Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1323/19.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/04/2021
Relator:PAULA DE FERREIRINHA LOUREIRO
Descritores:ASILO
RETOMA A CARGO - SUÉCIA
Sumário:I- Tendo o pedido de proteção internacional formulado pelo Recorrente na Suécia sido indeferido, a aceitação da retomada a cargo por parte da Suécia respalda-se na al. d) do n.º 1 do art.º 18.º do Regulamento n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (doravante, apenas Regulamento Dublin).
II- Portanto, que somente é questionável a decisão de transferência do Recorrente para a Suécia ao abrigo do preceituado nos art.ºs 33.º da Convenção de Genebra, 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 4.º e 19.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
III- Efetivamente, a questão que se coloca neste domínio é a da possibilidade do caso versado consubstanciar uma situação em que a devolução do Recorrente não deve suceder por força do princípio do non refoulement, que deve, inclusivamente, ser aplicado aos casos das transferências realizadas ao abrigo da regulação Dublin, sempre que o caso concreto seja alusivo à possibilidade do transferido vir a sofrer o risco sério de ficar sujeito a tratamentos degradantes ou desumanos, na aceção dos art.ºs 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (neste sentido, veja-se, em especial, as considerações insertas nos pontos 341 a 359 do Acórdão promanado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em 21/01/2011, no processo M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09) (em diante, apenas CDFUE).
IV- Refira-se que aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros compete, por um lado, indagar, mesmo oficiosamente, da observância e adequada aplicação do direito da União Europeia, em concretização do princípio da efetividade do direito europeu- e seus corolários, incluindo as inerentes consequências processuais-, e, por outro lado, assegurar a concretização do preceituado no art.º 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
V- O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo a afirmar que os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros devem proceder a uma “análise exaustiva e ex nunc da matéria de facto e de direito” do caso, aqui se incluindo a avaliação do risco dos transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin virem a sofrer tratamento desumano ou degradante no Estado-Membro responsável (entre vários outros, Acórdãos proferidos em 19/03/2020, nos processos C-564/18, LH vs BMH, e C-406/18, PG vs BMH, e em 29/07/2019, no processo C-556/17, Torubarov).
VI- Tal obrigação corporiza-se, em bom rigor, no escrutínio detalhado dos factos e do direito em discussão em cada caso posto, relevando, nesta matéria- e nomeadamente-, o manancial informativo de que os tribunais devem dispor, seja por ter sido fornecido pelas partes, seja por ter sido oficiosamente adquirido para o processo, destacando-se, neste ensejo, a metodologia estabelecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e sufragada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no que tange ao escrutínio e minucioso exame dos aspetos e meandros legais que enfrentam os requerentes de asilo, bem como das condições materiais que os mesmos vivenciam, e das que provavelmente vivenciarão, para efeitos de determinação do risco de submissão a tratamento desumano ou degradante, seja nos casos de repulsão para o país de origem, seja no caso de transferência realizada ao abrigo do Sistema Dublin (Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Reino Unido, Queixa n.º 30696, e de 28/11/2011, Sufi e Elmi vs Reino Unido, Queixas n.º 8319/07 e 11449/07; Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 21/12/2011, C-411/10, N.S. vs Secretary of State for the Home Department (em especial, considerandos 85 a 96), e de 19/93/2019, C-163/17, Jawo vs República da Alemanha (em especial, considerandos 90 e 98).
VII- Neste contexto, surgem, com primacial relevância, os relatórios e informações publicitados por agências internacionais, independentes ou institucionais, que devem obedecer a condições de objetividade, fiabilidade e profundidade para que possam ser credibilizados e, assim, valorizados como prova demonstrativa dos factos pertinentes.
VIII- As informações respeitantes ao sistema de asilo sueco não apontam para falhas sistémicas nas condições de acolhimento, sendo que estas, em regra, situam-se num patamar bem mais elevado do que aquele que é suposto pelo Tribunal de Justiça da União Europeia para efeitos de considerar a hipótese da existência de sério risco de o requerente de asilo vir a sofrer tratamento desumano ou degradante. É que, ainda que se compreenda a dificuldade de adaptação do Recorrente à vida na Suécia e o seu desagrado em permanecer nesse país, a verdade é que se depreende que lhe foram propiciadas as condições básicas e essenciais para a sua sobrevivência, não se encontrando notícias atinentes à ausência de alojamento, alimentação, higiene e cuidados de saúde básicos no que respeita ao sistema de acolhimento sueco.
IX- Relativamente ao receio de deportação para o Afeganistão, refira-se, igualmente, que nada foi alegado de concreto que permita converter esse sentimento de receio num juízo de probabilidade de deportação, para efeitos de indagação da ocorrência de ma situação de proibição de refoulement.
X- Com efeito, qualquer apuramento quanto à subsistência de uma situação de proibição de repulsão, ainda que numa cadeia indireta, impõe a demonstração efetiva de que o Recorrente corre um sério perigo de deportação, ou de que a deportação se apresenta muito provável. O que, no caso versado, não ocorre, uma vez que o Recorrente limita-se a enunciar tal receio.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A..... (Recorrente), nacional do Afeganistão, vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa em 10/09/2019, que julgou improcedente a ação administrativa especial urgente proposta contra o Ministério da Administração Interna- Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Recorrido), mantendo o ato por este proferido em 21/06/2019, nos termos do qual o pedido de proteção internacional formulado pelo Recorrente foi considerado inadmissível, sendo determinada a transferência deste para a Suécia.

As alegações de recurso oferecidas pelo Recorrente culminam com as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES

1.º O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por sentença de 11 de Setembro de 2017, decidiu não conceder provimento à acção e manteve na integra a decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

2.º A Lei 23/2007 de 4 de Julho nomeadamente nos artigos 122.º e 123.º, contempla o conjunto de situações especiais que, na ótica do legislador, justificam um tratamento mais benévolo para concessão de autorização de residência.

3.º Com efeito entende o ora Recorrente que a sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, viola a lei substantiva, Lei 23/2007 de 4 de Julho, uma vez que o mesmo não foi enquadrado no regime excecional previsto nos artigos 122.º e 123.º de supra indicada lei que contemplam um regime excecional de autorização de residência temporária por razões humanitárias.

4.º Por outro lado, salvo o devido respeito, entende o Recorrente que, in casu, não ficou comprovado que a situação objetiva do Recorrente não possa ser contemplada no regime excecional de atribuição de autorização de residência por razões humanitárias.

5.º Impõe-se, pois, proceder a uma análise rigorosa dos contornos de cada situação individual.

6.º Pelo acima exposto, conclui-se que a Sentença recorrida deve ser revogada.

7.º O ora recorrente litiga com apoio judiciário.

Nestes termos, julgando procedente o presente recurso, esse Tribunal em conferência, deve,

Revogar a sentença ora recorrida, por a mesma se encontrar ferida de vicio de lei, uma vez que o recorrente não foi enquadrado no regime excecional previsto nos artigos 122.º e 123.º da lei 23/2007 de 4 de Julho que contemplam um regime excecional de autorização de residência temporária por razões humanitárias, sendo então concedido ao ora recorrente a concessão de autorização de residência por razões humanitárias.

Fazendo assim, a já costumada justiça!»

O Recorrido não apresentou contra-alegações.


*

A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu pronúncia sobre o mérito do recurso, pugnando, em suma, pelo não provimento.

Sustenta a sua visão, por um lado, na exigência das condições para efeitos do preenchimento do conceito de “falha sistémica” e, por outro, na imperatividade das regras estabelecidas pelo Regulamento Dublin que, na sua aplicação ao caso versado, impõem a transferência do Recorrente para a Suécia.


*

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


*

Questões a apreciar e decidir:

A questão suscitada pelo Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, consubstancia-se, em suma, em apreciar se a sentença a quo padece de erro de julgamento. Concretamente, a problemática a deslindar é a de apurar se a sentença recorrida errou ao manter a decisão de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional formulado pelo Recorrente e a decisão de transferência do Recorrente para a Suécia.

II- FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

«A) O Autor é nacional do Afeganistão.

B) Em 27/05/2019, o Autor apresentou um pedido de protecção internacional, junto do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que foi registado sob o nº ......

C) Em sede de análise preliminar do pedido do Autor, através do sistema EURODAC, verificou-se a existência de um registo com o “Case .....” inserido pela Suécia.

D) Deu-se início ao processo de determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional do Autor, a que foi atribuído o nº ......

E) Em 11/06/2019, o Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades suecas, ao abrigo do artigo 18º, nº 1, alínea b), do Regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.

F) Em 13/06/2019, as autoridades suecas aceitaram o pedido de retoma a cargo do Autor, ao abrigo do artigo 18º, nº 1, alínea d), do Regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.

G) Em 19/06/2019, foi realizada entrevista pessoal ao Autor e efetuado relatório, documento que dou aqui por integralmente reproduzido.

H) Em 21/06/2019, a ED. proferiu a seguinte decisão «






(…)



(…)».

I) Em 24/06/2019, o Autor foi notificado da decisão de transferência referida na alínea anterior.


*

Os factos assentes resultam da prova documental apresentada no processo.

Inexistem outros factos ou factos não provados com relevância para o exame e decisão da causa.»

III- APRECIAÇÃO DO RECURSO

O Recorrente, A....., propôs no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a presente ação administrativa de natureza urgente, demandando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, do Ministério da Administração Interna, de modo a obter a anulação do ato administrativo que considerou inadmissível o pedido de asilo apresentado no Gabinete de Asilo e Refugiados e, em consequência, determinou a sua retoma a cargo para a Suécia. Pediu, também, que lhe seja concedido direito de residência por razões humanitárias.

O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por sentença proferida em 10/09/2019, julgou a ação improcedente.

Discorda o Recorrente do julgado na Instância a quo, invocando a ocorrência de erros de julgamento, pois que, no seu entendimento, por um lado, ocorrem falhas sistémicas no sistema de asilo sueco e, por outro lado, em atenção à situação de conflito do seu país dever-lhe-ia ser concedida autorização de residência por motivos humanitários, nos termos previstos nos art.ºs 122.º e 123.º da Lei n.º 23.º/2007, de 4 de julho.

Vejamos, então, se o recurso apresentado pelo Recorrente merece acolhimento.

Debruçando-nos sobre as particularidades do caso posto e compulsada a factualidade que foi conduzida ao probatório da sentença recorrida- e que não foi impugnada em sede recursiva-, verifica-se que, em 11/06/2019, o Recorrido solicitou à Suécia a retomada a cargo do Recorrente, sendo que este país aceitou tal pedido de retoma em 13/06/2019 ao abrigo do preceituado no art.º 18.º, n.º 1, al. d) do Regulamento n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (doravante, apenas Regulamento Dublin) (cfr. pontos E e F do probatório).

Quer isto dizer, portanto, que a aceitação da retomada a cargo por parte da Suécia respalda-se na al. d) do n.º 1 do art.º 18.º. O que quer significar, portanto, que após exame minucioso do caso posto, especialmente dos factos que derivam do processo administrativo apenso, com destaque para o teor das declarações prestadas pelo Recorrente em sede de entrevista individual e para o teor do pedido de transferência formulado pelo Recorrido à Suécia, verifica-se que a situação em apreço não é suscetível de ser subsumida no art.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Regulamento Dublin, pois que, o indicado preceito refere-se, apenas, a casos em que, tendo sido apresentado um pedido de proteção internacional num Estado-Membro, tal pedido ainda não foi decidido.

Ora, no caso versado, acontece, precisamente, que o pedido formulado pelo Recorrente na Suécia já se encontra indeferido. De resto, esta realidade foi assumida pela Suécia, uma vez que tratou do pedido de retoma a cargo formulado pelo Recorrido ao abrigo do art.º 18.º, n.º 1, al. d) do Regulamento Dublin.

Quer isto dizer, por conseguinte, que não é aplicável ao caso dos autos o art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento Dublin.

A questão jurídica central que o vertente recurso coloca não é- diga-se- inédita, tendo já sido objeto de análise e tratamento por este Tribunal de apelação no processo n.º 1108/19.4BELSB, em Acórdão prolatado em 14/05/2020. Neste Aresto, este Tribunal afirmou que, “existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Itália – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, é inquestionável, atendendo a que a primeira regra nele estabelecida é a de que os pedidos serão analisados por um único Estado-Membro - cfr. n.º 1 do art. 3.º do Regulamento -, não havendo aqui lugar à apreciação da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, por inaplicável, sem prejuízo do dever de apreciar a eventualidade de se estar perante um pedido subsequente, nos termos e nas condições previstas no art. 33.º da Lei do Asilo, e tendo sempre presente o cumprimento, direta e indiretamente, do princípio de non refoulement, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo.” (sumário)

Na senda da Jurisprudência citada antecedentemente, é de concluir, pois, que o caso agora em discussão impõe a indagação quanto à respetiva- e possível- subsunção no art.º 33.º da Convenção de Genebra, bem como no art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e nos art.ºs 4.º e 19.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Sendo assim, é nosso entendimento que o percurso fundamentador trilhado pela sentença agora recorrida apresenta-se desajustado.

Assim,

Enquadrado devidamente o caso posto, é de concluir, imediatamente, pela correção da decisão administrativa impugnada no que tange à consideração da inadmissibilidade do pedido de proteção internacional formulado pelo agora Recorrente em Portugal, visto que, nada indicando estar em causa, ou poder estar em causa, um pedido subsequente, o pedido de proteção internacional rececionou já uma decisão de indeferimento da Suécia, conforme deriva da conjugação dos normativos inscritos nos art.ºs 19.º-A, n.º 1, al. a) e 33.º da Lei de Asilo.

Do que vem de explanar-se decorre, portanto, que somente é questionável a decisão de transferência do Recorrente para a Suécia, desta feita ao abrigo do preceituado nos já citados art.ºs 33.º da Convenção de Genebra, 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 4.º e 19.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Efetivamente, a questão que se coloca neste domínio é a da possibilidade do caso versado consubstanciar uma situação em que a devolução do Recorrente não deve suceder por força do princípio do non refoulement, que deve, inclusivamente, ser aplicado aos casos das transferências realizadas ao abrigo da regulação Dublin, sempre que o caso concreto seja alusivo à possibilidade do transferido vir a sofrer o risco sério de ficar sujeito a tratamentos degradantes ou desumanos, na aceção dos art.ºs 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (doravante, CEDH) e 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (neste sentido, veja-se, em especial, as considerações insertas nos pontos 341 a 359 do Acórdão promanado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em 21/01/2011, no processo M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09) (em diante, apenas CDFUE).

A indagação que cumpre levar a cabo quanto a esta questão resume-se a considerar a arguição- genérica-, por banda do Recorrente, da existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento que a Suécia dispensa aos requerentes de asilo e àqueles que já não o são, porque entretanto o seu pedido foi objeto de indeferimento, como sendo suscetíveis de subsunção nos art.ºs 3.º da CEDH[1] e 4.º da CDFUE[2], no art.º 33.º, n.º 1 da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiado[3] e art.º 19.º, n.º 2 da CDFUE[4].

Vejamos, então.

No caso hodiernamente em apreço, e tendo em conta as informações oferecidas pelo Recorrente no formulário atinente ao inquérito preliminar, bem como na entrevista pessoal, verifica-se que o Recorrente relatou que chegou à Suécia em 2015, depois de ter passado pela Turquia, Grécia, Macedónia e Alemanha. Relata também que, na Suécia, o seu pedido de asilo foi recusado, pelo que viajou para a Alemanha, onde ficou um mês, depois para a França e, finalmente, para Portugal.

Declarou, ainda, o Recorrente na entrevista pessoal que, nunca esteve no Afeganistão e que nasceu no Irão, país onde vivia. Explica que os seus pais são do Afeganistão e vivem ilegalmente no Irão, aliás, razão pela qual saiu do Irão, bem como para evitar ir para a guerra. Finalmente, na entrevista, o Recorrente declarou não querer voltar para a Suécia, receando aí ser deportado para o Afeganistão, país onde nunca viveu.

Ora, os relatos fornecidos pelos requerentes de asilo devem, em nossa opinião, ser valorizados em termos de avaliação do risco do requerente de vir a ser sujeito, eventualmente, a tratamento desumano ou degradante, por ausência de suporte material que lhe assegure as mínimas condições de sobrevivência, mormente, em termos de assistência médica, alojamento e alimentação. Recorde-se, a este propósito, a pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia, corporizada pelo Acórdão proferido em 19/03/2019, no processo n.º C-163/17, na parte em que explicita o grau de gravidade relevante para efeitos de obstaculizar a uma transferência ao abrigo do Regulamento Dublin, e que afirma, entre o mais, o seguinte:

“92. Esse limiar de gravidade particularmente elevado é alcançado quando a indiferença das autoridades de um EstadoMembro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas, como, nomeadamente, alimentarse, lavarse e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana (v., neste sentido, TEDH, 21 de janeiro de 2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, E:ECHR:2011:0121JUD003069609, §§ 252 a 263).

93. Como tal, o referido limiar não pode abranger situações que se caracterizem por uma grande precariedade ou uma forte degradação das condições de vida da pessoa em causa, quando estas não impliquem uma privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante.” (sublinhado nosso)

E esta asserção, quanto à relevância das declarações do requerente de asilo, ainda que assumam um cariz genérico, não queda invalidada pela circunstância do pedido de proteção internacional já se encontrar indeferido, como sucede nestes autos. Na verdade, na situação agora em apreço, caso se venha a concluir positivamente pela verificação de uma situação espoletante da proibição de refoulement, cabe à República Portuguesa extrair as devidas consequências da decisão de indeferimento do pedido de proteção internacional, maxime, a execução do afastamento do Recorrente para o respetivo país de origem, se nada obstar a tanto. Assinale-se que, em acolhimento desta visão, foi proferido por este mesmo Tribunal o Acórdão no processo n.º 1108/19.4BELSB, em 14/05/2020.

Por último, refira-se que aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros compete, por um lado, indagar, mesmo oficiosamente, da observância e adequada aplicação do direito da União Europeia, em concretização do princípio da efetividade do direito europeu- e seus corolários, incluindo as inerentes consequências processuais-, e, por outro lado, assegurar a concretização do preceituado no art.º 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Realça-se, nesta mesmíssima direção, a Jurisprudência editada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no que se refere à substanciação do direito a um recurso efetivo, inscrito no art.º 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, preceito este que norteia a interpretação que aquele Tribunal tem conferido ao art.º 46.º da Diretiva 2013/32/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, e que é diretamente aplicável ao Regulamento Dublin, conforme dimana dos considerandos 12 e 19 deste Regulamento e do considerando 54 daquela Diretiva.

Com efeito, a Instância da União Europeia tem vindo a afirmar que os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros devem proceder a uma “análise exaustiva e ex nunc da matéria de facto e de direito” do caso, aqui se incluindo a avaliação do risco dos transferidos ao abrigo do Regulamento Dublin virem a sofrer tratamento desumano ou degradante no Estado-Membro responsável (entre vários outros, Acórdãos proferidos em 19/03/2020, nos processos C-564/18, LH vs BMH, e C-406/18, PG vs BMH, e em 29/07/2019, no processo C-556/17, Torubarov).

Refira-se, aliás, que esta Jurisprudência do Tribunal de Justiça no que se refere à intensidade e amplitude dos deveres dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros em matéria de asilo constitui, simplesmente, uma apropriação da linha jurisprudencial anteriormente firmada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, citando-se, exemplificativamente, o Acórdão desta Instância de 28/11/2011, Sufi e Elmi vs Reino Unido, Queixas n.º 8319/07 e 11449/07 (especialmente, as considerações contidas nos pontos 212 a 219).

Tendo em conta a obrigação dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros de efetuar a análise exaustiva do caso, e sob uma perspetiva ex nunc, impera ressaltar que tal obrigação corporiza-se, em bom rigor, no escrutínio detalhado dos factos e do direito em discussão em cada caso posto, relevando, nesta matéria- e nomeadamente-, o manancial informativo de que os tribunais devem dispor, seja por ter sido fornecido pelas partes, seja por ter sido oficiosamente adquirido para o processo. Neste ensejo, entendemos destacar a metodologia estabelecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e sufragada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, no que tange ao escrutínio e minucioso exame dos aspetos e meandros legais que enfrentam os requerentes de asilo, bem como das condições materiais que os mesmos vivenciam, e das que provavelmente vivenciarão, para efeitos de determinação do risco de submissão a tratamento desumano ou degradante, seja nos casos de repulsão para o país de origem, seja no caso de transferência realizada ao abrigo do Sistema Dublin (Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 21/01/2011, M.S.S. vs Bélgica e Reino Unido, Queixa n.º 30696, e de 28/11/2011, Sufi e Elmi vs Reino Unido, Queixas n.º 8319/07 e 11449/07; Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 21/12/2011, C-411/10, N.S. vs Secretary of State for the Home Department (em especial, considerandos 85 a 96), e de 19/93/2019, C-163/17, Jawo vs República da Alemanha (em especial, considerandos 90 e 98). Neste contexto, surgem, com primacial relevância, os relatórios e informações publicitados por agências internacionais, independentes ou institucionais, que devem obedecer a condições de objetividade, fiabilidade e profundidade para que possam ser credibilizados e, assim, valorizados como prova demonstrativa dos factos pertinentes.

Sendo assim, perante a eventual possibilidade de subsistir um risco sério e real do Recorrente sofrer tratamento desumano e degradante na aceção do consagrado no art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, impõe-se, em termos de exigência mínima, que o Recorrido proceda a uma indagação aprofundada das razões pelas quais o requerente declara não querer regressar ao Estado-Membro em que apresentou o primeiro pedido de asilo, mormente através da solicitação de informações sobre o procedimento de asilo a que foi sujeito o requerente (cfr. art.º 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4 do Regulamento Dublin), bem como da solicitação de maiores detalhes sobre o seu percurso de vida enquanto esteve esse Estado e da assistência que lhe foi propiciada.

Munido das necessárias informações factuais, deve então o Recorrido escrutinar a eventual violação dos mencionados art.ºs 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 4.º e 19.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia no caso de vir a ser executada a transferência do requerente para esse Estado responsável.

É que, subsiste no Direito da União Europeia um princípio de non-refoulement, derivado do art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do art.º 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que constitui uma barreira de absoluta intransponibilidade, e da qual resulta a proibição de transferência de qualquer pessoa para outro Estado se essa transferência acarreta o risco de tortura, ou de tratamento humano ou degradante.

Atentando na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal de Justiça da União Europeia, bem como considerando os específicos contornos do caso posto, é nosso entendimento que, face à informação disponível nos autos e no processo administrativo, não é possível afirmar que o Recorrente corre o risco sério de vir a sofrer tratamento desumano ou degradante caso venha a ser transferido para a Suécia.

Com efeito, os relatos fornecidos pelo próprio Recorrente são claros no sentido de demonstrar que a resistência em regressar à Suécia é motivada pelo receio de deportação para o Afeganistão e não por razões referentes a falhas no procedimento de asilo ou na falta de condições de acolhimento. Para esta conclusão concorre o facto do Recorrente nada ter alegado de concreto relativamente ao tempo em que esteve acolhido na Suécia, nomeadamente quanto ao tratamento que aí lhe foi dispensado.

Ademais, as informações respeitantes ao sistema de asilo sueco não apontam para falhas sistémicas nas condições de acolhimento, sendo que estas, em regra, situam-se num patamar bem mais elevado do que aquele que é suposto pelo Tribunal de Justiça da União Europeia para efeitos de considerar a hipótese da existência de sério risco de o requerente de asilo vir a sofrer tratamento desumano ou degradante. É que, ainda que se compreenda a dificuldade de adaptação do Recorrente à vida na Suécia e o seu desagrado em permanecer nesse país, a verdade é que se depreende que lhe foram propiciadas as condições básicas e essenciais para a sua sobrevivência, não se encontrando notícias atinentes à ausência de alojamento, alimentação, higiene e cuidados de saúde básicos no que respeita ao sistema de acolhimento sueco.

Seja como for, não se ignorando que o sistema de asilo sueco também se depara com dificuldades- como, aliás, sucede em praticamente todos os Estados-Membros-, tais dificuldades situam-se, ainda assim, muito afastadas do grau de gravidade estabelecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia para que se possa considerar que podem consubstanciar um risco sério de sujeitar a pessoa a tratamento desumano ou degradante.

Por conseguinte, as alegações do Recorrente não podem proceder.

Relativamente ao receio de deportação para o Afeganistão, refira-se, igualmente, que nada foi alegado de concreto que permita converter esse sentimento de receio num juízo de probabilidade de deportação, para efeitos de indagação da ocorrência de ma situação de proibição de refoulement.

Com efeito, qualquer apuramento quanto à subsistência de uma situação de proibição de repulsão do Recorrido, ainda que numa cadeia indireta, impõe, em primeiro lugar, a demonstração efetiva de que o Recorrente corre um sério perigo de deportação, ou de que a deportação se apresenta muito provável. O que, no caso versado, não ocorre, uma vez que o Recorrente limita-se a enunciar tal receio.

Em segundo lugar, apuramento quanto à subsistência de uma situação de proibição de repulsão do Recorrido impõe que o Recorrido alegue factualidade concreta suscetível de firmar a convicção de que o seu afastamento para o Afeganistão irá coloca-lo em sério risco de sofrer tratamento desumano ou degradante. Neste conspecto, também o Recorrente nada invocou, para além da circunstância de nunca ter vivido no Afeganistão. E tal, claramente, não basta como arrimo de um juízo de proibição da repulsão.

Seja como for, o facto de ter sido negada a concessão de asilo ao Recorrente não implica, forçosamente, que o mesmo seja deportado para o país da sua nacionalidade, cabendo ao Recorrente invocar perante as autoridades suecas todas as circunstâncias pertinentes da sua situação pessoal por forma a que estas possam ponderá-las adequadamente e, assim, decidir o destino do Recorrente, mormente, a concessão de autorização de residência, ainda que a título provisório.

Por último, o Recorrente clama pela aplicação à sua situação pessoal do disposto nos art.ºs 122.º e 123.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação atualizada.

Ora, tal pretensão não merece qualquer acolhimento. E por três razões.

A primeira, porque tal questão não foi invocada na petição inicial, nem apreciada pelo Tribunal a quo. Por conseguinte, tal questão apresenta-se, nesta sede, como inovatória, estando vedado a este Tribunal de Apelação, por isso, o julgamento de tal questão.

Seja como for, mesmo que assim não sucedesse, sempre fracassaria a pretensão do Recorrente, dado que o enquadramento da sua situação jurídica, face ao pedido de asilo que o mesmo formulou em 27/05/2019, não é apto a convocar a legislação atinente à entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho), mas sim a legislação especial que estatui o regime de concessão de proteção internacional, a Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, por força do preceituado no ser art.º 1.º, e que inclui a previsão da aplicação do Regulamento Dublin (Regulamento n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013), em conformidade com o art.º 36.º seguintes da dita Lei n.º 27/2008.

Finalmente, cumpre clarificar que a situação individual do Recorrente não é subsumível em nenhuma das hipóteses normativas elencadas no art.º 122.º da Lei n.º 23/2007 e, no que tange ao art.º 123.º, sempre o Recorrente teria de demonstrar a subsistência de “razões humanitárias” na concessão de autorização de residência, o que, como se sabe, não logra realizar, visto que nada invocou em concreto quer quanto ao país da sua nacionalidade- Afeganistão-, quer quanto ao país em que nasceu- o Irão.

Sendo assim, resulta imperativo concluir que a impetração que o Recorrente dirige à sentença a quo não merece qualquer acoito.

Desta feita, não subsistindo qualquer motivo fáctico-jurídico para que a transferência do Recorrente não possa efetivar-se, cumpre concluir que a Suécia é, realmente, o Estado responsável pelo Recorrente, como impõem os critérios estabelecidos no art.º 7.º do Regulamento Dublin.

E, visto que a Suécia aceitou o pedido de retomada a cargo, cumpre prolatar a decisão de inadmissibilidade do pedido formulado em Portugal, de acordo com o prescrito no art.º 37.º, n.º 2 e 19.º-A, n.º 1, al. a) da Lei do Asilo, e ordenar a transferência do Recorrente.

IV- DECISÃO

Pelo exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, ainda que com diferente fundamentação.

Sem custas, atenta a gratuitidade prevista no art.º 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio.


*

Remeta cópia do presente acórdão ao Conselho Português para os Refugiados.


*** ***

Lisboa, 4 de março de 2021,

____________________________

Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro- Relatora

____________________________

Jorge Pelicano

____________________________

Celestina Castanheira


A relatora, Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro, declara e atesta, nos termos do disposto no art.º 15.º-A, do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Juízes Adjuntos, Juízes Desembargadores Jorge Pelicano (1.º adjunto) e Celestina Castanheira (2.ª adjunta).

______________________

[1] Artigo 3.º

Proibição da Tortura
Ninguém poderá ser submetido a torturas, nem penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.  

[2] Proibição da Tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes
Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.  

[3] Artigo 33.º

Proibição de expulsar e de repelir

1- Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.
2- Contudo, o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado que haja razões sérias para considerar perigo para a segurança do país onde se encontra, ou que, tendo sido objecto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país.  

[4] Artigo 19.º

Proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição

1. São proibidas as expulsões coletivas.
2. Ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes.