domingo, 17 de março de 2024

Comentando Assassinos da Lua das Flores (EUA/2023): Cruel, Revoltante, Necessário e, infelizmente, não levou nenhum Oscar.

Terminei de assistir hoje ao filme Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), dirigido por Martin Scorcese e baseado no livro homônimo de David Grann.  A película foi indicada a dez prêmios Oscars, Direção, Atriz,  Ator Coadjuvante, Filme, Canção Original, Trilha Sonora Original, Figurino, Design de Produção, Edição e Melhor Fotografia, surpreendendo ao ficar de fora dos indicados de Roteiro Adaptado.  E não levou nada, o que foi muito injusto.  Aliás, Scorcese é muito lembrado e pouco premiado.  Além disso, Leonardo DiCaprio não ser indicado, também é algo que surpreende, porque ele é o centro do filme.  Segue o resumo:

Nos Estados Unidos dos anos 1920, as pessoas com maior renda per capita do mundo eram membros do povo indígena Osage, de Oklahoma.  O petróleo, descoberto em 1897, trouxe grande riqueza para os Osage e atraiu para a região uma série de aventureiros e criminosos que cobiçavam o petróleo e o dinheiro dos nativos. Na década de 1910, uma série de mortes suspeitas e assassinatos começam a tragar os nativos ao longo dos anos.

Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), um ex-combatente da 1ª Guerra Mundial, chega à região e se coloca sob a proteção de um dos homens mais poderosos do local, William King Hale (Robert De Niro), que é seu tio.  King Hale começa a sugerir ao sobrinho que ele poderia se aproximar de alguma das mulheres indígenas, caso não tivesse nojo de se deitar com ela, e se tornar um homem rico.  King Hale lhe explica que os Osage são um povo magnífico, mas que tem uma saúde delicada, eles morrem fácil.

Mollie Kyle (Lily Gladstone) é herdeira de uma grande fortuna junto com sua mãe e três irmãs.  Ela se torna o alvo perfeito para Ernest e seu tio.  Toda a família de Mollie termina morrendo, seja por alguma misteriosa doença, ou de forma violenta.  A mulher, que tem diabetes e uma saúde efetivamente frágil, busca forças dentro de si para lutar para que as mortes de suas familiares e as de outros Osage sejam investigadas, chegando a integrar uma comissão que vai até Washington pedir ajuda federal.  

A revolta vai crescendo entre os nativos a medida em que os acontecimentos sórdidos vão se somando.  Por fim, os indígenas pagam para que o governo dos Estados Unidos faça uma investigação.  O auxílio termina chegando em 1925, com o envio e agentes do recém criado FBI, seu jovem diretor, J. Edgar Hoover, convoca um antigo Ranger texano chamado Tom White (Jesse Plemons) para comandar a investigação. White reúne uma equipe secreta ― que inclui um agente indígena (Tatanka Means) infiltrado na região  ―  e, junto com os Osage, expõe uma das conspirações mais assombrosas da história dos Estados Unidos.

Assassinos da Lua das Flores é filme excelente e muito angustiante.  Gostei bastante, mas, efetivamente, ele renderia mais se Scorcese decidisse fazer uma minissérie com altíssimo investimento e com uns cinco episódios.  Muita informação termina passando meio batida, quando renderia boas discussões dentro da película.  Por exemplo, King Hale é da maçonaria, provavelmente, todos os homens brancos importantes faziam parte da sociedade secreta.  King Hale não confia na Klan e fala mal do grupo quando a KKK decide vir para a região e se propõe a dar segurança aos indígenas.  Será que o grupo de King Hale, e que tinha uma loja maçônica, embarreirou a ação da KKK?  É possível.

Tenho um livro sobre história dos Estados Unidos chamado O Século Inacabado, que tem um delicioso capítulo sobre a KKK e como ela não conseguiu se criar em alguns lugares.  Dentre eles, localidades onde os católicos eram maioria e muito bem organizados.  Os Osage foram catequizados pelos franceses (*originalmente, eles habitavam o Mississipi*) e o catolicismo é a única vertente cristã que aparece no filme.  É possível que maçonaria, catolicismo e interesses e King Hale e seus amigos tenham embarreirado  a KKK.

Da mesma forma, como todo mundo que importava era membro da maçonaria, investigar de verdade qualquer crime cometido na região deveria ser complicado.  O fato é que dentro do filme, há personagens secundários e terciários que poem não saber das extensões das maquinações e crimes de King Hale e seus sobrinhos, Ernest e Byron (Scott Shepherd), mas certamente estão cientes de que há dedo do poderoso tio nas mortes.

Algo que se estaca no filme é como Assassinos da Lua as Flores conseguiu caracterizar bem a exploração sofrida pelos Osage e o racismo rasgado do lixo branco que só quer roubar a riqueza dos nativos. E a única coisa que o lixo branco tem para se orgulhar é da sua branquitude mesmo. Igualzinho por aqui, aliás, e o sociólogo Jessé Souza fala muito sobre isso.  Uma das cenas mais interessantes do filme é quando, pouco antes a morte da irmã mais velha de Mollie, Anna (Cara Jade Myers), estão todos em uma grane reunião de família e um casal de velhos brancos analisa as crianças mestiças que estão brincando supervisionadas pelas babás brancas.

Ambos tem nojo, repulsa, não do dinheiro, mas de que seus filhos, sobrinhos, seja lá o que for, estejam casados com mulheres nativas. E é ótimo que o filme não tenha cortado o racismo dos discursos e ele vem de forma muito forte contra indígenas, negros, judeus. Enfim, o casal se coloca a analisar e comentar as crianças e um diz algo como:  "Fulano e Ciclano são como o dia e a noite.  Fulano talvez consiga passar por branco, se ninguém conhecer sua mãe."  Uma mãe nativa pode ser eliminada e é o que efetivamente acontece várias vezes no filme.  Agora, nesta mesma excelente cena é complicado entender quem é filho e quem e quem é casado com quem.

Minnie (Jillian Dion), a primeira irmã de Mollie a morrer, é casada com Bill Smith (Jason Isbell).  Depois que ela definha até a morte, e isso acontece com vários osage, pois veneno era um meio comum de eliminação, Smith se casa com Reta (JaNae Collins), a irmã mais nova de Mollie. Não sei se havia filhos do primeiro casamento, ou se houve o segundo, porque quando a casa de Bill e Reta é explodida, só há o casal e a criada branca na residência.  Então, aquele monte de crianças na cena da reunião de família me deixaram realmente confusa.

A explosão da casa, um dos momentos mais dramáticos do filme, fez com que muitas das personagens começasse a falar do Massacre de Tulsa, também em Oklahoma, no qual uma vizinhança negra próspera foi estruída no dia 31 de maio e 1921, pelo ataque de supremacistas brancos.   É considerado o maior massacre promovido por questões raciais da história dos Estados Unidos, como mais e trezentas mortes, centenas de feridos e de desabrigados.  Os crimes contra os Osage não foram concentrados em dois dias, mas se estenderam por anos, da década de 1910 até 1931.  Eles incluíam não somente a morte, mas o roubo e propriedades, dinheiro, violação e cadáveres em busca de joias e outros bens de valor.  

As leis do estado de Oklahoma, com a anuência do governo federal, consideravam boa parte dos nativos incapazes e gerir sua riqueza e eles precisavam e guardiães que cuidassem de sua fortuna.  O filme dá a entender que, mesmo casada, o guardião de Mollie não era seu marido, mas que havia outro homem responsável por gerenciar as renas avindas do petróleo.  É realmente trágico que terras pobres e quase improdutivas cedidas para indígenas e negros (*vide o caso a menina Sarah Rector*) tenham se provado ricas, por causa o petróleo e outras riquezas descobertas no subsolo e atraído tanta desgraça.

O filme é muito rico, tanto que, como pontuei, ele talvez funcionasse melhor como uma minissérie.  Lendo sobre a produção, Martin Scorcese repensou os rumos da película para dar mais protagonismo aos indígenas (Depois de um certo ponto, eu percebi que estava fazendo um filme sobre homens brancos. Eu estava trazendo uma abordagem de fora, o que me preocupou”), porque, no livro original, a personagem central parece ser Tom White, o agente do FBI.  Scorcese sacrificou parte da investigação e coloca a revelação dos criminosos, que a audiência já sabe quem são dedse o início, na segunda hora de filme, a partir daí, temos o foco nas prisões, no tribunal e na relação entre Mollie e Ernest.

Agora, algo muito complicado é o olhar amoroso e complacente em relação à personagem de Leonardo DiCaprio.  Para o diretor, ele realmente amava Mollie.  Um amor estranho, cheio de contradições, mas amava, e ela, que só se divorciou ele em 1926, algo que nem é mostrado no filme em si, também tinha sentimentos por ele.  Me parece um salto do diretor e que DiCaprio entrega de certa forma.  Já a interpretação de Lily Gladstone me parece mais centrada na ideia e que Molly sabia que precisava se manter fria para conseguir que alguma justiça fosse feita.  O próprio diretor diz que Ernest era somente um homem fraco.

Aqui, discordo do diretor.  Ernest é um criminoso desde o primeiro momento.  Ele não é inteligente como o tio, daí, vários deslizes dele ao longo do filme.  E ele quer salvar a própria pele, também.  Ele não é um coitado.  Se escalassem um ator mais jovem, porque a Molly original era bem mais velha que o marido, talvez, pudessem defender que ele era jovem e manipulável, mas não é o caso.  Ernest seria capaz de tudo, ele participa ativamente do envenenamento de Molly.  Ele a chama de puta (bitch) em uma discussão.  Ele até parece amar os filhas, mas eles eram fundamentais para que ele atingisse seus objetivos.  Para mim, Ernest é pior que King Hale.

Na verdade, ele só é mesmo intelectualmente limitado e, por isso, King Hale e mesmo Byron, seu irmão mais novo (*que parece mais velho*), conseguem tirar tanta vantagem dele.  Aliás, King Hale iria se livrar e Ernest mais cedo, ou ainda mais cedo, segundo a lógica do filme. Falando nisso, se DiCaprio é um vilão contraditório, que parece vacilar em algum momento, a personagem de Robert De Niro é um vilão clássico.  Ele se apresenta como um pilar da sociedade, fala a língua os Osage, finge se preocupar com eles, mas, quando está longe, mostra too o seu nojo, desprezo, racismo.  King Hale parece culto e polido se comparado com a maioria os homens brancos o filme, mas sua origem é a mesma, ele só ganhou verniz enquanto ascendia roubando e fraudando gente mais fraca ou intelectualmente limitada que ele.  Sei que o Oscar de Coadjuvante tinha dono, mas Robert De Niro merecia MUITO a estatueta.

E a Lily Gladstone? Sua Molly tem muitas camadas, ela passa por muitos momentos no filme.  Estava doente desde o início, ela é diabética, mas vai tirano forças para lutar por justiça, mesmo que definhe diante de nossos olhos.   Aliás, quando inventam a história de injeções de insulina, já sabia o que iria vir pela frente. A forma como a atriz demonstra a sua dor a cada perda e como parece fria e distante quando toma conhecimento (*isso se já não desconfiasse*) a traição do marido mostram a versatilidade a atriz. Pena que ela não tenha levado o Oscar. Simples assim. E não estou rebaixando a Emma Stone, que fique claro. Simplesmente, seria um Oscar justo e histórico ao mesmo tempo.  Se ela tivesse sido indicada à coadjuvante, não teria saído de mãos abanando, eu tenho certeza.

Outra coisa a comentar é a quantidade de atores de primeira linha que fazem papéis pequenos, mas importantes, neste filme.  O advogado de King Hale, por exemplo, é o Brendan Fraser e ele tem pouquíssimo tempo de tela. Já o  John Lithgow, nem lembro de ter visto.  O final do filme, com o programa de rádio True Crime, não me agradou, mesmo que o próprio Scorcese faça uma ponta com um texto que tenta marcar a denuncia do silenciamento dos crimes  contra os Osage.  As penas e prisão, ainda que perpétuas para alguns, foram perdoadas totalmente.  Com tantos assassinatos, eu fiquei pensando "Ué, Oklahoma não tinha pena e morte, não?".

Fui pesquisar.  Hoje, só o Texas executa mais gente que Oklahoma e as penas capitais nunca foram uma escolha difícil no estado.  Então, porque King Hale e Ernest e outros envolvidos pegaram SOMENTE perpétua?  A única justificativa é o fato de serem nativos as vítimas.  Os brancos que morreram, como o marido e a criada de Reta, irmã de Mollie, foram anos colaterais.  Assim, é muito ofensivo isso.  O governo federal mudou a legislação para tentar conter a apropriação de terras dos Osage por parte e brancos, mas o sistema de tutela ainda demorou a cair.  Aliás, eu não sabia quase nada de Oklahoma, agora, sei demais, porque Tulsa, os crimes contra os Osage, tudo no mesmo lugar.

Concluindo, o filme é muito bom, poderia ser melhor em um formato minissérie.  Agora, ele é muito cruel, muito pesado, não é tão pornografia da violência quanto Silêncio, mas há umas cenas e sequências terríveis.  Por exemplo, a forma como fazem a autópsia do corpo de Anna é e dar arrepios.  Por outro lado a complacência com Ernest é uma escolha o diretor que me incomoda, porque não vejo nada de realmente dúbio na personagem do DiCaprio, ele é um criminoso mesmo, tanto quanto Hale.  E o final do filme, deveria ter sido mais convencional.  O programinha de rádio me surpreendeu, verdade, mas não me impactou em nada mesmo.  De repente, o problema é comigo.  

Entre Oppenheimer e Assassinos da Lua das Flores, o segundo é muito mais interessante e impactante, mas, talvez, não seja tão redondinho como filme.  e qualquer forma, o Oscar era um jogo de cartas marcadas este ano, bastava observar as premiações que antecederam a cerimônia de domingo passado, só foi muito injusto que Assassinos da Lua das Flores não ficasse com um prêmio sequer.  Agora, vamos ver se eu termino e ver os três filmes o Oscar que ainda me faltam.

1 pessoas comentaram:

É falácia, isso que andam falando, que o livro se foca no FBI, é uma reportagem sobre o genocídio e Tom White só vai aparecer na segunda metade do livro. A primeira parte, é toda focada nos Osage.

Related Posts with Thumbnails