Análise: Abertura do mercado livre pressiona por novos mecanismos infralegais e regras de segurança

Roberto Rockmann*

O 28 de setembro entrará para a história do mercado livre de energia elétrica por marcar a maior abertura da história do segmento. Depois de 23 anos da primeira migração, a Portaria 50/2022 abre a partir de janeiro de 2024 toda a alta tensão, tornando 106 mil unidades elegíveis de se tornarem consumidores livres. Hoje o mercado livre tem 11 mil consumidores livres em pouco mais de 27 mil unidades consumidoras e responde por cerca de 35% da carga.

A medida pressiona o setor a estabelecer mecanismos infralegais para receber esses novos entrantes sem vácuos regulatórios, poderá impulsionar o avanço da Eletrobras no mercado livre e também enseja reflexões sobre o aperfeiçoamento de regras de segurança do mercado, que movimentará mais consumidores, mais dinheiro e mais empresas negociando energia. E pressiona sobre a eventual abertura para a baixa tensão, que está sendo feita a princípio pelo Projeto de Lei 414/2021, de modernização do setor. 

Comercializador varejista
O governo instituiu que os consumidores com carga menor que 500 kW obrigatoriamente sejam representados por um comercializador varejista perante a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). Rui Altieri, presidente do Conselho da CCEE, diz que a decisão do ministério foi positiva e que agora essa categoria precisa se fortalecer para atender a grande demanda que virá.

“A figura do comercializador varejista foi criada para intermediar a negociação, gerenciar os riscos inerentes ao segmento livre e tornar o ambiente mais atrativo para os consumidores de menor porte, que não têm familiaridade com a dinâmica do setor elétrico”, disse.

Alguns pontos da regulação do comercializador varejista e do supridor de última instância terão de ser fortalecidos, segundo especialistas.

Medidas infralegais
A abertura da alta tensão pressiona o setor para estabelecer mecanismos infralegais necessários para receber esses novos entrantes. “O aprimoramento ou a criação de mecanismos como a representação varejista, o supridor de última instância e tratamento dos contratos legados passam a ter prioridade “zero” e terão de ser urgentemente endereçadas”, diz Bruno Crispim, counsel de Energia do Lefosse.

Para Fabiano Brito, sócio do Mattos Filho, poderia ser feito um detalhamento melhor sobre as atividades varejistas para os consumidores menores de alta tensão, por exemplo, com um acompanhamento mais de perto da atuação dos varejistas pela CCEE.  “Se um varejista tiver dificuldades financeiras, seria bom já termos um procedimento estabelecido para identificação e repartição dos clientes, para diminuir a insegurança.”

A abertura exigiria também criar mais flexibilidade para as distribuidoras gerenciarem seus contratos, segundo um analista. Hoje há o Mecanismo Competitivo de Descontratação, instituído pela Lei 14.120, mas ainda sem regulação pelo poder concedente e agência reguladora.

Regras de segurança do mercado
Com mais consumidores livres, mais empresas negociando energia, cresce também a discussão sobre o aperfeiçoamento de regras de segurança do mercado, um tema que se arrasta, pelo menos, desde 2019, quando duas comercializadoras quebraram e provocaram um rombo de R$ 200 milhões.

Uma das reflexões é sobre a importância de chamada prévia de margem, um tema que provoca ruídos no setor e está longe de ser unanimidade. “Esse é um tema muito importante, não se pode jogar ficha sem dinheiro. O comercializador pode tomar posição e não ter lastro e deixará o cliente na mão. Isso está ligado à figura do supridor de última instância à inadimplência sob o varejista”, diz o vice-presidente da AES Brasil, Rogério Jorge.

Eletrobras pode ser uma das vencedoras
A abertura da alta tensão coincide com a descotização das usinas hidrelétricas da Eletrobras, que, nos próximos cinco anos, descontratará cerca de 6,5 GW médios do portfólio das distribuidoras. O mercado de alta tensão abaixo de 500 kW possuiria consumo próximo a 3,9 GW médios e cerca de 106 mil unidades consumidoras.

Essa descotização daria conforto à abertura e poderá contribuir para o avanço da Eletrobras no mercado livre. Hoje a geradora, detentora do maior parque hidrelétrico do país, não está entre as dez maiores comercializadoras do país. A energia descotizada e limpa abre oportunidades em um momento em que energia renovável e livre ganharão mais apelo. “Isso ajuda, sim, a Eletrobras, por reduzir risco de volume, mas não o de preço, pois tem muita oferta entrando também”, avalia um empresário.

Padronização dos critérios da migração
Para evitar gargalos, a ampliação do mercado livre exigirá padronização de requisitos da migração para o ambiente livre, diz o vice-presidente da AES Brasil, Rogério Jorge. Hoje a empresa atende 44 clientes e 500 unidades consumidoras em sua comercializadora varejista.

O Brasil tem 64 distribuidoras e as exigências são diferentes em cada uma. “Algumas distribuidoras exigem padrões técnicos diferenciados e com alto custo para adequação, como instalar ar-condicionado nas cabines, onerando o consumidor em investimento aproximado entre R$ 15 mil a R$ 30 mil. Outras distribuidoras alegam que a denúncia do contrato só pode ser feita depois de assinado o contrato com a comercializadora”, diz.

GD solar x mercado livre
Para Rogério Jorge, da AES, a alta tensão deverá ser atendida pelo mercado livre, enquanto a baixa tensão (cuja regulação é feita pelo Projeto de Lei 414/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados) deverá ter boa parte de sua demanda com a geração distribuída solar.

O ex-diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) Edvaldo Santana concorda. “Na prática, a baixa tensão já foi para o mercado livre desde que a ANEEL permitiu a GD (geração distribuída) remota. Ou seja, a baixa tensão, sem qualquer discussão de contratos legados, outro biombo para repassar custos, já está liberada. E com subsídios para quem migra”, observa.

E a baixa tensão?
A abertura da alta tensão também coloca em evidência os próximos passos para a abertura total do setor elétrico. Para isso, será preciso desatar alguns nós. Um é o mais delicado (por não existir consenso sobre ele no mercado) e se refere aos custos dos contratos legados.

O modelo atual, sancionado em 2004, é baseado na contratação de energia pelas distribuidoras em leilões anuais, em que os geradores ofertam energia em contratos de longo prazo, que valem de 25 a 35 anos, o que também contribui para financiar os projetos. São os chamados contratos legados. Abrir todo o mercado implica resolver os contratos legados e redefinir o papel das distribuidoras, por exemplo com a separação entre fio e energia. Outro seria evitar a criação de novos contratos legados com longa duração.  

Histórico
A primeira migração do mercado livre se deu em novembro de 1999, quando uma unidade de Cubatão da Carbocloro substituiu seu contrato com a distribuidora local por um contrato firmado com uma comercializadora. Foram seis meses de negociação envolvendo viagens entre São Paulo, Cubatão, Brasília e Curitiba, sede da comercializadora Tradener e da Copel, concessionária que poderia fornecer energia à empresa de soda-cloro.

A negociação foi concluída em 17 de novembro de 1999, quando a Carbocloro anunciou que tinha fechado acordo de cinco anos para fornecer 55 MW no horário de ponta e 92 MW no restante do dia com a paranaense Copel, que expandia suas fronteiras e forneceria energia para a unidade da empresa em Cubatão. Poucos dias depois, o segundo contrato do mercado livre no Brasil foi assinado: a Volkswagen passou a comprar 18 MW da Copel por cinco anos para sua unidade de Taubaté, em São Paulo.

Os acordos deixaram algumas distribuidoras preocupadas em perder mercado, o que levou agentes a questionarem a decisão na ANEEL. A liberação do consumidor não foi automática nem pacífica. “Instaurou-se um processo de mediação administrativa na ANEEL, que, sem obter consenso entre os envolvidos, remeteu a decisão para uma reunião conjunta dos agentes, diretor-ouvidor e o diretor-geral. Nesse dia, houve a decisão histórica a favor do mercado livre”, relembrou o primeiro diretor-geral da agência reguladora, José Mario Miranda Abdo, em entrevista ao livro de 20 anos do mercado livre, editado pela CCEE.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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