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Cultura, Civilização e mal-estar: as possibilidades spenglerianas de MacunaíMa e do RetRato do BRasil* Hugo Ricardo Merlo** Resumo: Este artigo busca, por meio da análise de Macunaíma (1928), de Mario de Andrade, e Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, explorar as nuances da recepção do repertório de ideias, problemas e conceitos discutidos por Oswald Spengler, em seu Declínio do Ocidente (1918-1922). Objetiva-se fazê-lo por meio da investigação acerca da presença do binômio Kultur e Zivilization e do organicismo, presentes na obra de Spengler. Ao im, pretendese explorar as possibilidades políticas e éticas que, em parte, resultam desse conjunto de problemáticas partilhadas. Palavras-chave: Paulo Prado; Mario de Andrade; Oswald Spengler. Abstract: This paper aims, through the analysis of Macunaima (1928), by Mario de Andrade, and Retrato do Brasil (1928), by Paulo Prado, to explore the nuances of the reception of the repertoire of ideas, problems and concepts discussed by Oswald Spengler on his Decline of the West (1918-1922). The objective is to accomplish it by investigating the presence of the pair Kultur-Zivilization and of the organicist view of the social cycle, both present on Spengler’s work. Finally, the political possibilities and ethical imperatives that may partially be a result of these shared set of problematics are going to be analyzed. Keywords: Paulo Prado; Mario de Andrade; Oswald Spengler. O histórico da recepção dos dois volumes do Declínio do Ocidente (1918 e 1922), de Oswald Spengler, pode ser indício de uma obra que inluencia uma geração de intelectuais ou que traduz preocupações gerais de uma época, ou ainda um pouco de ambos. É inegável, entretanto, que a obra de Spengler tenha tido uma disseminação amplíssima e colocado na pauta do momento questões como a tensão entre o binômio Kultur e Zivilization, o organicismo, a teoria do ciclo social e __________________________________ * Artigo submetido à avaliação em 2 de abril de 2015 e aprovado para publicação em 16 de maio de 2015. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo e bacharel em História pela mesma Universidade (2013) ** Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 77 Cultura, civilização e mal-estar 78 o pessimismo cultural, em especial.1 A maneira, entretanto, que diferentes intelectuais recepcionaram e ocuparam-se desses problemas é diferente, tanto em conteúdo quanto em abordagem. E é possível que cada uma das variantes, nas quais poderia resultar a combinação desses diferentes processos de seleção e incorporação dessas problemáticas, veio a concretizar-se. Preocupam-nos, entretanto, neste breve artigo, as maneiras que dois importantes intelectuais brasileiros absorveram o conjunto das problemáticas spenglerianas. Esses dois intelectuais – Mario de Andrade e Paulo Prado – partilham uma série de leituras acerca da herança cultural brasileira em biograias que se cruzam e obras seminais publicadas no mesmo ano. Entretanto, a inluência da obra de Spengler contribui, em ambos, para a formação de uma consciência histórica particular e de um plano de ação política que os aproxima e os diferencia. Este artigo é um primeiro esforço que deverá repetir-se muitas outras vezes ao longo de nossa atual pesquisa2 e para nós opera como uma tentativa de síntese: de, em alguma medida, conferir alguma formalidade a algumas ideias que permeiam o trabalho que ainda pretendemos fazer. Dividir-se-á em quatro momentos distintos: num primeiro momento, tentaremos dar conta das aproximações entre Paulo Prado e Mario de Andrade (ainda que centrados no primeiro);em um segundo momento, daremos foco na presença d’O Declínio do Ocidente no Macunaíma, de Mario de Andrade; ao passo que na terceira parte o Retrato do Brasil, de Paulo Prado, será o foco de nossa análise; e, na quarta e conclusiva parte desse trabalho, pretende-se mapear algumas aproximações e desencontros entre as obras de Paulo Prado e Mario de Andrade, no que tange a sua incorporação das problemáticas spenglerianas e suas respectivas resultantes políticas e éticas. Biograias cruzadas Paulo da Silva Prado é de uma geração de intelectuais posterior à famosa geração de 1870 e anterior à impactante geração de 1930. Nasceu em São Paulo, no ano de 1869, primogênito de Antônio Prado3 e, portanto, principal herdeiro do Império dos Prado, inluente família de cafeicultores paulistas – alguns alegam ter sido sua família 1 A recepção da obra de Spengler já foi tema de outros trabalhos. Destacamos Spengler e la critica contemporanea, de Paola Turconi, pelo rigor com que demonstra que a recepção da obra de Spengler por seus contemporâneos teve um caráter misto – mas predominantemente negativo. Cf. Turconi (1986). 2 O tema geral de nossa pesquisa é o pessimismo (ou o mal-estar) na cultura historiográica brasileira nas décadas de 1920 e 1930, utilizando como porta de acesso à problemática a obra de Paulo Prado. 3 Antonio da Silva Prado (1840-1929), pai de Paulo, foi um inluente político brasileiro e patriarca do império cafeeiro dos Silva Prado. Ocupou o cargo de senador do Império, em 1886, e, dois anos depois, tornou-se conselheiro. Contribuiu com a causa abolicionista e veio a tornar-se, em 1899, o primeiro prefeito de São Paulo, função que exerceu por 12 anos. Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo a mais bem sucedida família de cafeicultores da virada do século XIX para o XX4. Muito próximo de seu tio Eduardo, foi nele que Paulo Prado teve uma primeira referência intelectual e a partir dele que fez seus primeiros contatos com alguns outros intelectuais e artistas da época, a exemplo de Eça de Queiroz, grande amigo de seu tio, e Graça Aranha, que na época ainda morava na Europa e fez algumas visitas ao apartamento de Eduardo Prado em Paris. Eduardo Prado foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e autor de alguns (então) famosos textos que denunciavam atos praticados pelo governo republicano, do qual foi forte opositor.5 Foi com seu tio Eduardo que Paulo Prado fez uma viagem à França, nos idos de 1890, importantíssima sobretudo por ter sido a ocasião que o fez entrar em contato com as vanguardas modernas europeias. Os trabalhos sobre a obra de Paulo Prado apontam duas principais referências de duas personagens relevantes para a história da intelectualidade brasileira na formação historiográica do autor, para além de Eduardo Prado: Graça Aranha e Capistrano de Abreu, ambos de uma geração anterior a sua. Não existe nada de muito enigmático ou indiciário na inluência de Capistrano de Abreu sobre a formação historiográica de Paulo Prado. Este último, em diversas ocasiões ao longo de sua carreira intelectual, atribuiu àquele a alcunha de “mestre”. Foi forte e nomeadamente inluenciado por Capistrano que Paulo Prado escreveu e publicou, em 1922, seu primeiro esforço historiográico, Caminho do Mar. E foi Paulo Prado quem, na ocasião da morte de Capistrano de Abreu, em agosto de 1927, presidiu a reunião que fundou a Sociedade Capistrano de Abreu, “no propósito de prestarem homenagem à sua [de C.A.] memória”.6 A obra de Capistrano de Abreu foi sobre onde a obra de Paulo Prado, numa dimensão historiográica, sedimentou-se. Graça Aranha – amigo pessoal de Paulo Prado, considerado, a altura de 1922, um proto-modernista –,7 por sua vez, parece ter sido uma inluência igualmente importante; importante, pois, é em larga medida a partir d’A estética da vida – e a similitude do argumento central, para além do comprovado conhecimento que Paulo Prado tinha da obra de Aranha, é enorme e permite a airmação – que Paulo Prado “se ressente, no seu Retrato do Brasil, da ausência de uma inalidade estética ou moral ou religiosa nos empreendedores da empresa colonizadora no Brasil” (DUTRA, 2000, p. 242), da mesma maneira que Graça Aranha o faz anos antes. 4 Sobre o assunto, reforço a sugestão de Carlos Berriel, em sua tese de doutoramento acerca do pensamento de Paulo Prado, muito presente neste trabalho. Cf. Levy (1977). 5 Ver suas obras Os fastos da ditadura militar no Brasil (1890), Anulação das liberdades públicas (1892) e A ilusão americana (1893), todas em domínio público. 6 Trecho dos Estatutos da Sociedade Capistrano de Abreu, 11 de setembro de 1927. Documento pertencente ao “Fundo Sociedade Capistrano de Abreu” do Instituto do Ceará. Sobre a Sociedade Capistrano de Abreu e a importância da participação de Paulo Prado em sua constituição Cf. Silva (2006). 7 Um “protomártir da nova era”. Cf. Waldman (2010). Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 79 Cultura, civilização e mal-estar 80 A percepção, primeiro, de que a experiência colonial e formativa da nação e povo brasileiros é deinidora, em alguma proporção, do atual estado do país e da cultura brasileira, não é inédita. Muito menos, em segundo lugar, a sensação (e por sensação, reiro-me a algo não necessariamente sistemático ou sistematizado) de que há algo de errado com a nação brasileira, nas primeiras décadas do século XX, é algo nova. A ideia de que não existe uma conluência entre os requisitos necessários para a formação de um povo e de uma nação forte e o processo colonizador, como se deu, no Brasil, marcado pela “ausência de uma inalidade estética ou moral ou religiosa” também já era dada. A inluência da geração 1870 não é suiciente para explicar a proporção em que o Retrato do Brasil, quando publicado em 1928, foi celebrado e comentado. Para entender onde reside a importância e originalidade da obra é necessário analisar seu processo de germinação dentro do Modernismo. E é no Modernismo que as trajetórias de Mario de Andrade e Paulo Prado se cruzam, muito por intermédio de Graça Aranha, que apresentou Paulo Prado a Di Cavalcanti após, em vinda ao Brasil, no ano de 1920, ir a uma mostra deste. Paulo Prado e Mario de Andrade, dentre outros modernistas, conheceram-se de tabela. Mario, também nascido em São Paulo, no ano de 1893, dispensa grandes introduções. Foi um polímato autodidata, tendo tido educação formal apenas em Música, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. É conhecido por seu trabalho como folclorista, musicólogo e, principalmente, poeta e romancista. Entre os pesquisadores da geração Modernista, por sua vez, Mario de Andrade é conhecido pelo paraíso epistolar que construiu ao longo de uma vida intelectual extremamente ativa e por ocupar o papel de grande articulador do movimento modernista. Mario foi membro do Grupo dos Cinco e um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Junto a Oswald de Andrade, galgariam o lugar dos principais nomes da primeira geração do Modernismo, muito por mérito de ambos em convencer os outros de que, de fato, teriam o sido. Foi na Semana de 1922 que a relação entre Paulo Prado e os modernistas se selaria de uma vez por todas. Paulo Prado já havia atuado como mecenas de outras mostras e exposições, duas delas sediadas no Teatro Municipal de São Paulo. Gestada em sua casa, em Higienópolis, a Semana de Arte Moderna de 1922 o teve como principal inanciador. Paulo Prado não apenas doou de seu dinheiro: mobilizou cunhados e outras iguras abastadas dos círculos cafeicultores de São Paulo para que também ajudassem inanceiramente na realização da Semana. É responsável por insistir na ideia de que a Semana devesse ser algo monumental. Paulo Prado foi também um colecionador de arte. Tinha, dentre inúmeras obras, algumas de Brecheret, de Anita Malfatti, de Portinari e de Tarsila de Amaral. Di Cavalcanti, em certa circunstância, desabafa a Mario e Oswald de Andrade: Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo não é vergonha ser pobre e ser boêmio, digam logo a Paulo Prado que me falta dinheiro para pagar o hotel, e que ele compre uns desenhos meus, um quadro, o que ele quiser, para me sustentar aqui em São Paulo, por um mês (DI CAVALCANTI apud WALDMAN, 2010, p. 83). Paulo Prado também inanciou viagens de vários dos modernistas a Europa e foi quem bancou a vinda de Blaise Cendrars ao país. Em suma: Paulo Prado muito mais do que inanciou a Semana de Arte Moderna de 1922; foi ele um dos principais inanciadores do Modernismo paulista, como um todo. Ainda que esse argumento sociológico seja, talvez, suiciente para justiicar a importância da igura de Paulo Prado e de sua obra, é ainda mais importante para este trabalho destacar que, como veremos na parte inal deste artigo, Paulo Prado engajou-se no Modernismo paulista e produziu sua obra imbuído de uma genuína inquietação intelectual acerca dos problemas nacionais. Mario de Andrade, em seu balanço memorialístico, O Movimento Modernista, comenta, em alguns trechos, a postura do autor, tal como no que se segue: [...] o movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo seu carácter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena burguesia o temessem. Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das iguras principais da nossa aristocracia tradicional. Não da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais antiga, justiicada no trabalho secular da terra e oriunda de qualquer outro salteador europeu, que o critério monárquico do Deus-Rei já amancebara com a genealogia. E foi por tudo isto que Paulo Prado poude medir bem o que havia de aventureiro e de exercício do perigo, no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura (ANDRADE, 1978, p. 236-237). Mario de Andrade e Paulo Prado mantiveram uma relação de amizade e admiração mútua até a morte deste, em 1943. Além de se envolverem na publicação de alguns periódicos de divulgação de arte moderna juntos, publicaram no mesmo ano suas duas mais importantes obras: Macunaíma e Retrato do Brasil, ambas de 1928. As duas obras partilham mais do que o ano de publicação, o que levaria Oswald de Andrade airmar, em conhecida passagem, que o Retrato é o “glossário histórico” de Macunaíma: partilham de uma cosmovisão sobre as civilizações e de uma leitura orgânica da cultura brasileira. Sem nos alongarmos em descrever aqui minuciosamente as similitudes de obras que foram elaboradas simultaneamente e sob um possível e frutífero contato entre os autores, proponho que, a partir do escopo aberto pela recepção da obra de Oswald Spengler possamos identiicar alguns dos aspectos centrais nos quais Macunaíma e Retrato do Brasil colidem – em conluência ou em dissonância. Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 81 Cultura, civilização e mal-estar Macunaíma e o Declínio do Ocidente 82 Antes de irmos direto a análise do texto, três observações pontuais. A primeira diz respeito a nossa abordagem da obra de Mario de Andrade. Não se trata de uma abordagem comprometida com o objetivo de fazer jus as intenções do autor. Encaramos Macunaíma muito mais pelo que a obra pode ser do que pelo que ela é. Nesse sentido, optamos por entender o romance como também (mas jamais unicamente) uma alegoria da formação nacional. O autor já refutou interpretações que reduzissem o romance a uma representação da formação do povo ou da nação brasileira - dizendo, inclusive, que Macunaíma é muito mais venezuelano do que brasileiro8 - mas para nós a intenção autoral não é o foco. A segunda refere-se à origem das linhas gerais da análise que se seguirá. Devemos, e em grande parte reproduzimos, às ideias presentes no trabalho sobre a dimensão ilosóica de Macunaíma do professor Carlos Ornelas Berriel. Isso porque consideramos que seja um trabalho mais completo, mas, sobretudo, mais conluente com nossa própria leitura da obra de Mario de Andrade sob o viés da inluência de Spengler. Uma leitura da obra crítica de Gilda de Mello e Souza, posterior a redação inicial deste artigo, reforça as opções interpretativas feitas neste trabalho, ainda que o foco da autora em suas obras, sobretudo em O tupi e o alaúde, sejam muito distintos dos nossos. A terceira é que tomamos a liberdade de desvirtuar sutilmente o conceito de repertório, utilizado pela professora Ângela Alonso, quando analisa a geração de 1870. Pode-se deinir um repertório como sendo o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo. É composto de padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; iguras de linguagem; metáforas (Swindler, 1986). Não importa a consistência teórica entre seus elementos. Seu arranjo é histórico e prático (ALONSO, 2002, p. 39). Dizemos que desvirtuamos o conceito porque o utilizamos aqui de maneira muito descompromissada, pouco rígida, na tentativa de fugir de uma análise radicalmente sincrônica desses intelectuais-objetos que termine por encerrar suas possibilidades de criação a um “léxico”, ou a um repertório dado. Nesse sentido, a obra de Spengler, sem dúvida, faz parte do repertório da geração modernista. Nas palavras de Menotti del Picchia: 8 “O próprio herói do livro que tirei do alemão de Koch-Grünberg, nem se pode falar que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano como da gente e desconhece a estupidez dos limites pra parar na ‘terra dos ingleses’ como ele chama a Guiana Inglesa.Essa circunstância do herói do livro não ser absolutamente brasileiro me agrada como o quê. Me alarga o peito bem, coisa que antigamente os homens expressavam pelo ‘me enche os olhos de lágrimas” (ANDRADE apud SOUZA, 2003). Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo O mundo sofrera um cataclismo. A revolução da técnica anunciada por Keyserling fazia, após a guerra, desmontar-se o velho cenário europeu como um fundo de teatro cujos autores iriam representar outra peça. Spengler registrara a queda dessa velha civilização sobrevivendo espectralmente a um tipo de cultura já morto. [...] Para dar consciência a essa revolução é que um grupo de artistas de São Paulo realizou, em 1922, a hoje histórica “Semana de Arte Moderna”. Foi esse o marco divisor entre duas mentalidades, ou melhor, o início consciente de uma nova quadra de civilização (DEL PICCHIA apud BERRIEL, 1987, p 185, grifo nosso). A apropriação da problemática spengleriana em Macunaíma acontece, sobretudo, em dois aspectos. O primeiro é o princípio de que as sociedades e culturas operam como (ou de fato são) organismos vivos e que, portanto, respeitam a um ciclo vital entre suas gêneses e os ins necessários de suas existências: O primeiro plano visível de toda a história é o que se produziu em consequência do processo de devir. À visão histórica, esse último somente se revelará onde as formas políticas ou econômicas, as batalhas ou as artes, as ciências ou as divindades, a Matemática ou a moral forem símbolos, expressões de uma alma. Todas as coisas transitórias são apenas símbolos. O transitório é símbolo de uma evolução orgânica, de um organismo. As culturas são organismos. Quem izer desilar, diante do seu espírito, as formas dessas culturas conseguirá descobrir a protoforma da cultura, que como ideia formal serve de fundamento a todas as culturas particulares e suas realizações, por diferentes que sejam (SPENGLER, 1973, p. 94). Sobre esse primeiro aspecto, deve-se dizer que é fundamental para a ilosoia da história spengleriana9, pois é sobre esse princípio de ciclo que se assenta sua ideia de um declínio do ocidente, ou seja, do declínio de uma Civilização ocidental, desabrochada nos idos de 1000 E.C., que já encontra-se próxima ao inal do seu ciclo vital. Trata-se, também, de uma reação às grandes narrativas que buscavam explicar toda a história da humanidade a partir de uma grande princípio explicativo, um Zusammenhang, que não levaria em conta os nascimentos e declínios de cada cultura e civilização. O objetivo de sua História Universal das Civilizações, como mencionado acima, não é o de encontrar um grande sentido para A História de todas as civilizações, mas encontrar um sentido fundamental que se manifesta em todas as histórias de todas as culturas e civilizações: sua protoforma. É a partir do que Spengler chama de método morfológico de Goethe que sua análise das culturas se pautará – método cuja função o autor determina ser a de “distinguir o que é necessário e essencial, morfologicamente, e o que não passa de mera casualidade” (SPENGLER, 1973, p. 95). Quando falamos numa ilosoia da história spengleriana, nos referimos unicamente ao que Spengler propôs até a publicação do segundo volume do Declínio do Ocidente. Como é natural, suas ideias, sobre muitos dos aspectos de sua obra aqui destacados, mudaram ao longo do tempo. Sobre o Spengler mais maduro, Cf. D’Onofrio (1995) e Farrenkopf (1991a). 9 Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 83 Cultura, civilização e mal-estar O segundo aspecto é o uso do binômio Cultura (Kultur) e Civilização (Zivilization) como chave de compreensão para o nascimento, evolução e declínio dos fenômenos culturais e civilizacionais. Para Spengler, existem dois pólos de um espectro entre os quais oscila uma Cultura/Civilização: Alma e Mundo, sendo a Alma o lócus do originário, da Cultura, da onde emana a verdadeira identidade e vigor de um povo; e o Mundo, lugar da Civilização, do racional, do universalizável, o lugar das culturas em declínio, vazias de uma força vital. O quadro que o autor elabora é útil para localizar seus conceitos: Quadro 1 - Esquema-compêndio da tese de Spengler 84 Fonte: Spengler (1973, p. 106-107). O destino de toda Cultura é tornar-se Civilização e deixar de existir. Trocando por miúdos: na medida em que uma Cultura, original e pujante, avança, ela caminha em direção às cidades, às máquinas, ao cosmopolitismo, ao racionalismo, à ciência, à crítica, enim, deixa de ser Cultura e torna-se Civilização – deixa de ser fonte de vida e torna-se prelúdio de morte. Macunaíma respeita, em grande parte, esses princípios. O herói sem nenhum caráter é um homem, ainda que um homem dotado de alguma magia, capaz de metamorfosear-se, dentre outras habilidades pouco convencionais para um humano. E, sendo um homem, é um organismo fadado a deixar de existir em algum momento (entretanto, como veremos a frente, Macunaíma perde uma oportunidade de escapar do fardo da morte). A jornada de Macunaíma é uma jornada compreendida entre seu nascimento, às margens do Uriracoera, e sua morte, feito em tradição e transformado Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo na Ursa Maior. Sua epopeia é marcada por uma crescente proximidade geográica com São Paulo,10 ícone civilizacional – europeizado – no Brasil, e um crescente movimento civilizatório pelo qual passa o herói. Macunaíma sai da Kultur em direção a Zivilisation. O herói nasce nas margens do Uriracoera, passa seus seis primeiros anos de idade sem nada falar. E quando estimulado a falar alguma coisa Macunaíma diz seu mote: “Ai! que preguiça!”, expressão que indica seu duplo acometimento pela morosidade.11 Sua infância se segue com uma série de ilustrações sobre sua falta de qualquer moralidade “civilizada”: Macunaíma chora toda noite e não deixa os de sua tribo dormir, trai o irmão, faz hora com a mãe, rouba, mente e atrapalha todos que estão ao seu alcance. Depois de fazer com que sua mãe, uma senhora idosa, deixasse de trabalhar para carregar ele e os mantimentos da família para lá e para cá, Macunaíma é punido, deixado por sua mãe num capoeirão de nome Cafundó do Judas, onde não poderia crescer. Com fome, o herói sai a procura de comida e de seu povo, e, quando enganado pelo Curupira, que desejava comê-lo, Macunaíma é salvo por sua preguiça de seguir as instruções dadas pela entidade que o levariam a uma armadilha. Contando essa história para a cotia, uma senhora de algum poder mágico, a “vó” – como ele a chama – alega que a atitude de Macunaíma não é coisa de curumim (culumi) e decide igualar o corpo com o “bestunto”, seu entendimento: Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortiicando e icou do tamanho dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada icou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá (ANDRADE, 2013, p. 21). Macunaíma não se desenvolveu como um organismo saudável se desenvolveria. Seu crescimento foi acelerado, artiicial, produzido. Sua cabeça, totem de seu intelecto, não foi atingido pelo caldo envenenado e permaneceu a mesma cabeça de criança que antes era. Como veremos mais a frente, existe um paralelo muito direto entre o desenvolvimento do “organismo” Macunaíma e do “organismo” nação/povo Brasileiro, no Retrato do Brasil, de Paulo Prado. Para este, a exaustão do empreendimento colonizador imporia sobre a nação brasileira a condição de um envelhecimento sem mesmo ter amadurecido, sintoma de uma má formação nacional e origem do mal da nação. Em uma outra passagem, o herói sem nenhum caráter, junto aos irmãos Jiguê e Maanape, parte para a jornada em direção a São Paulo, em busca de reaver o muriaquitã, A grande cidade é um espaço muito signiicativo para Spengler. Sobre o assunto, Cf. Schorske (2000). O som de “aique”, em alguns dialetos indígenas, representa preguiça. Por esse motivo, corre a informação de que Mario de Andrade teria feito um jogo de linguagem e que o mote “Ai, que preguiça!” seria o sinal de uma dupla condição “preguiçosa”: “Aique” e “preguiça”. 10 11 Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 85 Cultura, civilização e mal-estar dado a Macunaíma por Ci, Mãe do Mato e sua grande paixão, e agora em posse de Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente. No meio do caminho, uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes que de quando em quando, na luta pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca dum pé gigante. Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um ilho da tribo retinta dos Tapanhumas (ANDRADE, 2013, p. 38). 86 Feito branco de olhos claros, Macunaíma iniciara seu caminho em direção a Civilização. Perdera sua isionomia de “preto retinto” e agora não havia nada em sua aparência que indicasse que era ilho do medo e da noite, um Tapanhumas. O herói, daí em diante, se familiarizaria com o uso do dinheiro e, gradualmente, das inúmeras máquinas (máquina roupa, máquina sapato, máquina telefone, máquina garrucha, etc.) que os homens de São Paulo utilizavam. Talvez o momento mais poderoso e marcante da transição de Macunaíma entre os polos Cultura e Civilização aconteça no capítulo IX, Carta pras Icambiabas. A diferença na fala do herói, antes e depois da carta é notória: antes dela, Macunaíma falava o português falado; depois, fala o português escrito. A mudança de linguagem do personagem é tão signiicativa quanto a mudança do estilo narrativo. Carlos Berriel chama atenção para esta última quando analisando o capítulo V, Piaimã: “A mudança de cenários que ocorre neste capítulo, quando Macunaíma abandona o lócus primitivo pelo urbano-industrial representa também uma alteração no estilo narrativo: a ‘bricolage’ do folclore cede lugar a um intermitente expressionismo” (BERRIEL, 1987, p. 96).12 Para ilustrar o encontro de Macunaíma com a Civilização, vale chamar atenção para mais uma passagem da rapsódia andradiana, no capítulo V, quando o herói encontra sua “inteligência perturbada” pelo cenário da cidade. Macunaíma não compreende a relação dos homens com a Máquina. Confunde-a com Tupã, com os Deuses. Decide 12 O capítulo é referenciado como centro da obra por vários outros críticos que se debruçaram ainda mais cuidadosamente sobre o Macunaíma. Gilda de Mello e Souza, entende, também, o capítulo como eixo na jornada de Macunaíma, no qual a segunda parte da dupla narrativa do livro começa a se delinear - a subversão da “busca” do graal cristão pela constante fuga que faz Macunaíma seguir em frente com sua jornada de recuperação do muriaquitã, consiste na sucessão dos acontecimentos que precedem a segunda perda do artefato e o desfecho do romance. O mais fundamental é a discordância entre esses críticos frente ao processo de feitura da obra - em bricolage ou composto como uma rapsódia de suítes populares. Para um insight mais profundo no processo de composição da obra de Mario de Andrade, cf. Campos (1973) e Souza (2003). Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo que, a im de tornar-se “imperador dos ilhos da mandioca”, os paulistas, tentaria o mesmo que fez com Ci, brincaria com a Máquina. Mas percebeu que a máquina não era Deus não, nem mulher, como ele gostava. Ficou então “maquinando nas brigas sem vitória dos ilhos da mandioca com a máquina”: A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os ilhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu: – Os ilhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate. Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe (ANDRADE, 2013, p. 42). Macunaíma viria a desenvolver a mesma relação desmistiicada com a máquina que os homens de São Paulo. Viria a entender a Técnica como soberana, como o meio para dominar a Natureza. Mas, no momento em que, ainda às margens da civilização, o herói tenta compreender a máquina, ele aproxima-se da conclusão de Spengler: “precisamente por isso, o homem faustiano converteu-se em servo da sua própria criação. Seu número e a disposição da sua vida são obrigados pela máquina a seguirem uma trilha na qual não há descanso nem possibilidade de retrocesso. [...] O mundo econômico da indústria mecanizada requer obediência do industrialista tanto como do operário de fábrica. Ambos são escravos e não donos da máquina, que só agora demonstra o seu secreto e diabólico poder” (BERRIEL, 1987, p. 99). Macunaíma termina por recuperar o muriaquitã e tomar seu rumo de volta às margens do Uraricoera. Antes de concluir sua jornada, Macunaíma é vítima da vingança de Vei, que o empurra para dentro da lagoa onde se encontra Uiara, lugar em que o herói acaba parcialmente devorado por piranhas, mutilado, e perde, novamente, o muriaquitã. Depois de envenenar a água, matar os peixe e procurar o amuleto em suas entranhas sem sucesso, Macunaíma é acometido por uma tristeza enorme (“um banzo solitário”), desiste de ir atrás do muriaquitã e sobe aos céus numa grande planta. Lá, o herói é feito tradição quando transformado na constelação da Ursa Maior por PauíPódole, o Pai do Mutum. Vei, a Sol, é mote de várias guinadas no enredo da história. Em um dado momento, Macunaíma, após ter um favor realizado por Vei, promete a ela que se Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 87 Cultura, civilização e mal-estar casaria com uma de suas ilhas. Vei é a representação do clima tropical, é a força do sol que move as culturas tropicais. Macunaíma, entretanto, trai Vei (o que posteriormente lhe renderia a represália que o faria perder o muriaquitã pela segunda vez) e leva para a jangada em que ela havia o deixado uma portuguesa, com quem é pego “brincando” pelas três ilhas da Sol. Vei então, os pune, jura vingança ao herói e diz: “– Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas ilhas e havia de ser sempre moço e bonitão. Agora você ica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai icando mocetudo e sem graça nenhuma” (ANDRADE,2013, p. 68). Macunaíma escolheu a Civilização européia ao invés das ilhas do clima tropical, da Sol, e quando o fez, abriu mão da imortalidade. Se Macunaíma é a representação da cultura ou do povo brasileiro, talvez seu grande erro tenha sido optar pelos moldes da sedutora civilização européia decadente ao invés de abraçar as características que são parte de sua Cultura e que, portanto, são fonte de sua vida e de sua originalidade – o único meio pelo qual uma cultura pode alçar vôos mais altos, entre as grandes culturas de sua época. Retrato do Brasil e o Declínio do Ocidente 88 A ilosoia das civilizações de Spengler é pessimista, ou, na melhor das hipóteses, fatalista.13 Ela parte de uma leitura da realidade em que as culturas resultam em civilizações e em que instintos e almas caminham em direção a críticas e mundos. Nas palavras do próprio autor: Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir em meio ao informe; quando algo limitado, transitório, originar-se no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente restrita, ao qual se apega, qual planta. Uma cultura morre, quando essa alma tiver realizado a soma de suas possibilidades, sob a forma de povos, línguas, dogmas, artes, Estados, ciências, e em seguida retorna a espiritualidade primordial. [...] Alcançando o destino, realizada a ideia, a totalidade das múltiplas possibilidades intrínsecas, com a sua projeção para fora fossiliza-se repentinamente a cultura. Deinha-se. Seu sangue coagula. Seu vigor diminui. Ela se transforma-se em civilização (SPENGLER, 1973, p. 96, grifo nosso). 13 Pessimista, aqui, não tem nenhum caráter pejorativo. Diz respeito apenas a uma leitura crítica e desesperançosa da realidade ou de uma realidade passada – o oposto de uma leitura otimista. Frequentemente, ver-se-ão pessimistas rechaçando o rótulo em prol de “realista”. Para nós, no uso corrente, são duas palavras para uma mesma postura: uma que dá o real tom de uma leitura da realidade e outra que é mais eufemista. O caráter fatalista ou o pessimismo da obra de Spengler é um consenso partilhado desde as primeiras críticas ao volume um do Declínio. Cf. Nicholls (1985); Farrenkopf (1991b); e Cho (1999), dentre os disponíveis para acesso na internet. Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo O Declínio do Ocidente é precisamente o declínio de nossa cultura, já fossilizada e desprovida de seu vigor vital, em civilização. O Retrato do Brasil é também uma leitura pessimista, ainda que da cultura brasileira. Na obra de Paulo Prado não opera com tanta idelidade, entretanto, o princípio da relação entre Kultur e Zivilisation, como em Macunaíma, para a leitura da realidade brasileira. Por inluência de seu tio Eduardo e de Fradique Mendes, Paulo Prado partilha com Spengler a ideia de que a cultura européia é uma cultura velha e decadente e que não responde aos problemas brasileiros – até atrapalha a solucioná-los. A mesma ideia é presente em Macunaíma, mas, nesse caso, parte da noção de que uma Cultura não deve importar para si traços de uma Civilização. Jefrey Herf, em sua obra Modernismo Reacionário, destaca acerca da incorporação de projetos culturais e tecnologia estranha a cultura germânica, em Spengler: Em Preussetum und Sozialismus (Prussianidade e Socialismo), publicado em 1919, a tarefa que Spengler propusera a si mesmo era “libertar de Marx o socialismo alemão”, bem como demonstrar que “o antigo espírito prussiano e os valores socialistas”, hora diametralmente opostos, podem se revelar “uma e a mesma coisa”. Sua reformulação da ideia de socialismo correspondia a desviá-la da “Zivilization”, associado ao Ocidente, a Inglaterra e aos judeus, para dentro do mundo alemão da Kultur. A forma desse procedimento simples era idêntica àquela da incorporação da tecnologia à retórica da direita do pósguerra (HERF, 1993, p. 64). Esse raciocínio muito se aproxima da lógica de incorporação da modernidade européia pelos Modernistas paulistas: a lógica da Antropofagia.14 Mas quando o problema de uma cultura reside em sua formação e não existe referência a uma originalidade prévia à experiência colonial, a lógica Antropofágica como sintetizada por Oswald de Andrade, ou seja, a de passar a civilização ou a técnica europeia pelo iltro da cultura brasileira, não funciona.15 Para melhor compreendermos a incorporação do conjunto de problemáticas levantadas por Spengler e a resposta de Paulo Prado a esses problemas, devemos fazer um breve panorama do Retrato sobre dois vieses: 1 – a presença constante de referências a cultura brasileira como um organismo e, portanto; 2 – uma percepção de que o desenvolvimento das civilizações é parte de um ciclo de surgimentos e desaparecimentos. 14 Discutir a maneira como opera a Antropofagia como mecanismo de emulação ou transculturação de um repertório de problemas estrangeiros nos demandaria tempo e espaço que não podem ser comportados por esse breve artigo. Um segundo trabalho que trata mais especiicamente da utilização da ideia de poética de emulação, tal qual proposta pelo professor João Cezar de Castro Rocha, como chave explicativa desses diferentes processos de apropriação já está no prelo para publicação nos anais do I Colóquio Internacional de Mobilidade Humana e Circularidade de Ideias, ocorrido na Ufes entre os dias 6 e 8 de julho de 2015, sob o título de “Mímesis, Antropofagia e Emulação”. 15 Este é precisamente o ponto no qual toca uma crítica histórico-cientíica contemporânea, a exemplo da crítica de Manfred Schroeter, que ataca, dentre outros aspectos do pensamento “biologicista” de Spengler, sua dimensão a-histórica. Ver Turconi (1986). Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 89 Cultura, civilização e mal-estar 90 Retrato do Brasil é um livro diferente da produção anterior de Paulo Prado em vários sentidos. O aspecto em que se diferencia da obra prévia do autor que é mais importante para esse texto é seu tom. Ao passo que os artigos reunidos na Paulística, em 1925, e mesmo nas edições posteriores, são muito mais preocupados com a solidez analítica de uma descrição mais minuciosa de um ponto de vista historiográico, o Retrato tem um caráter mais ensaístico, mais solto, mais politicamente comprometido. Sua abordagem “impressionista”, como nos diz Paulo Prado em seu Post-scriptum, é precisamente uma abordagem da experiência formativa colonial e pós-colonial que não se ocupa de limites precisos, mas, tomando a liberdade de levar a proposta do autor mais afundo, ocupa-se das impressões, das grandes mudanças de luz. Paulo Prado está preocupado não com os fatos e as datas especíicos, mas com os traços gerais de nosso produzir-se como nação. A tese geral expressa no livro é a de que nossa experiência colonial encontrou na luxúria e, em seguida, na cobiça, as forças que a moveram. Levadas as últimas consequências, essas forças – dois pecados capitais – teriam exaurido o povo brasileiro de todas as suas energias e dado o traço marcante de nossa civilização, a tristeza ou melancolia. Ao im da nossa experiência colonial, havíamos envelhecido sem amadurecer: era uma Cultura que havia se tornado Civilização sem explorar suas possibilidades vitais (note que em Paulo Prado essa nomenclatura é escarçamente utilizada e que Cultura e Civilização não tem os mesmos valores, positivo e negativo, respectivamente, que na obra de Spengler). O livro é dividido em quatro capítulos e um Post-scriptum que se dispõem da seguinte forma: 1 - Luxúria, 2 - Cobiça, 3 - A tristeza e 4 - O Romantismo. Os dois primeiros referem-se às duas forças que movem os colonizadores e permeiam nossa experiência formadora; o terceiro, ao traço marcante da identidade do povo brasileiro e resultado desse processo colonial; o quarto, ao o grande mal que encontraria terreno fértil entre uma cultura triste e agravaria nossa melancolia, e, por último; um Post-Scriptum que arredonda algumas questões como a racial e a política. A abertura do capítulo primeiro, sobre a Luxúria, sintetiza com muita clareza a proposta de Paulo Prado. Reproduzimos essa passagem aqui para entrarmos, propriamente na obra: Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a renascença izera ressuscitar (PRADO, 2012, p. 39). Os colonizadores são homens renascentistas. Para Paulo Prado, isso signiicava que eram homens libertos do fardo moral da Idade Média e que se projetavam Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo para os valores dos antigos. Esses homens vieram de uma metrópole já decadente e encontraram, na descoberta do novo mundo, as condições de exercício de seus excessos em três fronts, que são os da ambição de “poderio, saber e gozo” (PRADO, 2012, p. 39). E o izeram. O clima quente, a nudez das índias e (posteriormente) a inocência das negras seriam incentivadores desse exercício de liberdade sexual. A entrega do colonizador a essas pujanças viria a produzir todo tipo de degeneração sexual, tais quais a homossexualidade e a pederastia (PRADO, 2012, p. 56-59) e, naturalmente, produzir uma nova raça, mestiça (arrisco dizer que, para o autor, inapropriadamente mestiça), a raça brasileira. Só que “post coitum animal triste, nisi gallus qui cantat”16 (PRADO, 2012, p. 97), como nos diz o adágio médico citado por Paulo Prado, e desse exercício de libertinagem e de erotismo, o povo brasileiro saiu cansado, mestiço e enfraquecido. Ecoou, na America portuguesa, a depravação e desmoralização que já havia tomado a metrópole. Do desbragamento sexual para a sede de ouro foi um passo muito curto: “dessa paixão [a sensualidade exacerbada], outro sentimento surgia na alma do conquistador e povoador, outro sentimento extenuante na sua esterelidade materialista: a fascinação pelo ouro [...]” (PRADO, 2012, p. 96). E, como escreve Gonçalves Dias, “se subiram tantos montes, [...] se exploraram tantos rios, [...] se descobriram tantas terras, [...] se avassalaram tantas tribos; dizei-o, e não mentireis: - foi por cobiça” (PRADO, 2012, p. 64). Aí, Paulo Prado discorda de sua leitura anterior sobre o bandeirante, principal (mas não único) portador da cobiça colonizadora. Não eram espíritos verdadeiramente empreendedores como haviam sido retratados na Paulística, ou como os disciplinados colonizadores norte-americanos; tinham uma insaciável cobiça, uma sede de ouro que não haverá se visto antes. O empreendedorismo se foi junto com as bandeiras, enterrados, lado a lado, pela cobiça, a mesma que os fez nascer. Foram quase dois séculos de buscas pelo ouro que acabaram com o que havia restado da energia do colonizador. E então o povo brasileiro foi tomado pela tristeza. A palavra mais adequada para esse traço fundamental da nossa cultura talvez seja “melancolia”, palavra esta que Paulo Prado também utiliza. A melancolia é um estado psíquico, não meramente um sentimento ou uma postura com a qual se encara o mundo.17 Caracteriza-se pela morosidade, indisposição e imobilidade. Paulo Prado não é nem único nem original em identiicar traços melancólicos no povo brasileiro. A preguiça é uma das faces da melancolia e o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e mesmo “Após o coito os animais icam tristes, salvo o galo, que canta”. Trata-se de uma versão do adágio “post coitum omne animal triste est sive gallus et mulier”, de Claudius Galenus. 17 Existe uma vasta bibliograia sobre a melancolia tanto em português quanto em línguas estrangeiras, da qual não pretendemos dar conta aqui, visto o espaço limitado desse artigo. Para uma deinição mais formal do conceito Cf. Starobinski (2014). 16 Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 91 Cultura, civilização e mal-estar o Macunaíma, de Mario de Andrade, são retratos de um povo brasileiro indisposto, preguiçoso. Não cabe aqui uma análise mais minuciosa da presença da melancolia da literatura brasileira, mas esta, como estado psíquico, nos serve de porta de entrada para uma questão central para compreender a extensão de Spengler na obra de Paulo Prado: o organicismo. A cultura brasileira é, sem meias palavras um “organismo precocemente depauperado” (PRADO, 2012, p. 113), após a experiência colonial. A cobiça e a luxúria são responsáveis por fenômenos de “esgotamento” que: não se limitam às funções sensoriais e vegetativas; estendem-se até o domínio da inteligência e dos sentimento. Produzem no organismo perturbações somáticas e psíquicas, acompanhadas de uma profunda fadiga, que facilmente toma aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio (PRADO, 2012, p. 96, grifo nosso). 92 Ao se referir ao romantismo diz que “vinha a infecção das margens do Tietê ou do Capibaribe e aos poucos contaminava o Brasil inteiro. Caracterizam-na dois princípios patológicos: a hipertroia da imaginação e a exaltação da sensibilidade” (PRADO, 2012, p. 123, grifo nosso) ou, mais a frente, refere-se aos “traços sintomáticos da infecção romântica” (PRADO, 2012, p. 124, grifo nosso) e seguem-se, sobretudo nos capítulos sobre a tristeza e o romantismo, inúmeras referências a um vocabulário tomado emprestado das ciências médicas e biológicas. Fica claro, ao longo do ensaio de Paulo Prado, que estamos falando de um organismo vivo quando estamos falando da civilização brasileira. E todo organismo vivo está fadado a morrer. Um trecho do primeiro capítulo do Retrato, que versa sobre o movimento migratório do colonizador, e que nos serve bem para encerrar essa parte do texto, é uma ilustração de que, a época, o vocabulário das ideias foi marcadamente inluenciado por Spengler: “Recomeçava na história do mundo o misterioso impulso que de séculos em séculos põe em movimento as massas humanas, após os longos repousos em que as civilização nascem, se desenvolvem e morrem” (PRADO, 2012, p. 40). Aproximações, distanciamentos e outras considerações: entre Spengler, Paulo Prado e Mario de Andrade Esperamos que a essa altura do texto esteja claro que não defendemos, em nenhum momento, qualquer tipo de proposta que reduza as ideias do período a uma inluência esmagadora de Spengler. Este não é o único – nem mesmo o primeiro – a fazer uso desse repertório do qual, depois da publicação de sua obra, passou a fazer Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo parte. Spengler foi, como diria Northop Frye, um “ninguém em particular”18 cuja saúde era tão ruim que não foi chamado para servir na guerra, que abandonou seu trabalho na década de 1910 para escrever e que mal tinha dinheiro para comprar comida ou roupas, quiçá livros (FRYE, 2013, p. 297). Conseguiu, na adversidade, emplacar um livro de enorme sucesso intelectual e arrancar ao topo de um ranking acadêmico “semimilitar” alemão. A obra foi imediatamente celebrada e traduzida para várias línguas. Em larga medida, sem dúvidas, Spengler foi capaz de sintetizar a linguagem de uma época para a solução de carências de sentido igualmente localizadas. E, sendo bem sucedido, foi capaz de moldar um vocabulário que permaneceu em utilização por décadas após a publicação do Declínio. Não existe nenhuma subserviência dos autores analisados a proposta de Spengler. Existem apropriações ou não de um léxico de ideias. Mario de Andrade parece o fazerem maior escala do que Paulo Prado. Este se insurge mais em favor de uma perspectiva historicizante. Spengler diz que: “O fato de ter desabrochado, por volta de 1000 d.C., uma grande cultura na Europa ocidental é obra do acaso. Mas, a partir desse momento, obedeceu ela ‘à lei segundo a qual se iniciara’”. E completa: O que for acaso e o que for destino dependerá da posição do analisador. Considera-se, por exemplo, uma casualidade ter Goethe estado em Sesenheim, ao passo que se julga obra do destino ter-se ele encaminhado a Weimar. [...] Tal distinção não corresponde ao espírito do homem ‘antigo’. Aos seus olhos, a abundância das ocorrências assumia caráter anedótico, quando uma delas se salientava. O resto não passava, para ele, de uma seqüência de casualidades, no sentido de episódios (SPENGLER, 1973, p. 102). Paulo Prado não faz referência a lei ou destino algum que seja responsável por reger o rumo dos acontecimentos. Tudo está sujeito à mudança, ao desvio, à inluência de forças históricas. Interessa-nos, neste trabalho, por im, especular sobre a os resultados dessa inluência spengleriana, ou seja, em que medida a apropriação das ideias de Spengler pode ter inluenciado ou pode ter traduzido uma postura ética e um tipo de ação política dos dois autores. Gilberto Freyre diz, em artigo publicado no Diário de S. Paulo, no dia 27/10/1943, por ocasião da morte de Paulo Prado: Quem daqui a meio século estudar a personalidade e a vida de Paulo Prado se espantará decerto ao ver o seu nome associado ao mesmo tempo ao ‘movimento modernista’ e ao Departamento Nacional de Café. É que Paulo Prado foi realmente um dos casos mais curioso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde que já houve no Brasil ou que ocorreram no século XIX (FREYRE apud PRADO, 2012.). 18 No original, nobody in particular. Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 93 Cultura, civilização e mal-estar Paulo Prado parece sempre ter sido essa igura dúbia, não apenas como modernista cafeicultor, mas também como intelectual. O autor nos lega um programa político um tanto abstrato no Post-Scriptum – que é um pequeno manifesto político – do Retrato: Para tão grandes males parecem esgotadas as medicações da terapêutica corrente: é necessário recorrer à cirurgia. Filosoicamente falando – sem cuidar da realidade social e política da atualidade –, só duas soluções poderão impedir o desmembramento do país e a sua desaparição como um todo uno criado pelas circunstâncias históricas, duas soluções catastróicas: a Guerra, a Revolução (PRADO, 2012, p. 142). 94 A Guerra por que abre o período de “falência governamental”, cria as condições para a produção e ascensão de um “herói providencial” que venha do povo e que nos livre da letargia. A Revolução pois é “a airmação inexorável de que, quando tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento do tudo que foi malfeito” (PRADO, 2012, p. 143). Paulo Prado revela-se um pessimista – ainda que preira o rótulo de otimista – revolucionário. Em tese, pelo menos. Até onde se sabe, apesar de alegar ter sido um homem de esquerda, um revolucionário, por toda a vida, Paulo Prado nunca fomentou nenhum acontecimento revolucionário nem nunca participou de uma revolução ele mesmo. Sua leitura profundamente pessimista da realidade, entretanto, foi o que fez com que exigisse medidas tão drásticas para a solução do impasse brasileiro. No Retrato do Brasil, Paulo Prado não deixa claro exatamente qual é seu programa pós-guerra, ou pós-revolucionário. Num manuscrito, inédito quando citado por Carlos Augusto Calil em seu texto introdutório para sua organização da Paulística etc., de 2004, Paulo Prado indica traços de seu plano: O programa de restrições nas importações desnecessárias pede uma execução imediata, e será de conseqüências rápidas. O Brasil necessita de vida própria, por que só o nacionalismo – debaixo de todos os aspectos – nos libertará da tirania e da cobiça dos imperialismo que nos ameaçam. Temos vivido até aqui de importação, de imitação, e da subcultura que exportam os velhos países da Europa. É nesse sentido que me parece que a Revolução, para triunfar, precisa ir além da simples mudança de governo ou substituição de nomes nos cargos públicos. O programa revolucionário deve ser integral para salvar o país. Todas as energias, todas as colaborações, todas as contribuições – conscientes ou instintivas – são necessárias na realização dessa transformação radical. Já se disse que as revoluções somente são puras durante os primeiros quinze dias. Não sei, mas só acredito no seus benefícios quando atingem todas as modalidades da atividade nacional (PRADO, 2004, p. 19). Em um segundo manuscrito inédito, Paulo Prado cobra o comprometimento de seus conterrâneos na construção de uma civilização. Citamos apenas um curto trecho para dar o tom da reivindicação: Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • Hugo Ricardo Merlo Que diriam esses intelectuais do que se passa em São Paulo? Guardadas as proporções devidas, no nosso pequeno mundo, repetem-se os mesmos fenômenos registrados no inquérito americano, isto é, um idêntico desequilíbrio entre o progresso material e o atraso intelectual, político e artístico, que forçosamente impedem o desenvolvimento do que se chama uma civilização... (PRADO, 2004, p. 20). Paulo Prado e Mario de Andrade conluem na exigência de um pensamento e de uma arte que rendam o Brasil do pensamento da velha Europa. Partilhavam também de uma falta de clareza e sistematicidade quando o assunto era política e ética. A relação de Mario com esses temas mudou bastante ao longo do tempo, como sintetiza Leandro Konder, em seu curto mas muitíssimo informativo texto sobre Mario de Andrade publicado como trecho do Intelectuais brasileiros & marxismo, de sua autoria. Konder destaca uma crescente radicalidade e pluralidade no pensamento de Mario sobre a política e os imperativos éticos dos intelectuais. Ao passo de que, ao im da vida, o autor de Macunaíma parece tender a uma ideia de arte independente, que serve a si mesma, no Táxi, que reúne textos de um momento um pouco anterior de sua vida, Mario defende: O intelectual pode bem e deverá sempre se pôr a serviço duma dessas ideologias, duma dessas verdades temporárias. Mas por isso mesmo que é um cultivado, e um ser livre, por mais que minta em proveito da verdade temporária que defende, nada no mundo o impedirá de ver, de recolher e reconhecer a verdade da miséria do mundo. Da miséria dos homens. O intelectual verdadeiro, por tudo isso, sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora da lei (ANDRADE apud KONDER, 1991, p. 43-49). Existem várias possibilidades pelas quais podemos tentar estabelecer conexões mais rígidas entre os autores analisados. Uma abordagem possível é uma que levasse em conta o esforço partilhado dos autores em modernizar (em termos bem distintos) a realidade de suas nações, ou uma análise mais atenta às ideias de modernização ou superação de empecilhos histórico-sociológicos ou culturais (inspirada em uma história das ideias); ou uma abordagem que procurasse traçar as características de suas projeções no passado, presente ou futuro, de um mal-estar que partilhavam sensivelmente, de reconstruir um clima histórico, a moda do proposto por Hans Ulrich Gumbrecht; ou ainda, tomar os trabalhos de Gilda de Mello e Souza e Haroldo de Campos acerca da tecedura da narrativa andradiana, seja em modo de composição, inspirada no princípio rapsódico da suíte (desnivelado e então renivelado), ou na bricolage dos bricoleurs, e analisar (metahistoricamente, como na tropologia de Hayden White) a urdidura das obras aqui sobrevoadas; ou ainda levar em conta uma genealogia das formas de se escrever e ler, que mudam no Brasil e na Europa do Entre-Guerras, e que criam formas e limitam as possibilidades de redação de obras, sejam elas ilosóicas, historiográicas, Revista Ágora Vitória n. 21 2015 p. 77-97 ISSN: 1980-0096 • • • • • 95 Cultura, civilização e mal-estar literárias ou os três. Não conseguiríamos realizar, no espaço que nos resta, nenhuma dessas abordagens de modo a convencer o leitor de suas suiciências para explicar o elo entre os autores analisados. Para nós, o objetivo inicial deste artigo já foi atingido: o objetivo de indicar essas possibilidades de abordagens a partir da análise das aparições das obras de Spengler, Paulo Prado e Mario de Andrade, umas nas outras; em suma, de produzir caminhos para dar seguimento a esta pesquisa. Referências 96 ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. ______. O movimento modernista. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. 6ª ed. São Paulo: Martins, 1978. BERRIEL, Carlos Eduardo Ornellas. Dimensão de Macunaíma: ilosoia, gênero e época. 1987. 201p. 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