A evolução econômica e social dos últimos oito anos tem sido favorável à população. Dá esperança e alento na pressão social por redução nos níveis de pobreza e de concentração de propriedade, renda, poder e acesso a direitos da cidadania que, a despeito dos importantes avanços recentes, persistem em forma acentuada na sociedade brasileira.

A era da industrialização brasileira conduzida pelo Estado (1930-1980) produziu o pensamento desenvolvimentista, voltado ao projeto de transformação estrutural da economia, da base agrário-exportadora à urbano-industrial. O que está fazendo o pensamento desenvolvimentista atual?
 
O contraponto ao velho desenvolvimentismo é útil para qualificarmos a pergunta. Com essa finalidade, resgato três de suas características. 
 
Primeiro, defendia-se o principio de que o Estado é necessário para dar eficiência à economia de mercado e para viabilizar uma estratégia de transformação estrutural.  De forma simplificada, pode-se dizer que esse princípio é, de um modo geral, compartilhado pelo desenvolvimentismo na etapa atual.
 
Segundo, defendia-se uma estratégia econômica clara, a industrialização. Pergunta-se: qual é a estratégia atual? 
Terceiro, duas correntes se enfrentavam no que se refere a transformações no campo social: o desenvolvimentismo conservador e o progressista. A vitória da primeira foi sendo garantida por estruturas rígidas de poder e dominação, e foi consagrada pelo Golpe de 1964, tornando-se corrente hegemônica na condução dos governos militares; a outra, que buscava inclusão social pelo trabalho e pela participação popular nos frutos do progresso técnico gerado pela industrialização, prosseguiu na luta política por uma sociedade mais justa, mesmo depois de 1964. Foi premiada com a redemocratização e com a Carta Constitucional, que assegura amplos direitos à cidadania. Pergunta-se: qual a estratégia desenvolvimentista atual, no que diz respeito ao campo social?  
 
No que se refere à primeira das duas perguntas, ou seja, à estratégia no campo econômico, meu diagnóstico da evolução recente e das perspectivas quanto ao futuro é o de que, apesar de políticas macroeconômicas até aqui nem sempre favoráveis ao crescimento, e quase sempre desfavoráveis à competitividade, o país entrou desde meados dos anos 2000 numa nova etapa. Instalaram-se na lógica de expansão da economia brasileira três frentes de expansão, ou três “motores do investimento”, cuja combinação contém forte dinamismo potencial de longo prazo: mercado interno de produção e consumo de massa, infraestrutura (produtiva e social) e recursos naturais. 
 
Não é pouco.  Se considerarmos que uma estratégia de desenvolvimento é o desenho da condução deliberada por governos e atores sociais de um padrão de desenvolvimento viável, pode-se dizer que estamos diante de possibilidades de definição de uma estratégia promissora no campo econômico que não se viam desde que, em 1980, terminou o meio século de crescimento e progresso técnico pela via da industrialização. Depois de mais de duas décadas de estagnação e falta de perspectivas, vem se configurando no período recente um padrão viável de transformações estruturais condutoras do desenvolvimento, centrado na mencionada tríade de motores de investimento. 
 
A potencia dos motores depende, no plano externo, dos desdobramentos da crise internacional; e, no plano interno, depende da estratégia e das políticas a serem seguidas, especialmente no que se refere à adição aos motores de dois “turbinadores” – inovação tecnológica e ampliação de encadeamentos produtivos internos – e ao aumento da taxa de investimento. 
 
Um tratamento inadequado desses motores levará ao desperdício do enorme potencial de expansão da produtividade, renda e emprego por eles representado.  Há, por exemplo, os perigos de que se generalize o formato de enclave no “agrobusiness” exportador, de que os investimentos em infraestrutura se façam com bens de capital e componentes de alta densidade tecnológica majoritariamente importados, e de que o crescimento se faça com continuidade da desindustrialização.  
 
A propósito, vale advertir que o modelo dificilmente se sustentará se for de consumo de massa no Brasil e de produção em massa na China – é necessário que seja de produção e consumo de massa no país. O desempenho insatisfatório da indústria manufatureira desperdiça um espaço nobre de produção e criação de renda e emprego, no qual não só se encontram potenciais ganhos de produtividade e competitividade oriundos da escala da produção em massa e da inovação, mas igualmente um potencial de geração de divisas que permitiria contornar as restrições de balanço pagamentos ao crescimento, tão recorrentes na história econômica brasileira. 
 
O espaço a ser ocupado por políticas governamentais que maximizem as potencialidades e se contraponham às obstruções ao desenvolvimento nacional é enorme. O “novo desenvolvimentismo”, no campo da economia, deve ir muito além da necessária macroeconomia para o crescimento e a competitividade – que, erroneamente, vem monopolizando o debate sobre desenvolvimento – e incluir a esfera da transformação produtiva pela via do investimento e da inovação. 
Passo, agora, a dois comentários sobre a relação entre o campo econômico e o social.  Eles têm o sentido de mostrar que, apesar do fato de que a assimilação dessa relação pelo novo desenvolvimentismo ainda requer muita elaboração, o contexto histórico para avanços é fértil. Considero correta a afirmação de Eduardo Fagnani, coordenador da rede “Plataforma Política Social”, em mensagem recentemente dirigida aos participantes da rede: “A principal hipótese com a qual tenho trabalhado é que essa melhoria no bem-estar é fruto dos ensaios de novo modelo de desenvolvimento que ampliou a convergência entre objetivos econômicos e sociais”. Os dois comentários que se seguem mostram minha afinidade com essa proposição. 
 
O primeiro diz respeito a uma conexão relativamente obvia entre a dimensão econômica e a social do desenvolvimento, que as integra. Como vem sendo reconhecido, o consumo de massa tem sido elemento decisivo na expansão econômica recente, e foi produto de forte aumento da massa salarial e das transferências (para os quais o aumento do salário mínimo foi decisivo), de aumento do crédito popular e de queda nos preços relativos dos bens de salário. 
 
Nem todos os estudiosos de políticas governamentais sabem que a estratégia de crescimento com redistribuição de renda pela via de produção e consumo de massa foi anunciada com todas as letras no Programa de campanha de Lula em 2002 e destacada pelo governo no Plano Plurianual 2004-2007, aprovado em 2003. Por suposto, o que ocorreu desde então nada mais é do que um primeiro passo num longo percurso na direção do atendimento, mais de quarenta anos depois, da proposta que Celso Furtado e outros intelectuais e políticos progressistas fizeram de mudança do modelo, de renda concentrada e consumo de elite para renda desconcentrada e consumo de massa. 
 
O segundo comentário se dirige a um ponto talvez bem mais controvertido. Para além do fato de que houve uma melhoria na distribuição da renda e uma queda substancial nos índices de pobreza, e de que houve ademais um significativo aumento na ocupação e na formalização nas relações de trabalho, o que se pode dizer relativamente ao atendimento dos direitos da cidadania, expressos na Constituição de 1988? 
 
Tem razão Fagnani quando sintetiza a problemática ao dizer que coexistem na sociedade brasileira, desde a promulgação da Constituição, duas tendências de sentidos opostos, que expressam uma tensão entre os paradigmas do Estado Mínimo versus o do Estado de Bem-Estar social. A primeira ganhou impulso entre 1990 e 2002, com o neoliberalismo, e a segunda esboçou reação num quadro de ambiguidades nos primeiros anos dos governos Lula, de 2003 a 2005, e parece ter conquistado espaços mais significativos desde então. 
 
Por um lado, podem-se encontrar indicações de que não se desfez a imensa concentração de propriedade, aumentaram as pressões e o avanço da mercantilização e privatização das políticas sociais, bem como as restrições e captura de fontes de financiamento, e o enfraquecimento do pacto federativo, por exemplo.
 
Por outro, podem-se encontrar evidencias de avanços na direção do fortalecimento das políticas universais, da maior convergência dessas ações com políticas voltadas para o combate da miséria extrema, a consolidação dos avanços institucionais nas políticas de educação e Seguridade Social (saúde, previdência, assistência Social, Segurança Alimentar e Seguro-Desemprego), do estabelecimento de uma política de valorização do salário mínimo, da formalização no mercado de trabalho e da ampliação dos investimentos nas políticas urbanas.
 
A coexistência de tendências contraditórias não deveria surpreender: o momento é de embate entre a afirmação do individualismo de mercado, próprio do neoliberalismo, e a defesa dos princípios da solidariedade e dos direitos, expressos na Constituição de 1988. A clara identificação de uma estratégia de desenvolvimento desejável e viável, em que progressos na economia e na sociedade se façam de forma integrada, fortalece a disputa política e ideológica em favor do projeto de cidadania plena. 
 
Ricardo Bielschowsky , economista, professor  da UFRJ.

 

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