Mulheres com deficiência estão mais sujeitas à violência, preconceito e abuso sexual

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O Disque 100, serviço de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, registrou mais denúncias de violência relacionadas às mulheres (51%), enquanto os homens registraram 45%

“Ser uma mulher com deficiência é possuir uma dupla vulnerabilidade: ser mulher e ter deficiência.” A frase dita pela analista judiciário do TRT/SC (Tribunal Regional do Trabalho), de Florianópolis, Ana Paula Koch de Bona, de 34 anos, reflete a realidade dela e de 25,8 milhões de mulheres com deficiência no Brasil, segundo o último Censo do IBGE, realizado no ano de 2010.

O número de mulheres que possuem deficiência física no Brasil é superior ao dos homens, com oito milhões (9,75%).- Foto: Getty Images/iStockphoto/NDO número de mulheres que possuem deficiência física no Brasil é superior ao dos homens, com oito milhões (9,75%).- Foto: Getty Images/iStockphoto/ND

O número de mulheres que possuem deficiência física no Brasil é superior ao dos homens. São 8 milhões de mulheres (9,75%) contra 5 milhões de homens (5,33%), no total de 45.623.910 pessoas que possuem esta condição no país.

Em Santa Catarina, 255.646 mulheres possuem uma deficiência. Mais uma vez, as mulheres predominam representando 8,12% do total no Estado, superior aos 163.547 (5,27%) casos no sexo masculino. Todos os dados apresentados são do último Censo realizado pelo IBGE, em 2010.

Sendo assim, com a predominância de mais mulheres vivendo nesta condição, maiores são as chances de serem desrespeitadas, discriminadas e sujeitas à violência doméstica ou abuso sexual. Muito mais que os homens.

Mesmo sendo de idades, perfis e personalidades diferentes, essas mulheres possuem elementos em comum: são mulheres e têm deficiência, e portanto consideram-se com dupla vulnerabilidade.

“É preciso falar sobre a mulher com deficiência”, ressalta a analista jurídico Ana Paula Koch de Bona, que nota a realidade ainda pouco abordada.

Natural de Florianópolis, ela nasceu com uma deficiência chamada mielomeningocele, uma má formação na coluna que ocorre nos primeiros meses de gestação e acarreta várias sequelas, como a paraplegia.

Amante de esportes, ela gosta de sair para um bar ou restaurante, de ir ao cinema e viajar. Ana Paula mostra as dificuldades que enfrenta no dia a dia e alega que, na sociedade contemporânea, pouco se fala sobre a mulher com deficiência.

A analista jurídico, Ana Paula Koch de Bona, comenta sobre os enfrentamentos de ser uma mulher com deficiência – Foto: Arquivo pessoal/NDA analista jurídico, Ana Paula Koch de Bona, comenta sobre os enfrentamentos de ser uma mulher com deficiência – Foto: Arquivo pessoal/ND

Realidade ainda é pouco abordada

A mulher em si já possui vários enfrentamentos e o cenário para as que têm uma deficiência é ainda pior. E quando envolve fatores como etnia, raça, faixa etária e classe econômica, o enfrentamento por ser uma minoria é ainda maior.

Os problemas vão além da falta de acessibilidade, esta não é a principal dificuldade. Cada uma destas mulheres possui uma trajetória e carrega marcas de uma realidade ainda pouco abordada e representada.

Enfrentam uma sociedade muitas vezes preconceituosa e misógina, como assim descrevem. Cada perfil simboliza uma luta que ainda há muito que evoluir, em um cenário que precisa mudar.

O enfrentamento em dados

“Mulheres com deficiência são alvos mais fáceis para a violência doméstica”, a frase dita por Ana Paula confirma os dados.

Só em 2018, mais de 11,7 mil pessoas com deficiência sofreram violência, e deste número, o Disque 100, serviço de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, registrou mais denúncias relacionadas às mulheres (51%), enquanto os homens registraram 45%.

Além disso, o Atlas da Violência de 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica, mostra que, no Brasil, de 22.918 casos de estupro, a violência sexual contra mulheres com deficiência atinge 10% do total. Entre os casos de estupro coletivo, 12,2% das vítimas tinham deficiência.

Os dados são alarmantes. Estima-se que 40% a 68% sofreram abuso sexual antes de completarem 18 anos.

Muitas vezes a vítima pode demorar a perceber que está sofrendo um abuso, principalmente as que possuem deficiência psíquica, é o que confirma a psicóloga da DPCAMI (Delegacia de Proteção à Mulher, à Criança e ao Idoso) de São José, Maíra Marchi Gomes.

“Pode ser difícil de ela perceber pelo toque, pode pensar que é carinho ou uma brincadeira”, revela.

Mulheres com deficiência tendem a ser mais solitárias

A psicóloga ressalta que a mulher com deficiência está mais vulnerável a sofrer violência doméstica, por possuir uma condição que dificulta a denúncia e impede que reaja, fuja e grite. E dependendo da modalidade de deficiência, a própria compreensão do que sofreu muitas vezes não ocorre.

Além disso, tendem a ser mais solitárias, como descreve outra psicóloga, a curitibana Camille Silveira, de 28 anos, que também tem uma deficiência física, a síndrome denominada Artrogripose múltipla congênita.

Camille Silveira tem 28 anos e conta sobre os enfrentamentos no olhar de psicóloga e de mulher com deficiência – Foto: Arquivo pessoal/NDCamille Silveira tem 28 anos e conta sobre os enfrentamentos no olhar de psicóloga e de mulher com deficiência – Foto: Arquivo pessoal/ND

“Acredito que em várias situações a mulher com deficiência é mais solitária, porque muitas vezes as mulheres com deficiência ‘não possuem tantas opções’ de parceiros disponíveis, o que pode fazer com que essas mulheres se sujeitem a relacionamentos que podem vir a se tornar abusivos”, revela.

A psicóloga da DPCAMI, Maíra Marchi, também ressalta que as mulheres com deficiência pensam que permanecerão sozinhas se romperem um relacionamento e que ninguém mais irá querê-las, além do companheiro. Portanto, submetem-se e aceitam situações que não deveriam ser aceitas.

Os dados não são cruéis apenas nesse quesito. São também no mercado de trabalho. Dados da  Relação Anual de Informações Sociais – RAIS de 2017 mostram que em empregos formais, as pessoas que possuem alguma deficiência estão presentes em apenas 0,96%, sendo que os homens em 0,61% e mulheres em 0,35%, ou seja, um número muito baixo.

Os sinais de abuso

A psicóloga Maíra de Marchi Gomes mostra quais são os motivos que fazem uma mulher não denunciar abusos: confusão de sentimentos, dependência, relações afetivas, medo ou questões econômicas.

Também possuem medo se serão compreendidas ou se serão desacreditadas, além da vergonha e da falta de confiança em fazer amigos.

Além disso, não são todas as que possuem acesso à informação ou conhecimento em relação ao que está ocorrendo, principalmente quando se tem outros agravantes como raça, faixa etária e classe econômica.

Há casos também em que a mulher é indefesa e não consegue denunciar sozinha. Outra dificuldade é quando não possui suporte além do agressor, logo não tem alguém que ajude a denunciar. Há também aquelas que possuem dificuldades de manifestar o que está ocorrendo.

“É preciso um cuidador que acredite nela”, acrescenta Maíra de Marchi Gomes.

Mulheres com deficiência são alvos mais fáceis para a violência doméstica. Foto: IStock/Divulgação/NDMulheres com deficiência são alvos mais fáceis para a violência doméstica. Foto: IStock/Divulgação/ND

A psicóloga revela quais são os sinais perceptíveis que esta mulher está sendo vítima de algum abuso, seja violência sexual, física ou psicológica.

Alguns exemplos são o regresso em situações em que se já está progredindo, além do retraimento social e de interação, sejam de pessoas em volta ou até mesmo com quem possui semelhanças com o agressor.

Perda da autonomia, facilidade para urinar na roupa, alterações no humor ou no sono, prisão de ventre e transtorno alimentar (pode comer muito ou pouco) são outros sinais de abuso.

O preconceito e o olhar diferente

A mulher com deficiência também sente que as pessoas em volta dela a olham diferente, o que é chamado de capacitismo – termo que designa o preconceito contra pessoas com deficiência.

“Pessoas olham como se fôssemos um bicho, ou sentem pena ou ficam no discurso de que somos superação”, completa a bacharel em direito Ana Paula Koch de Bona.

Além do preconceito, elas apontam o descrédito e a infantilização.  “Parece que chamar alguém de meu noivo é uma palavra proibida. Pensam que ele é meu enfermeiro, meu irmão, nunca noivo. E também colocam ele em um pedestal por estar comigo”, relata.

O mesmo é vivenciado por Grace Kelly da Silva, professora baiana de 38 anos, que já sofreu muito preconceito e bullying na infância, porém afirma que hoje se sente bem consigo mesma. Mãe de três filhos, nasceu com má formação congênita na mão direita, porém isso não a impediu de realizar muitas atividades, como aprender crochê.

A professora baiana, Grace Kelly da Silva, de 38 anos, conta sobre o bullying que sofreu por ter uma deficiência. – Foto: Arquivo pessoal/NDA professora baiana, Grace Kelly da Silva, de 38 anos, conta sobre o bullying que sofreu por ter uma deficiência. – Foto: Arquivo pessoal/ND

Residente em São Bernardo do Campo (SP), possui um canal no YouTube que além de mostrar seus trabalhos de crochê ainda apresenta as experiências carregadas pela deficiência.

“Os maiores desafios para mim não foram os de realizar atividades do dia a dia, mas lidar com rótulos e preconceitos das pessoas próximas e conhecidas”, revela.

A professora relata que viu os filhos sofrerem bullying devido à deficiência dela. Também sempre nota os olhares desconcertados das pessoas pelo mesmo motivo. Além disso, escutava muito das pessoas na gravidez se não possuía medo dos filhos nascerem como ela, e o marido principalmente era o que mais ouvia, já que ele não possui deficiência.

“Enfrentamentos não me faltaram, nem faltam. Tive inúmeros e tenho alguns, porém hoje tenho convicção de quem sou e do meu papel em ser única e diferente”, completa.

A psicóloga Camille Silveira também relata o mesmo problema. “Não é somente em relacionamentos que nos sentimos em defasagem, são em todos os aspectos”, desabafa.

Ela conta que quando vai ao trabalho, por meio de motorista de aplicativo, é questionada diversas vezes se vai passear, pois quase nunca pensam que pessoas com deficiência trabalham.

O enfrentamento de padrões estéticos

Outra questão a ser levantada é a falta de representatividade na mídia a respeito das mulheres com deficiência. Elas sentem que é algo que ainda não mudou e que mexe com a autoestima delas.

“O sexo feminino já é pautado em padrões estéticos, o que é ainda pior quando se tem alguma deficiência”, completa Ana Paula.

Além da acessibilidade, a advogada acrescenta que a autoestima e a aceitação do corpo estão entre os principais enfrentamentos. “As pessoas não aceitam a deficiência, te olham como se fosse um monstro” , completa.

A ausência de representatividade é sentida também na hora de se vestir, já que descrevem que não há roupas acessíveis e utensílios de estética para elas. Pela falta de acessibilidade ou pelo medo do preconceito, poucas frequentam salões de beleza ou lojas de roupas.

“Há uma diversidade entre as deficiências. Pouco a exploram, e quando fazem, escolhem modelos com pouca deficiência para não chocar”, desabafa a advogada.

Grace Kelly também reforça que por não pertencer a um padrão estético da sociedade, ela se isolava e sentia-se diferente: “Por muito tempo me sentia como um patinho feio. Eu me afastava e me excluía por medo. Os homens querem a mulher perfeita”, desabafa.

Nas festas, Grace Kelly tinha dificuldades, porque os rapazes a chamavam para dançar e quando viam que não possuía uma mão, alguns desistiam. Por isso, ela vivia escondendo a deficiência, inclusive em fotos, para fugir dos julgamentos e das perturbações. Ela aceitava o senso comum de que o diferente não era belo.

“A autoestima é relativa e construída de forma única. Mas nós que temos uma deficiência carregamos desde quando nascemos um estereótipo, de que temos pouco a oferecer, não possuímos capacidade para nos relacionar, somos infantis e não servimos para nada”, afirma Camille Silveira, baseada na experiência como mulher com deficiência e psicóloga.

A saúde e a sexualidade da mulher com deficiência

Se a acessibilidade nos locais ainda é um desafio para as pessoas deficientes, é ainda mais complicado quando envolve a questão da saúde pública.

Apesar da Lei Federal nº 11.664/2008 garantir a todas as mulheres o direito à assistência integral à saúde, com exames de colo uterino e mamografia, a analista jurídico Ana Paula Koch afirma que a realidade não é bem assim.

“Como deficiente física, digo que a saúde da mulher com deficiência fica em segundo plano, é difícil encontrar um lugar com macas em altura que dê para subir ou equipamentos de mamografia com acessibilidade”. Também há a barreira em chegar ao consultório, porque muitas vezes não há estacionamento.

Abordar e debater a sexualidade da mulher com deficiência ainda é um tabu. Muitos pensam que quem tem deficiência não mantém relações sexuais.

“As pessoas pensam que não podem ou não conseguem ter relações devido à deficiência; pensam que somos assexuadas, que não temos gênero”, completa Camille.

Amparo à mulher com deficiência

É de extrema importância a mulher com deficiência ter alguém para compartilhar o que sente.

Além disso, se alguém próximo notar que algum abuso está ocorrendo, é importante denunciar para o Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, gratuito e que funciona 24 horas, inclusive em finais de semana e em feriados. Está disponível em todo o Brasil e também em 16 países.

O Ligue 180 é gratuito e que funciona 24 horas, inclusive em finais de semana e em feriados. – Foto: IStockO Ligue 180 é gratuito e que funciona 24 horas, inclusive em finais de semana e em feriados. – Foto: IStock

O Ligue 180 recebe denúncias de violência, orienta as mulheres em relação a leis e direitos, além de receber reclamações sobre os serviços da rede de atendimento à mulher. As denúncias são encaminhadas para a Segurança Pública e para o Ministério Público de cada Estado.

Há também a Delegacia de Proteção da Criança, do Adolescente, da Mulher e do Idoso (DPCAMI) e também a Delegacia de Polícia de Proteção à Mulher pelo Estado. A Polícia Civil também disponibiliza a Delegacia Virtual de Santa Catarina, que permite denúncias feitas de forma online.

A delegada Marcela Goto, da DPCAMI de São José, afirma que o atendimento é feito no térreo com uma psicóloga, da maneira mais acolhedora possível.  São atendidas apenas denúncias de São José, e os casos do Disque 180, por exemplo, são encaminhados até a DPCAMI.

O atendimento é feito por um policial de plantão e depois com a psicóloga. São mostradas as opções para ajudar a vítima, como a medida protetiva, a suspensão do porte de arma do agressor ou o afastamento do agressor da vítima ou do lar.

Caso a denunciante tenha interesse em um inquérito, é realizado com o escrivão. A mulher com deficiência psíquica possui muitas dificuldades ao denunciar, e caso o psicólogo policial não consiga extrair as informações, o caso é levado automaticamente ao juiz.

A denúncia também pode ser feita por uma testemunha, pelas razões da própria mulher com deficiência não ter condições ou até mesmo quando ela não quer denunciar.

Nestes casos, é registrado um boletim de ocorrência, com os nomes e todas as informações necessárias. Em seguida, é instaurado um inquérito policial para saber se realmente ocorreu o crime. Após o fim da investigação, o delegado se manifesta, informando se indicia ou não o suposto autor. Feito isso, o caso é encaminhado ao judiciário.

A lei para a pessoa com deficiência é a Lei. 13.246/15. Entretanto, não há uma lei específica para mulheres com deficiência, segundo a delegada. Também não há estatísticas sobre a demanda, tampouco do número de mulheres com deficiência que fazem denúncias à DPCAMI.

Além disso, instituições trabalham para apoiá-las, como a Aflodef – Associação Florianopolitana de Deficientes Físicos do Estado de Santa Catarina, ACIC – Associação Catarinense para Integração do Cego, ASGF – Associação dos Surdos da Grande Florianópolis e Conade – Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.