Faculdades da Laureate substituem professores por robô sem que alunos saibam

Docentes da rede que controla FMU e Anhembi Morumbi citam uso de inteligência artificial para correção de textos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Thiago Domenici
São Paulo | Agência Pública

Alunos de educação a distância das 11 instituições ligadas à rede educacional Laureate no Brasil passaram a ter suas atividades de texto em plataforma digital avaliadas por um software de inteligência artificial. A mudança, porém, não foi comunicada aos estudantes.

A informação foi confirmada por cinco professores que falaram com a Agência Pública sob a condição de anonimato, temendo represália. “Os alunos não sabem, e assim somos orientados: não podemos informá-los e devemos responder às demandas como se fossemos nós, professores, os corretores”, diz Silvana (os nomes foram alterados).

 Alunos na área do campus da faculdade Anhembi Morumbi, na Mooca
Área do campus da faculdade Anhembi Morumbi, na Mooca - Marcelo Justo/Folhapress

A rede tem mais de 200 mil alunos no Brasil, onde é dona de FMU | FIAM-FAAM, Anhembi Morumbi, UNIFACS, UniRitter, FADERGS, UnP, UniFG, IBMR e FPB.

Documento interno obtido pela reportagem que trata do uso do corretor automático também confirma a situação: “Atenção: esta informação não deve ser compartilhada com os estudantes!”, registra o texto grifado em amarelo, que é parte do manual do LTI, o software de correção empregado, enviado aos docentes.

Procurada, a Laureate respondeu em nota que “acompanha e analisa as tendências do segmento educacional para disponibilizar à sua comunidade acadêmica o que há de mais moderno e inovador no mercado, incluindo a adoção de diversas tecnologias da informação e da comunicação, que apoiem as atividades pedagógicas e potencializem ainda mais a qualidade do ensino, como o uso de inteligência artificial”.

“A organização reforça que faz parte da autonomia universitária de suas instituições encontrar recursos para melhorar a aprendizagem de seus alunos, tendo o professor como parte fundamental nesse processo. Todas as decisões estão pautadas nas diretrizes do Ministério da Educação (MEC), bem como seguem em conformidade com a legislação brasileira em vigor.”

O LTI funciona com palavras-chave, explica o professor Jonas. “Ele compara a resposta do aluno, atribuindo uma nota de acordo com a identificação que considera correta a partir dessas palavras.” Segundo eles, a correção não é imediata para que o aluno não perceba a utilização do robô, e a nota só é disponibilizada após alguns dias.

“O estudante está sendo enganado”, diz a professora Lorena, que afirma sentir-se mal com o fato. “A impressão é que a gente está lá só para inglês ver. Só pra eles usarem os nossos títulos e poderem validar os cursos no MEC.”

A denúncia atual chegou ao conhecimento da reportagem por meio da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, espaço de articulação e mobilização política dos educadores e educadoras das instituições de ensino superior (IES) privadas.

Estudantes ouvidos pela reportagem alegam nunca terem sido informados da mudança.

Aluna do quinto semestre de turismo na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, na modalidade presencial, Mitie Nagano, 20, tem 20% das suas atividades da graduação realizadas no EAD. Ela relata que desde o início do curso a universidade não deixou claro como eram feitas as correções.

“Sabíamos que passavam por um filtro de professores que corrigiam, pelo que falavam antes. E não chegou até mim a informação de que isso mudaria e que passariam a usar inteligência artificial”, diz.

Portaria do MEC de dezembro de 2019 permite às instituições ampliar para até 40% o EAD na grade curricular, mesmo em cursos presenciais. Exige dos cursos, porém, critérios técnicos adequados e projeto pedagógico aprovado, além de estabelecer que mudanças no curso presencial precisam ser “amplamente informadas” aos alunos.

Assim como Mitie, que é representante de classe, outros dez estudantes confirmaram à Pública que nada sabiam sobre o uso do LTI em suas atividades de EAD.

“Acredito que é extremamente prejudicial não ter um profissional capacitado avaliando minhas produções acadêmicas”, reclamou Maurício, que faz direito na Anhembi Morumbi.

No dia 24 de abril, no atendimento online da Anhembi Morumbi, a estudante de jornalismo Joana perguntou como são as correções e foi informada de que são feitas por professores. “Então esse professor corrige todas as atividades dissertativas do EAD?”, indagou. “Isso mesmo”, foi a resposta, conforme mensagens mostradas à Pública.

João, outro aluno da FMU, diz que se sente inseguro com a situação. “Cria a dúvida qual base ele [LTI] está utilizando pra saber se é correto ou não? Nem sempre a produção de mais e mais correções vence a maior assertividade manual”.

Erick Quirino, 20 anos, estudante de jornalismo no mesmo campus que Mitie, também acha que o uso não informado do LTI prejudica os alunos.

“Se for alguma coisa que faça uma análise semântica básica, que caça palavras-chaves, o contexto da resposta se perde. E a proposta das questões dissertativas é justamente que cada aluno possa desenvolver a sua própria resposta e argumento”, avalia, criticando a falta de transparência.

O professor Jonas teme demissões com a ampliação do uso do LTI. Segundo ele, a interação com os alunos já é pequena e só acontece quando a nota é 6 ou inferior — seguindo orientação do próprio manual do LTI. “O aluno não aprende, não é possível dar um feedback. Iremos formar robôs.”

Os docentes apontam ainda outros problemas no uso do sistema. “Fui olhar atividade por atividade analisada pelo LTI. A maioria que tirou dez é tudo plágio. E tem estudante que tirou nota ruim, mas que tentou escrever”, diz a professora Lorena.

“Se antes, quando corrigíamos atividades, já era difícil manter a qualidade educacional, uma vez que havia professores com mais de 7.000 alunos, sem que isso passe necessariamente por uma avaliação humana é ainda mais sofrível”, afirma Silvana.

Ela alega que, nos treinamentos obrigatórios da Laureate, online, afirma-se que “a EAD não diminuiu o papel do professor, fundamental para a articulação e engajamento dos estudantes”. “Mas a verdade é que os alunos estão abandonados por um sistema robótico que não preza pela mesma qualidade que o trabalho do docente.”

Não há regulamentação específica para o uso de inteligência artificial no país. Atualmente, dois projetos de lei sobre inteligência artificial tramitam no Congresso Nacional, ambos de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN).

Um deles cria a Política Nacional de Inteligência Artificial, e outro estabelece os princípios para o uso dela no Brasil. Na justificativa, Valentim diz que visa assegurar que o desenvolvimento tecnológico ocorra de modo harmônico com a valorização do trabalho humano.

Questionado pela reportagem, o MEC afirmou que não funciona como instância recursal em matéria acadêmica.

“Caso a proposta pedagógica vier a prejudicar a qualidade do ensino ofertado, tais deficiências serão detectadas nos processos de regulação, e caberá ao Ministério da Educação adotar as medidas cabíveis, como ações cautelares de redução de vagas, suspensão de novos ingressos, dentre outras”, declarou.

Esta reportagem foi produzida pela Agência Pública e publicada em parceria com a Folha. Leia o texto completo em apublica.org.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.