Opinião

Regularização fundiária urbana sustentável e os desafios da Lei 13.465/17

Autor

  • Éviton Marques da Rocha

    é defensor público titular do Núcleo de Moradia e Defesa Fundiária da Defensoria Pública do Estado do Maranhão e especialista em Direito Urbanístico e Ambiental.

7 de janeiro de 2023, 9h15

A industrialização somada à mecanização do campo, o êxodo rural [1] e o crescimento populacional proporcionam o intensificado processo de urbanização, que nada mais é do que a transformação de uma sociedade, região ou território de rural para urbano, o que não representa somente o crescimento da população das cidades (zona urbana), mas o aumento dessa em relação aos habitantes do campo (zona rural) [2].

A urbanização é um fenômeno mundial que, desde 2008, proporcionou o maior adensamento populacional das áreas urbanas das cidades, o que, segundo levantamento da ONU, representa hoje 54% da população global. A ONU aponta, ainda, que, até 2050, 68% da população mundial pertencerá à zona urbana das cidades.

O Brasil já vivenciou o ápice desse processo entre 1940 e 2010, ocasionando, assim, uma aglomeração de aproximadamente 80% da população na área urbana das cidades. E não vai parar por aí. Segundo projeções da ONU, esse número vai aumentar para aproximadamente 93,6% da população até 2050.

Como todo fenômeno, a urbanização produz consequências, que, sem o devido planejamento [3], podem ser prejudiciais à sociedade, como o crescimento desordenado das cidades, conflitos fundiários (envolvendo a posse ou a propriedade das terras), déficit habitacional, assentamentos humanos informais sem infraestrutura mínima e com irregularidades urbanísticas e ambientais, segregação socioespacial, ocupações em áreas de risco, problemas sociais, imóveis juridicamente irregulares [4], entre outros.

Em suma, a urbanização desacompanhada de planejamento traz, como principal consequência, a formação dos aglomerados urbanos subnormais, que, segundo definição do IBGE, sãos formas de ocupação irregular de terrenos públicos ou privados, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de infraestrutura adequada, falta de serviços públicos essenciais e localização em áreas que apresentam restrições à ocupação, a exemplo de favelas, grotas, palafitas, mocambo, entre outros [5].

Referidos aglomerados urbanos subnormais são, ainda que de forma deficiente, legalmente disciplinados como núcleos urbanos informais consolidados pela Lei de Regularização Fundiária (Lei n° 13.465/2017) que, em seu art. 11, I, II e III, define-os como assentamentos humanos clandestinos ou irregulares de difícil reversão, com uso e características urbanas, constituídos por unidades imobiliárias de área inferior à fração mínima de parcelamento prevista na Lei nº 5.868/1972 , independentemente da propriedade do solo, ainda que situado em área qualificada ou inscrita como rural

Como o poder público irá então lidar com esses aglomerados urbanos subnormais ou núcleos urbanos informais consolidados formados a partir do processo de urbanização desacompanhado do devido e efetivo planejamento?

A solução é apresentada pelo instrumento jurídico intitulado regularização fundiária sustentável.

A regularização fundiária sustentável, disciplinada pela já referida Lei n° 13.465/2017, apresenta-se como um instrumento que se preocupa não apenas com a titulação jurídica dos ocupantes de determinado aglomerado urbano subnormal, mas, para além disso, objetiva o reordenamento urbanístico dessa área, o reequilíbrio ambiental e o desenvolvimento econômico e social da população que ali se encontra instalada.

Isso decorre das próprias disposições trazidas pela Lei n° 13.465/2017 (Lei da Regularização Fundiária), que, no caput e § 1° do artigo 9° do referido diploma legal, aduz que, além da titulação dos ocupantes, a regularização fundiária objetiva integrar os núcleos informais ao ordenamento territorial urbano, além de promover a sustentabilidade econômica, social e ambiental da área.

A regularização fundiária trata-se, portanto, de política pública bem mais complexa e desafiadora sob o ponto de vista urbanístico do que a figura amplamente difundida e compreendida pela sociedade e, pior, por governantes ou autoridades responsáveis por sua implementação, que a entendem tão somente como mecanismo de pacificação de conflitos fundiários e/ou entrega de títulos de propriedade ou similares.

A regularização fundiária regulamentada pela Lei n° 13.465/2017 não se encerra apenas nisso. Ela, para ser sustentável, precisa ir mais longe. Para além da moradia pura e simples, deve garantir a moradia digna, ou seja, deve proporcionar a habitação integrada a uma localidade dotada de infraestrutura urbana essencial (definida pelo artigo 36, § 1°, do citado diploma legal), equilíbrio ambiental e provida de meios que proporcionem o desenvolvimento econômico e social da comunidade que lá se encontra instalada (a exemplo de saneamento básico, mobilidade urbana, emprego, renda, educação, saúde etc.).

Noutros termos, significa dizer que, para além do direito à moradia pura e simples, a regularização fundiária deve garantir o direito à cidade, que, nas palavras de Ermínia de Maricato [6], compreende "(…) o direito não apenas à terra, mas à cidade, com seus modos de vida, com seus melhoramentos, com suas oportunidades de emprego, de lazer, de organização política" etc. , ou seja, o direito a uma cidade sustentável e inclusiva, que, para além de outros aspectos, caracteriza-se como um direito difuso, a ser, portanto, protegido e garantido segundo os parâmetros da tutela coletiva [7].

Para tanto, a regularização fundiária deve se constituir como um instrumento promotor da reforma urbana, que, nas palavras de Rodolfo F. Alves Pena [8], compreende, "(…) basicamente, a promoção de uma série de políticas públicas para reordenar a lógica das cidades, democratizando suas estruturas e garantindo o seu acesso para as camadas economicamente inferiores da sociedade. Trata-se de uma perspectiva de melhorar a forma com que a cidade funciona para disponibilizar estruturas básicas em regiões periféricas, reaproveitar espaços subutilizados e ampliar as políticas de mobilidade urbana".

Ou seja: a regularização fundiária sustentável se apresenta como um dos principais instrumentos para a efetiva promoção da reforma urbana e concretização do direito à cidade.

Na verdade, a regularização fundiária regulamentada pela Lei n° 13.465/2017 nada mais é do que uma tentativa de adequação nacional aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, notadamente o Objetivo 11 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que é "Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis".

Tomando por base, pois, todo esse panorama, a questão que fica é a seguinte: a regularização fundiária proposta pela Lei n° 13.465/2017 atende a todos esses anseios sociais e internacionais em torno do direito à cidade e efetiva promoção da reforma urbana, que é a concretização do direito difuso à cidade sustentável?

O questionamento fica para a devida reflexão.

Por enquanto, resta acompanhar a implementação da política pública de regularização fundiária segundo os parâmetros estabelecidos pela Lei n° 13.465/2017 e avaliar se, para além de dirimir conflitos fundiários e conceder títulos de propriedade ou similares, apontada legislação está efetivamente cumprindo o seu propósito de promover a sustentabilidade urbana, econômica, social e ambiental dos aglomerados urbanos subnormais.

 


[1] Cujo ápice no Brasil se deu entre 1960 e 1980.

[2] SANTOS, Milton. "A Urbanização Brasileira". Edusp. 5ª edição. 2005.

[3] Por planejamento entenda-se o planejamento urbano integrado, que compreende uma política de desenvolvimento urbano que, em suma, trabalha o processo de urbanização dentro de um planejamento não apenas urbano, mas também ambiental, setorial e de desenvolvimento econômico e social das cidades, com a gestão orçamentária desse planejamento sendo realizada de forma participativa, aberta a todos os cidadãos, ficando, como regra, a sua coordenação sob a competência dos municípios, que deverão exercê-la a partir das diretrizes estabelecidas em sua maior parte pelo Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001) e legislações correlatas (BARROS A. M. F. B.; CARVALHO, C. S.; MONTANDON, D. T. "O Estatuto da Cidade comentado". In: CARVALHO, C.S.; ROSSBACH, A. O Estatuto da Cidade Comentado. São Paulo: Ministério das Cidades – Aliança das Cidades, 2010, p. 95).

[4] Segundo Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 50% dos imóveis brasileiros têm alguma irregularidade, o que corresponde a aproximadamente 30 dos 60 milhões de imóveis localizados no país

[6] MARCATO, Ermínia. "Direito à terra ou direito à cidade". In: Revista de Cultura Vozes. Vol. 79m nº 6, agosto de 1985, p.8.

[7] PRESTES, Vanessa Buzelato. REURB: Regularização Fundiária Urbana: aspectos teóricos e práticos. [livro digital] / Sílvia Cappelli, André Dickstein, Paulo Locatelli, Alexandre Gaio (org.). – Rio de Janeiro, RJ: MPRJ, IERBB, ABRAMPA, MPSC, 2021. 164 f. p. 131.

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