Boletim - 335
Outubro de 2020
Necropolítica e gestão prisional durante a pandemia no Brasil

 

Data: 01/10/2020
Autor: IBCCRIM

Em 9 de setembro de 2020, data da redação deste editorial, o Brasil registrava, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, 184 óbitos por complicações da COVID-19 no sistema prisional.([1]) Registrava também 30.467 pessoas presas infectadas. Contudo, os dados passam ao largo de refletirem a realidade. Ainda segundo o CNJ, de um total de 755.274 presos e presas no país, somente 36.899 haviam sido testados até 30 de agosto de 2020 - menos de 5% da população carcerária.

Nesse contexto de conveniente subnotificação, não há como se ter a dimensão exata de quantas pessoas custodiadas estão infectadas ou já morreram por complicações da doença. Entre os meses de julho e agosto, ao ser realizada testagem em massa em alguns dos estabelecimentos do estado de São Paulo, chegou-se ao percentual médio de 40% de resultados positivos. Como exemplo concreto do cenário paulista, no CDP II de Pinheiros, dos 1609 presos, 748 resultaram positivo, representando 46% de contaminação.([2])

E, certamente, a situação precária das prisões brasileiras terá consequências ainda mais desastrosas. Segundo levantamento do CNJ, de maio a junho, a contaminação aumentou 800% nas prisões do país,([3]) porcentagem que não para de crescer. Não há surpresa no fato de que o alastramento do vírus pelo sistema se dê em velocidade exponencialmente maior. Não é possível à população carcerária cumprir minimamente os protocolos sanitários gerais.

Conforme os relatórios de inspeção do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, é comum que 40 pessoas vivam em celas projetadas para 12. Ainda, conforme dados levantados pelo órgão, 70,8% das unidades prisionais do Estado realizam racionamento de água, 69% dos presos afirmam que não recebem sabonete quando necessitam e 77,28% dos estabelecimentos não possuem equipe mínima de saúde,([4]) nos termos da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Em média, mesmo em tempos normais, uma pessoa presa morre a cada 19 horas em São Paulo.([5])

Em meio à pilha de cadáveres produzida cotidianamente pelo sistema prisional, a estratégia de subnotificação adotada pelos Poderes da República tem sido bem sucedida, diante da cegueira deliberada das autoridades e do silêncio sorridente da opinião pública. Os presídios no Brasil são dispositivos necropolíticos, onde a tendência é o extermínio. É deixar morrer. E onde já morrem milhares, poderão morrer dezenas de milhares, sem que isso signifique para as instituições muito mais do que o acréscimo de um zero nas estatísticas. Os agentes prisionais, que vêm sendo imensamente afetados pela pandemia, também estão morrendo, o que também se afigura como efeito desse projeto necropolítico.([6])

A vetoração necropolítica da gestão pública da pandemia nas prisões fica evidente quando verificamos as medidas adotadas pelos Poderes da República acerca do tema. A Portaria Interministerial 7, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério da Saúde, veio à luz logo no início da pandemia, trazendo orientações técnicas aos gestores do sistema. Uma mera leitura superficial demonstra que a portaria é totalmente alheia à realidade dos presídios. Recomenda-se o isolamento, com cortinas ou marcações no chão, de pessoas que apresentem sintomas compatíveis com a COVID-19, guardando um espaço de dois metros entre cada uma. Ocorre que é absolutamente impossível, no sistema prisional brasileiro, evitar que os presos e as presas fiquem a menos de dois metros de distância. A portaria também nada diz sobre casos assintomáticos ou testagem na inclusão, e não traz nenhuma resposta acerca da forma de identificação dos sintomas, eis que dois terços dos estabelecimentos prisionais não contam com equipe mínima de saúde.

Evidentemente, a referida portaria não vem sendo cumprida, por sua inexequibilidade. Ato contínuo, a “solução” apresentada pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) foi a proposta de que pessoas idosas e com comorbidades fossem colocadas em contêineres. O DEPEN encaminhou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária ofício requerendo a alteração da Resolução 9/2011, que trata de arquitetura prisional, com o objetivo de auferir permissão para encarcerar em instalações do tipo contêiner. Atendendo a pressões da sociedade civil, o CNPCP afastou a possibilidade de regulamentação do aprisionamento de pessoas em recipientes de carga, mas optou por flexibilizar as normas de arquitetura prisional, permitindo a criação de espaços precarizados para a alocação de pessoas insertas no grupo de risco para complicações da COVID-19.

No âmbito do Poder Judiciário, muito embora tenha havido a edição de uma louvável Recomendação pelo CNJ – a Recomendação 62, de 17 de março de 2020 – orientando juízes e juízas à revisão das prisões de pessoas que correm maior risco, bem como de pessoas presas por crimes sem violência ou ameaça, verificou-se que a normativa, dado seu caráter não vinculante, não vem sendo cumprida pelas mais diversas instâncias judiciais do país.

Em 12 de junho de 2020, o CNJ divulgou que, em três meses de vigência da mencionada Recomendação, apenas 32,5 mil pessoas foram liberadas das unidades prisionais.([7]) Trata-se de 4,8% do total de pessoas em privação de liberdade no Brasil, o que não supera, portanto, o número de pessoas excluídas do sistema em tempos de normalidade, seja pelo cumprimento de suas penas, seja pela progressão de regime ou livramento condicional.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem se esquivado de enfrentar a questão, assentando-se sobre o argumento de que a Recomendação do CNJ deve ser cumprida ou descumprida a critério dos juízos locais. Atualmente, está pendente de julgamento a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 684, que requer ao STF a emissão de comando jurisdicional determinando a juízes e juízas a observância das medidas constantes da Recomendação 62/2020. No entanto, nem mesmo os pedidos de mais de 20 instituições do sistema de justiça e organizações da sociedade civil, como o IBCCRIM, para atuarem como amici curiae foram, até o momento, apreciados.

A emissão de provimento que determine a redução do contingente prisional é a única medida que pode minorar o número de mortes no sistema. A inércia das autoridades públicas em apresentar medidas eficazes para o enfrentamento da questão não decorre apenas da precariedade e da falta de recursos, mas, sobretudo, de uma postura ideológica das mais diversas esferas e instâncias do Estado para deixar a população carcerária morrer.

A banalidade do morticínio nas prisões é um projeto oculto de Estado. A ausência de notificação, de identificação da causa das mortes e da divulgação precisa de dados evidencia o objetivo de que a hecatombe que se afigura no sistema sequer se inscreva na memória coletiva. Como sujeitos matáveis, pretende-se que os presos e as presas morram em silêncio, sem qualquer consequência aos gestores públicos e sem qualquer resguardo da lei, na esteira do projeto necropolítico que sempre marcou a gestão prisional no Brasil.


Notas de rodapé

([1]) Soma de 106 óbitos de pessoas presas e 78 servidores do sistema prisional.

([2]) SUDRÉ, Lu. Casos de Covid-19 no sistema carcerário aumentam 72,4% em um mês. Brasil de Fato, São Paulo, 12 ago. 2020. Disponível em:

https://www.brasildefato.com.br/2020/08/12/casos-de-covid-19-no-sistema-carcerario-aumentam-72-4-em-um-mes. Acesso em: 14 set. 2020.

([3]) MATTOSO, Camila (ed.). CNJ fala em crescimento de 800% de casos de Covid-19 em presídios e renova recomendação para solturaFolha de S. Paulo, Painel, 12 jun. 2020.  Disponível em:   https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/06/cnj-fala-em-crescimento-de-800-de-casos-de-covid-19-em-presidios-e-renova-recomendacao-para-soltura.shtml. Acesso em: 14 set. 2020.

([4]) Dados obtidos junto ao Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

([5]) CERDEIRA. Rayssa. Um preso morre a cada 19 horas em São Paulo. CBN, 19 jul. 2019. Disponível em:  https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/267901/um-preso-morre-cada-dezenove-horas-em-sao-paulo.htm. Acesso em: 14 set. 2020.

([6]) Nesse sentido, são as conclusões de SHIMIZU, Bruno. A necropolítica da gestão da pandemia no sistema carcerário brasileiro. Boletim extraordinário CAAF/Unifesp de enfrentamento da COVID-19, n. 4, p. 10-13, 2020. Disponível em:   https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/novo_site/boletim%20caaf/Boletim%20caaf%20N4.pdf. Acesso em: 14 set. 2020.

([7]) AGÊNCIA CNJ. CNJ renova Recomendação nº 62 por mais 90 dias e divulga novos dados. Agência CNJ, Notícias CNJ, 12 jun. 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-renova-recomendacao-n-62-por-mais-90-dias-e-divulga-novos-dados/. Acesso em: 14 set. 2020.


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CASO TRABALHADORES DA FAZENDA BRASIL VERDE VS. BRASIL: POSSIBILIDADES DE REPERCUSSÃO EM FAVOR DAS VÍTIMAS DE TRABALHO ESCRAVO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar o caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, sentenciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em Outubro de 2016, por meio do qual o Brasil foi responsabilizado pela exploração de trabalho escravo em seu território, com determinação de pagamento de indenização às vítimas e reabertura das investigações criminais. Na sentença, a Corte IDH reconheceu a existência de uma discriminação estrutural histórica em razão de posição econômica no Brasil. Será traçada breve comparação entre os parâmetros interamericanos e a jurisprudência nacional, abordando possibilidades de utilização do precedente como fundamento para teses jurídicas em favor das vítimas de trabalho escravo no processo criminal brasileiro.

Palavras-chave: trabalho escravo, discriminação histórica estrutural, vítimas, processo criminal

Abstract: This study aims to analyze the case Fazenda Brasil Verde Workers, sentenced by the Inter-American Court of Human Rights in October 2016, in which Brazil was held responsible for the exploitation of slave labour in its territory, and ordered to pay compensation for victims and reopen the criminal investigations. In its sentence, the Inter-American Court recognized the existence, in Brazil, of historical structural discrimination on the grounds of economic position. A brief comparison will be drawn between the Inter-American standards and the national jurisprudence, addressing possibilities of using the precedent as a basis for legal thesis on behalf of slave labour victims in Brazilian criminal procedures.

Keywords: slave labour, historical structural discrimination, victims, criminal procedure

Data: 02/10/2020
Autor: Fabiana Galera Severo

Neste mês de outubro, a condenação do Brasil no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde completa quatro anos.1 O precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos pode servir de base para uma guinada paradigmática na aplicação da lei penal nos casos de trabalho escravo no Brasil, sob a perspectiva da vítima, rompendo com a tradição de discursos jurídicos discriminatórios, que banalizam violações à dignidade, invisibilizando pessoas em situação de vulnerabilidade, sobretudo trabalhadores negros e de origem muito pobre, que acabam submetidos a condições de escravidão no país.

A sentença da Corte IDH no caso

No julgamento do caso, a Corte IDH reconheceu a existência de uma discriminação estrutural histórica em razão de posição econômica no Brasil, que coloca milhares de trabalhadores em posição de vulnerabilidade. De acordo com o precedente, as vítimas em geral são homens pobres, negros, originários de estados muito pobres, sendo muitos analfabetos, sem identificação civil, e com histórico de deslocamento contínuo para buscar sustento econômico.

Foi preciso que um, entre os tantos casos de exploração de trabalho escravo no país, fosse levado a uma corte internacional, para que se chegasse à conclusão de que as condições degradantes de trabalho no Brasil carregam a marca da discriminação histórica e estrutural de trabalhadores, fundada em raça, origem e posição econômica. É nesse sentido que o precedente internacional, que deve servir de base ao controle de convencionalidade no julgamento de outros casos, representa uma guinada paradigmática em relação ao discurso jurídico discriminatório que costumava vir estampado na jurisprudência brasileira.

Em primeiro lugar, a sentença estabeleceu o dever do Estado de respeitar e garantir direitos, sem discriminação. Para tanto, assentou que Estados devem abster-se de ações que, direta ou indiretamente, venham a criar situações de discriminação, de direito e de fato, além de adotar medidas positivas para reverter ou mudar situações discriminatórias existentes nas sociedades, em prejuízo de determinado grupo de pessoas. Assim, não basta que os Estados se abstenham de violar direitos, sendo imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das necessidades particulares de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontra, como a pobreza ou a marginalização.2 Por fim, a Corte entendeu que o Estado incorreu em responsabilidade internacional por ter sido omisso no dever de adotar medidas específicas a respeito da vulnerabilidade das pessoas recrutadas na Fazenda Brasil Verde.

Para fundamentar a conclusão de discriminação estrutural no caso concreto, a Corte identificou algumas características de particular vitimização entre os trabalhadores resgatados: a situação de pobreza dos trabalhadores; o fato de serem provenientes de regiões muito pobres do país, com menor desenvolvimento humano e perspectivas de trabalho e emprego; o fato de serem analfabetos, com pouca ou nenhuma escolarização; o fato de serem suscetíveis a recrutamento mediante promessas falsas e enganosas.3 Esse conjunto de fatores ensejou a conclusão de existir tratamento discriminatório em razão da posição econômica das vítimas resgatadas de condições de escravidão no caso concreto.

Entre as omissões do Estado brasileiro, constatou-se omissão em relação ao lapso temporal, eis que o Estado não atuou com prontidão dentro das primeiras horas e dias logo depois da denúncia de escravidão e violência, além da ausência de coordenação entre as ações de inspeção e demais medidas de devida diligência em relação às vítimas e à própria investigação do caso. Constatou-se, então, que o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de realizar ações efetivas para eliminar trabalho forçado, tráfico de pessoas e servidão por dívidas, assim como de remover obstáculos de acesso à justiça com fundamento na origem, etnia, raça e posição econômica das vítimas, que permitiu a manutenção de fatores de discriminação estrutural, que facilitaram que os trabalhadores da Fazenda fossem vítimas de tráfico, escravidão e trabalho forçado.

No que diz respeito à ausência de proteção judicial às vítimas e à razoável duração dos processos, concluiu-se que restou caracterizada a violação aos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, em razão da demora injustificada de processar e julgar o caso; a ausência de uma autêntica vontade de investigar com devida diligência; a opção de suspensão condicional do processo ao perpetrador; e a extinção da punibilidade pela prescrição, não obstante as condutas de escravidão e trabalho forçado constituírem graves violações de direitos humanos, cuja proibição absoluta por norma de jus cogens inadmite a possibilidade de prescrição.4 No caso, considerou-se que a discriminação estrutural a que estavam submetidas as vítimas era também perpetrada pelo Estado, que não lhes garantiu o acesso à justiça, na medida em que não houve instauração de processo criminal quando identificadas as irregularidades trabalhistas, além de ter sido firmado acordo com o empregador sem levar em consideração os interesses dos trabalhadores.

A Corte também demonstrou sua intenção de beneficiar a maior quantidade possível de vítimas de trabalho escravo. Nesse sentido, afastou a preliminar de incompetência ratione personae a respeito de supostas vítimas não identificadas; de vítimas identificadas que não outorgaram procuração; e de vítimas não relacionadas no relatório de mérito da Comissão. Assim, estabeleceu-se a desnecessidade de outorga de procuração pela coletividade de vítimas de trabalho escravo, afastando, com isso, qualquer exigência de formalidade que não sirva para garantir direitos, ou que tenha sido apresentada com o intuito de obstaculizar o acesso a mecanismos de proteção. Consagra-se, aqui, o princípio do acesso à justiça, por meio da garantia judicial insculpida no artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, combinada com a garantia de proteção judicial estabelecida no artigo 25, conferindo máxima efetividade ao princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal.

Para garantir o direito à reparação integral às vítimas, com fundamento no artigo 63.1 da Convenção, a Corte determinou a reabertura das investigações, com devida diligência, para, em prazo razoável, identificar, processar e, se for o caso, sancionar os responsáveis, assegurando, em particular, o pleno acesso às vítimas e seus familiares em todas as etapas da investigação. Quanto à compensação pelos danos imateriais, a Corte fixou indenização pelos sofrimentos causados pela violação, por equidade, no valor de 30 e 40 mil dólares para cada um dos trabalhadores, sendo, respectivamente, aqueles identificados na fiscalização de 23 de abril de 1997 e de 15 de março de 2000.5

Precedentes de trabalho escravo na jurisprudência criminal brasileira

Em contraposição à identificação de discriminação histórica estrutural de determinados grupos sociais no Brasil, a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais no Brasil, apesar de reconhecer a violação à dignidade humana como suficiente para caracterizar o crime de trabalho escravo, não raro, vinha se firmando no sentido de banalizar situações recorrentes de violações à dignidade humana de trabalhadores, em evidente discriminação das pessoas pertencentes a determinados grupos sociais vulneráveis.

Destacam-se, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a decisão proferida no bojo do Inquérito INQ 00268232620124010000, referente a caso em que não foi caracterizado trabalho escravo, apesar da submissão de trabalhadores à jornada exaustiva, por se tratar de situação que envolvia “necessidade de colheita imediata de safra perecível, considerada circunstância comum no campo, exigindo um esforço extra da mão de obra”,6 assim como a decisão de absolvição proferida no bojo da apelação criminal ACR 2008.43.00.001748-0, fundamentada no entendimento de que “condições degradantes de trabalho são um retrato da própria realidade interiorana do país”.7

Por seu turno, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região é a corte que reúne parte mais significativa de precedentes de banalização da exploração do trabalho escravo. É o caso da decisão proferida no bojo da apelação criminal ACR 00037397720134058300, no sentido de que ausência de local para se abrigar do sol e da chuva, para realizar necessidades fisiológicas, e ausência do fornecimento de água suficiente para hidratar quem trabalha exaustivamente sob o sol seriam condutas que violam apenas direitos trabalhistas.8 Na decisão proferida na ação penal APN 00054681220114058300, entendeu-se que condições de ausência de locais adequados para troca de vestimentas, ausência de exames médicos periódicos, ausência de fornecimento de equipamento de proteção individual adequado aos riscos a que são expostos os trabalhadores, inclusive, daqueles expostos a agrotóxicos, ausência de instalações sanitárias em estado de asseio e higiene adequados, ausência de fornecimento adequado de água potável e ausência de refeitório, embora representem graves infrações à legislação trabalhista, “não são elas diferentes da realidade de trabalho de muitos dos empreendimentos agrícolas da região Nordeste”.9 Ainda, na apelação criminal ACR 200782020041980, consta da fundamentação da decisão que os fatos “não se afastam da realidade social, infelizmente, vivenciada pelas pessoas pobres residentes nas cidades do interior nordestino, que delas saem para arriscar uma ocupação qualquer em outras plagas”. 10 Nessa mesma linha, na apelação criminal ACR 200783000177204, entendeu-se que as condições, “de fato, precárias, não destoam, entretanto, da realidade vivida na zona rural nordestina”. 11 Por fim, o posicionamento discriminatório do Tribunal, aumentando o fosso da desigualdade social, restou estampado na decisão proferida no HC 00030912720144058312, em que se entendeu que a conduta estaria justificada pela situação de emergência da obra, que não poderia parar, sob pena de acarretar “prejuízos inimagináveis”. 12

O que, numa análise perfunctória, poderia ser interpretado como um posicionamento garantista desses tribunais, a rigor, retrata a banalização da violação à dignidade humana das pessoas pertencentes a grupos mais vulneráveis, histórica e estruturalmente discriminados no Brasil. A discriminação histórica e estrutural, fundada em raça, origem e posição econômica, conforme parametrizada pela Corte IDH, é o que, ao mesmo tempo em que invisibiliza as vítimas de trabalho escravo e de outras violações de direitos humanos perpetradas contra grupos sociais vulneráveis, por outro lado, dentro da seletividade do processo penal, também incrimina e encarcera essas mesmas pessoas, quando estão no banco dos réus, em outros tipos penais.

Possibilidades de repercussão do precedente no processo penal brasileiro

Além da banalização das situações que configuram exploração de trabalho escravo, mesmo nos casos em que a violação é constatada, as vítimas costumam ficar invisibilizadas no processo criminal, e raramente figuram como assistentes de acusação,13 fazendo com que a repressão criminal não acarrete efetiva compensação a esse grupo vulnerável.

No sistema de justiça brasileiro, a repressão criminal ainda está muito mais focada na sanção aos perpetradores do que na compensação às vítimas, ao contrário do caminho que aponta a jurisprudência da Corte IDH. Com efeito, as vítimas de uma violação de direitos humanos, como é o caso da exploração do trabalho em condições de escravidão, podem figurar no respectivo processo criminal na qualidade de assistentes de acusação, com base no artigo 387, IV do Código de Processo Penal. Com o advento da reforma do Código em 2008, pela Lei 11.719, o referido dispositivo legal passou a contar com nova redação, conferindo ao juiz criminal a competência para, na sentença penal condenatória, fixar o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido – o que antes era diferido para o momento da ação civil ex delicto. Figurando no processo como assistente de acusação, a vítima pode participar de toda a dilação probatória – e, pelo parâmetro da Corte IDH, inclusive da fase de investigação ,– o que tende a garantir maior efetividade à repressão criminal, sobretudo na perspectiva do interesse das vítimas, para garantia de proteção, assistência e acesso a reparações efetivas. Durante a instrução criminal, além da busca de provas para a condenação, o assistente de acusação pode instruir o processo com informações que comprovem os danos suportados pelas vítimas e forneçam base para a fixação da respectiva indenização.

Ressalte-se que eventual demora no processo criminal, com reconhecimento de prescrição em relação à pena criminal, poderia, em tese, alcançar a indenização fixada, porquanto efeito secundário da condenação, possibilitando à vítima a via remanescente da ação civil ex delicto, sujeita ao prazo prescricional de três anos previsto no artigo 206, §3º, V do Código Civil, com possibilidade de interrupção da prescrição durante a tramitação do processo criminal, nos termos do artigo 202, parágrafo único, do mesmo diploma legal. No entanto, o caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde reconheceu a imprescritibilidade do crime de submissão à condição de escravidão contemporânea por se tratar de uma grave violação de direitos humanos. E, se há imprescritibilidade no processo criminal, que é a ultima ratio do direito, é possível defender a tese da imprescritibilidade também perante a Justiça do Trabalho nos casos de trabalho escravo.

Não obstante, o instituto da reparação ao ofendido ainda é pouco utilizado na prática do processo penal brasileiro, em que as vítimas costumam participar apenas na condição de testemunhas de acusação, com o objetivo de produzir a prova para a condenação do acusado, sem o devido recebimento de indenização pelas violações suportadas e, muitas vezes, sem mesmo qualquer observância de medidas de proteção e para evitar a revitimização. Ao participar do processo penal como testemunha de acusação, a vítima se expõe, revive o trauma, passa por processos de revitimização e fica numa posição passiva, sem qualquer ingerência na busca da verdade e do direito à reparação em decorrência da violação suportada.

Num dos poucos casos de condenação a título de reparação ao ofendido, em caso concreto em que as vítimas figuraram como assistentes de acusação no processo penal, além de os depoimentos terem causado muito sofrimento e o processo ter tido longa duração, o valor fixado a título de compensação pelas violações perpetradas foi de apenas 5 mil reais por trabalhador.14 Assim, os valores objeto da condenação do Brasil no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde também devem servir de parâmetro para fixação de reparação ao ofendido em decisões internas de casos semelhantes pelo controle de convencionalidade.

Mais que isso, o precedente interamericano pode repercutir em outros casos concretos, incentivando a utilização do instituto da assistência à acusação como meio de buscar maior efetividade na repressão criminal pela perspectiva do direito de acesso à justiça e compensação às vítimas. Pode, enfim, representar a oportunidade de que a repressão ao trabalho escravo no Brasil volte o seu olhar aos trabalhadores histórica e estruturalmente discriminados e não raro submetidos a condições de escravidão contemporânea ao invés de se restringir à punição do agente.


Notas de rodapé

1 CORTE IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C, n. 318. 

2 Já dizia Kevin Bales, fazendo uma análise da escravidão contemporânea sob uma perspectiva global, que quando a maior parte da população tem um padrão de vida razoável e alguma segurança financeira, a escravidão não pode prosperar, pois há condições econômicas e sociais para a existência de trabalho escravo, como ser pobre, sem moradia, refugiado ou abandonado, o que pode levar ao desespero que abre as portas para a escravidão, sendo fácil, nessas situações, cair numa armadilha. Vide, a respeito, BALES, Kevin. Disposable people: new slavery in the global economy. Los Angeles: University of California Press: 1999, p. 31-32.

3 No sistema global de proteção dos direitos humanos, o recrutamento justo e transparente tem sido considerado um elemento chave no enfrentamento às formas contemporâneas de escravidão, tendo sido previsto expressamente no Protocolo à Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado, em seu art. 2º, d, como medida de proteção e acesso a reparações efetivas às vítimas. 

4 Internacionalistas consagrados, como Flávia Piovesan e André de Carvalho Ramos, já consideravam a proibição da escravidão como norma de jus cogens. Vide, a respeito, CARVALHO RAMOS, André. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 140. E PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e degradante como forma de violação dos direitos humanos. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel Napoleão; FAVA, Marcos Neves (coord). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. 2ª ed., São Paulo: LTr, 2011, p. 142.

5 Dos 128 trabalhadores resgatados da Fazenda Brasil Verde, ainda restam 77 a serem localizados para o cumprimento da sentença no que diz respeito ao pagamento de indenizações, conforme relatório da Coordenação de Contenciosos Internacionais de Direitos Humanos da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de abril de 2020.

6 BRASIL. Tribunal Regional Federal (1. Região). Inquérito: Inq 0026823- 26.2012.4.01.0000. 2. Seção. Juíza Federal Convocada: Clemência Maria Almada Lima de Ângelo. e-DJF1: 4 jul. 2014, p. 20.

7 BRASIL. Tribunal Regional Federal (1. Região). Apelação Criminal: ACR 0001748- 25.2008.4.01.4300. 3. Turma. Juiz: Tourinho Neto. e-DJF1: 5 nov. 2010, p. 41.

8 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Apelação Criminal: ACR 0003739-77.2013.4.05.8300. 4. Turma. Desembargador Federal: Lazaro Guimarães. DJE: 11 jun. 2015, p. 110.

9 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Ação Penal: APN 0005468- 12.2011.4.05.8300. Pleno. Desembargador Federal: Emiliano Zapata Leitão. DJE: 5 fev. 2014, p. 61.

10 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Apelação Criminal: ACR 2007.82.02.004198-0. 2. Turma. Desembargador Federal: Vladimir Carvalho. DJE: 24 out. 2014, p. 30.

11 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Apelação Criminal: ACR 2007.83.00.017720-4. Desembargador Federal: Vladimir Carvalho. 2. Turma. DJE: 9 mai. 2014, p. 76.

12 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Habeas Corpus: HC 0003091- 27.2014.4.05.8312. 1. Turma. Desembargador Federal: Manoel Erhardt. DJE: 11 dez. 2014, p. 95.

13 Segundo Flaviane de Magalhães Barros, em seu estudo sobre a participação da vítima no processo penal, são raros os processos com habilitação de assistentes, constatando-se apenas quando a vítima possui elevado nível social e recursos financeiros para custear a assistência, ou nos casos de grande comoção social, sendo pouca a utilização do instituto no processo penal brasileiro. Vide BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 100.

14 BRASIL. Tribunal Regional Federal (3. Região). Apelação Criminal: ACR 0001828-44.2010.4.03.6181. 5. Turma, 1. Seção. Desembargador Federal: André Nekatschalow. e-DJF3: 28 jun. 2013.

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