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Clayton Nascimento, com o seu monólogo “Macacos”, passeia pela história de um Brasil omitido, mete o dedo na ferida, aponta, denuncia, reivindica, dá um tapinha no ombro e, didaticamente, propõe algo que interrompe a corrente: que possamos reaprender a história do país pela ótica de quem assumiu as principais trincheiras na luta contra o racismo e o direito à terra. Com uma atuação potente, um corpo presente e um discurso embasado, o ator angariou neste ano os principais prêmios das artes cênicas brasileiras: o Prêmio Shell de Teatro e o troféu da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) — ambos na categoria de melhor ator.

Paulistano, atualmente com 34 anos, o ator, diretor, dramaturgo, preparador de elenco e professor vem mexendo com estruturas que antes eram inimagináveis mover. Grave bem esse nome aí: Clayton Nascimento. E se “Macacos” estiver fazendo temporada na sua cidade, vá assistir.

Senhora e senhores, com vocês: Clayton Nascimento. Leia com toda calma do mundo.

André Menezes – Como começou a sua paixão pelo teatro?

Clayton Nascimento – Me lembro até hoje quando estava assistindo à peça de teatro junto da escola pública – estudei numa escola chamada Machado de Assis, que fica na periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo. Fui ao teatro com essa escola e me encantei com tudo aquilo. Lembro também da professora me perguntar: “está vendo isso aí? Isso aí é profissão. Se você quiser algum dia trabalhar com isso, é possível no Brasil”. Pensei na época: “nossa, isso é profissão! Uau!”.

E combina também com o fato de eu ter crescido numa periferia violenta nos anos noventa, numa parte da periferia do Jabaquara, e minha mãe após um tiroteio, ela estava fazendo as unhas de uma cliente – minha mãe era manicure – e essa cliente perguntou para ela: “poxa, mas você fica tão preocupada com o garoto nas ruas, por que você não pensa em levá-lo pro teatro? É tão importante que uma criança faça teatro”. Então, minha mãe me leva ao teatro. Combina com meu pai que me busca na frente da escola, me leva até o teatro, me ensina a pegar ônibus e, então, começo a estudar teatro.

A verdade é que eu não sabia que eu gostaria tanto assim de teatro, mas ao longo dos anos fui vendo que aquilo ali era um lugar muito especial para eu poder trabalhar minha própria expressividade, o meu cotidiano de criança periférica, a minha negritude, as minhas questões de gênero, de raça, de classe, as minhas questões de cultura popular.

André Menezes – Apesar de tantos avanços do movimento negro, como você percebe que o racismo ainda se comporta na nossa atual sociedade?

Clayton Nascimento – É muito importante dizer que há, sim, avanços em relação à luta antirracista no Brasil e no mundo. Nós já conseguimos falar abertamente a palavra “racismo”, conseguimos encontrar traços, vê-lo no cotidiano, identificá-lo, denunciá-lo, porém, por outro lado, há perfis do racismo no Brasil ainda muito profundos, e é isso que eu tento discutir no espetáculo “Macacos”. Qual é a origem disso tudo? É curioso que eu dê nome a esse espetáculo em 2015 quando vejo o jogador Aranha, goleiro do Santos na época, ser xingado de macaco pelos torcedores do Grêmio e então eu dou o nome a este espetáculo e sete anos depois ele se mantém completamente atual, porque o Vini Júnior foi xingado da mesma coisa mais uma vez. Dessa forma, há muitos avanços que ainda precisam ser ressignificados.

Por exemplo, o caso do Max em São Conrado, no Rio de Janeiro, quando ele leva uma chibatada da coleira do cachorro de uma moradora do bairro. Ele foi atacado por uma professora chamada Sandra Matias Corrêa. Se uma professora vai às ruas e demonstra uma atitude dessa enquanto postura social, isso só demonstra que as raízes do racismo são muito profundas na nossa nação. E repito, é mais uma das discussões que eu levo ao espetáculo “Macacos”, investigar nas entranhas da formação deste país como nos consolidamos como uma nação que ainda é racista, que tem traços profundos no seu cotidiano.

Quando, por exemplo, vamos para uma vaga de emprego e comumente as mulheres negras são pedidas para mudar o cabelo delas, ou quando rapazes negros são vistos como homens perigosos, homens de vinte a trinta e cinco anos, que tem entre um e setenta e um e oitenta metros de altura. Quando esses essas figuras, quando esses cidadãos estão andando nas ruas a noite e a outra pessoa atravessa a calçada porque se fez no imaginário brasileiro a ideia de que esses homens e mulheres são perigosos devido a sua cor de pele.

E finalmente, quando chegamos as universidades públicas, qual é a porcentagem de jovem negro e periférico dentro delas? Em um mestrado, um doutorado, até mesmo numa graduação, isso ainda são traços do racismo que está impregnado na nossa sociedade.

André Menezes – Com seu monólogo “Macacos”, você ganhou dois dos maiores prêmios do teatro brasileiro. Qual a sensação que fica?

Clayton Nascimento – Olha, eu realmente não acreditava que isso poderia acontecer na minha vida, que eu poderia ganhar um APCA e um Prêmio Shell por uma obra que investiga o racismo nas entranhas da formação do Brasil. “Macacos” é um espetáculo que escrevi em tempos de tanta dificuldade quando morei no conjunto residencial da Universidade de São Paulo (USP), em que tinha acabado de perder meu pai e, literalmente, precisava fazer aquela vida bem típica de alguma parte da juventude brasileira, que é trabalhar e estudar para conseguir se alimentar, pegar transporte público e ainda tive pouco apoio econômico da minha família nesse período. Então, realmente tive de me fortalecer emocionalmente, fisicamente para conseguir dar conta de tudo.

A sensação que fica, de verdade, é a de dever cumprido, de vitória, alegria de ter conseguido realizar esse plano. Meu pai e minha mãe já não são mais vivos e ambos antes de falecer me pediram, por favor, para que eu terminasse a minha formação e fizesse valer a pena ter conseguido passar na Universidade de São Paulo, na Escola de Comunicações e Artes. A sensação que fica é a de satisfação e alegria para comigo mesmo, de poder olhar para minha família, um pai preto, piauiense e uma mãe preta, um signo de excelente de mãe, de olhar para eles e dizer: tudo isso que consegui foi pelo apoio de vocês, cumpro o nosso combinado, dei o meu melhor.

Segundos antes de receber o prêmio Shell, a Marisa Orth começa a falar a lista dos atores que já venceram o prêmio: Milton Gonçalves, Raul Cortez, Luiz Miranda, Cridemar Aquino e… Clayton Nascimento!

Então, é uma honra ser filho do Piauí, das periferias da Zona Sul de São Paulo e sentar na mesma fileira que esses grandes nomes.

André Menezes – Qual a importância do povo brasileiro conhecer a história de Abdias do Nascimento e do Teatro Negro?

Clayton Nascimento – Abdias do Nascimento e o Teatro Experimental do Negro tem importâncias profundas para o conhecimento do povo brasileiro. O Teatro Experimental do Negro é completamente inovador ao levar uma estética brasileira e periférica para os palcos e para o mundo. É um teatro feito com requinte, estudo, categoria, qualidade; isso é uma informação que precisa ficar para nossa nação, pros atores pretos e não pretos que estejam se formando, para os próximos grupos que se farão, os grupos de teatro que se formarão no Brasil, pretos e não pretos.

É importante sabermos que essas pessoas passaram por aqui, o que elas pensaram e como fizeram, senão ficamos numa eterna sensação de que estamos inventando a roda. Imagina, a roda já está aqui. É importante aprendermos como ela foi feita para sabermos o que faremos com ela então. Dessa forma, o Teatro Experimental do Negro foi criado pelo Abdias e pela sua mulher, a Maria do Nascimento, que muitas das vezes não falam sobre ela na hora de falar sobre a criação do TEN.

Lembro também que tivemos a coluna “Fala, mulher”, a primeira vez que um grupo de teatro do Brasil tem uma coluna no jornal onde as mulheres pretas poderiam falar como era ser uma mulher preta e como era ser uma artista no Brasil nesses tempos. Isso é raro e, ao mesmo tempo, é profundamente especial para podermos cuidar disso, da história da nossa própria nação.

Sem mencionar que Abdias do Nascimento foi político, dramaturgo, autor, ator, diretor, que deixou legados importantíssimos como a montagem ‘O Imperador Jones’, na qual ele foi diretor, sejam os livros como “O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”, importantíssimo porque estamos falando desse assunto até hoje, seja no impacto que as montagens tiveram e no efeito disso no mundo como, por exemplo, Dona Léia Garcia se consagrar uma grande atriz do cenário brasileiro, dona Ruth de Souza também se consagrar uma grande atriz do cenário brasileiro e ser a primeira atriz a levar o nome do Brasil internacionalmente enquanto uma atriz indicada, uma atriz premiada.

André Menezes – Quais foram seus maiores desafios sendo um homem preto que buscou uma carreira de ator?

Clayton Nascimento – Olha, os maiores desafios que passei como um ator preto e periférico tentando fazer carreira de teatro no Brasil, primeiramente, foi conseguir dar conta do estudo, pagar pelas escolas para conseguir me formar. Tive a alegria de ter conseguido receber bolsas da Casa do Teatro e da Célia Helena, que são escolas muito respeitadas, com muito acolhimento e professores muito bem formados, ambas regidas por Lygia Cortez, uma pessoa muito importante na minha história.

Tive a alegria de receber bolsa para conseguir estudar, mas é o suficiente a bolsa? Para chegar lá e estudar, sim. Contudo, depois vem o lado B, que é: e a permanência? Vou conseguir pagar o transporte? Vou conseguir pagar a alimentação? Vou conseguir pagar os livros, as xerox, as viagens, os figurinos? Então, a primeira fase de dificuldade é essa, conseguir pagar para poder ter a possibilidade de se formar e aprender. Para isso, aconteceu todo um esforço familiar para que eu consiga chegar à sala de aula, aprender com qualidade, poder obter o ensino do melhor modo possível.

Outro traço também que acho que é uma dificuldade, que é interessante falar, é o dos personagens. Como conseguir personagens que sejam sólidos, que sejam firmes para poder me colocar no mercado como um ator que estudou, que pensou a área e é até uma reflexão que faço em “Macacos”. Olho para trás e vejo que já estudei quase trinta anos de teatro e interpretação, mas, ao mesmo tempo, percebo que não fui um protagonista.

André Menezes – Existe algum papel específico que você gostaria de interpretar no futuro que promovesse outra representação positiva e impactante?

Clayton Nascimento – Nossa, existem muitos personagens que eu tenho vontade de realizar. Eu gostaria muito de ser um pai jovem. Gostaria muito. Gostaria muito de ser um professor, adoraria ser um rei, adoraria ser um presidente, adoraria ser um médico, adoraria interpretar personagens em que é raro ver atores pretos realizando essas funções. Adoraria ser um advogado, adoraria fazer uma autobiografia. – Opa, uma autobiografia não! Adoraria fazer uma biografia sobre a vida de um alguém que tivesse uma vida competente, uma vida curiosa de ser conhecida, porque na maioria das vezes percebemos os mesmos tipos de personagem reservados para os mesmos tipos de corpos negros e não negros.

Então, eu gostaria de pegar essa curva e poder interpretar personagens que raramente vimos pretos assumindo. E com tantos anos de formação, tendo passado por Casa do Teatro, tendo passado por Escola de Comunicações e Artes, estando no mestrado da Universidade de São Paulo, tendo passado pelo Célia Helena, me sinto estudado e pronto para me colocar em cena dando vida a esse tipo de personagens que desconfio que são raramente vistos em corpos negros.

André Menezes – Qual legado você quer deixar para as artes cênicas?

Clayton Nascimento – Me sinto um cara tão feliz e tão realizado por escrever um monólogo que fala sobre a origem do racismo num quarto de um e meio metro por um e meio metro quadrado, e agora estar viajando o Brasil e esgotando bilheterias, que também a dramaturgia vai entrar para livros didáticos. Me sinto tão feliz, tão íntegro comigo mesmo, com a educação dos meus pais, com a minha história, sabe? Que eu não sei nem se eu consigo falar em um único legado.

Fico muito feliz de saber que terão crianças que vão ler o que estudei durante seis anos nas bibliotecas da Universidade de São Paulo sobre a estruturação do Brasil, porque somos ensinados conforme o que o outro quer que nós saibamos e às vezes não com fatos. Então, fico muito feliz de poder desvelar esses pontos e ver isso nos livros didáticos.

Acho que se eu pudesse falar em legado, talvez dissesse que algum dia eu vá ficar mais velho, partir desse plano, que eu deixe a juventude preta saber que a história de vida deles é interessantíssima para ir para cena, de que a cultura popular do povo preto brasileiro é interessantíssima para ir para cena.

Deixaria talvez o legado para contar que a história da nossa nação é uma história curiosa, bela, sangrenta, que merece, sim, ser estudada. Outro legado é: eu contaria para todos os jovens que virão, que você é lindo(a), a sua história é potente e que, por favor, não parem de estudar. Estudando vocês podem chegar onde vocês quiserem, onde o sonho de vocês os queiram levar.

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