Por que me comunicar de forma neutra e como posso fazer isso?

OmniChat
8 min readJun 23, 2021

Junho é considerado o mês da diversidade e o Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, especialmente as pessoas que estão representadas pela letra T. Para mudar este cenário, existem diversas iniciativas nas mais variadas esferas sociais e políticas: pensar em como nos comunicamos é uma delas.

Este artigo é uma proposta para pensarmos em uma linguagem neutra e inclusiva. Mas, antes de começarmos a falar sobre o assunto, vamos falar sobre o que é linguagem.

Independente se você acredita ou não, é inegável a influência que a religião tem na história e na construção da realidade em que vivemos. Pensando dessa forma, podemos usar a criação do mundo e todas as coisas de acordo com a religião cristã como exemplo:

E Deus disse: Exista a luz. E a luz existiu. E Deus viu que a luz era boa; e separou a luz das trevas. E chamou à luz dia, e às trevas noite. E fez-se tarde e manhã, (e foi) o primeiro dia.

Livro de Gênesis

Neste exemplo, a luz foi uma das primeiras coisas criadas. Mas, mesmo antes da luz, já existia a palavra. Conforme Deus criava as coisas, dava um nome para cada uma delas. E assim também acontece em outras culturas, outras religiões, outras vivências. É comum ao ser humano identificar algo com um som, um símbolo, uma palavra.

A fundação da criação das coisas está diretamente ligada à criação das palavras e das linguagens.

Nós precisamos da linguagem para conseguir entender e interpretar a realidade. É uma forma de capturar o que está acontecendo naquele momento. Se não conseguirmos interpretá-la, também não conseguimos nos comunicar, agir e conviver.

As línguas são o que criam as nossas realidades. Pessoas diferentes, em tempos históricos e vivências diferentes, trabalham e usam a linguagem de formas diferentes, pois são realidades diferentes. Assim como as palavras, podem mudar o significado para acompanhar o que acontece no mundo.

Até o século XX, a palavra carregador, por exemplo, não significava o aparelho que conduz a energia necessária para recarregar a energia de baterias, mas a pessoa que carregava coisas.

Hoje dificilmente associamos a palavra carregador à uma pessoa que carrega, porque isso já não faz mais parte da nossa realidade.

A nossa língua está organizada a partir de gêneros. Quando vamos usar o plural e generalizar, o comum é o uso do gênero masculino: “os alunos, os diretores, todos sejam bem-vindos, etc”. Porém, na realidade em que vivemos, o gênero masculino não é neutro e muito menos inclusivo.

Além disso, a gente fala ele e ela como se essas fossem as únicas possibilidades. Existem pessoas que não se identificam como ele ou ela, ou também existem pessoas que se identificam com os dois, ou hora um e hora outro, ou com nenhum. Essas pessoas não se sentem contempladas nesse discurso.

Também podemos incluir as mulheres neste mesmo conceito, quando pensamos na equidade de gêneros. As mulheres têm ocupado cada vez mais os espaços, mas, mesmo assim, se houver 99 mulheres em uma sala e apenas 1 homem, usamos o masculino para neutralizar o gênero. Isso parece mesmo a melhor solução?

As palavras carregam significados e têm o poder de transformar. Quando uma realidade muda, a linguagem também muda. Da mesma forma, ao mudar a linguagem, também podemos modificar toda a realidade.

Como utilizar a comunicação neutra?

Ótimo! Consegui entender o que é linguagem e a importância de me comunicar de forma neutra, mas e agora? Como posso fazer para mudar a forma como me comunico? Isso é o que vamos explorar e exemplificar no restante do artigo.

* Alguns dos exemplos utilizados estão presentes no guia com algumas diretrizes e exemplos de como neutralizar o gênero do Parlamento Europeu

1 — Não use “X” e nem “@”

Não! Nunca. Jamais usem “X” ou “@” para neutralizar o gênero. Esse é um dos erros mais comuns, pois as pessoas acreditam que substituir o “a” ou “o” por esses caracteres vai causar o efeito inclusivo, já que não têm um gênero específico. Entendemos que essa seja uma boa intenção, mas essa não é a melhor alternativa.

Realmente, esta poderia ser uma opção para a inclusão de gênero. Mas, ao mesmo tempo que inclui os diferentes gêneros, exclui outros grupos: pessoas com deficiência.

Os leitores de tela utilizados por quem não consegue enxergar não conseguem interpretar as palavras se forem compostas por estes caracteres. Além disso, pessoas com autismo e/ou dislexia podem encontrar dificuldade em ler palavras escritas desta forma.

Quando falamos de inclusão e diversidade, não estamos falando apenas da população LGBTQIA+, mas também destes outros grupos.

Além disso, você já tentou aplicar o “X” ou “@” na linguagem oral? Já pensou como ficaria o som disso em uma conversa? Acredito que esteja repensando agora e eu nem precise mais explicar por que esses caracteres não são recomendados, não é mesmo?

2 — Uso de substantivos uniformes

São substantivos que não sofrem inflexão de gênero. Ou seja, são palavras que não se alteram de acordo com o gênero e, portanto, já são naturalmente neutras: “a criança”, “a vítima”, “o cônjuge”, “a pessoa”, “o indivíduo”, etc.

É uma ótima maneira de neutralizar o gênero de uma forma natural e simples, que inclui todos os grupos.

Exemplos:

  • “A classe política”, em vez de “Os políticos”;
  • “As pessoas interessadas”, em vez de “Os interessados”;
  • “As entidades licitadoras”, em vez de “Os licitadores”;
  • “O corpo docente”, em vez de “Os professores”;
  • “O pessoal de enfermagem”, em vez de “Os/As enfermeiros/as”;
  • “O pessoal de limpeza”, em vez de “Os/As empregados/as de limpeza”.

Prefira nomes coletivos que representem uma instituição, um grupo, ou organização ao invés de usar o nome de uma função ou cargo.

Exemplos:

  • “As pessoas responsáveis pela supervisão”, em vez de “Os supervisores”;
  • “A direção”, em vez de “Os diretores”;
  • “A gerência”, em vez de “Os gerentes”.

Isto também serve para descrição de vagas em uma página de recrutamento, ou na descrição de um título.

Exemplos:

  • “Pessoa que desenvolve em PHP” em vez de “Desenvolvedor PHP”
  • “Dirigente de marketing” ao invés de “Diretor de marketing”
  • “Líder de equipe de vendas” em vez de “Supervisor de equipe de vendas”

Mesmo sem perceber, às vezes acabamos usando artigos como “a” ou “o” e isso acaba definindo o gênero do sujeito das frases. Mas, quando possível, podemos simplesmente ignorar o artigo ou o pronome, o que é altamente recomendável quando queremos neutralizar a comunicação.

Exemplos:

  • “Deputados aprovaram o projeto de lei” em vez de “Os deputados aprovaram o projeto de lei”
  • “Turistas chegaram de todos os lugares” em vez de “Os turistas chegaram de todos os lugares”
  • “Lady Gaga não vem mais” em vez de “A Lady Gaga não vem mais”

3 — Pronomes invariáveis e frases passivas

Outra possibilidade é deixar utilizar os pronomes indefinidos invariáveis para generalizar o máximo possível. Afinal, alguns destes também são invariáveis e não sofrem diferença de acordo com o gênero.

Exemplos:

  • “Este documento só pode ser acessado por alguém da direção” ao invés de “Este documento só pode ser acessado por um diretor”
  • “Preencher o formulário é de responsabilidade de quem tem interesse na vaga” em vez de “Preencher o formulário é de responsabilidade do candidato”
  • “Quem proceder à apresentação de um requerimento deve…”, em vez de “Os requerentes devem…”;
  • “As candidaturas devem ser enviadas até…”, em vez de “Os candidatos devem enviar as suas candidaturas até…”;
  • “A sentença será proferida…”, em vez de “O juiz proferirá a sentença”.

Também serve para quando estamos nos dirigindo à um grupo mistos de pessoas, ou quando não sabemos exatamente para quem a mensagem vai chegar.

Exemplos:

  • “Que bom que vocês vieram” em vez de “sejam bem-vindos”
  • “Agradeço à quem está aqui” em vez de “obrigado à todos”

4 — Uso da palavra “pessoa”

Quando falamos de neutralização de gênero, sempre fazemos isso pensando em pessoas. Não há necessidade de fazer isso quando o nos dirigimos a um objeto, como “a mesa” ou “o computador”, por exemplo.

Portanto, uma ótima forma de neutralização é a substituição do sujeito da frase pela palavra “pessoa” junto com a ação que ela faz ou o complemento. São “pessoas que fazem algo”. A palavra, como já vimos no item 1, é um substantivo uniforme, então não sofre alteração de acordo com o gênero e, além disso, humaniza o sujeito da frase.

Exemplos:

  • “As pessoas interessadas no produto podem comprar clicando aqui” em vez de “Os clientes interessados no produto podem comprar clicando aqui”
  • “As pessoas internadas no hospital recebem uma pulseira de identificação” em vez de “Os pacientes internados recebem uma pulseira de identificação”
  • “Procuramos pessoas que façam ilustrações para uma vaga de emprego” em vez de “Procuramos ilustradores para uma vaga de emprego”

5 — Uso de pronomes neutros

Em alguns casos não tem jeito. Quando há uma limitação da quantidade de texto ou de palavras que se pode usar, como o caso do design de uma interface mobile que tem pouco espaço e todo pixel é super disputado, fica mais difícil “evitar” o gênero com as dicas e exemplos citados acima.

Não significa que, por uma pessoa ser homem, mulher ou não-binária, vá identificar-se com um ou outro pronome. Existem homens que identificam-se com os pronomes ela/dela, por exemplo.

Sendo assim, o mais comum e recomendável é adequar os pronomes para pronomes neutros utilizando as letras “u” e “e”, pensando em elu/delu como uma alternativa para ele/dele ou ela/dela.

Exemplos:

  • “Elus são amigues”;
  • “Aquelu menine na foto é elu?”;
  • “Sejam bem-vindes!”;
  • “Agradeço à todes”;
  • “O cabelo delu é castanho”;

Além dessa, que é a mais comum, outras variações são possíveis. A Wiki Identidades disponibiliza uma lista com todas as variações conhecidas de uso de linguagem neutra.

Existem algumas formas de identificar os pronomes que a pessoa usa.

  • Identificar o perfil em redes sociais. Algumas pessoas destacam os pronomes que usam ao lado do nome, na descrição ou na bio do perfil para facilitar
  • Dê voz às pessoas trans. Deixe com que a pessoa fale um pouco e observe como acontece a identificação
  • Perguntar. Se a pergunta não tiver tom agressivo, é a melhor maneira de descobrir os pronomes de alguém. “Olá, quais são os seus pronomes?”

Temos que normalizar a pergunta sobre os pronomes que as pessoas se identificam. Tentar adivinhar pode fazer com que você erre e ofenda a pessoa com que está se comunicando, mesmo sem intenção.

Pronto! Estas são algumas dicas para que você possa se comunicar de forma neutra e simplificada. Espero que possa usar este artigo como um guia e consulte sempre que necessário. A adaptação pode ser difícil, acredite, eu sei. Ainda tenho muita coisa para aprender. Mas o esforço é recompensador.

O mundo é, sempre foi e sempre será diverso. Enquanto formos pessoas, seremos diferentes uns dos outros. Está mais do que na hora de aprendermos a nos comunicar como tal.

Pensar em uma linguagem neutra e inclusiva não é só sobre e reforçar e refletir a pluralidade da nossa realidade, mas, também, é uma forma de acompanhar a evolução da nossa humanidade.

Texto escrito pelo Analista de Suporte Sênior da Omni, Felipe Nascimento

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