“Revolução” em Lisboa, antes da troika

A “revolução” iniciada em 2007 em Lisboa, que depois se propagou a outras cidades, teve e continua a ter fortíssimos impactos. Constata-se um duplo processo de gentrificação e turistificação, que empurra milhares de moradores para os subúrbios.

Foi novamente convocada para o Estoril a global investment community, uma entidade de contornos difusos, que tanto pode incluir fundos de investimento ou gestores de fortunas, como simples especuladores, ou operadores de atividades ilícitas à espreita de oportunidades de branqueamento de capitais. Nesta quarta edição do evento a ênfase é posta na recente criação das Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária (SIGI) e nas oportunidades que elas abrem para que mais dinheiro seja aplicado em Portugal no negócio imobiliário.

Lisboa, que em 2014 estava em 26.º lugar no ranking das preferências dos investidores e dos promotores imobiliários, saltou para o 7.º lugar em fins de 2016 e chegou ao topo em 2019, numa subida meteórica que, no entanto, não deve surpreender ninguém. De facto, a Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa 2011/2024, apresentada em 29 de abril de 2011, dias depois do pedido de assistência financeira, começou a ser construída pela nova gestão socialista da câmara da capital a partir de 2007, quando ainda nem se sonhava com a troika. Na apresentação da nova estratégia, Manuel Salgado deixou bem clara a intenção de mobilizar a iniciativa privada: “Criar condições para facilitar a transmissão da propriedade para o surgimento de uma nova geração de promotores e senhorios, que reabilitem e arrendem o edificado” era um dos pilares em que ia assentar a nova estratégia, a par com uma “aceleração da recuperação do capital investido” através da “redução do tempo de atualização da renda” e um mais rápido licenciamento das obras “removendo entraves regulamentares”.

As alterações legislativas introduzidas a partir de 2012 e a aprovação em 2015 da Estratégia Nacional para a Habitação (ENH), em sintonia com a estratégia entretanto delineada para Lisboa, permitiram obter resultados a nível nacional logo a partir de 2014: Os grandes operadores internacionais do negócio imobiliário são atraídos pela alienação de ativos a preço de saldo, a que o Estado e os bancos se vêm obrigados. O rápido crescimento do investimento direto do exterior faz aumentar a importância do setor como pretenso “motor” da economia, em paralelo com o Turismo e a Construção. Governo e opinião pública passam a estar constantemente na mira dos influentes lóbis do cluster Turismo/Imobiliário/Construção (T/I/C): a CTP – Confederação do Turismo Português, o organismo de cúpula das associações empresariais do Turismo, e a CPCI - Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário que defende os interesses dos outros dois setores.

Com consequências igualmente previsíveis, é o cluster T/I/C, que passa a estar por trás, ao nível local, da reabilitação urbana, e, ao nível do país, do consumo interno e do emprego. A consonância generalizada entre o poder e o lóbi do T/I/C floresce em 2016 nas três vertentes: No Turismo, que já vinha beneficiando da instabilidade do norte de África, é sobretudo notório o extraordinário fenómeno do Alojamento Local. Entre 2014 e 2017 o número de unidades de AL registadas em todo o país passou de 14.000 para 53.000, um aumento de 280%, e ainda não parou de crescer. Só na cidade de Lisboa entre 2014 e 2017 o número de unidades de AL registadas passou de 1 100 para 13.000, um aumento de 1080%. No entanto, no mesmo período, o número de estabelecimentos hoteleiros aumentou apenas 13,4%. Estes indicadores mostram que a aposta feita no T/I/C está sobretudo a resultar na proliferação do AL e na progressão do turismo low-cost. A particular incidência deste fenómeno nos centros e bairros históricos não tardou a originar frequentes reclamações dos moradores e a degradação do caráter e autenticidade desses locais.

Na vertente do Imobiliário, o valor das transações de imóveis mais do que duplicou em todo o país entre 2014 e 2017, passando de €11,3 mil milhões para €23 mil milhões (+103%). Na cidade de Lisboa o crescimento foi ainda maior, passando o valor das transações de imóveis de €2,5 mil milhões para €6,6 mil milhões (+164%), com particular incidência no centro e bairros históricos. O investimento tem sobretudo tomado a forma da aquisição de imóveis usados, a realização de obras de reabilitação e a posterior venda, arrendamento, ou exploração como alojamento local, processo que se traduz, geralmente, no despejo dos moradores.

Com o crescimento em volume do negócio imobiliário resultante do afluxo de novos investidores, predominantemente estrangeiros, movidos pela expetativa de bons negócios, os imóveis nos centros históricos e nas melhores zonas das cidades aumentam rapidamente de preço, quer para quem compra, quer para quem arrenda.

Finalmente, na vertente da Construção, o parente pobre do cluster T/I/C, o aumento da produção foi modesto, apenas 11% entre 2014 e 2017, em grande parte à míngua de investimento na infraestrutura do país. A dispensa de comunicação prévia para obras no interior dos edifícios, facultada a partir de 2014 pela revisão do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), contribui também para uma deficiente contabilização de grande parte das obras de reabilitação. Importa notar, a este propósito, que dentre as transações realizadas em 2017, cerca de 130 000 respeitaram a alojamentos existentes e apenas cerca de 24 000 (15,5%) a alojamentos novos, tendência que se manteve em 2018. A esta reabilitação a trouxe-mouxe dedica-se uma legião de pequenos construtores civis sem a necessária capacidade técnica, que deixou de ser exigida aos empreiteiros de obras particulares, com a alteração do regime dos alvarás (Lei n.º 41/2015, de 3 de junho).

A “revolução” iniciada em 2007 em Lisboa, que depois se propagou a outras cidades, teve e continua a ter fortíssimos impactos. Constata-se um duplo processo de gentrificação e turistificação, que empurra milhares de moradores para os subúrbios.

Além do grande impacto sobre os moradores, a proliferação de alojamentos locais resultante do crescimento do turismo low-cost, altera o caráter e a “atmosfera” dos centros e bairros históricos, desvalorizando-os enquanto património cultural.

As intervenções de reabilitação têm elas próprias sido frequentemente precárias e de reduzida durabilidade. A dispensa de reforço estrutural é particularmente grave no caso dos edifícios de zonas do país de maior risco sísmico, como é o caso de Lisboa.

Mas dos impactos do modelo de crescimento que tem vindo a ser seguido e dos seus parcos benefícios para o país, tratarei no PÚBLICO de amanhã.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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