos hoje, é um construto que remonta aos escritos de Galeno. Para os gregos, havia apenas um sexo, o masculino, sendo o feminino uma versão mal acabada daquele. É a partir da influência do biopoder, difundido por instituições como a biomedicina moderno-iluminista, que surge o dimorfismo sexual.

[5] Para uma reflexão mais consubstanciada desta crítica, ver  Bonetti e  Fontoura (2009). 

[6] O conceito de agência (agency) associa-se ao corpus teórico da Teoria da Prática (em especial Bourdieu, 1978, e Ortner, 2006). Em linhas gerais, tal conceito remete aos desejos, às motivações, às ações dos sujeitos nos processos sociais, e à sua capacidade de fazer escolhas e explicitá-las no seu meio social, que são sempre construídos cultural e politicamente. A abordagem proposta pela Teoria da Prática por meio da utilização do conceito de agência busca evidenciar a interação entre a ação dos sujeitos sociais e a estrutura social, de maneira a compreender os interstícios da reprodução social e as possibilidades de transformação por meio da ação humana.

[7] Tal categoria de análise inspira-se nas reflexões empreendidas por Sherry Ortner e Harriet Whitehead (1981) sobre tomar o gênero, ele próprio, como um “sistema de prestígio”.

[8] O conceito “maternidade militante”, cunhado por Sonia Alvarez (1988), cientista politica especialista em movimentos feministas latino-americanos em geral e brasileiros em particular, para descrever o ativismo politico das mulheres das camadas urbanas de baixa renda em meados da década de 70 e início de 80. Ele é derivativo do conceito “supermadre”, inaugural no campo de estudos sobre mulher e política na América Latina, que foi criado por Elsa Chaney para descrever a experiência de mulheres latino-americanas eleitas para cargos públicos na década de 70, cuja presença na política era legitimada e explicada a partir da extensão de seus papéis de mães (Rakowski, 2003).

 

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
juillet/décembre 2011 -janvier /juin 2012  - julho /dezembro 2011 -janeiro /junho 2012