sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Pegaram Salman Rushdie, ou a intolerância pode vencer no final.

Decidi escrever este post, que espero ser curto, para comentar duas notícias.  A primeira, o atentado sofrido pelo escrito Salman Rushdie sofreu um atentado em Nova York.  Aparentemente, ele levou várias facadas e está hospitalizado.  No momento em que escrevo, ainda não tenho certeza de quantas facadas foram, ou há informações precisas sobre o estado de saúde de Rushdie.  Fala-se em falha de segurança, pois desde 1989, o autor anglo-indiano era alvo de uma fatwa (decreto religioso) imposta pelo aiatolá Khomeini, então líder supremo do Irã que o condenava a morte por causa do seu livro, Versos Satânicos, lançado no ano anterior.  Segundo Khomeini, o livro era ofensivo ao profeta Maomé. Na época, o aiatolá Khomeini, dirigente do Irã, ofereceu US$ 2 milhões como recompensa a quem matasse o autor.

Lembro desse rolo todo.  Eu tinha treze anos e 1989 foi um ano muito dramático e cheio de eventos importantes: queda do Muro de Berlim, Massacre na Praça da Paz Celestial, primeiras eleições presidenciais no Brasil pós-ditadura e, por fim, a própria morte de Khomeini.  Jamais esquecerei dos seus funerais, as imagens foram impressionantes.   Falava-se muito do caso de Rushdie e, naquele momento, a atitude de Khomeini era vista como absurda e violenta.  De qualquer forma, a ameaça não deixou de existir por causa disso.  Havia muita gente disposta a cumprir a fatwa e não eram somente iranianos, ou xiitas, mas muçulmanos das mais diferentes tendências e que se sentiram ofendidos pelo livro e dispostos a matar como forma de fazer justiça, ou se vingar.  É aceitável se sentir ofendido, não matar por causa disso.  Fora, que ninguém deve ser obrigado a compartilhar das visões de fé de outrem. Aliás, lembram da bomba no escritório do Porta dos Fundos?  Pois é... 

Rushdie vivia recluso e protegido pela política britânica desde então.  Nenhum assassino havia conseguido se aproximar dele, mas houve várias tentativas de matá-lo e a outros envolvidos com a publicação do livro.  E cito a Folha de São Paulo: "Em 1991, Hitoshi Igarashi, tradutor do livro no Japão, foi assassinado a facadas. Dias depois, o tradutor italiano Ettore Caprioli foi ferido, também com uma faca.  Dois anos depois, o editor turco Aziz Nesin, que havia publicado extratos do livro num jornal, foi atacado por extremistas islâmicos, que o encurralaram num hotel e incendiaram o prédio. O fogo matou 37 pessoas, mas Nesin sobreviveu. Ainda em 1993, o tradutor do livro para o norueguês, William Nygaar, foi baleado com três tiros e ficou gravemente ferido."

Enquanto escrevo este post, Rushdie ainda está vivo, espero que sobreviva sem grandes sequelas.  De qualquer forma, a intolerância religiosa é algo profundamente enraizado em nossos dias e está sendo instrumentalizada politicamente no Brasil neste exato momento.  No final de semana passado e nos dias seguintes, a esposa do presidente utilizou de forma muito competente o discurso fundamentalista evangélico para apresentar o marido como alguém que, com a ajuda de "Deus", vem livrando o Brasil de vários problemas espirituais.  O país era dominado por demônios antes de sua eleição, agora, as coisas mudaram para melhor.  Em vários momentos, a primeira-dama evocou a imagem da luta do bem contra o mal.  Afinal, os problemas do Brasil não são a fome, o desemprego, a inflação, ou os duzentos e tantos mortos diários por COVID, mas os demônios.

No outro dia, para marcar posição, a primeira-dama postou vídeo do ex-presidente Lula em uma cerimônia de Candomblé como forma de associar as práticas religiosas afro-brasileiras aos tais demônios, ao mal.  A seguir, foto da esposa de Lula com imagens das religiões afro foram postas para circular.  É preciso marcar muito bem quem está do lado do bem e quem é o mal.  E o mal precisa ter cor, e é preta. Infelizmente, Michelle fala bem e conhece os discursos fundamentalistas.  Ela pode efetivamente ajudar o marido à despeito de tudo que a grande imprensa diga e o resultado imediato pode ser um acirramento do preconceito religioso e da violência que, no Rio de Janeiro, se manifesta na destruição de terreiros por traficantes evangélicos.  Resta saber se as palavras da primeira-dama surtirão o efeito desejado com o público evangélico atraindo, especialmente, as mulheres. 

Eu vivi minha vida inteira no meio evangélico batista e discursos de demonização da Umbanda, do Candomblé e da própria religiosidade católica (*algo que, hoje, pode ser adiado para um confronto futuro*) eram super comuns.  O que ela disse na Igreja Batista Lagoinha dialoga com esses discursos que ouvi abundantemente na minha infância e adolescência.  O verniz neopentecostal é só a cobertura do bolo, o essencial do discurso de Michelle é bem conhecido de todas as igrejas evangélicas e protestantes do Brasil.  Mais ainda, há a questão dos direitos e visibilidade.  Por exemplo, quando Átila Nunes, político de longa data no Rio de Janeiro, aparecia na TV, ou nos jornais, não importava qual assunto fosse, sempre havia o comentário "Mas ele é macumbeiro.".  Tudo o resto não importava.  E eu seria mentirosa se não dissesse que eu me tornei imune a esses discursos que acionam sentimentos.  O que posso dizer é que a razão se impõe nessas horas, assim como o senso de justiça.

Muitos anos atrás, antes de Júlia nascer, uma senhora que estimo muito, alguém que sei que é capaz de se sacrificar pelo próximo, uma pessoa boa, uma vez me disse do absurdo que era os praticantes das religiões afro desejarem os mesmos direitos que nós. Tinha acontecido um evento na Câmara com a presença de sacerdotes e sacerdotisas da Umbanda e do Candomblé, ou algo assim. E por qual motivo?  Porque eles são o mal, que precisa ser combatido.  Eles não podem ter espaço na vida pública.  Um evangélico corrupto, ou perverso, ou fascista, sempre será melhor que o mais correto dos praticantes das religiões afro, ou do islã, ou de qualquer outra fé.

E que fique claro, os fundamentalistas operam da mesma forma, sejam cristãos, ou muçulmanos.  Eles demonizam as outras fés e podem instigar o seu ataque, afinal, se não estão do meu lado, servem ao demônio.   No Brasil, a ideia de guerra espiritual é pregada regularmente nas igrejas.  Agora, ela se reveste de luta contra as esquerdas, em especial, o PT.  Se Bolsonaro conseguir um segundo mandato, estaremos mais próximos ainda do Evangelistão, que, muito provavelmente, não será muito diferente do Irã de Khomeini, só que com menos roupa para as mulheres, futebol e praia.  Enfim, quantos Salman Rushdie ainda terão que ser mortos, é difícil saber.

2 pessoas comentaram:

Exatamente... extremismos cristão e islâmicos são a mesma coisa...
ainda cito Timothy Mcveigh, Jim Jones, Ante Pavelic e Monsenhor Tiso

1989 também levou embora o imperador Showa, Tezuka Osamu, Nara Leão, Dina Sfat, Gonzagão, Raul Seixas, Aurélio Buarque de Holanda etc.
Houve também o Caracazo na Venezuela... a deposição de Stroessner no Paraguai....

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