Uma Experiência Modelo para o Sul Global: O TTC de Porto Rico, o Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña

“…E pela primeira vez nós, os moradores, viramos autores do nosso futuro”. Membros do TTC Caño na frente de um dos murais na área. Foto: Fideicomiso Caño Martín Peña

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Essa é a mais recente de uma série de matérias sobre experiências de Termos Territoriais Coletivos (TTC) pelo mundo. Selecionamos alguns casos concretos a partir da sua importância para o contexto no qual estão inseridos e, também, pelo potencial de inspiração para grupos e pessoas em outros locais. Os casos mostram como são variados os TTCs, apesar de terem uma estrutura básica sempre igual: uma organização sem fins lucrativos, composta de moradores, é dona da terra de uma área, enquanto os moradores são donos ou alugam as moradias em si. Nosso objetivo é apresentar o aprendizado acumulado por experiências internacionais com o TTC, com o intuito de pensar, a partir das lições que elas nos fornecem, como alcançar o maior potencial do modelo no Brasil e superar desafios enfrentados em outros contextos. A experiência explorada é do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, TTC situado na cidade de San Juan, capital de Porto Rico.

Fideicomiso de la Tierra foi o nome adotado para o modelo do Termo Territorial Coletivo em espanhol pelos moradores das comunidades de Martín Peña, em Porto Rico. A adoção do modelo se deu em resposta a uma situação de risco iminente de gentrificação, ligada a um projeto de dragagem do Canal Martín Peña, no centro bancário da capital do país, San Juan. Na visão dos moradores, a partir de suas vivências e experiências locais, a intervenção pública levaria a um aumento substantivo do preço dos imóveis na região. Diferentemente de experiências de TTC anteriores, o Fideicomiso de la Tierra foi desenhado para ser implementado em uma área de favela consolidada, situada nos arredores do referido canal. Trata-se também da primeira experiência de um TTC na América Latina.

As comunidades que cercam o Canal Martín Peña enfrentavam há décadas um grande problema em relação à infraestrutura local, em parte devido ao assoreamento do curso d’água e às frequentes inundações das casas. A proposta do governo de urbanizar a área, contemplando uma dragagem do canal e titulação individual, foi recebida com entusiasmo por moradores, pelas potenciais melhorias de suas condições de vida, mas também ligou um alerta em relação à provável valorização dos imóveis e consequente ameaça de gentrificação que pudesse expulsar uma parcela significativa dos moradores.

Casa do Caño destruida pelo Furacão Maria.
Casa do Caño destruida pelo Furacão Maria.

Neste cenário, o debate que levou à construção do TTC foi iniciada em 2000 e, após mais de 800 reuniões, resultou com o TTC formalizado em 2004, como uma medida de empoderamento local e de enfrentamento à especulação imobiliária e gentrificação na região, garantindo a possibilidade de permanência dos moradores no seu território. O processo para a implementação do modelo foi guiado pela Corporação ENLACE, empresa pública de duração limitada (25 anos), criada pelo governo porto-riquenho a partir da demanda das comunidades pela construção do TTC. Sua função é realizar o desenvolvimento econômico e urbano da comunidade. Essa empresa sempre atuou em conjunto com moradores através do G-8, grupo comunitário composto de lideranças das oito comunidades e responsável pela vigilância e mobilização para acompanhar a implementação do projeto e garantir que seja realizado de acordo com os interesses da comunidade.

Plano de desenvolvimento do distrito Caño Martín Peña. Foto: Corporación del Proyecto ENLACE del Caño Martín Peña
Plano de desenvolvimento do distrito Caño Martín Peña. Foto: ENLACE

Em ação conjunta, os moradores e técnicos envolvidos no projeto elaboraram uma série de instrumentos, entre eles o projeto de lei que foi apresentado e aprovado pelo legislativo, tornando-se a Lei nº 489-2004. Conhecida como Lei de Desenvolvimento Integral do Distrito de Planejamento Ambiental de Caño Martín Peña, ela teve um papel fundamental para a formalização do Fideicomiso de la Tierra. A maioria das habitações eram informais e construídas em terras públicas, o que dificultava a implantação do modelo. A partir da lei, o título dos terrenos da região de propriedade pública foram transferidos para a ENLACE, que, por sua vez, transferiu esse título ao Fideicomiso de la Tierra quando seu regramento foi estabelecido.

Durante esse período transitório, ENLACE ficou responsável por promover a regularização da área. Os moradores adquiriram o direito de superfície, ou seja, títulos individuais sobre as construções, enquanto a ENLACE reteve os títulos das terras. No período de 2006 a 2008, foram realizadas diversas oficinas comunitárias para desenvolver o Regramento Geral do Fideicomiso, finalmente promulgado em outubro de 2008. A partir da formalização do regramento, a ENLACE transferiu a propriedade da terra para o Fideicomiso por meio de escritura formal.

Vista do Caño Martín Peña e o distrito financeiro de Porto Rico.
Vista do Caño Martín Peña e o distrito financeiro de Porto Rico.

O conselho gestor do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña é composto de forma mista por onze membros:

  • Seis moradores da comunidade e membros do TTC (quatro deles eleitos em assembleia e dois designados pelo G-8);
  • Dois membros não-residentes (designados pelo próprio conselho gestor);
  • Três representantes de instituições governamentais (um membro da Corporação ENLACE, um nomeado pelo prefeito de San Juan e um nomeado pelo governador de Porto Rico).

Além dos onze membros com voto, também participa do conselho o presidente do G-8, mas sem direito a voto, e são realizadas constantes visitas de porta-em-porta, reuniões comunitárias, etc. para garantir a participação plena dos moradores.

O conselho tem como objetivo distribuir títulos de direito de superfície aos moradores, evitar deslocamentos involuntários de moradores e adquirir e manter de forma perpétua moradias, hortas, escolas e outras atividades desenvolvida nas suas terras a preços acessíveis, sendo a participação ativa dos moradores central nestes processos.

Atualmente, o Fideicomiso de la Tierra administra as terras das famílias aderentes a área do Distrito de Planejamento Especial e atende às demandas de mais de 2.000 famílias. É importante observar que, apesar de grande, esse número não representa a totalidade dos residentes das comunidades do Caño Martín Peña. Por não se tratar de um modelo compulsório, cerca de ¼ dos moradores das oito comunidades já decidiram aderir ao arranjo do TTC, com outros moradores se juntando com a passagem do tempo. A conjugação das dimensões social de construção popular, jurídica, ambiental, e urbanística, levou a experiência a receber premiações internacionais. É um caso paradigmático que serve de modelo de sucesso de TTC para o Sul Global, em especial para a América Latina.

Para saber mais sobre o TTC de Porto Rico, assista a esse vídeo aqui:


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