Cultura, Civilização e mal-estar:
as possibilidades spenglerianas de
MacunaíMa e do RetRato do BRasil*
Hugo Ricardo Merlo**
Resumo: Este artigo busca, por meio da análise de Macunaíma (1928), de Mario de Andrade,
e Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, explorar as nuances da recepção do repertório de
ideias, problemas e conceitos discutidos por Oswald Spengler, em seu Declínio do Ocidente
(1918-1922). Objetiva-se fazê-lo por meio da investigação acerca da presença do binômio
Kultur e Zivilization e do organicismo, presentes na obra de Spengler. Ao im, pretendese explorar as possibilidades políticas e éticas que, em parte, resultam desse conjunto de
problemáticas partilhadas.
Palavras-chave: Paulo Prado; Mario de Andrade; Oswald Spengler.
Abstract: This paper aims, through the analysis of Macunaima (1928), by Mario de Andrade,
and Retrato do Brasil (1928), by Paulo Prado, to explore the nuances of the reception of the
repertoire of ideas, problems and concepts discussed by Oswald Spengler on his Decline of the
West (1918-1922). The objective is to accomplish it by investigating the presence of the pair
Kultur-Zivilization and of the organicist view of the social cycle, both present on Spengler’s
work. Finally, the political possibilities and ethical imperatives that may partially be a result of
these shared set of problematics are going to be analyzed.
Keywords: Paulo Prado; Mario de Andrade; Oswald Spengler.
O
histórico da recepção dos dois volumes do Declínio do Ocidente (1918 e
1922), de Oswald Spengler, pode ser indício de uma obra que inluencia uma
geração de intelectuais ou que traduz preocupações gerais de uma época,
ou ainda um pouco de ambos. É inegável, entretanto, que a obra de Spengler tenha
tido uma disseminação amplíssima e colocado na pauta do momento questões como
a tensão entre o binômio Kultur e Zivilization, o organicismo, a teoria do ciclo social e
__________________________________
*
Artigo submetido à avaliação em 2 de abril de 2015 e aprovado para publicação em 16 de maio de 2015.
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do
Espírito Santo e bacharel em História pela mesma Universidade (2013)
**
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
77
Cultura, civilização e mal-estar
78
o pessimismo cultural, em especial.1 A maneira, entretanto, que diferentes intelectuais
recepcionaram e ocuparam-se desses problemas é diferente, tanto em conteúdo
quanto em abordagem. E é possível que cada uma das variantes, nas quais poderia
resultar a combinação desses diferentes processos de seleção e incorporação dessas
problemáticas, veio a concretizar-se. Preocupam-nos, entretanto, neste breve artigo,
as maneiras que dois importantes intelectuais brasileiros absorveram o conjunto das
problemáticas spenglerianas. Esses dois intelectuais – Mario de Andrade e Paulo Prado
– partilham uma série de leituras acerca da herança cultural brasileira em biograias
que se cruzam e obras seminais publicadas no mesmo ano. Entretanto, a inluência da
obra de Spengler contribui, em ambos, para a formação de uma consciência histórica
particular e de um plano de ação política que os aproxima e os diferencia.
Este artigo é um primeiro esforço que deverá repetir-se muitas outras vezes ao
longo de nossa atual pesquisa2 e para nós opera como uma tentativa de síntese: de,
em alguma medida, conferir alguma formalidade a algumas ideias que permeiam o
trabalho que ainda pretendemos fazer. Dividir-se-á em quatro momentos distintos:
num primeiro momento, tentaremos dar conta das aproximações entre Paulo Prado
e Mario de Andrade (ainda que centrados no primeiro);em um segundo momento,
daremos foco na presença d’O Declínio do Ocidente no Macunaíma, de Mario de
Andrade; ao passo que na terceira parte o Retrato do Brasil, de Paulo Prado, será o
foco de nossa análise; e, na quarta e conclusiva parte desse trabalho, pretende-se
mapear algumas aproximações e desencontros entre as obras de Paulo Prado e Mario
de Andrade, no que tange a sua incorporação das problemáticas spenglerianas e suas
respectivas resultantes políticas e éticas.
Biograias cruzadas
Paulo da Silva Prado é de uma geração de intelectuais posterior à famosa geração
de 1870 e anterior à impactante geração de 1930. Nasceu em São Paulo, no ano de
1869, primogênito de Antônio Prado3 e, portanto, principal herdeiro do Império dos
Prado, inluente família de cafeicultores paulistas – alguns alegam ter sido sua família
1
A recepção da obra de Spengler já foi tema de outros trabalhos. Destacamos Spengler e la critica contemporanea,
de Paola Turconi, pelo rigor com que demonstra que a recepção da obra de Spengler por seus contemporâneos teve
um caráter misto – mas predominantemente negativo. Cf. Turconi (1986).
2
O tema geral de nossa pesquisa é o pessimismo (ou o mal-estar) na cultura historiográica brasileira nas décadas
de 1920 e 1930, utilizando como porta de acesso à problemática a obra de Paulo Prado.
3
Antonio da Silva Prado (1840-1929), pai de Paulo, foi um inluente político brasileiro e patriarca do império cafeeiro dos
Silva Prado. Ocupou o cargo de senador do Império, em 1886, e, dois anos depois, tornou-se conselheiro. Contribuiu
com a causa abolicionista e veio a tornar-se, em 1899, o primeiro prefeito de São Paulo, função que exerceu por 12 anos.
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
a mais bem sucedida família de cafeicultores da virada do século XIX para o XX4. Muito
próximo de seu tio Eduardo, foi nele que Paulo Prado teve uma primeira referência
intelectual e a partir dele que fez seus primeiros contatos com alguns outros intelectuais
e artistas da época, a exemplo de Eça de Queiroz, grande amigo de seu tio, e Graça
Aranha, que na época ainda morava na Europa e fez algumas visitas ao apartamento de
Eduardo Prado em Paris. Eduardo Prado foi membro fundador da Academia Brasileira
de Letras e autor de alguns (então) famosos textos que denunciavam atos praticados
pelo governo republicano, do qual foi forte opositor.5 Foi com seu tio Eduardo que
Paulo Prado fez uma viagem à França, nos idos de 1890, importantíssima sobretudo por
ter sido a ocasião que o fez entrar em contato com as vanguardas modernas europeias.
Os trabalhos sobre a obra de Paulo Prado apontam duas principais referências de
duas personagens relevantes para a história da intelectualidade brasileira na formação
historiográica do autor, para além de Eduardo Prado: Graça Aranha e Capistrano de
Abreu, ambos de uma geração anterior a sua.
Não existe nada de muito enigmático ou indiciário na inluência de Capistrano
de Abreu sobre a formação historiográica de Paulo Prado. Este último, em diversas
ocasiões ao longo de sua carreira intelectual, atribuiu àquele a alcunha de “mestre”.
Foi forte e nomeadamente inluenciado por Capistrano que Paulo Prado escreveu e
publicou, em 1922, seu primeiro esforço historiográico, Caminho do Mar. E foi Paulo
Prado quem, na ocasião da morte de Capistrano de Abreu, em agosto de 1927, presidiu
a reunião que fundou a Sociedade Capistrano de Abreu, “no propósito de prestarem
homenagem à sua [de C.A.] memória”.6 A obra de Capistrano de Abreu foi sobre onde
a obra de Paulo Prado, numa dimensão historiográica, sedimentou-se.
Graça Aranha – amigo pessoal de Paulo Prado, considerado, a altura de 1922,
um proto-modernista –,7 por sua vez, parece ter sido uma inluência igualmente
importante; importante, pois, é em larga medida a partir d’A estética da vida – e a
similitude do argumento central, para além do comprovado conhecimento que Paulo
Prado tinha da obra de Aranha, é enorme e permite a airmação – que Paulo Prado “se
ressente, no seu Retrato do Brasil, da ausência de uma inalidade estética ou moral ou
religiosa nos empreendedores da empresa colonizadora no Brasil” (DUTRA, 2000, p.
242), da mesma maneira que Graça Aranha o faz anos antes.
4
Sobre o assunto, reforço a sugestão de Carlos Berriel, em sua tese de doutoramento acerca do pensamento de
Paulo Prado, muito presente neste trabalho. Cf. Levy (1977).
5
Ver suas obras Os fastos da ditadura militar no Brasil (1890), Anulação das liberdades públicas (1892) e A ilusão
americana (1893), todas em domínio público.
6
Trecho dos Estatutos da Sociedade Capistrano de Abreu, 11 de setembro de 1927. Documento pertencente
ao “Fundo Sociedade Capistrano de Abreu” do Instituto do Ceará. Sobre a Sociedade Capistrano de Abreu e a
importância da participação de Paulo Prado em sua constituição Cf. Silva (2006).
7
Um “protomártir da nova era”. Cf. Waldman (2010).
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
79
Cultura, civilização e mal-estar
80
A percepção, primeiro, de que a experiência colonial e formativa da nação e povo
brasileiros é deinidora, em alguma proporção, do atual estado do país e da cultura
brasileira, não é inédita. Muito menos, em segundo lugar, a sensação (e por sensação,
reiro-me a algo não necessariamente sistemático ou sistematizado) de que há algo de
errado com a nação brasileira, nas primeiras décadas do século XX, é algo nova. A ideia
de que não existe uma conluência entre os requisitos necessários para a formação
de um povo e de uma nação forte e o processo colonizador, como se deu, no Brasil,
marcado pela “ausência de uma inalidade estética ou moral ou religiosa” também já
era dada. A inluência da geração 1870 não é suiciente para explicar a proporção em
que o Retrato do Brasil, quando publicado em 1928, foi celebrado e comentado. Para
entender onde reside a importância e originalidade da obra é necessário analisar seu
processo de germinação dentro do Modernismo.
E é no Modernismo que as trajetórias de Mario de Andrade e Paulo Prado se
cruzam, muito por intermédio de Graça Aranha, que apresentou Paulo Prado a Di
Cavalcanti após, em vinda ao Brasil, no ano de 1920, ir a uma mostra deste. Paulo
Prado e Mario de Andrade, dentre outros modernistas, conheceram-se de tabela.
Mario, também nascido em São Paulo, no ano de 1893, dispensa grandes introduções.
Foi um polímato autodidata, tendo tido educação formal apenas em Música, no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. É conhecido por seu trabalho como
folclorista, musicólogo e, principalmente, poeta e romancista. Entre os pesquisadores
da geração Modernista, por sua vez, Mario de Andrade é conhecido pelo paraíso
epistolar que construiu ao longo de uma vida intelectual extremamente ativa e por
ocupar o papel de grande articulador do movimento modernista. Mario foi membro
do Grupo dos Cinco e um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922.
Junto a Oswald de Andrade, galgariam o lugar dos principais nomes da primeira
geração do Modernismo, muito por mérito de ambos em convencer os outros de
que, de fato, teriam o sido.
Foi na Semana de 1922 que a relação entre Paulo Prado e os modernistas se
selaria de uma vez por todas. Paulo Prado já havia atuado como mecenas de outras
mostras e exposições, duas delas sediadas no Teatro Municipal de São Paulo. Gestada
em sua casa, em Higienópolis, a Semana de Arte Moderna de 1922 o teve como principal
inanciador. Paulo Prado não apenas doou de seu dinheiro: mobilizou cunhados e
outras iguras abastadas dos círculos cafeicultores de São Paulo para que também
ajudassem inanceiramente na realização da Semana. É responsável por insistir na ideia
de que a Semana devesse ser algo monumental.
Paulo Prado foi também um colecionador de arte. Tinha, dentre inúmeras
obras, algumas de Brecheret, de Anita Malfatti, de Portinari e de Tarsila de Amaral. Di
Cavalcanti, em certa circunstância, desabafa a Mario e Oswald de Andrade:
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
não é vergonha ser pobre e ser boêmio, digam logo a Paulo Prado que me
falta dinheiro para pagar o hotel, e que ele compre uns desenhos meus, um
quadro, o que ele quiser, para me sustentar aqui em São Paulo, por um mês
(DI CAVALCANTI apud WALDMAN, 2010, p. 83).
Paulo Prado também inanciou viagens de vários dos modernistas a Europa e
foi quem bancou a vinda de Blaise Cendrars ao país. Em suma: Paulo Prado muito
mais do que inanciou a Semana de Arte Moderna de 1922; foi ele um dos principais
inanciadores do Modernismo paulista, como um todo.
Ainda que esse argumento sociológico seja, talvez, suiciente para justiicar a
importância da igura de Paulo Prado e de sua obra, é ainda mais importante para
este trabalho destacar que, como veremos na parte inal deste artigo, Paulo Prado
engajou-se no Modernismo paulista e produziu sua obra imbuído de uma genuína
inquietação intelectual acerca dos problemas nacionais. Mario de Andrade, em seu
balanço memorialístico, O Movimento Modernista, comenta, em alguns trechos, a
postura do autor, tal como no que se segue:
[...] o movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo seu carácter
de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu
internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua
gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia
do espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena burguesia o temessem.
Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual
paulista, era uma das iguras principais da nossa aristocracia tradicional. Não
da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais antiga, justiicada
no trabalho secular da terra e oriunda de qualquer outro salteador europeu,
que o critério monárquico do Deus-Rei já amancebara com a genealogia. E foi
por tudo isto que Paulo Prado poude medir bem o que havia de aventureiro
e de exercício do perigo, no movimento, e arriscar a sua responsabilidade
intelectual e tradicional na aventura (ANDRADE, 1978, p. 236-237).
Mario de Andrade e Paulo Prado mantiveram uma relação de amizade e
admiração mútua até a morte deste, em 1943. Além de se envolverem na publicação
de alguns periódicos de divulgação de arte moderna juntos, publicaram no mesmo
ano suas duas mais importantes obras: Macunaíma e Retrato do Brasil, ambas de 1928.
As duas obras partilham mais do que o ano de publicação, o que levaria
Oswald de Andrade airmar, em conhecida passagem, que o Retrato é o “glossário
histórico” de Macunaíma: partilham de uma cosmovisão sobre as civilizações e de
uma leitura orgânica da cultura brasileira. Sem nos alongarmos em descrever aqui
minuciosamente as similitudes de obras que foram elaboradas simultaneamente e
sob um possível e frutífero contato entre os autores, proponho que, a partir do escopo
aberto pela recepção da obra de Oswald Spengler possamos identiicar alguns dos
aspectos centrais nos quais Macunaíma e Retrato do Brasil colidem – em conluência
ou em dissonância.
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
81
Cultura, civilização e mal-estar
Macunaíma e o Declínio do Ocidente
82
Antes de irmos direto a análise do texto, três observações pontuais. A primeira
diz respeito a nossa abordagem da obra de Mario de Andrade. Não se trata de uma
abordagem comprometida com o objetivo de fazer jus as intenções do autor. Encaramos
Macunaíma muito mais pelo que a obra pode ser do que pelo que ela é. Nesse sentido,
optamos por entender o romance como também (mas jamais unicamente) uma alegoria
da formação nacional. O autor já refutou interpretações que reduzissem o romance a
uma representação da formação do povo ou da nação brasileira - dizendo, inclusive,
que Macunaíma é muito mais venezuelano do que brasileiro8 - mas para nós a intenção
autoral não é o foco. A segunda refere-se à origem das linhas gerais da análise que se
seguirá. Devemos, e em grande parte reproduzimos, às ideias presentes no trabalho
sobre a dimensão ilosóica de Macunaíma do professor Carlos Ornelas Berriel. Isso
porque consideramos que seja um trabalho mais completo, mas, sobretudo, mais
conluente com nossa própria leitura da obra de Mario de Andrade sob o viés da
inluência de Spengler. Uma leitura da obra crítica de Gilda de Mello e Souza, posterior
a redação inicial deste artigo, reforça as opções interpretativas feitas neste trabalho,
ainda que o foco da autora em suas obras, sobretudo em O tupi e o alaúde, sejam muito
distintos dos nossos. A terceira é que tomamos a liberdade de desvirtuar sutilmente
o conceito de repertório, utilizado pela professora Ângela Alonso, quando analisa a
geração de 1870. Pode-se deinir um repertório como sendo
o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo
tempo. É composto de padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos;
teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; iguras de linguagem;
metáforas (Swindler, 1986). Não importa a consistência teórica entre seus
elementos. Seu arranjo é histórico e prático (ALONSO, 2002, p. 39).
Dizemos que desvirtuamos o conceito porque o utilizamos aqui de maneira muito
descompromissada, pouco rígida, na tentativa de fugir de uma análise radicalmente
sincrônica desses intelectuais-objetos que termine por encerrar suas possibilidades de
criação a um “léxico”, ou a um repertório dado.
Nesse sentido, a obra de Spengler, sem dúvida, faz parte do repertório da
geração modernista. Nas palavras de Menotti del Picchia:
8
“O próprio herói do livro que tirei do alemão de Koch-Grünberg, nem se pode falar que é do Brasil. É tão ou
mais venezuelano como da gente e desconhece a estupidez dos limites pra parar na ‘terra dos ingleses’ como ele
chama a Guiana Inglesa.Essa circunstância do herói do livro não ser absolutamente brasileiro me agrada como o
quê. Me alarga o peito bem, coisa que antigamente os homens expressavam pelo ‘me enche os olhos de lágrimas”
(ANDRADE apud SOUZA, 2003).
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
O mundo sofrera um cataclismo. A revolução da técnica anunciada por
Keyserling fazia, após a guerra, desmontar-se o velho cenário europeu como
um fundo de teatro cujos autores iriam representar outra peça. Spengler
registrara a queda dessa velha civilização sobrevivendo espectralmente a um
tipo de cultura já morto. [...] Para dar consciência a essa revolução é que um
grupo de artistas de São Paulo realizou, em 1922, a hoje histórica “Semana de
Arte Moderna”. Foi esse o marco divisor entre duas mentalidades, ou melhor,
o início consciente de uma nova quadra de civilização (DEL PICCHIA apud
BERRIEL, 1987, p 185, grifo nosso).
A apropriação da problemática spengleriana em Macunaíma acontece,
sobretudo, em dois aspectos. O primeiro é o princípio de que as sociedades e culturas
operam como (ou de fato são) organismos vivos e que, portanto, respeitam a um ciclo
vital entre suas gêneses e os ins necessários de suas existências:
O primeiro plano visível de toda a história é o que se produziu em consequência
do processo de devir. À visão histórica, esse último somente se revelará onde
as formas políticas ou econômicas, as batalhas ou as artes, as ciências ou as
divindades, a Matemática ou a moral forem símbolos, expressões de uma alma.
Todas as coisas transitórias são apenas símbolos. O transitório é símbolo de
uma evolução orgânica, de um organismo. As culturas são organismos. Quem
izer desilar, diante do seu espírito, as formas dessas culturas conseguirá
descobrir a protoforma da cultura, que como ideia formal serve de fundamento
a todas as culturas particulares e suas realizações, por diferentes que sejam
(SPENGLER, 1973, p. 94).
Sobre esse primeiro aspecto, deve-se dizer que é fundamental para a ilosoia da
história spengleriana9, pois é sobre esse princípio de ciclo que se assenta sua ideia de um
declínio do ocidente, ou seja, do declínio de uma Civilização ocidental, desabrochada
nos idos de 1000 E.C., que já encontra-se próxima ao inal do seu ciclo vital. Trata-se,
também, de uma reação às grandes narrativas que buscavam explicar toda a história da
humanidade a partir de uma grande princípio explicativo, um Zusammenhang, que não
levaria em conta os nascimentos e declínios de cada cultura e civilização. O objetivo de
sua História Universal das Civilizações, como mencionado acima, não é o de encontrar
um grande sentido para A História de todas as civilizações, mas encontrar um sentido
fundamental que se manifesta em todas as histórias de todas as culturas e civilizações:
sua protoforma. É a partir do que Spengler chama de método morfológico de Goethe
que sua análise das culturas se pautará – método cuja função o autor determina ser a
de “distinguir o que é necessário e essencial, morfologicamente, e o que não passa de
mera casualidade” (SPENGLER, 1973, p. 95).
Quando falamos numa ilosoia da história spengleriana, nos referimos unicamente ao que Spengler propôs até
a publicação do segundo volume do Declínio do Ocidente. Como é natural, suas ideias, sobre muitos dos aspectos
de sua obra aqui destacados, mudaram ao longo do tempo. Sobre o Spengler mais maduro, Cf. D’Onofrio (1995)
e Farrenkopf (1991a).
9
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
83
Cultura, civilização e mal-estar
O segundo aspecto é o uso do binômio Cultura (Kultur) e Civilização
(Zivilization) como chave de compreensão para o nascimento, evolução e declínio
dos fenômenos culturais e civilizacionais. Para Spengler, existem dois pólos de um
espectro entre os quais oscila uma Cultura/Civilização: Alma e Mundo, sendo a Alma
o lócus do originário, da Cultura, da onde emana a verdadeira identidade e vigor de
um povo; e o Mundo, lugar da Civilização, do racional, do universalizável, o lugar das
culturas em declínio, vazias de uma força vital. O quadro que o autor elabora é útil
para localizar seus conceitos:
Quadro 1 - Esquema-compêndio da tese de Spengler
84
Fonte: Spengler (1973, p. 106-107).
O destino de toda Cultura é tornar-se Civilização e deixar de existir. Trocando
por miúdos: na medida em que uma Cultura, original e pujante, avança, ela caminha
em direção às cidades, às máquinas, ao cosmopolitismo, ao racionalismo, à ciência, à
crítica, enim, deixa de ser Cultura e torna-se Civilização – deixa de ser fonte de vida e
torna-se prelúdio de morte.
Macunaíma respeita, em grande parte, esses princípios. O herói sem nenhum
caráter é um homem, ainda que um homem dotado de alguma magia, capaz de
metamorfosear-se, dentre outras habilidades pouco convencionais para um humano.
E, sendo um homem, é um organismo fadado a deixar de existir em algum momento
(entretanto, como veremos a frente, Macunaíma perde uma oportunidade de escapar
do fardo da morte). A jornada de Macunaíma é uma jornada compreendida entre seu
nascimento, às margens do Uriracoera, e sua morte, feito em tradição e transformado
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
na Ursa Maior. Sua epopeia é marcada por uma crescente proximidade geográica com
São Paulo,10 ícone civilizacional – europeizado – no Brasil, e um crescente movimento
civilizatório pelo qual passa o herói. Macunaíma sai da Kultur em direção a Zivilisation.
O herói nasce nas margens do Uriracoera, passa seus seis primeiros anos de idade
sem nada falar. E quando estimulado a falar alguma coisa Macunaíma diz seu mote: “Ai!
que preguiça!”, expressão que indica seu duplo acometimento pela morosidade.11 Sua
infância se segue com uma série de ilustrações sobre sua falta de qualquer moralidade
“civilizada”: Macunaíma chora toda noite e não deixa os de sua tribo dormir, trai o
irmão, faz hora com a mãe, rouba, mente e atrapalha todos que estão ao seu alcance.
Depois de fazer com que sua mãe, uma senhora idosa, deixasse de trabalhar
para carregar ele e os mantimentos da família para lá e para cá, Macunaíma é punido,
deixado por sua mãe num capoeirão de nome Cafundó do Judas, onde não poderia
crescer. Com fome, o herói sai a procura de comida e de seu povo, e, quando enganado
pelo Curupira, que desejava comê-lo, Macunaíma é salvo por sua preguiça de seguir
as instruções dadas pela entidade que o levariam a uma armadilha. Contando essa
história para a cotia, uma senhora de algum poder mágico, a “vó” – como ele a chama
– alega que a atitude de Macunaíma não é coisa de curumim (culumi) e decide igualar
o corpo com o “bestunto”, seu entendimento:
Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a
lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a
cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou
corpo. Foi desempenando crescendo fortiicando e icou do tamanho dum
homem taludo. Porém a cabeça não molhada icou pra sempre rombuda e
com carinha enjoativa de piá (ANDRADE, 2013, p. 21).
Macunaíma não se desenvolveu como um organismo saudável se desenvolveria.
Seu crescimento foi acelerado, artiicial, produzido. Sua cabeça, totem de seu intelecto,
não foi atingido pelo caldo envenenado e permaneceu a mesma cabeça de criança
que antes era. Como veremos mais a frente, existe um paralelo muito direto entre o
desenvolvimento do “organismo” Macunaíma e do “organismo” nação/povo Brasileiro, no
Retrato do Brasil, de Paulo Prado. Para este, a exaustão do empreendimento colonizador
imporia sobre a nação brasileira a condição de um envelhecimento sem mesmo ter
amadurecido, sintoma de uma má formação nacional e origem do mal da nação.
Em uma outra passagem, o herói sem nenhum caráter, junto aos irmãos Jiguê e
Maanape, parte para a jornada em direção a São Paulo, em busca de reaver o muriaquitã,
A grande cidade é um espaço muito signiicativo para Spengler. Sobre o assunto, Cf. Schorske (2000).
O som de “aique”, em alguns dialetos indígenas, representa preguiça. Por esse motivo, corre a informação de que
Mario de Andrade teria feito um jogo de linguagem e que o mote “Ai, que preguiça!” seria o sinal de uma dupla
condição “preguiçosa”: “Aique” e “preguiça”.
10
11
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
85
Cultura, civilização e mal-estar
dado a Macunaíma por Ci, Mãe do Mato e sua grande paixão, e agora em posse de
Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente. No meio do caminho,
uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma
se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das
piranhas tão vorazes que de quando em quando, na luta pra pegar um naco
de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro e mais. Então
Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a
cova era que nem a marca dum pé gigante. Abicaram. O herói depois de muitos
gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água
era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do
tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira.
Quando o herói saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água
lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um ilho
da tribo retinta dos Tapanhumas (ANDRADE, 2013, p. 38).
86
Feito branco de olhos claros, Macunaíma iniciara seu caminho em direção a
Civilização. Perdera sua isionomia de “preto retinto” e agora não havia nada em sua
aparência que indicasse que era ilho do medo e da noite, um Tapanhumas. O herói,
daí em diante, se familiarizaria com o uso do dinheiro e, gradualmente, das inúmeras
máquinas (máquina roupa, máquina sapato, máquina telefone, máquina garrucha, etc.)
que os homens de São Paulo utilizavam. Talvez o momento mais poderoso e marcante
da transição de Macunaíma entre os polos Cultura e Civilização aconteça no capítulo IX,
Carta pras Icambiabas. A diferença na fala do herói, antes e depois da carta é notória:
antes dela, Macunaíma falava o português falado; depois, fala o português escrito.
A mudança de linguagem do personagem é tão signiicativa quanto a mudança
do estilo narrativo. Carlos Berriel chama atenção para esta última quando analisando
o capítulo V, Piaimã: “A mudança de cenários que ocorre neste capítulo, quando
Macunaíma abandona o lócus primitivo pelo urbano-industrial representa também
uma alteração no estilo narrativo: a ‘bricolage’ do folclore cede lugar a um intermitente
expressionismo” (BERRIEL, 1987, p. 96).12
Para ilustrar o encontro de Macunaíma com a Civilização, vale chamar atenção
para mais uma passagem da rapsódia andradiana, no capítulo V, quando o herói encontra
sua “inteligência perturbada” pelo cenário da cidade. Macunaíma não compreende a
relação dos homens com a Máquina. Confunde-a com Tupã, com os Deuses. Decide
12
O capítulo é referenciado como centro da obra por vários outros críticos que se debruçaram ainda mais
cuidadosamente sobre o Macunaíma. Gilda de Mello e Souza, entende, também, o capítulo como eixo na jornada
de Macunaíma, no qual a segunda parte da dupla narrativa do livro começa a se delinear - a subversão da “busca”
do graal cristão pela constante fuga que faz Macunaíma seguir em frente com sua jornada de recuperação do
muriaquitã, consiste na sucessão dos acontecimentos que precedem a segunda perda do artefato e o desfecho
do romance. O mais fundamental é a discordância entre esses críticos frente ao processo de feitura da obra - em
bricolage ou composto como uma rapsódia de suítes populares. Para um insight mais profundo no processo de
composição da obra de Mario de Andrade, cf. Campos (1973) e Souza (2003).
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
que, a im de tornar-se “imperador dos ilhos da mandioca”, os paulistas, tentaria o
mesmo que fez com Ci, brincaria com a Máquina. Mas percebeu que a máquina não
era Deus não, nem mulher, como ele gostava. Ficou então “maquinando nas brigas sem
vitória dos ilhos da mandioca com a máquina”:
A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam
na Máquina... Constatou pasmo que os ilhos da mandioca eram donos sem
mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz
de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite,
suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:
– Os ilhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta
luta. Há empate.
Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos
porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia
de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só
porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade
do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha
uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens.
Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez
e teve uma satisfa mãe (ANDRADE, 2013, p. 42).
Macunaíma viria a desenvolver a mesma relação desmistiicada com a máquina
que os homens de São Paulo. Viria a entender a Técnica como soberana, como o meio
para dominar a Natureza. Mas, no momento em que, ainda às margens da civilização,
o herói tenta compreender a máquina, ele
aproxima-se da conclusão de Spengler: “precisamente por isso, o homem
faustiano converteu-se em servo da sua própria criação. Seu número e a
disposição da sua vida são obrigados pela máquina a seguirem uma trilha na
qual não há descanso nem possibilidade de retrocesso. [...] O mundo econômico
da indústria mecanizada requer obediência do industrialista tanto como do
operário de fábrica. Ambos são escravos e não donos da máquina, que só agora
demonstra o seu secreto e diabólico poder” (BERRIEL, 1987, p. 99).
Macunaíma termina por recuperar o muriaquitã e tomar seu rumo de volta às
margens do Uraricoera. Antes de concluir sua jornada, Macunaíma é vítima da vingança
de Vei, que o empurra para dentro da lagoa onde se encontra Uiara, lugar em que
o herói acaba parcialmente devorado por piranhas, mutilado, e perde, novamente, o
muriaquitã. Depois de envenenar a água, matar os peixe e procurar o amuleto em suas
entranhas sem sucesso, Macunaíma é acometido por uma tristeza enorme (“um banzo
solitário”), desiste de ir atrás do muriaquitã e sobe aos céus numa grande planta. Lá,
o herói é feito tradição quando transformado na constelação da Ursa Maior por PauíPódole, o Pai do Mutum.
Vei, a Sol, é mote de várias guinadas no enredo da história. Em um dado
momento, Macunaíma, após ter um favor realizado por Vei, promete a ela que se
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
87
Cultura, civilização e mal-estar
casaria com uma de suas ilhas. Vei é a representação do clima tropical, é a força do sol
que move as culturas tropicais. Macunaíma, entretanto, trai Vei (o que posteriormente
lhe renderia a represália que o faria perder o muriaquitã pela segunda vez) e leva
para a jangada em que ela havia o deixado uma portuguesa, com quem é pego
“brincando” pelas três ilhas da Sol. Vei então, os pune, jura vingança ao herói e diz:
“– Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas ilhas e havia de ser
sempre moço e bonitão. Agora você ica pouco tempo moço talqualmente os outros
homens e depois vai icando mocetudo e sem graça nenhuma” (ANDRADE,2013, p.
68). Macunaíma escolheu a Civilização européia ao invés das ilhas do clima tropical,
da Sol, e quando o fez, abriu mão da imortalidade. Se Macunaíma é a representação
da cultura ou do povo brasileiro, talvez seu grande erro tenha sido optar pelos moldes
da sedutora civilização européia decadente ao invés de abraçar as características que
são parte de sua Cultura e que, portanto, são fonte de sua vida e de sua originalidade
– o único meio pelo qual uma cultura pode alçar vôos mais altos, entre as grandes
culturas de sua época.
Retrato do Brasil e o Declínio do Ocidente
88
A ilosoia das civilizações de Spengler é pessimista, ou, na melhor das hipóteses,
fatalista.13 Ela parte de uma leitura da realidade em que as culturas resultam em
civilizações e em que instintos e almas caminham em direção a críticas e mundos. Nas
palavras do próprio autor:
Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu
estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma
forma surgir em meio ao informe; quando algo limitado, transitório, originar-se
no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente
restrita, ao qual se apega, qual planta. Uma cultura morre, quando essa alma tiver
realizado a soma de suas possibilidades, sob a forma de povos, línguas, dogmas,
artes, Estados, ciências, e em seguida retorna a espiritualidade primordial. [...]
Alcançando o destino, realizada a ideia, a totalidade das múltiplas possibilidades
intrínsecas, com a sua projeção para fora fossiliza-se repentinamente a cultura.
Deinha-se. Seu sangue coagula. Seu vigor diminui. Ela se transforma-se em
civilização (SPENGLER, 1973, p. 96, grifo nosso).
13
Pessimista, aqui, não tem nenhum caráter pejorativo. Diz respeito apenas a uma leitura crítica e desesperançosa da
realidade ou de uma realidade passada – o oposto de uma leitura otimista. Frequentemente, ver-se-ão pessimistas
rechaçando o rótulo em prol de “realista”. Para nós, no uso corrente, são duas palavras para uma mesma postura:
uma que dá o real tom de uma leitura da realidade e outra que é mais eufemista. O caráter fatalista ou o pessimismo
da obra de Spengler é um consenso partilhado desde as primeiras críticas ao volume um do Declínio. Cf. Nicholls
(1985); Farrenkopf (1991b); e Cho (1999), dentre os disponíveis para acesso na internet.
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
O Declínio do Ocidente é precisamente o declínio de nossa cultura, já fossilizada
e desprovida de seu vigor vital, em civilização. O Retrato do Brasil é também uma
leitura pessimista, ainda que da cultura brasileira. Na obra de Paulo Prado não opera
com tanta idelidade, entretanto, o princípio da relação entre Kultur e Zivilisation,
como em Macunaíma, para a leitura da realidade brasileira. Por inluência de seu tio
Eduardo e de Fradique Mendes, Paulo Prado partilha com Spengler a ideia de que a
cultura européia é uma cultura velha e decadente e que não responde aos problemas
brasileiros – até atrapalha a solucioná-los. A mesma ideia é presente em Macunaíma,
mas, nesse caso, parte da noção de que uma Cultura não deve importar para si traços
de uma Civilização.
Jefrey Herf, em sua obra Modernismo Reacionário, destaca acerca da incorporação
de projetos culturais e tecnologia estranha a cultura germânica, em Spengler:
Em Preussetum und Sozialismus (Prussianidade e Socialismo), publicado em
1919, a tarefa que Spengler propusera a si mesmo era “libertar de Marx o
socialismo alemão”, bem como demonstrar que “o antigo espírito prussiano e
os valores socialistas”, hora diametralmente opostos, podem se revelar “uma
e a mesma coisa”. Sua reformulação da ideia de socialismo correspondia a
desviá-la da “Zivilization”, associado ao Ocidente, a Inglaterra e aos judeus,
para dentro do mundo alemão da Kultur. A forma desse procedimento simples
era idêntica àquela da incorporação da tecnologia à retórica da direita do pósguerra (HERF, 1993, p. 64).
Esse raciocínio muito se aproxima da lógica de incorporação da modernidade
européia pelos Modernistas paulistas: a lógica da Antropofagia.14 Mas quando
o problema de uma cultura reside em sua formação e não existe referência a uma
originalidade prévia à experiência colonial, a lógica Antropofágica como sintetizada
por Oswald de Andrade, ou seja, a de passar a civilização ou a técnica europeia pelo
iltro da cultura brasileira, não funciona.15 Para melhor compreendermos a incorporação
do conjunto de problemáticas levantadas por Spengler e a resposta de Paulo Prado a
esses problemas, devemos fazer um breve panorama do Retrato sobre dois vieses: 1 – a
presença constante de referências a cultura brasileira como um organismo e, portanto;
2 – uma percepção de que o desenvolvimento das civilizações é parte de um ciclo de
surgimentos e desaparecimentos.
14
Discutir a maneira como opera a Antropofagia como mecanismo de emulação ou transculturação de um repertório
de problemas estrangeiros nos demandaria tempo e espaço que não podem ser comportados por esse breve artigo.
Um segundo trabalho que trata mais especiicamente da utilização da ideia de poética de emulação, tal qual proposta
pelo professor João Cezar de Castro Rocha, como chave explicativa desses diferentes processos de apropriação já
está no prelo para publicação nos anais do I Colóquio Internacional de Mobilidade Humana e Circularidade de Ideias,
ocorrido na Ufes entre os dias 6 e 8 de julho de 2015, sob o título de “Mímesis, Antropofagia e Emulação”.
15
Este é precisamente o ponto no qual toca uma crítica histórico-cientíica contemporânea, a exemplo da crítica
de Manfred Schroeter, que ataca, dentre outros aspectos do pensamento “biologicista” de Spengler, sua dimensão
a-histórica. Ver Turconi (1986).
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
89
Cultura, civilização e mal-estar
90
Retrato do Brasil é um livro diferente da produção anterior de Paulo Prado em
vários sentidos. O aspecto em que se diferencia da obra prévia do autor que é mais
importante para esse texto é seu tom. Ao passo que os artigos reunidos na Paulística,
em 1925, e mesmo nas edições posteriores, são muito mais preocupados com a solidez
analítica de uma descrição mais minuciosa de um ponto de vista historiográico, o
Retrato tem um caráter mais ensaístico, mais solto, mais politicamente comprometido.
Sua abordagem “impressionista”, como nos diz Paulo Prado em seu Post-scriptum, é
precisamente uma abordagem da experiência formativa colonial e pós-colonial que
não se ocupa de limites precisos, mas, tomando a liberdade de levar a proposta do
autor mais afundo, ocupa-se das impressões, das grandes mudanças de luz. Paulo
Prado está preocupado não com os fatos e as datas especíicos, mas com os traços
gerais de nosso produzir-se como nação.
A tese geral expressa no livro é a de que nossa experiência colonial encontrou
na luxúria e, em seguida, na cobiça, as forças que a moveram. Levadas as últimas
consequências, essas forças – dois pecados capitais – teriam exaurido o povo brasileiro
de todas as suas energias e dado o traço marcante de nossa civilização, a tristeza ou
melancolia. Ao im da nossa experiência colonial, havíamos envelhecido sem amadurecer:
era uma Cultura que havia se tornado Civilização sem explorar suas possibilidades vitais
(note que em Paulo Prado essa nomenclatura é escarçamente utilizada e que Cultura
e Civilização não tem os mesmos valores, positivo e negativo, respectivamente, que na
obra de Spengler). O livro é dividido em quatro capítulos e um Post-scriptum que se
dispõem da seguinte forma: 1 - Luxúria, 2 - Cobiça, 3 - A tristeza e 4 - O Romantismo.
Os dois primeiros referem-se às duas forças que movem os colonizadores e permeiam
nossa experiência formadora; o terceiro, ao traço marcante da identidade do povo
brasileiro e resultado desse processo colonial; o quarto, ao o grande mal que encontraria
terreno fértil entre uma cultura triste e agravaria nossa melancolia, e, por último; um
Post-Scriptum que arredonda algumas questões como a racial e a política.
A abertura do capítulo primeiro, sobre a Luxúria, sintetiza com muita clareza
a proposta de Paulo Prado. Reproduzimos essa passagem aqui para entrarmos,
propriamente na obra:
Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os
descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido
dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominam
toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição
do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a renascença izera
ressuscitar (PRADO, 2012, p. 39).
Os colonizadores são homens renascentistas. Para Paulo Prado, isso signiicava
que eram homens libertos do fardo moral da Idade Média e que se projetavam
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
para os valores dos antigos. Esses homens vieram de uma metrópole já decadente e
encontraram, na descoberta do novo mundo, as condições de exercício de seus excessos
em três fronts, que são os da ambição de “poderio, saber e gozo” (PRADO, 2012, p.
39). E o izeram. O clima quente, a nudez das índias e (posteriormente) a inocência
das negras seriam incentivadores desse exercício de liberdade sexual. A entrega do
colonizador a essas pujanças viria a produzir todo tipo de degeneração sexual, tais
quais a homossexualidade e a pederastia (PRADO, 2012, p. 56-59) e, naturalmente,
produzir uma nova raça, mestiça (arrisco dizer que, para o autor, inapropriadamente
mestiça), a raça brasileira. Só que “post coitum animal triste, nisi gallus qui cantat”16
(PRADO, 2012, p. 97), como nos diz o adágio médico citado por Paulo Prado, e desse
exercício de libertinagem e de erotismo, o povo brasileiro saiu cansado, mestiço e
enfraquecido. Ecoou, na America portuguesa, a depravação e desmoralização que já
havia tomado a metrópole.
Do desbragamento sexual para a sede de ouro foi um passo muito curto: “dessa
paixão [a sensualidade exacerbada], outro sentimento surgia na alma do conquistador
e povoador, outro sentimento extenuante na sua esterelidade materialista: a fascinação
pelo ouro [...]” (PRADO, 2012, p. 96). E, como escreve Gonçalves Dias, “se subiram
tantos montes, [...] se exploraram tantos rios, [...] se descobriram tantas terras, [...] se
avassalaram tantas tribos; dizei-o, e não mentireis: - foi por cobiça” (PRADO, 2012,
p. 64). Aí, Paulo Prado discorda de sua leitura anterior sobre o bandeirante, principal
(mas não único) portador da cobiça colonizadora. Não eram espíritos verdadeiramente
empreendedores como haviam sido retratados na Paulística, ou como os disciplinados
colonizadores norte-americanos; tinham uma insaciável cobiça, uma sede de ouro
que não haverá se visto antes. O empreendedorismo se foi junto com as bandeiras,
enterrados, lado a lado, pela cobiça, a mesma que os fez nascer. Foram quase dois
séculos de buscas pelo ouro que acabaram com o que havia restado da energia do
colonizador. E então o povo brasileiro foi tomado pela tristeza.
A palavra mais adequada para esse traço fundamental da nossa cultura talvez
seja “melancolia”, palavra esta que Paulo Prado também utiliza. A melancolia é um
estado psíquico, não meramente um sentimento ou uma postura com a qual se encara
o mundo.17 Caracteriza-se pela morosidade, indisposição e imobilidade. Paulo Prado
não é nem único nem original em identiicar traços melancólicos no povo brasileiro. A
preguiça é uma das faces da melancolia e o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e mesmo
“Após o coito os animais icam tristes, salvo o galo, que canta”. Trata-se de uma versão do adágio “post coitum
omne animal triste est sive gallus et mulier”, de Claudius Galenus.
17
Existe uma vasta bibliograia sobre a melancolia tanto em português quanto em línguas estrangeiras, da
qual não pretendemos dar conta aqui, visto o espaço limitado desse artigo. Para uma deinição mais formal do
conceito Cf. Starobinski (2014).
16
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
91
Cultura, civilização e mal-estar
o Macunaíma, de Mario de Andrade, são retratos de um povo brasileiro indisposto,
preguiçoso. Não cabe aqui uma análise mais minuciosa da presença da melancolia da
literatura brasileira, mas esta, como estado psíquico, nos serve de porta de entrada
para uma questão central para compreender a extensão de Spengler na obra de Paulo
Prado: o organicismo.
A cultura brasileira é, sem meias palavras um “organismo precocemente
depauperado” (PRADO, 2012, p. 113), após a experiência colonial. A cobiça e a luxúria
são responsáveis por fenômenos de “esgotamento” que:
não se limitam às funções sensoriais e vegetativas; estendem-se até
o domínio da inteligência e dos sentimento. Produzem no organismo
perturbações somáticas e psíquicas, acompanhadas de uma profunda fadiga,
que facilmente toma aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio (PRADO,
2012, p. 96, grifo nosso).
92
Ao se referir ao romantismo diz que “vinha a infecção das margens do Tietê
ou do Capibaribe e aos poucos contaminava o Brasil inteiro. Caracterizam-na dois
princípios patológicos: a hipertroia da imaginação e a exaltação da sensibilidade”
(PRADO, 2012, p. 123, grifo nosso) ou, mais a frente, refere-se aos “traços sintomáticos
da infecção romântica” (PRADO, 2012, p. 124, grifo nosso) e seguem-se, sobretudo
nos capítulos sobre a tristeza e o romantismo, inúmeras referências a um vocabulário
tomado emprestado das ciências médicas e biológicas. Fica claro, ao longo do ensaio
de Paulo Prado, que estamos falando de um organismo vivo quando estamos falando
da civilização brasileira.
E todo organismo vivo está fadado a morrer. Um trecho do primeiro capítulo
do Retrato, que versa sobre o movimento migratório do colonizador, e que nos serve
bem para encerrar essa parte do texto, é uma ilustração de que, a época, o vocabulário
das ideias foi marcadamente inluenciado por Spengler: “Recomeçava na história do
mundo o misterioso impulso que de séculos em séculos põe em movimento as massas
humanas, após os longos repousos em que as civilização nascem, se desenvolvem e
morrem” (PRADO, 2012, p. 40).
Aproximações, distanciamentos e outras considerações: entre Spengler, Paulo
Prado e Mario de Andrade
Esperamos que a essa altura do texto esteja claro que não defendemos, em
nenhum momento, qualquer tipo de proposta que reduza as ideias do período a uma
inluência esmagadora de Spengler. Este não é o único – nem mesmo o primeiro – a
fazer uso desse repertório do qual, depois da publicação de sua obra, passou a fazer
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
parte. Spengler foi, como diria Northop Frye, um “ninguém em particular”18 cuja saúde
era tão ruim que não foi chamado para servir na guerra, que abandonou seu trabalho
na década de 1910 para escrever e que mal tinha dinheiro para comprar comida ou
roupas, quiçá livros (FRYE, 2013, p. 297). Conseguiu, na adversidade, emplacar um livro
de enorme sucesso intelectual e arrancar ao topo de um ranking acadêmico “semimilitar” alemão. A obra foi imediatamente celebrada e traduzida para várias línguas. Em
larga medida, sem dúvidas, Spengler foi capaz de sintetizar a linguagem de uma época
para a solução de carências de sentido igualmente localizadas. E, sendo bem sucedido,
foi capaz de moldar um vocabulário que permaneceu em utilização por décadas após
a publicação do Declínio.
Não existe nenhuma subserviência dos autores analisados a proposta de
Spengler. Existem apropriações ou não de um léxico de ideias. Mario de Andrade
parece o fazerem maior escala do que Paulo Prado. Este se insurge mais em favor de
uma perspectiva historicizante. Spengler diz que: “O fato de ter desabrochado, por
volta de 1000 d.C., uma grande cultura na Europa ocidental é obra do acaso. Mas, a
partir desse momento, obedeceu ela ‘à lei segundo a qual se iniciara’”. E completa:
O que for acaso e o que for destino dependerá da posição do analisador.
Considera-se, por exemplo, uma casualidade ter Goethe estado em Sesenheim,
ao passo que se julga obra do destino ter-se ele encaminhado a Weimar. [...]
Tal distinção não corresponde ao espírito do homem ‘antigo’. Aos seus olhos, a
abundância das ocorrências assumia caráter anedótico, quando uma delas se
salientava. O resto não passava, para ele, de uma seqüência de casualidades,
no sentido de episódios (SPENGLER, 1973, p. 102).
Paulo Prado não faz referência a lei ou destino algum que seja responsável por
reger o rumo dos acontecimentos. Tudo está sujeito à mudança, ao desvio, à inluência
de forças históricas.
Interessa-nos, neste trabalho, por im, especular sobre a os resultados dessa
inluência spengleriana, ou seja, em que medida a apropriação das ideias de Spengler
pode ter inluenciado ou pode ter traduzido uma postura ética e um tipo de ação
política dos dois autores.
Gilberto Freyre diz, em artigo publicado no Diário de S. Paulo, no dia 27/10/1943,
por ocasião da morte de Paulo Prado:
Quem daqui a meio século estudar a personalidade e a vida de Paulo Prado
se espantará decerto ao ver o seu nome associado ao mesmo tempo ao
‘movimento modernista’ e ao Departamento Nacional de Café. É que Paulo
Prado foi realmente um dos casos mais curioso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde que já
houve no Brasil ou que ocorreram no século XIX (FREYRE apud PRADO, 2012.).
18
No original, nobody in particular.
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
93
Cultura, civilização e mal-estar
Paulo Prado parece sempre ter sido essa igura dúbia, não apenas como
modernista cafeicultor, mas também como intelectual. O autor nos lega um programa
político um tanto abstrato no Post-Scriptum – que é um pequeno manifesto político –
do Retrato:
Para tão grandes males parecem esgotadas as medicações da terapêutica
corrente: é necessário recorrer à cirurgia. Filosoicamente falando – sem
cuidar da realidade social e política da atualidade –, só duas soluções poderão
impedir o desmembramento do país e a sua desaparição como um todo uno
criado pelas circunstâncias históricas, duas soluções catastróicas: a Guerra, a
Revolução (PRADO, 2012, p. 142).
94
A Guerra por que abre o período de “falência governamental”, cria as condições
para a produção e ascensão de um “herói providencial” que venha do povo e que nos
livre da letargia. A Revolução pois é “a airmação inexorável de que, quando tudo está
errado, o melhor corretivo é o apagamento do tudo que foi malfeito” (PRADO, 2012,
p. 143). Paulo Prado revela-se um pessimista – ainda que preira o rótulo de otimista
– revolucionário. Em tese, pelo menos. Até onde se sabe, apesar de alegar ter sido um
homem de esquerda, um revolucionário, por toda a vida, Paulo Prado nunca fomentou
nenhum acontecimento revolucionário nem nunca participou de uma revolução ele
mesmo. Sua leitura profundamente pessimista da realidade, entretanto, foi o que fez
com que exigisse medidas tão drásticas para a solução do impasse brasileiro.
No Retrato do Brasil, Paulo Prado não deixa claro exatamente qual é seu
programa pós-guerra, ou pós-revolucionário. Num manuscrito, inédito quando citado
por Carlos Augusto Calil em seu texto introdutório para sua organização da Paulística
etc., de 2004, Paulo Prado indica traços de seu plano:
O programa de restrições nas importações desnecessárias pede uma execução
imediata, e será de conseqüências rápidas. O Brasil necessita de vida própria,
por que só o nacionalismo – debaixo de todos os aspectos – nos libertará da
tirania e da cobiça dos imperialismo que nos ameaçam. Temos vivido até aqui
de importação, de imitação, e da subcultura que exportam os velhos países da
Europa. É nesse sentido que me parece que a Revolução, para triunfar, precisa
ir além da simples mudança de governo ou substituição de nomes nos cargos
públicos. O programa revolucionário deve ser integral para salvar o país. Todas
as energias, todas as colaborações, todas as contribuições – conscientes ou
instintivas – são necessárias na realização dessa transformação radical. Já
se disse que as revoluções somente são puras durante os primeiros quinze
dias. Não sei, mas só acredito no seus benefícios quando atingem todas as
modalidades da atividade nacional (PRADO, 2004, p. 19).
Em um segundo manuscrito inédito, Paulo Prado cobra o comprometimento de
seus conterrâneos na construção de uma civilização. Citamos apenas um curto trecho
para dar o tom da reivindicação:
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
Que diriam esses intelectuais do que se passa em São Paulo? Guardadas
as proporções devidas, no nosso pequeno mundo, repetem-se os mesmos
fenômenos registrados no inquérito americano, isto é, um idêntico
desequilíbrio entre o progresso material e o atraso intelectual, político e
artístico, que forçosamente impedem o desenvolvimento do que se chama
uma civilização... (PRADO, 2004, p. 20).
Paulo Prado e Mario de Andrade conluem na exigência de um pensamento
e de uma arte que rendam o Brasil do pensamento da velha Europa. Partilhavam
também de uma falta de clareza e sistematicidade quando o assunto era política e
ética. A relação de Mario com esses temas mudou bastante ao longo do tempo, como
sintetiza Leandro Konder, em seu curto mas muitíssimo informativo texto sobre Mario
de Andrade publicado como trecho do Intelectuais brasileiros & marxismo, de sua
autoria. Konder destaca uma crescente radicalidade e pluralidade no pensamento de
Mario sobre a política e os imperativos éticos dos intelectuais. Ao passo de que, ao im
da vida, o autor de Macunaíma parece tender a uma ideia de arte independente, que
serve a si mesma, no Táxi, que reúne textos de um momento um pouco anterior de sua
vida, Mario defende:
O intelectual pode bem e deverá sempre se pôr a serviço duma dessas
ideologias, duma dessas verdades temporárias. Mas por isso mesmo que é
um cultivado, e um ser livre, por mais que minta em proveito da verdade
temporária que defende, nada no mundo o impedirá de ver, de recolher e
reconhecer a verdade da miséria do mundo. Da miséria dos homens. O
intelectual verdadeiro, por tudo isso, sempre há de ser um homem revoltado
e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora da lei (ANDRADE apud
KONDER, 1991, p. 43-49).
Existem várias possibilidades pelas quais podemos tentar estabelecer conexões
mais rígidas entre os autores analisados. Uma abordagem possível é uma que levasse
em conta o esforço partilhado dos autores em modernizar (em termos bem distintos)
a realidade de suas nações, ou uma análise mais atenta às ideias de modernização ou
superação de empecilhos histórico-sociológicos ou culturais (inspirada em uma história
das ideias); ou uma abordagem que procurasse traçar as características de suas projeções
no passado, presente ou futuro, de um mal-estar que partilhavam sensivelmente, de
reconstruir um clima histórico, a moda do proposto por Hans Ulrich Gumbrecht; ou
ainda, tomar os trabalhos de Gilda de Mello e Souza e Haroldo de Campos acerca da
tecedura da narrativa andradiana, seja em modo de composição, inspirada no princípio
rapsódico da suíte (desnivelado e então renivelado), ou na bricolage dos bricoleurs, e
analisar (metahistoricamente, como na tropologia de Hayden White) a urdidura das
obras aqui sobrevoadas; ou ainda levar em conta uma genealogia das formas de se
escrever e ler, que mudam no Brasil e na Europa do Entre-Guerras, e que criam formas
e limitam as possibilidades de redação de obras, sejam elas ilosóicas, historiográicas,
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
95
Cultura, civilização e mal-estar
literárias ou os três. Não conseguiríamos realizar, no espaço que nos resta, nenhuma
dessas abordagens de modo a convencer o leitor de suas suiciências para explicar o
elo entre os autores analisados. Para nós, o objetivo inicial deste artigo já foi atingido: o
objetivo de indicar essas possibilidades de abordagens a partir da análise das aparições
das obras de Spengler, Paulo Prado e Mario de Andrade, umas nas outras; em suma, de
produzir caminhos para dar seguimento a esta pesquisa.
Referências
96
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2013.
______. O movimento modernista. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. 6ª ed.
São Paulo: Martins, 1978.
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornellas. Dimensão de Macunaíma: ilosoia, gênero e época.
1987. 201p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 1987.
CAMPOS, Haroldo de. Morfologia de Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973.
CHO, Joanne Miyang. Historicism and Civilizational Discontinuity in Spengler and
Troeltsch. Zeitschriftfür Religions- und Geistesgeschichte, v. 51, n. 3, p. 238262, 1999.
D’ONOFRIO, Andrea. “Catene di civiltà”. Morfologia e storia nell’ultimo Spengler. Studi
Storici, Roma, v. 36, n. 3, p. 883-888, 1995.
DUTRA, Eliane. O Não Ser e o Ser Outro. Paulo Prado e seu Retrato do Brasil. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, p. 233-252, 2000.
FARRENKOPF, John. The Challenge of Spenglerian Pessimism to Ranke and Political
Realism. Review of International Studies, v. 17, n. 3, Cambridge, p. 267-284,
1991b.
______. The Transformation of Spengler’s Philosophy of World History. Journal of the
History of Ideas, v. 52, v. 3, Filadélia, p. 463-485, 1991a.
FRYE, Northrop; GORAK, Jan (Orgs.). Northrop Frye on Modern Culture. Toronto:
University of Toronto Press, 2003.
HERF, Jefrey. O Modernismo Reacionário: tecnologia, cultura e política na Republica
de Weimar e no Terceiro Reich. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. Unicamp, 1993.
KONDER, Leandro. Mario de Andrade. In: ______. Intelectuais Brasileiros e Marxismo.
Belo Horizonte: Oicina de Livros, 1991, p. 43-49.
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
Hugo Ricardo Merlo
LEVY, Darrel E. A Família Prado. São Paulo: Cultura 70, 1977.
NICHOLLS, Roger A. Thomas Mann and Spengler. The German Quarterly, v. 58, n. 3,
New Jersey, p. 361-374, 1985.
PRADO, Paulo. Paulística etc. Organizado por Carlos Augusto Calil. 4ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
______. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Organizado por Carlos
Augusto Calil. 10ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SCHORSKE, Carl E., A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. In:
______. Pensando com a história: Indagações na passagem para o modernismo.
Companhia das Letras: São Paulo, 2000, p. 53-72
SILVA, Ítala Byanca Morais da. A Sociedade Capistrano de Abreu e os discípulos do
“Mestre-amigo”: Paulo Prado e o “Caminho do Mar”. In: XVIII Encontro Regional
de História: o historiador e seu tempo. 24 a 28 de julho de 2006. Anais... Unesp/
Assis: Anpuh/SP, 2006.
SOUZA, Gilda de Mello. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São
Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003.
SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente: Esboço de uma morfologia da História
Universal. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
STAROBINSKI, Jean. A melancolia diante do espelho. São Paulo: Ed. 34, 2014.
TURCONI, Paola. Spengler e la critica contemporanea (per un bilancio storiograico
degli interpreti di lingua tedesca). Il Politico, v. 51, n. 3, p. 427-457, 1986.
WALDMAN, Thaís. À “Frente” da Semana de Arte Moderna: a presença de Graça Aranha
e Paulo Prado. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 45, p. 71-94, 2010.
Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096
•
•
•
•
•
97