Opinião

Desafios da regularização fundiária urbana no contexto da Lei 13.465/17

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8 de setembro de 2022, 6h06

A aprovação da Lei Federal nº 13.465 em 2017 contribuiu para uma mudança paradigmática quanto à questão da regularização fundiária de assentamentos informais consolidados em áreas urbanas — indo contra o marco conceitual e jurídico mais amplo construído desde o final da década de 1970, e ignorando as lições da experiência internacional. Neste breve artigo me proponho a recuperar a trajetória dessa discussão.

Esse processo antigo é intrinsecamente complexo e altamente disputado — e tudo está aberto a interpretações de todo tipo, da noção de informalidade à natureza dos programas de regularização. São incontáveis os debates conceituais, filosóficos, políticos, ideológicos, econômicos, urbanísticos e jurídicos. Afinal, estamos falando exatamente de quê? Da informalidade urbanística, da informalidade jurídica, ou de ambas? Das questões fundiárias apenas, ou também das questões construtivas, registrais e tributárias? Por que chamar de "informal" o que na realidade em muitos contextos é a prática dominante? Por que limitar o debate às práticas que envolvem os grupos mais pobres, ignorando as diversas formas de violação da ordem jurídica pelos grupos mais privilegiados — e pelo Estado? Estamos falando apenas das "favelas", ou também dos "loteamentos irregulares", dos "loteamentos clandestinos", das "casas de frente-e-fundo", dos conjuntos habitacionais sem alvará e sem registro, dos cortiços, aluguéis informais e outras formas de moradia precária? E por aí… o debate não tem limites. Dependendo da maneira como a questão da informalidade é definida, as propostas de políticas públicas de regularização variam enormemente. Da mesma forma, essa definição vai implicar em medições do fenômeno que são altamente divergentes. Ninguém pode afirmar com certeza quantas pessoas vivem em assentamentos informais, e nem tampouco quantos assentamentos existem. Tudo depende da definição adotada. Trata-se de um campo de pesquisa e ação essencialmente indefinido.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Desde 1979 uma ampla ordem jurídico-urbanística tem sido construída sobre a questão da regularização fundiária, a qual tem sido traduzida em políticas públicas e programas de ação em todas as esferas governamentais como parte integrante da agenda da "reforma urbana". No entanto, dados de diversas fontes têm indicado que o acesso informal ao solo e à moradia nas cidades tem crescido através de velhos e novos processos nas últimas décadas, agora com um significativo avanço do aluguel informal. Imobilizadas e incapazes de agir, sem terem políticas habitacionais minimamente adequadas, as autoridades públicas seguem tolerando a informalidade, somente reagindo através de remoções em casos estratégicos para os interesses dos proprietários, do mercado imobiliário e da própria administração pública e/ou agindo através de algumas tentativas de regularização fundiária — que ainda são poucas, se considerada a grande escala da questão. Em muitos contextos, as taxas de crescimento da informalidade urbana têm sido maiores do que as taxas de crescimento urbano, bem como do que as taxas de crescimento da pobreza. Com a tendência de consolidação, adensamento e verticalização das áreas informais já existentes e dada a periferização da nova produção informal, considerada também a maior dificuldade de ocupação das terras privadas sem contestação jurídica, por toda parte tem havido uma ocupação crescente de terras públicas e áreas ambientais, áreas de risco, fundos de vale e topos de morros.

Existe hoje uma aceitação generalizada da necessidade de urbanização desses assentamentos, com implementação de infraestrutura, equipamentos e serviços, além de melhoramento habitacional, obras viárias e criação de espaços públicos. Contudo, há menos unanimidade quanto à sua legalização. Quando existe, a regularização se tornou a principal política habitacional em muitos municípios — e tem gerado mais problemas do que soluções. Na falta de políticas preventivas que ampliem as condições de acesso formal ao solo e à moradia, as administrações públicas estão sempre correndo atrás da realidade consolidada tipicamente com políticas de regularização setoriais que são dissociadas das políticas fundiárias, urbanas, habitacionais, de transporte, ambientais e orçamentárias. Se a natureza curativa da regularização ainda não foi compreendida pelos gestores públicos, dadas a extensão e as implicações diversas do fenômeno "Não regularizar" esses assentamentos não é mais uma opção válida. O debate então deve se dar em torno da questão "Como regularizar?" Nesse contexto, há internacionalmente uma disputa entre dois paradigmas principais, ambos criados na América do Sul: as experiências do Peru e Brasil.

O paradigma peruano, inspirado nas ideias do economista Hernando de Soto, coloca ênfase quase que absoluta na titulação/ legalização/ formalização dos assentamentos através da distribuição de títulos de propriedade individual plena principalmente da terra pública ocupada, através de um programa governamental centralizado e promovido em grande escala. Hoje já se sabe que as promessas que justificavam a ação governamental — no sentido de que a titulação individual levaria a maior acesso a crédito, melhoramento habitacional e erradicação da pobreza —  não foram cumpridas. Se a titulação massiva levou à promoção de maior segurança jurídica da posse para os moradores — fator que não pode ser subestimado —, por outro lado também não se pode mais ignorar que tal política legalista tem tido uma série de implicações negativas: preços mais altos dos terrenos, mais ocupações, baixa qualidade urbanístico-ambiental dos assentamentos, novas distorções das relações de gênero etc. Em diversos países, programas de regularização inspirados na experiência peruana têm levado à chamada "expulsão pelo mercado" dos moradores que, sob pressão do mercado imobiliário especialmente nas áreas mais centrais das cidades, acabam por vender seus imóveis e com frequência não têm condições de se estabelecer em áreas igualmente bem localizadas. Se esse tipo de política de titulação exclusiva tende a ser mais barata do que outras formas mais articuladas de intervenção governamental, trata-se de mais um caso do "barato que sai caro": o Peru teve um dos índices mundiais mais altos de infecção e mortalidade na pandemia recente exatamente porque, mesmo com títulos nas mãos, mas na falta de infraestrutura urbana e de serviços adequados, os moradores dos assentamentos tiveram de se expor a riscos diários nos precários mercados populares. A política de regularização peruana custou caro para seus cidadãos.

Esse paradigma dominou nos anos 1990 e 2000, tendo sido inicialmente adotado por entidades influentes como UN-Habitat, World Bank e BID. Com a devida avaliação dos seus impactos negativos, na última década as ideias do de Soto perderam seu apelo internacionalmente. No entanto, essas ideias não entraram no Brasil até recentemente, dada a prevalência no país de um outro paradigma multidimensional, chamado de "Fórmula Brasileira", que propunha a articulação da titulação das áreas, lotes e construções com uma série de medidas urbanísticas, socioambientais e jurídicas que permitissem um tratamento mais amplo e sustentável da questão. Esse paradigma começou a ser construído em 1979 com a introdução na Lei Federal nº 6.766 de um capítulo específico sobre a regularização de loteamentos irregulares, bem como da noção vaga de "urbanização específica" que permitia o tratamento diferenciado de certas áreas. Foi essa noção que possibilitou a aprovação em 1983 do Pro-Favela de Belo Horizonte e do Prezeis do Recife. Nos dois casos, foi proposta a demarcação nos mapas dos planos urbanísticos das áreas correspondentes aos assentamentos existentes, hoje chamadas de Zeis ou Aeis, as quais deveriam ser submetidas a regulação urbanística específica e a processos de gestão democrática participativa, além de receber ações governamentais variadas para implementação de urbanização, infraestrutura, equipamentos e serviços. Naquele momento, surgiu uma divergência importante que ainda não foi devidamente equacionada no país e que está na base da mudança paradigmática atual quanto à natureza jurídica da titulação e dos direitos a serem reconhecidos aos moradores: tratava-se de uma questão de direito de propriedade, ou de uma questão de direito de moradia na qual a propriedade era apenas uma das possibilidades — mas não a única, e com frequência não a melhor? Belo Horizonte optou pelo reconhecimento de títulos individuais de propriedade plena em que pese o fato de que a maioria dos assentamentos na cidade ocupava terrenos privados. Já Recife recorreu ao então pouco reconhecido Decreto-Lei no. 271/1967 para distinguir entre assentamentos em terras públicas e aqueles em terras privadas: no primeiro caso seriam reconhecidos títulos de concessão de direito real de uso aos ocupantes, e no segundo caso seriam propostas ações judiciais de usucapião para que seus direitos fossem reconhecidos. Nos dois municípios tratava-se da regularização como política discricionária, já que os ocupantes não tinham direitos próprios claramente reconhecidos.

A Constituição de 1988 avançou no tratamento da regularização: ao mesmo tempo em que reconheceu a função socioambiental da propriedade, as funções sociais da cidade e o papel central do governo municipal, o texto constitucional também reconheceu o "direito à regularização" com a introdução do Usucapião Especial Urbano e da Concessão de Direito Real de Uso — novamente distinguindo entre terras privadas e terras públicas. Emenda Constitucional de 2000 reconheceu o direito de moradia como direito social, e o celebrado Estatuto da Cidade — Lei Federal nº 10.257/2001 — confirmou a "Fórmula Brasileira", tratando da regularização como direito subjetivo dos ocupantes no caso de assentamentos consolidados e como política discricionária do poder público nos demais casos, além de reconhecer, através da Medida Provisória no. 2.220/2001, o Usucapião e a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia (Cuem).

Na década de 1990 diversos programas municipais de regularização foram promovidos e, embora esse paradigma multidimensional fosse reconhecido, na prática na maioria dos casos a dimensão da "urbanização" dos assentamentos teve muito mais destaque do que a dimensão de sua "legalização" e relativamente poucos títulos foram conferidos aos ocupantes, em parte devido à falta de uma ordem jurídica federal que removesse os empecilhos criados pela ordem jurídica e pelo sistema judicial e cartorário. Com a criação do Ministério das Cidades em 2003, no âmbito da Secretaria Nacional de Programas Urbanos foi criado o "Programa Nacional de Apoio à Regularização Sustentável em Áreas Urbanas — Papel Passado", que visava criar formas de apoio jurídico, técnico, institucional e financeiro para a ação dos governos municipais, encorajando o enfoque combinado de regularização fundiária e reconhecendo a função social da terra pública federal. Dados os poucos recursos disponíveis e marcado por contradições político-institucionais, esse programa teve alcance limitado e pouca ênfase foi colocada na legalização dos assentamentos, inclusive aqueles em terras da União. De qualquer forma, diversas leis federais foram aprovadas na década de 2000 para facilitar a regularização — e a legalização — dos assentamentos informais: Lei Federal nº 10.9931/2004 — gratuidade do registro da regularização; Lei Federal no. 11.124/2005 — criação do FNHIS (Fundo Nacional da Habitação de Interesse Social); Lei Federal nº 11.481/2007 — transferência de terrenos pela União para que municípios regularizem ocupação; Lei Federal nº 11.888/2008 — direito de assistência técnica gratuita; Lei Federal nº 11.952/2009 — regularização fundiária na Amazônia Legal e Lei Federal no. 11.977/2009 — importante lei que, além de criar o programa Minha Casa Minha Vida, buscou no Projeto de Lei 3.057/2000 — chamado de "Lei de Responsabilidade Territorial" — diversos instrumentos e mecanismos para a regularização de assentamentos informais consolidados.

Em que pesem seus limites, o paradigma da regularização sustentável continuou dominante. Essa situação tem mudado rapidamente nos últimos anos, com o avanço de uma outra agenda que, ao invés de propor a promoção de inclusão social e integração espacial, tem colocado maior ênfase na "liberdade econômica" e nos direitos e interesses individuais, repetindo as promessas desacreditadas do caso peruano sem absorver as críticas já feitas internacionalmente. As mudanças político-ideológicas que começaram no governo Rousseff e ganharam fôlego nos governos Temer e Bolsonaro têm rompido com aquela "Fórmula": o avanço do neoliberalismo econômico, político e jurídico tem requerido o desmonte sistemático da ordem jurídico-urbanístico-ambiental. A Lei da Amazônia Legal já apontava outros caminhos para a legalização das terras públicas ocupadas em áreas urbanas, e a Medida Provisória nº 759/2016 tratou da regularização fundiária rural e urbana com base em outros princípios distintos, tendo se convertido na Lei Federal nº 13.465/2017. O movimento de mudança continuou com a PEC nº 80/2019 — que praticamente abole a noção constitucional da função social da propriedade — e a Lei Federal nº 13.875/2019 — que aprovou a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, princípio constitucional que nunca foi devidamente articulado com os princípios da reforma urbana. Medidas provisórias e propostas diversas sobre a Amazônia, licenciamento urbanístico-ambiental, Habite-se etc. têm consolidado essa mudança, culminando com a aprovação do Programa Casa Verde e Amarela em 2021 e a promoção legalista da propriedade individual sem maiores considerações de outras naturezas.

O avanço rápido dessa outra agenda que tem colocado maior ênfase na "liberdade econômica" é inconteste e está claramente acontecendo um processo impressionante de regularização fundiária de vários tipos, em várias esferas e com vários objetivos. Municípios, estados e União; Ministério Público e Defensoria Pública; cartórios e escritórios de Advocacia; universidades, movimentos sociais, associações de moradores: muitos têm sido os atores envolvidos nesse processo. Tem prevalecido uma leitura legalista da questão, com ênfase em aspectos jurídicos e cartorários e revelando outra visão mais limitada. Em muitos casos chega a ser uma visão da "legalização como mero negócio", e não como política pública, gerando as bases de uma "indústria" da legalização e favorecendo exclusivamente as soluções individuais. Esse movimento indica que a dimensão da legalização dos assentamentos foi historicamente maltratada — a dimensão da urbanização tendo tido muito mais destaque —, o que gerou uma "demanda represada" que é legítima e que deve ser reconhecida e estimulada. Já tinha passado da hora de se enfrentar com seriedade e na devida escala a questão da legalização dos assentamentos. É uma vergonha constatar que assentamentos consolidados há muitas décadas até hoje não foram plenamente legalizados e seus ocupantes não têm direitos próprios plenamente reconhecidos: chega de naturalização/ invisibilização/ repressão! Não há como ficar indiferente ao fato de que só 1% dos imóveis em favelas do Rio têm título de propriedade entregue pela prefeitura! Mesmo reconhecendo os fortes interesses de diversos agentes na titulação de áreas estratégicas para o mercado imobiliário — com a expectativa de que seus moradores vendam suas casas e transfiram seus títulos, assim permitindo a gentrificação dos lugares —, não se trata jamais de negar os direitos dos ocupantes, mas sim de pensar quais seriam as estratégias jurídico-urbanísticas que podem promover a permanência das pessoas e comunidades nas áreas regularizadas. Como garantir que os beneficiários finais dos programas de regularização sejam os moradores e comunidades originais?

Com foco nos assentamentos dos mais pobres, a experiência da regularização nunca tinha enfrentado a realidade dos assentamentos irregulares ocupados por outros grupos socioeconômicos como é o caso dos "condomínios fechados"/ "condomínios urbanísticos": ao tratar da "regularização de interesse específico", a Lei Federal nº 13.465 abriu um debate importante e necessário. Por outro lado, tem sido lamentável ver como em muitas das experiências em curso as outras dimensões da regularização como política pública, tais como a urbanização, a regulamentação das Zeis, a preservação ambiental e os programas socioeconômicos de geração de emprego e renda — aquelas dimensões que podem torná-la sustentável — estão se perdendo rapidamente. A ênfase quase que absoluta na legalização não tem aberto espaço para a afirmação de políticas preventivas que garantam a democratização do acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades — de forma a pelo menos minimizar os processos informais que continuam crescendo. A ênfase em títulos individuais de propriedade plena também tem inviabilizado um debate sobre outras formas jurídicas de reconhecimento da segurança da jurídica dos ocupantes — posse, títulos coletivos, aluguel, cooperativas, community land trusts/termos territoriais coletivos etc. Mais do que nunca, necessitamos da promoção de uma reflexão mais equilibrada entre o jurídico, o urbanístico e o socioambiental, sobre a aplicação da LF 13.465/2017 e sobre o conceito mais amplo de regularização.

Programas de regularização trazem benefícios para os moradores, mas já ficou claro que temos de repensar a questão crítica e profundamente. A falta de capacidade de ação institucional tem sido um problema, requerendo maior articulação intergovernamental, envolvimento dos diversos setores tradicionais e novos atores, assim como ação comunitária com apoio técnico e jurídico. O desafio da continuidade dos programas continua na falta de políticas de estado. A falta de envolvimento sistemático das comunidades tem limitado a eficácia dos programas. Contudo, mais grave ainda é a natureza intrinsecamente excludente do marco de governança da terra urbana dominante. Intervir diretamente na estrutura fundiária é crucial. Não podemos mais aceitar o modelo perverso que historicamente tem gerado um gigantesco déficit habitacional e um número astronômico de moradias precárias ao mesmo tempo em que um número igualmente enorme de terras e edificações privadas e públicas são mantidas vazias ou subutilizadas.

A principal lição da pandemia foi de que necessitamos urgentemente de recuperar o planejamento territorial inclusivo — no qual a regularização fundiária é apenas uma parte — como dimensão crucial de um novo marco justo, eficiente, democrático e sustentável de governança da terra urbana. Afirmar as funções socioambientais da propriedade e o valor social da terra e da cidade; criar as condições de gestão democrática da cidade — a participação popular sendo critério para a validade jurídica das leis e políticas/ planos/ programas e projetos; estabelecer o princípio da responsabilidade territorial do estado e consequentes direitos coletivos dos cidadãos, essas são as condições para abraçar plenamente a agenda da reforma urbana e construir o Direito à Cidade. Ao contrário do que muitos parecem acreditar, a LF 13.465/17 não revogou o Estatuto da Cidade! A interpretação restritiva que tem sido dada à regularização fundiária na esteira da aprovação dessa lei não pode ser aceita sem questionamentos. Essa lei não existe em um vácuo jurídico e tem de ser articulada com os princípios internacionais e constitucionais, bem como com o Estatuto da Cidade e outras leis urbanísticas, ambientais e sociais. Não há soluções individuais para problemas coletivos.

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