Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4572/09.6YYPRT-A.P2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO AFONSO
Descritores: PRINCÍPIO DISPOSITIVO
MATÉRIA DE DIREITO
DECISÃO SURPRESA
CONTRATO DE PATROCÍNIO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/07/2015
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL / PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 664.º.
Sumário :
I - O princípio dispositivo é ainda prevalente no processo civil e, como seu corolário, cabe às partes definir o objecto do litígio (através da dedução das suas pretensões) e alegar os factos que integrem a causa de pedir ou que sirvam de fundamento à dedução de eventuais excepções, de tal modo que o juiz só pode fundar a decisão nestes, sem prejuízo de poder investigar factos instrumentais e de os poder utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa.

II - Todavia, o juiz não está limitado às alegações das partes no que toca à matéria de direito (art. 664.º do CPC), pelo que, ao qualificar juridicamente o contrato dos autos como sendo de patrocínio com base na análise da prova e no aditamento de novos factos, não incorreu em violação do princípio do dispositivo ou do contraditório, não tendo sido proferida decisão surpresa, sendo certo que, mais do que a nomenclatura, releva a interpretação das suas cláusulas.

III - A interpretação da declaração negocial constitui matéria de direito quando deva ser efectuada segundo critérios legais – como sucede no domínio do n.º 1 do art. 236.º do CC, i.e., de acordo com a teoria da impressão do destinatário – e matéria de facto quando deva ser efectuada de acordo com a vontade real do declarante (n.º 2 do mesmo preceito).

IV - Resultando do acordo dos autos que parte dos honorários devidos ao exequente devia ser liquidada quando os executados recebessem do Estado o patrocínio com este acordado (sem que o clausulado se reportasse à época desportiva de 2005) e tendo sido pago o montante em causa por contrato de patrocínio ajustado no ano de 2006, há que considerar inverificada a condição suspensiva de exigibilidade desse crédito, sendo certo que, nos termos deste último contrato, a participação do recorrido no campeonato mundial de F1 era tida como prioritária para a imagem do Estado, pelo que é de aceitar que o montante disponibilizado seja utilizado para satisfação de créditos anteriores respeitantes a essa mesma participação

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:


A) Relatório:

Pelo 1ºjuízo de execução do Tribunal Judicial da comarca do Porto corre processo de oposição à execução deduzido pelos executados AA e BB, identificados nos autos, contra o exequente CC, também identificado nos autos, o qual pediu o pagamento da quantia de € 223.649,32.

Invocam a ocorrência de uma nulidade processual, decorrente da inobservância do disposto no art.804º, nº3, do CPC; e a inexigibilidade da obrigação exequenda por não pagamento, pelo Governo Português, de qualquer patrocínio, subsídio ou financiamento ao executado BB referente à época desportiva de 2005; sendo que o pagamento de € 2.000.000,00 pelo Governo Português, em 27-7-2006, ao grupo inglês DD, gestor da carreira desportiva do executado BB, se reportou à época desportiva de 2006.

Na contestação o exequente refuta a invocada nulidade; e mantém o alegado no requerimento executivo concluindo, designadamente, não ter sido aposta no acordo junto com aquele requerimento qualquer condição quanto ao pagamento de honorários, nem resultar daquele acordo que o pagamento, pelo Estado Português, referido em 2.4 da sua cláusula 2ª, teria de ser relativo à época de 2005.

No despacho saneador entendeu-se que a apreciação das questões suscitadas dependia de produção de prova, pelo que foi relegado para final o seu conhecimento. Dispensando-se, ao abrigo do disposto no art.787º do CPC de 1961, a elaboração da base instrutória.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, julgando-se não verificada a arguida nulidade processual; e consequentemente julgada improcedente a oposição.

Inconformados, os executados/opoentes interpuseram recurso, seguindo-se a prolação do acórdão de fls 1120 e ss., no qual se decidiu julgar improcedente o recurso relativamente à arguida nulidade processual; e ordenar a audição do executado AA, o que implicava a audição, também, do exequente.

No decurso daquelas diligências de prova os opoentes juntaram mais três documentos – fls 1349 a 1351. E, findas as mesmas, pelos opoentes foi requerida a audição, ainda, do executado BB, bem como a acareação da testemunha EE com o executado AA, e, sendo caso disso, com o executado BB. O que foi indeferido, com a seguinte fundamentação:

“Revendo-me embora na quase totalidade das razões aduzidas pelo exequente, nos termos do disposto no art.158º, nº2, do CPC, direi ainda o seguinte:

Desde logo, a presente audiência tinha como fim único e exclusivo a prestação dos depoimentos de parte nos termos determinados pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Ir além disto, e tal como já referi na acta da audiência oportunamente realizada, seria entrar numa espiral probatória, sem fim à vista, e de utilidade, salvo o devido respeito, nula. Desde logo, quanto ao alegado dissenso, o mesmo é ínsito a qualquer acção. A forma de o dirimir é a constante no art.396º do Código Civil…que postula a livre apreciação da prova pelo julgador.

Depois, no que tange à pedida acareação, importa não esquecer que a testemunha EE prestou oportunamente depoimento. Nada foi então requerido, sendo certo que, no que se refere aos opoentes, por se tratar de factos pessoais, os mesmos estavam em condições de requerer o que tivessem por conveniente.

Finalmente, o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão, tomou em consideração os depoimentos produzidos e as posições vertidas pelas partes ao longo do processo. Se outras diligências tivessem de ser realizadas, tê-lo-iam sido ordenadas no acórdão proferido. A não ser assim, nunca se vislumbraria o prazo para o final do processo que, na expressão dos próprios opoentes “têm pesadas consequências para a fazenda das partes”.

Mais uma vez considero dispor de todos os elementos necessários à boa decisão da causa”.

Seguiu-se a prolação da sentença que julgou a oposição improcedente.

Novamente inconformados, os opoentes interpuseram recurso tendo Tribunal da Relação julgado procedente a apelação e, em consequência, extinta a execução.

Deste acórdão recorre o exequente para o STJ alegando, em conclusão o seguinte:

1. Nos presentes autos está em causa a interpretação do ponto 2.4 da cláusula 2 do acordo dado execução:

2. As partes divergem na sua interpretação e as instâncias também;

3. Constitui matéria de direito a interpretação da declaração negocial;

4. A interpretação das cláusulas contratuais só envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito, quando, no desconhecimento de tal vontade, se deve proceder de harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 236º do Código Civil;

5. É passível de recurso de Revista para esse Venerando Tribunal a decisão proferida pelo Tribunal da Relação e ora posta em crise, pelo que deve ser apreciado o Recurso que ora se interpõe;

6. O Tribunal da Relação pronunciou-se sobre uma questão não alegada e discutida nem pelo Recorrente nem pelos Recorridos, pelo que deveria, previamente à tomada de decisão, convidar as partes a pronunciarem-se ou a exprimirem a sua posição quanto à questão que tinha intenção de vir a proferir;

7. Em poucas palavras o Tribunal da Relação proferiu uma decisão-surpresa, o que lhe está constitucionalmente vedado e ao fazê-lo feriu de nulidade a decisão proferida - artigo 201.D e seguintes do CPC;

8. Ao longo do processo, nunca as partes, nem o tribunal de 1ª instância, discutiram a qualificação, ou não do contrato celebrado entre os Recorridos e o Estado como contrato de patrocínio, nem tal vem reflectido na matéria de facto fixada em primeira instância e aditada pejo Tribunal da Relação;

9. Sendo que foi tal qualificação que fundamentou a decisão proferida pelo Tribunal da Relação e ora posta em crise;

10. No douto Acórdão proferido, o Tribunal da Relação vem afirmar que o pagamento dos montantes referidos no acordo estava condicionado ao efectivo pagamento dos patrocínios angariados pelo Recorrente no âmbito da sua prestação de serviços:

11. Mais uma vez o Tribunal da Relação discute matéria que não foi alegada nem discutida pelas partes, nem pelo tribunal de 1ª instância e não se encontra vertida na matéria de facto dada como assente;

12. Com tal conduta, o Tribunal da Relação violou frontalmente o princípio do dispositivo e o princípio do contraditório;

13. Por violação do nº 3 do artigo 3° do CPC, tal decisão é NULA, nos termos e para os efeitos dos artigos 201°, 615º e seguintes do Código de Processo Civil, aplicável por via da alínea c) do n.º 1 do artigo 674º do mesmo normativo legal;

14. Na interpretação de um contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativa como um todo;

15. Em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, é dada prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratório, mas a lei não se basta apenas com o sentido por este apreendido 6, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratório depreenderia (art.º 236° do Cód. Civil);

16. No domínio da interpretação de um contrato há que recorrer, para a fixação do sentido das declarações, nomeadamente à letra do negócio, às circunstâncias que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos, os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento) e a finalidade prosseguida;

17. À luz destes critérios interpretativos, importa, pois, aqui ter presente a matéria que resultou provada nos autos;

18. Da análise da referida matéria resulta claro que o apoio financeiro concedido pelo Estado Português e pago à DD no montante de €. 2.000.000,00 foi o único pagamento feito pelo Estado Português para apoiar a participação do Recorrido BB no campeonato do mundo de Formula 1;

19. O Ponto 2.4. da cláusula 2 do acordo dado à execução faz depender o pagamento dos €. 200.000,00 devidos ao Recorrente do pagamento de €. 2.000.000,00 a realizar pelo Estado Português;

20. É óbvio que à data da celebração do acordo, os Requeridos já sabiam que iam receber tal montante, caso contrário não fariam depender o pagamento do montante em divida do pagamento de uma quantia exacta provinda de uma entidade concreta;

21. Este ponto da matéria de facto dada como assente contraria frontalmente o plasmado no acórdão de que ora se recorre "Tratou-se claramente de um apoio financeiro não previsto";

22. Se a tese encontrada pelo Tribunal da Relação procedesse, o que se contesta, então a condição aposta no ponto 2.4 da Cláusula 2 seria impossível (artigo 271º do CC) pois, acolhendo tal tese, não estaria prevista na mente dos Recorridos qualquer pagamento do Estado Português, ou este tinha a certeza que tal pagamento não iria ocorrer (artigo 275º do CC), o que levaria a concluir que os Recorridos estariam de má-fé no momento em que assinaram o acordo dado à execução;

23. Também a interpretação feita pelo Tribunal da Relação de que " (,..) Aquele apoio ocorreu em circunstâncias e por motivos distintos: não resultou da prestação de serviços por parte do exequente...) " não pode colher no que tange à interpretação do acordo pois os Recorridos nunca contestaram a divida ao longo do processo, muito pelo contrário assumiram-na;

24. Os Recorridos sempre assumiram a divida e assumiram que não procederam ao pagamento daquela;

25. Ao terem assumido a divida, manifestamente, cai por terra o argumento do Tribunal da Relação quando diz que os pagamentos no referido acordo estavam condicionados ao pagamento dos patrocínios resultantes da prestação de serviços do Recorrente;

26. Seguindo de perto o raciocino do Tribunal da Relação, se o Recorrente não tivesse tido intervenção na angariação do patrocínio não lhe era devido qualquer valor quando o mesmo fosse pago;

27. Então porque condicionaram as partes o pagamento dos €. 200.000,00 ao pagamento dos €. 2.000.000,00 vindos do Estado se este pagamento era inesperado e não resultava de qualquer prestação de serviço por parte do Recorrente;

28. De notar que ficou provado que: A) Entre os finais de 2004 e o início da 2006, o exequente prestou aos executados serviços no âmbito da angariação de patrocinadores, suporte à comunicação a demais serviços de apoio ao projecto desportiva de BB no campeonato mundial de Fórmula 1 na época de 2005. B) Não tendo os opoentes pago ao exequente os honorários que lhe silo devidos pela prestação dos serviços acima indicados no dia 22 de Dezembro de 2005 o exequente a os opoentes assinaram o documento junto a fls. 6 e 7 dos autos de execução nos termos e com o conteúdo ali referido:

29. O que resulta da matéria que ficou provada é que o pagamento da dívida seria feito quando o Estado Português pagasse o montante de €. 2.000.000,00 e nada mais!

30- Tendo o Governo Português feito tal pagamento, através do Instituto do Desporto de Portugal, verificou-se a condição a que estava sujeito o pagamento da divida, pelo que devem os Recorridos proceder ao pagamento do montante devido;

31. O acordo dado à execução foi celebrado em 22 de Dezembro de 2005, já depois da época acabar e depois dos serviços estarem prestados, pelo que não faria sentido as partes fazerem depender o pagamento do mesmo de um montante que era inesperado!;

32. Atento o exposto deverá a decisão proferida ser revogada, por violadora do disposto nos artigos 236°, 237°, 238°, do Código Civil, mantendo-se a decisão proferida em primeira instância, o que se requer;

Nestes termos e nos mais de direito o presente recurso deve ser julgado procedente por provado e a decisão proferida ser: a) Declarada NULA, nos termos e para os efeitos dos artigos 201°,615° e seguintes do Código de Processo Civil, aplicável por via da alínea c) do nº 1 do artigo 674º do mesmo normativo legal, por violação do nº3 do artigo 3° do Código do Processo Civil;

b) Ser a decisão revogada por violadora do artigo 236°,237° e 2380 do Código Civil, mantendo-se a sentença proferida na 1ª instância nos seus precisos termos em que foi prolatada fazendo-se assim a costumada

JUSTIÇA!.

Contra-alegaram os executados pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.


***

Tudo visto,

Cumpre decidir:

B) Os Factos:

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:

A) Entre os finais de 2004 e o início de 2006, o exequente prestou aos executados serviços no âmbito da angariação de patrocinadores, suporte à comunicação e demais serviços de apoio ao projecto desportivo de BB no campeonato mundial de Fórmula 1, na época de 2005.

B) Não tendo os opoentes pago ao exequente os honorários que lhe são devidos pela prestação dos serviços acima indicados, no dia 22 de Dezembro de 2005, o exequente e os opoentes assinaram o documento junto a fls. 6 e 7 dos autos de execução, nos termos e com o conteúdo ali referido.

C) O opoente BB participou em duas épocas desportivas do campeonato mundial de Fórmula 1.

D) A primeira participação do piloto e executado BB deu-se na época desportiva do Mundial de Fórmula 1 de 2005, ao comando de um monolugar da equipa FF.

E) A segunda participação do piloto e executado BB deu-se na época desportiva do Mundial de Fórmula 1 do ano de 2006, ao comando de um monolugar da mesma equipa do ano transacto, mas já sob a denominação GG.

F) O governo português, através do Instituto do Desporto, procedeu ao pagamento ao grupo inglês DD, então gestor da carreira desportiva do executado BB, do montante de € 2.000.000,00.

G) Entre a FF Grand Prix Limited e HH foi celebrado um acordo de patrocínio nos termos e com o conteúdo constante de fls. 135 a 158 dos autos.

H) Em 1 de Agosto de 2006 foi celebrado um contrato entre o IDP – Instituto do Desporto de Portugal e o senhor AA, na qualidade de representante legal do opoente BB, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 290 a 294.

I) O apoio financeiro referido em H) foi o único concedido pelo Estado Português, através do Instituto do Desporto de Portugal, ao piloto BB, no âmbito da sua participação no campeonato do mundo de Fórmula 1.

J) O pagamento da verba constante do ponto 2.4 da cláusula 2ª do acordo referido em B) respeitava ao patrocínio relativo à época de 2005, visando o apoio financeiro referido em H), nos termos do mesmo constantes, a continuação da participação do piloto BB nas provas do campeonato do Mundo de fórmula 1 até final da época de 2006;

K) O opoente Aa procedeu ao depósito, em 31-1-2005 e 15-3-2005, em benefício de FF Gand Prix Limited, dos valores referidos nos documentos constantes de fls.788 e 789.

C) O Direito:

 

Delimitando o “thema decidendum” duas são as questões colocadas pelo recorrente à apreciação deste Tribunal: violação dos princípios do dispositivo e do contraditório com o proferimento de uma decisão surpresa; e ilegal interpretação do contrato celebrado nos autos.

Entendem os recorrentes nas suas alegações que o Tribunal da Relação proferiu uma decisão-surpresa, o que lhe está constitucionalmente vedado e ao fazê-lo feriu de nulidade a decisão proferida - artigo 201.D e seguintes do CPC;

Ao longo do processo, nunca as partes, nem o tribunal de 1ª instância, discutiram a qualificação, ou não do contrato celebrado entre os Recorridos e o Estado como contrato de patrocínio, nem tal vem reflectido na matéria de facto fixada em primeira instância e aditada pejo Tribunal da Relação;

Sendo que foi tal qualificação que fundamentou a decisão proferida pelo Tribunal da Relação e ora posta em crise;

No douto Acórdão proferido, o Tribunal da Relação vem afirmar que o pagamento dos montantes referidos no acordo estava condicionado ao efectivo pagamento dos patrocínios angariados pelo Recorrente no âmbito da sua prestação de serviços:

Mais uma vez o Tribunal da Relação discute matéria que não foi alegada nem discutida pelas partes, nem pelo tribunal de 1ª instância e não se encontra vertida na matéria de facto dada como assente;

Com tal conduta, o Tribunal da Relação violou frontalmente o princípio do dispositivo e o princípio do contraditório;

Por violação do nº 3 do artigo 3° do CPC, tal decisão é NULA, nos termos e para os efeitos dos artigos 201°, 615º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por via da alínea c) do n.º 1 do artigo 674º do mesmo normativo legal.

Nos termos do art.264º nº2 do CPC “o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos arts.514º e 665º e da consideração, mesmo oficiosa, de factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” e, por seu turno, diz o nº3 do mesmo artigo que “serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório”.

Em sentido ato, o princípio do dispositivo, enquanto contraposto ao princípio inquisitório ou da oficialidade significa que as partes dispõem do processo, como da relação jurídica material. O processo era e continua a ser, apesar das últimas reformas do código do processo civil, coisa ou negócio das partes (mantendo-se em grande parte a concepção privatística, contratualista ou quase-contratualista do processo).

Como corolários ou consequências do mencionado princípio, o processo só se inicia sob o impulso da parte mediante o respectivo pedido – princípio do pedido -, assim como só prossegue desde que tal impulso se mantenha, podendo as partes pôr-lhe termo.

Com as últimas reformas do processo civil, porém, as partes, por um lado, perderam o quase monopólio que detinham sobre a lide, e, por outro, o Tribunal passa a assumir uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material, ou seja, a alcançar a justa composição do litígio que é, em derradeira análise o fim último de todo o processo.

Assim, às partes cabe, em exclusivo, definir o objecto do litígio através da dedução das suas pretensões – ou seja, enunciar o pedido ou pedidos formulados por via da acção ou da reconvenção – e da correlativa alegação dos factos que integram a causa de pedir ou que sirvam de fundamento a eventuais excepções, de tal modo que, em princípio, o Juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes sem prejuízo deste poder atender aos factos que não carecem de alegação e de prova (art.514º do CPC) e do dever de obstar ao uso anormal do processo (art.665º do CPC). Reconhece-se, agora, ao Juiz a “possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, os factos meramente instrumentais e dos utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa”.

Se é verdade que o princípio do dispositivo, ainda que mitigado com as recentes alterações processuais, impede o Juiz de se substituir às partes no delinear e no configurar da lide e quando a lei lhe concede poderes investigatórios devem os mesmos sujeitar-se ao princípio do contraditório, não deixa de estar vigente o princípio (art.664º do CPC) que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito…” servindo-se contudo e tão-somente dos factos articulados pelas partes sem prejuízo do disposto no citado art.264º do CPC.

Continua, pois, a ter valência o brocardo latino “da mihi factum dabo tibi ius”.

O Tribunal da Relação ao qualificar o contrato junto aos autos a fls.274 a 280 como contrato de patrocínio limitou-se, após ter procedido à análise da prova carreada e ao aditamento de dois novos factos, a enquadrar juridicamente o contrato celebrado atribuindo-lhe uma dada nomenclatura que aliás decorre da factologia presente que ressalta do termo patrocínio do Estado.

O cerne da solução do problema em equação não deriva da nomenclatura dada ao contrato mas da interpretação das respectivas cláusulas contratuais, pelo que não se verifica a invocada nulidade do acórdão por violação dos princípios do dispositivo ou do contraditório não se tendo verificada qualquer decisão surpresa.

Analisemos agora a questão de fundo que opõem o acórdão do Tribunal da Relação à sentença da 1ª instância.

Tudo se confina à questão de saber se o título dado à execução contém uma condição suspensiva que torna inexigível a obrigação exequenda.

A solução a dar ao litígio passa pela interpretação das cláusulas contratuais ínsitas no acordo celebrado entre exequente e executados e no contrato junto a fls.274 a 280 dos autos.

Nos termos doo art.236ºnº1 do Código Civil (CC) “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente com ele.”

A interpretação de uma declaração negocial é matéria de direito quando tenha de ser feita segundo critério ou critérios legais (é ocaso da interpretação normativa nos termos do nº1 do art.236º do CC) e matéria de facto quando efectuada de harmonia com a vontade real do declarante (art.236º nº2 do CC).

O significado do nº1 do art.236º é o de que a interpretação da declaração negocial deve, em princípio, fazer-se no sentido propugnado pela teoria da impressão do destinatário.

Se o declaratário entendeu a declaração no sentido querido pelo declarante, nesse sentido é de interpretar a declaração (nº2 do art.236º), porém, se o declaratário entendeu e podia entender a declaração diferentemente do que o declarante queria significar com ela, ou se ao menos, estava em dúvida sobre o sentido querido pelo declarante, a interpretação é de fazer-se nos termos do nº1 do artigo.

Compulsando o acordo celebrado entre o exequente (aqui recorrente) e os executados (aqui recorridos) temos que decorre do seu art.1º que: “ Os Primeiros Outorgantes (AA e seu filho BB – executados, ora recorridos) acordam em pagar ao Segundo (CC – exequente, aqui recorrente) ou a quem este indicar o valor de 600.000,00 €, respeitante ao total dos honorários pelos serviços que este lhes prestou no âmbito da angariação de patrocinadores, suporte à comunicação e demais serviços de apoio ao projecto desportivo de BB no campeonato mundial de Fórmula Um na época de 2005”. No art. 2º do dito acordo diz-se que: “O valor acima referido deverá ser pago pela seguinte forma:…2.4 O remanescente valor de 200.000,00 €, na data em que o Governo Português proceder ao pagamento aos Primeiros Outorgantes do montante do seu patrocínio de 2.000.000,00 €”.

Daqui se retira em primeiro lugar que os recorridos reconhecem a existência de uma dívida para com o recorrente no valor de 600.000,00 €; em segundo lugar que essa dívida deverá ser saldada por parcelas a última das quais, no montante de 200.000,00 €, na data em que o Governo Português proceder ao pagamento aos Primeiros Outorgantes do montante do seu patrocínio de 2.000.000,00 €.

Este acordo foi celebrado em 22 de Dezembro de 2005.

O art.236º do CC formula duas regras: a da interpretação objectivista ou normativa da declaração negocial, nos termos da dita doutrina da impressão do declaratário (nº1), e a da interpretação, segundo a vontade real do declarante quando o declaratário tenha conhecido essa vontade (nº2).

Não estamos perante uma interpretação da vontade real do declarante a qual seria do exclusivo conhecimento das instâncias por se tratar de matéria de facto, mas em presença de uma interpretação objectivista, ou seja, um normal declaratário colocado na posição do real declaratário teria face ao conteúdo da declaração (proceder-se ao pagamento do remanescente 200.000,00 € quando o Estado português procedesse ao pagamento de 2.000.000,00 €). Nem na cláusula 2ª do acordo firmado se faz referência que o patrocínio do Estado deveria, expressamente, referir-se à época desportiva de 2005, nem seria expectável, à data da celebração do acordo, final desse ano, que o Estado procedesse ao pagamento da dita verba ainda em 2005. Por isso um normal declaratário retiraria, sem mais, que a quantia em dívida seria satisfeita certamente no decorrer de 2006, pois que as circunstâncias fácticas em que o acordo decorreu para aí apontariam.

Diz o Tribunal da Relação, socorrendo-se da interpretação do contrato celebrado, em 1 de Agosto de 2006, entre o IDP – Instituto do Desporto de Portugal e AA em representação de BB, o qual caracterizou como contrato de patrocínio, que aquele se destinava tão-somente ao patrocínio da Fórmula Um do ano de 2006 pelo que não se poderia dar por não verificada a condição suspensiva da exigibilidade do crédito do exequente uma vez que em relação a 2005 não havia sido satisfeito o patrocínio do Estado então esperado.

Do clausulado do contrato celebrado com o Governo Português retira-se que a comparticipação financeira do Estado se destinava à época de 2006, pois era a que estava a decorrer à data do contrato, mas não se pode concluir, como bem se diz na sentença da 1ª instância, que as partes estivessem impedidas de acordarem que da verba concedida, com a qual o recorrente já contava em finais de 2005, fosse retirada a quantia de 200.000,00 € para pagamento dos honorários devidos pelos executados ao exequente.

E não se diga que o nº 2 da cláusula 3ª do contrato agora em apreço o impedia.

O nº 2 da dita cláusula diz que o montante concedido não pode ser utilizado para fins diferentes dos que estão definidos, ou seja, tal montante não pode ser utilizado para outros fins que não sejam os decorrentes da participação do piloto BB no campeonato de Fórmula Um. Porém nada impedia que as partes pudessem ter chegado a um acordo sobre a atribuição de uma parcela da verba concedida, acordo esse que passaria pela DD empresa responsável pela gestão da carreira desportiva do atleta, o piloto BB.

E isto mesmo se depreende dos considerandos introdutórios do contrato celebrado com o Governo Português, como se pode ver a fls 274 e 275 dos autos.

Não só é certo que o Governo Português, através do IDP, pretende assegurar a presença do piloto português para a época de 2006, como pretende no geral assegurar a boa imagem do piloto e do próprio Estado.

Por isso afirma no preâmbulo do Contrato:

“A participação do piloto BB nas provas do campeonato do Mundo de Fórmula 1 foi considerada prioritária, como afirmação internacional da Marca Portugal”

“O Estado português assumiu um conjunto de compromissos com vista a assegurar os recursos económicos necessários à participação do piloto BB no campeonato de Fórmula 1”.

“Algumas das parcerias efectuadas não cumpriram com os acordos estabelecidos, facto que implica a suspensão do piloto, e terá como efeito a rescisão do contrato que assegura a presença do mesmo nas provas do campeonato do mundo de Fórmula 1”

“ A efectivar-se todo este cenário fica prejudicado todo o investimento já feito pelas empresas nacionais, bem os interesses comerciais e de imagem, sendo que tal situação afecta, também, de forma grave a imagem do Estado português, nos planos nacional e internacional”.

A ausência do patrocínio concedido prejudicaria, no imediato, a participação do piloto BB no campeonato de Fórmula 1 de 2006, mas não deixaria de prejudicar a imagem do mesmo piloto e do Estado português caso o mesmo não pudesse ser utilizado no pagamento de créditos anteriores atinentes, eles também, à participação do executado BB em campeonato de Fórmula Um.

Daí que não se possa ter uma interpretação restritiva do contrato agora em análise como o fez o Tribunal da Relação.

Pelo exposto entende-se que tendo os executados visto satisfeito o patrocínio de 2.000.000,00 € por parte do Estado não se pode ter por verificada a condição suspensiva que conduzia à inexigibilidade do título executivo.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em conceder revista e revogando o acórdão recorrido repristinar a decisão da 1ª instância.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 07 de Maio, de 2015

Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

Granja da Fonseca