Por Carina Vitral e Cláudia Rodrigues

O distanciamento social de milhões de brasileiros, acarretado pela necessidade de conter a disseminação do coronavírus, trouxe à baila um problema grave que silenciosamente aflige milhares de mulheres e meninas em todo o país: a violência sexual sofrida em ambiente doméstico, portanto cometida por parentes das vítimas, na maioria das vezes os pais e padrastos. Se, por um lado, o ato de ficar em casa evita a proliferação do vírus, por outro facilita a propagação da epidemia da violência, seja ela direta ou indireta, inclusive contra crianças e adolescentes. Por medo, raramente a vítima pede socorro.

Os dados já eram alarmantes antes do covid-19. A cada dois minutos, uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil, sendo que 58% das machucadas pelo machismo dentro de casa são mulheres negras. Em 2018, o país teve recorde de registros de estupros (66 mil vítimas) e de lesões corporais dolosas por violência doméstica (263 mil casos). A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas por aqui. Isso, sem falar que o Brasil, 5º país com maior taxa de homicídios de mulheres no mundo, tem 2 mil órfãos do feminicídio por ano, e São Paulo tem um feminicídio a cada nove dias.

Logo nos primeiros dias de quarentena várias instituições voltadas à proteção das mulheres notaram que a situação de isolamento das famílias em casa seria um facilitador para os criminosos e levaria a números ainda mais trágicos. E o problema tem escala mundial, tanto que o secretário-geral da Organização das Nações Unidas pediu medidas para combater o “horrível aumento global da violência doméstica” em meio à quarentena. Ele lembrou que a violência não se limita ao campo de batalha e que “para muitas mulheres e meninas a ameaça parece maior onde deveriam estar mais seguras: em suas próprias casas”.

Tensões econômicas e sociais provocadas pela pandemia, somadas ao machismo e a restrições de movimento, aumentaram dramaticamente o número de mulheres e meninas que enfrentam ameaças e abusos, em quase todos os países. Na Austrália, o Google registrou o maior número de buscas pelo termo “violência doméstica” dos últimos cinco anos. Na Argentina, as chamadas para o 137, a linha telefônica que atende as mulheres vítimas, aumentaram 120% nos primeiros dias da emergência sanitária. No Brasil, o Ligue 180, que recebe denúncias de violência contra as mulheres, registrou aumento de quase 9% no número de ligações com denúncias desse tipo de ocorrência.

A ONU conclama os governos a fazerem da prevenção e da reparação dessa calamidade uma parte essencial de seus planos de resposta ao coronavírus e recomenda aumentar investimento em serviços online; fortalecer organizações da sociedade civil; garantir que os sistemas judiciais continuem processando os agressores; estabelecer sistemas de alerta de emergência em farmácias e mercados; declarar abrigos como serviços essenciais; criar maneiras seguras para as mulheres procurarem apoio, sem alertar seus agressores; e ampliar campanhas de conscientização pública, principalmente aquelas voltadas para homens e meninos. França e Espanha criaram um sistema de alerta nas farmácias com uma senha secreta pela qual as mulheres acionam um pedido de socorro. Em uma semana, as autoridades francesas registraram alta maior que 30% nas agressões a mulheres.

No Brasil, algumas dessas recomendações estão sendo postas em prática em uma mobilização de forças para amparar as vítimas neste período tão difícil, especialmente aquelas mulheres das camadas de renda mais baixa ou sem renda que residem em favelas, cortiços e outros tipos de moradia onde um grande número de pessoas divide pequenos cômodos, em locais insalubres, sem as necessárias condições para a mulher se proteger das agressões.

Em São Paulo, ao perceber redução de 43% na quantidade de pedidos de medidas protetivas na primeira semana da quarentena – o que não significa diminuição das agressões, ao contrário, os registros vinham crescendo –, o Tribunal de Justiça recomendou aos juízes emiti-las sem necessidade de a vítima apresentar o boletim de ocorrência, que costuma ser feito presencialmente numa delegacia. Pelo fato de os órgãos públicos estarem atendendo em esquema de plantão e com número reduzido de funcionários, o TJ também lançou a Carta de Mulheres, um canal online que se destina exclusivamente a oferecer orientações às vítimas sobre locais de atendimento (como delegacias, casas de acolhimento, Defensoria Pública, ONGs e outros), programas de ajuda e esclarecimentos dos tipos de medidas protetivas existentes. Sob garantia de sigilo, a vítima, ou qualquer pessoa que queira ajudar, acessa e preenche o formulário on-line, para que na sequência uma equipe especializada, que trabalha na Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário, responda às dúvidas.

O Ministério Público de São Paulo, alertado pelo aumento de 50% dos casos de violência doméstica no Rio de Janeiro desde o começo do isolamento, informou à imprensa ter reforçado iniciativas como o Guardiã Maria da Penha, uma parceria com as Guardas Civis em que as mulheres que têm medida protetiva recebem visitas para ver se o agressor está respeitando a decisão judicial. Outra é uma parceria com agentes da saúde que, ao fazer visitas a casas por conta da dengue, acabam verificando sinais de violência doméstica. O MP também informa que a Casa da Mulher Brasileira de São Paulo, no bairro Cambuci, continua em funcionamento durante a pandemia.

O Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi), vinculado à Secretaria de Justiça e de Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, disponibilizou um e-mail e um número de telefone com plantonista que faz a primeira triagem dos casos de violência doméstica durante a quarentena e os encaminha para uma de suas unidades na Capital, Grande São Paulo e litoral. Dependendo da urgência ou gravidade, o caso pode ser direcionado aos plantões oferecidos pelo Ministério Público ou a Defensoria Pública do Estado, parceiros do programa. A Delegacia Eletrônica também começou a fazer registro online desses casos, exceto as queixas por estupros, que ainda precisam ser feitas presencialmente. Por isso, o atendimento presencial prossegue nas 134 Delegacias de Defesa da Mulher do Estado. Portanto, quando a mulher se sentir em risco e não conseguir solução pela internet, ela pode interromper a quarentena e se dirigir a uma delegacia.

Na Câmara dos Deputados e no Senado Federal foram apresentados recentemente vários projetos de combate à violência doméstica. Deputadas e senadoras vêm defendendo a necessidade de o Congresso Nacional apreciar essas propostas concomitantemente às medidas emergenciais econômicas e sociais que já estão sendo aprovadas.

Apesar dessas iniciativas, há muitas reclamações nas redes sociais e na imprensa sobre dificuldade de atendimento às mulheres justamente neste período em que as vítimas mais necessitaram da rede de apoio. Por isso, entidades feministas que têm convívio mais próximo com quem sofre as violências cotidianas também se engajam neste momento crítico. A União Brasileira de Mulheres disponibiliza o número de celular de suas diretoras para que em cada núcleo as vítimas consigam relatar seu drama sem riscos à sua integridade física e tendo a segurança de que a denúncia terá o encaminhamento adequado. Na internet surgem dezenas de movimentos e grupos de apoio que buscam assegurar que as mulheres fiquem em casa na quarentena sem o perigo da violência.

A delegada Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo, diz que a agressão depende do poder e do controle do abusador sobre a vítima. “Quando as pessoas são confinadas em um local por longos períodos, os agressores encontram o ambiente propício para exercer seu poder de intimidação”. Sem falar que as mulheres também ficam privadas de suas estratégias diárias para fugir da relação abusiva, como o ambiente de trabalho e as redes de amigos e familiares. Presas em casa, suas chances de socorro ficam limitadas. Raquel entende que, neste momento, torna-se ainda mais essencial divulgar o 180 e a hipótese de fazer denúncias pela internet.

Quando o Brasil e o mundo tiverem atravessado esse momento tão triste da história da humanidade, a luta contra a violência precisará ser mantida e potencializada na agenda dos governos, do Parlamento e das instituições. Aqui na Capital, além de apoiar as vítimas neste período da pandemia do vírus, nós que lutamos pelos direitos das mulheres e pelo fim do machismo arraigado na sociedade temos ao menos duas tarefas para o futuro imediato. Uma é cobrar do prefeito a efetivação da lei que ele próprio assinou em fevereiro instituindo auxílio-aluguel para mulheres vítimas de violência doméstica que tenham medida protetiva, o que lhes permitirá sair da casa que dividem com os agressores e se mudarem para outro local com os filhos. O prefeito tem 120 dias para regulamentar a nova lei, mas deveria agilizar esse ato que só depende dele. Outra tarefa que nos cabe é monitorar o trabalho da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) – que foi proposta pela então vereadora Sâmia Bomfim (PSOL-SP) – da Violência contra a Mulher instalada pela Câmara Municipal em meados de março.

Carina Vitral é presidenta nacional da União da Juventude Socialista (UJS) e presidiu a União Nacional dos Estudantes (UNE).

Claudia Rodrigues é presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM) na cidade de São Paulo.

Quer saber mais: www.bancadafeministasp.com.br

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