Descrição de chapéu Doenças Raras 2021

Nova técnica adotada em vacinas da Covid pode tratar esclerose

Estudo com roedores revela uso promissor de terapia com RNA mensageiro no combate a doenças autoimunes

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J. Marcelo Alves
São Paulo

Trabalho científico publicado em janeiro deste ano na prestigiosa revista Science descreveu o uso de RNA mensageiro (mRNA) como terapia contra o avanço de uma doença de camundongos chamada encefalomielite autoimune experimental.

A notícia é importante, pois a doença em questão é um modelo experimental clinicamente relevante para a esclerose múltipla. As duas doenças são bastante semelhantes nos dois tipos de organismos e, portanto, o que funciona para o camundongo pode ser um bom ponto de partida para desenvolver tratamentos de pessoas.

A esclerose múltipla é uma doença autoimune, ou seja, o próprio sistema de defesa do paciente ataca partes de seu organismo. Desconhece-se a causa do ataque, mas é sabido que ele danifica a bainha de mielina, que tem papel essencial na propagação dos sinais nervosos entre neurônios.

Esses danos levam aos diversos problemas visuais, motores e neurológicos da esclerose múltipla. “É como se fosse um fio desencapado, o nosso isolante elétrico está prejudicado, o que diminui tanto nossa eficiência energética para transmitir quanto para receber estímulos”, explica Douglas Sato, médico neurologista e professor da PUC-RS.

Usado de maneira emergencial na vacinação contra o vírus causador da Covid-19, o mRNA teve sua estreia fora de ensaios clínicos há poucos meses, mas já mostra potencial para aplicações variadas.

“A vacina é uma excelente oportunidade para desmistificar a tecnologia do mRNA, que está sendo usada com segurança por milhões”, diz Roberto Giugliani, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e geneticista do HC de Porto Alegre (HCPA).

Têmis Maria Félix, do Serviço de Genética Médica do HCPA e presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, concorda. “A população em geral ouviu falar em RNA mensageiro pela primeira vez, e isso é muito bom. As pessoas começam a entender alguma coisa de genética, o que diminui o preconceito.”

A terapia testada em camundongos usa um mRNA correspondente a uma parte da proteína atacada pelo próprio sistema imune, a MOG. O mRNA é colocado dentro de uma esfera microscópica de lipídeos otimizada para entrar especificamente em células importantes para regulação imune.

Se o sistema imune passa a tolerar a proteína, a progressão da doença estaciona. Foi o que ocorreu com os roedores, e é algo semelhante ao que se deseja contra a esclerose.

No experimento, o mRNA utilizado apenas regulou a resposta imune, sem suprimir toda a imunidade, como ocorre com muitos tratamentos, que deixam o organismo mais suscetível a infecções ou cânceres, por exemplo.

“O que se conseguiu de forma quase inédita é justamente estimular muito mais esse lado regulatório”, afirma Sato. “Isso se vê com algumas medicações, mas não no grau obtido nesse experimento, o que é bastante promissor.”

Terapia com mRNA faz ataque focado e causa menos reações

A técnica do RNA mensageiro aproveita partes já existentes do mecanismo de fabricação de proteínas. Diferentemente das drogas tradicionais, o mRNA em si não faz nada além de carregar uma mensagem que será lida pelas células para gerar uma proteína.

Os genes, feitos de DNA e localizados no núcleo das células, são somente repositórios de informação, como livros em uma biblioteca —neste caso uma biblioteca de onde nada se pode tirar, somente fazer cópias para levar embora.

Assim, a informação genética é copiada no mRNA e levada para as fábricas de proteínas, que ficam fora do núcleo e se chamam ribossomos. Além da sequência da proteína, há instruções, antes e depois da mensagem principal, que sinalizam onde a célula deve começar e parar a leitura.

Essas características podem tornar os medicamentos baseados em mRNA mais versáteis e fáceis de atualizar —é só mudar a mensagem para a proteína que se quer produzir.

Outra vantagem é que o mRNA pode passar despercebido pelo sistema imune, evitando reações que levam até ao agravamento da doença. Por outro lado, afirma Félix, estima-se que a terapia terá que ser repetida a cada três semanas, em média, pois o RNA se degrada rapidamente depois da síntese da proteína. A volatilidade aumenta a segurança, mas leva à necessidade de repetições periódicas.

Diversas empresas têm ensaios clínicos em fase inicial. A Moderna, que criou uma das vacinas de mRNA contra o novo coronavírus, diz focar doenças metabólicas decorrentes de defeitos em enzimas que atuam no fígado.

No caso de doenças autoimunes, como a esclerose múltipla, o desafio é escolher os alvos do mRNA, pois diferentes autoantígenos podem ser atacados em diferentes momentos. Por outro lado, isso abre a possibilidade do tratamento desenhado especificamente para cada paciente.

A complexidade maior do procedimento deve elevar os custos, mas deve também tornar o processo mais eficiente e a taxa de sucesso, mais alta. “Acho que isso é a tendência da medicina personalizada, a medicina do futuro. Não será o único, mas um dos caminhos”, segundo Sato.

A aprovação de qualquer tratamento baseado em mRNA para esclerose múltipla e outras doenças raras ainda deve levar alguns anos e superar muitos desafios, como a relativa falta de pacientes para os ensaios clínicos. “Numa doença rara ou até ultra-rara, o ensaio tem que ser feito com um número bem pequeno de indivíduos”, afirma Félix.

A participação dos pacientes nos estudos clínicos é fundamental, e para isso é preciso afastar o estigma da “cobaia”, diz Sato. “É uma oportunidade de acesso a coisas novas, o que também implica risco maior, já que o nível de conhecimento é menor, mas todo cuidado é tomado para a pessoa ter o tratamento adequado caso haja complicações.”

Por fim, há sempre o risco de o tratamento experimental, promissor em animais, não funcionar em gente. “Rato curado já teve de monte, como se diz, mas em ser humano às vezes o comportamento é até o oposto”, diz Sato.

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