O tombamento do Ginásio do Ibirapuera: a cidade como negócio e o patrimônio como farsa

Por Flávia Brito do Nascimento, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e Simone Scifoni, professora do Departamento de Geografia da FFLCH-USP e vice-diretora do Centro de Preservação Cultural da USP

 10/12/2020 - Publicado há 3 anos
Simone Scifoni – Foto: Arquivo pessoal

 

Flávia Brito do Nascimento – Foto: FAU-USP

 

No final de novembro deste ano, uma notícia surpreendeu muitos paulistanos: a polêmica decisão do Condephaat de não tombar o Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, mais conhecido como Complexo Esportivo do Ibirapuera. Equipamento público que é a principal referência na história do esporte do Estado, há mais de 60 anos, o conjunto também abriga o Ginásio do Ibirapuera, uma edificação que além de seu inegável valor arquitetônico, como atesta Anelli (2020), Wolff e Zagato (2020), é, também, bem cultural presente no coração da população da metrópole de São Paulo.

São muitos os que carregam na memória momentos emocionantes de um grande evento esportivo, de shows de música ou apresentações diversas, que o ginásio abrigou durante décadas. Assim sendo, o conjunto desportivo e, particularmente o ginásio, constituem patrimônio cultural no sentido dado pelo artigo 216 da Constituição Federal de 1988, uma vez que são suporte de valores múltiplos, sociais, afetivos, formais, além de referência à ação, identidade e memória de diferentes grupos sociais.

Como, então, entender a decisão de arquivamento do processo e não tombamento pelo Condephaat?

Criado em 1968 para atuar na defesa e proteção do patrimônio cultural paulista, o Condephaat vivenciou, em sua trajetória de mais de 50 anos, momentos marcantes de atendimento às demandas sociais e de enfrentamento de interesses privados especulativos. Durante a década de 1980, o mundo do patrimônio cultural no Brasil viveu uma expansão significativa de paradigmas e práticas. Atendendo às muitas demandas da população, órgãos como o Condephaat enfrentaram com coragem política os grandes interesses privados e pressões públicas e realizaram tombamentos emblemáticos, como o da Casa Modernista, ou da Serra do Mar, o mais importante monumento natural do Estado. Naquela ocasião, o então governador paulista, Franco Montoro, declarou na cerimônia de tombamento: “Ninguém mexerá na Serra do Mar sem dar satisfações ao Estado e à comunidade”. Como nos lembrou o geógrafo Aziz Ab’Saber, em 1986, a tomada de decisão para o tombamento é um ato de inteligência e de coragem coletiva, que procura atender às muitas vozes e a muitas gerações.

Porém, é com tristeza e indignação constatar que o Condephaat dos anos 1980 não existe mais. De sua criação em meio à ditadura civil-militar ao florescimento no período da redemocratização na década de 1980, o Conselho vivenciou ações pioneiras de interlocução com a sociedade, incorporando novos objetos e abordagens conceituais. Foi um lugar de coragem e de possibilidades para aqueles que acreditam na memória e no patrimônio como transformadores e potencializadores de direitos sociais.

Em dossiê organizado como um balanço crítico da história dos 50 anos do órgão (Revista CPC, 26, 2019), apontamos para a esperança do Condephaat como lugar de discussão conceitual, apesar das ações já controversas como destombamentos, flexibilizações e restrições a novos tombamentos demandados pela comunidade. O episódio do Ginásio do Ibirapuera e do Complexo Desportivo Vaz Guimarães prova que esse caminho de pressões se sobrepôs àquele do patrimônio como bem comum. Como esse caminho foi trilhado e o que permitiu a decisão que nega as determinações técnicas e as demandas sociais de preservação?

O primeiro ponto-chave foi o desmonte do Conselho. O colegiado, que no passado era composto, entre outros, por representantes de diferentes áreas acadêmicas das três universidades públicas estaduais (USP, Unicamp e Unesp), a partir de 2019, sofreu drástica mudança, quando o governo do Estado reduziu a participação das universidades estaduais transformando o colegiado em um chancelador das decisões políticas tomadas em outros âmbitos, em prejuízo da identificação, proteção e valorização do patrimônio, que é a sua atribuição constitucional.

A justificativa para a redução tentou desqualificar o papel da representação das universidades ao declarar que as reuniões de colegiado pareciam reuniões de departamento. O ato não passou incólume e foi fortemente repudiado pelas universidades, resultando em carta assinada por inúmeros docentes das universidades públicas e fincava-se na constatação das relações intrínsecas do Conselho com as universidades. Desde a década de 1970 a arrojada atuação dos conselheiros docentes trouxe reflexões de diversos campos do saber, resultando, efetivamente, em práticas mais alargadas e democráticas.

Ao contrário do alegado à época, constata-se que a redução da representatividade social teve como objetivo eliminar o olhar crítico e reflexivo das universidades estaduais. Isso facilitou, assim, a aprovação de decisões do governo, como ocorreu na votação do tombamento do complexo esportivo. Os votos a favor da abertura de tombamento vieram, em sua maioria, dos representantes das universidades, que lembraram o que talvez tenha sido esquecido: o Conselho como um lugar de defesa do patrimônio cultural.

A mudança no Conselho o transformou em espaço de referendo das decisões do Poder Executivo, legitimadas pela presença de membros da sociedade civil, representados, na prática, por uma minoria de membros das universidades e pelos órgãos de classe como o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). No caso do complexo esportivo, provou-se o ponto já indicado desde 2019, de que o debate público e a demanda da sociedade civil não têm conseguido fazer frente aos interesses do governo do Estado.

As muitas mobilizações em favor do Ginásio do Ibirapuera catalisaram de forma didática a premissa de que o patrimônio se constitui na relação das pessoas com seus espaços, práticas que são, em si, o patrimônio. As manifestações públicas de atletas, jornalistas esportivos, arquitetos e sociedade civil mostraram a miríade de valores culturais que recaem sobre o lugar, conformando-se como inequívoco patrimônio cultural.

O parecer do conselheiro relator do Condephaat negou explicitamente tais valores com base em considerações, no mínimo, superadas. O primeiro argumento apresentado foi o da falta de exemplaridade. Os discursos da exemplaridade historicamente justificaram os tombamentos realizados pelo Condephaat de edifícios construídos no século XX. Mas, desde pelo menos a década de 1960, a excepcionalidade não se sustenta no campo epistemológico do patrimônio. Somado ao argumento da suposta falta de distinção arquitetônica e de singularidade, o parecer negativo destaca a sua obsolescência como equipamento esportivo. A pretensa precariedade ou inadequação do espaço – que se mostrou falsa – não pode ser justificativa para a não preservação deste ou de qualquer outro bem cultural.

São considerações falaciosas de uma obsolescência programada que se transveste de justificativa de intervenção privatista que muda os usos históricos de algo que funciona, atende à população e faz parte da identidade dos grupos sociais que o frequentaram. O Conselho, ao invés de preservar, legitima as decisões para destruir. Constitui-se como uma farsa patrimonial, uma instância aparentemente democrática de deliberação, mas que na prática serve a outros propósitos.

Fica claro, assim, que a deliberação pelo não tombamento do ginásio e do conjunto esportivo não se sustenta em sólidas bases de conhecimento técnico-científico produzido historicamente pelos especialistas do campo do patrimônio cultural. Ao contrário, ela resulta da tentativa de não criar obstáculos e, assim, viabilizar a privatização do conjunto esportivo que prevê a construção de novas estruturas com a finalidade imediata de gerar lucro ao setor privado. Nesse sentido, esse bem cultural de natureza pública será reconvertido para servir às exigências dos negócios e a transformação de direitos sociais como o esporte, a cultura e o lazer em serviços privados submetidos à sua lógica e adquiridos como mercadorias.

Ao final, o que esperar da preservação do patrimônio cultural quando as instituições que deveriam protegê-lo sucumbem e se aliam aos interesses do mercado? O momento atual das políticas públicas revela o patrimônio como farsa, a ilusão de que o Estado está cumprindo suas atribuições constitucionais de proteção e valorização, quando na realidade as decisões tomadas sujeitam-se à cidade produzida como negócio, negando sua essência como bem comum.

Referências

ANELLI, Renato. Parecer de Tombamento do Conjunto Esportivo “Constâncio Vaz Guimarães”. Processo Condephaat n. 01238/2017. São Paulo, novembro 2020.

CARTA Aberta sobre o Ginásio do Ibirapuera e o Conjunto Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães”. Docentes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. São Paulo, outubro de 2019.

CARTA Aberta dos Docentes das Universidades Públicas sobre o Condephaat. São Paulo, abril de 2019.

NASCIMENTO, Flavia Brito do; SCIFONI, Simone. “Condephaat 50 anos”. Revista CPC (USP), v. 13, 2019, pp. 5-19.

NASCIMENTO, Flavia Brito do. “A arquitetura moderna e o Condephaat no desafio das práticas seletivas”. Revista CPC (USP), v. 13, 2019, p. 116-140.

SCIFONI, Simone. “O patrimônio como negócio”, in A. F. A. Carlos; D. Volochko; I. A. Alvarez (orgs.). A cidade como negócio. São Paulo: Contexto, 2015.

WOLFF, Silvia F.; ZAGATO, José A. Chinelato. Parecer técnico referente ao pedido de tombamento. São Paulo: Condephaat, Dossiê Preliminar no. 1238/2017, 2020.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.