Optou-se, como ponto de partida para
a discussão do tema das próximas Jornadas da EBP-MG – “O inconsciente e a diferença sexual” –, por uma concepção do
inconsciente que aparece na lição X, do Seminário
11, Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Vejamos quais são as razões para essa escolha! No interior da
lição intitulada “A presença do analista”, surgem dois aforismas que atingem de
cheio a nossa temática clínica. O primeiro aforisma afirma que “a transferência
é a atualização da realidade do inconsciente”; o segundo, que “essa realidade
consubstancial ao inconsciente é sexual”[i]. Antes de tudo, devo
esclarecer que essa concepção do inconsciente, que inclui a sexualidade, não é
única ao longo da trajetória do ensino de Lacan. Podem-se situar pelo menos
três tempos de seu esforço de formalização do conceito de inconsciente : o texto “Função e campo da palavra e da
linguagem” , a concepção do inconsciente, do Seminário 11, e a definição do Seminário
20, que inverte todas as perspectivas construídas anteriormente.
Inconsciente
e interpretação
A primeira conceituação toma o
inconsciente como uma estrutura homogênea à interpretação. Seu ponto de partida
é o inconsciente-intérprete que, em última instância, se deduz da famosa tese
do inconsciente estruturado como linguagem. No essencial, essa tese consiste em
representar o inconsciente como uma aparelhagem interpretável.
É notável que a primeira parte desse
texto se dirija à fundamentação do inconsciente por meio de uma discussão a
propósito do tratamento analítico. Nada equivalente ao que Freud estabeleceu com
suas postulações iniciais do inconsciente, pois toma como ponto de partida as
formações do inconsciente. Os exemplos das manifestações do inconsciente em Psicopatologia da vida cotidiana, nos chistes
e em A interpretação dos sonhos são,
em sua grande maioria, ocorrências fora do tratamento analítico. Há toda uma
demonstração de Freud de que, apesar de estar fora do tratamento, esses
fenômenos são interpretáveis. No texto de Lacan, portanto, a questão do
inconsciente surge relacionada à crítica do uso do imaginário das fantasias na
técnica da experiência na análise com crianças; das relações libidinais de
objeto na base da ideia do progresso da análise e, finalmente, da importância
excessiva da contratransferência como motor do tratamento[ii].
Interessa-lhe localizar, nesse momento do tratamento, dois níveis: uma
interpretação da palavra analisante, do discurso do sujeito, e a palavra do
analista, isto é, a interpretação.
Em definitivo, toma-se a palavra do
analisante como uma formação do inconsciente, por excelência. Define-se
simultaneamente o inconsciente e a interpretação a partir da palavra, a partir
da forma eminente, da forma suprema, excelente da palavra, aquela que se
denomina de “palavra plena” […].
No fundo, a palavra excelente, a forma perfeita da palavra é uma palavra
historizante. O que Lacan chama de história se diferencia de um simples
desenvolvimento cronológico, para fazer prevalecer, em cada momento da
existência, uma intenção antecipatória e retroativa. A palavra plena, é o ponto
de partida, pois obedece a essa estrutura. (….)
Sobre essa base definem-se,
correlativamente, o inconsciente e a interpretação. Os dois termos aparecem sob
a égide da história, até o ponto de dizer que o inconsciente é a história ou,
mais exatamente, que é capítulo censurado, ocupado por um branco ou uma
mentira.
Nessa linha, Lacan define o sintoma
analítico como um significante cujo significado não pode efetuar-se e permanece
retido no recalcado, isto é, no espaço do inconsciente.. Correlativamente, a
interpretação encontra, por sua vez, o seu lugar, visto que visa reduzir essa
opacidade[…].
De outro modo, quando o impulso
desse vetor foi retido, tem-se a presença de um significante que não encontrou
seu significado histórico correspondente, e a interpretação está ali para
permitir essa retroação significativa efetuar-se no presente. Segundo Lacan, a
interptretação “é uma pontuação oportuna que dá sentido ao discurso”[iii].
(…) Tal construção se baseia nesse esquema da palavra, que corresponde tanto ao
inconsciente como à interpretação. Quando esse esquema não pode efetuar-se,
tem-se um fato do inconsciente que é, essencialmente, o sintoma, e a
intepretação intervém para restabelecer a completude desse funcionamento. É
provável que se tenha aqui o valor da tese do inconsciente estruturado como
linguagem.
O inconsciente freudiano se define
pelo fato de ser interpretável. Nesses termos, a interpretação concerne à
natureza mesma do inconsciente. Freud começou por demonstrar que o sonho era
interpretável. Que condição permite constituir o conjunto de fenômenos –
sonhos, ato falho, lapsus, chiste – que se remetem ao inconsciente? A condição
essencial para incluí-los como formações do inconsciente é que se possa
apreender um “querer dizer”. Por certo, um querer
dizer especial, na medida em que está inibido por certo não poder dizer, por uma impotência para
dizer ou um impossível de dizer ou uma proibição de dizer. Esse querer dizer
especial, que permite qualificar um determinado fenômeno de inconsciente, está
articulado com um indizível. […]
Utiliza-se aqui a expressão meio dizer
que Lacan forjou, bem mais tarde, em “O avesso da psicanálise”. Portanto, se o
inconsciente freudiano interpreta, apenas o faz se disfarçando, cifrando sua
intenção de significação – o que convoca, por sua vez, uma operação contrária
de deciframento. (…) O analista, precisamente, porque é Outro, deve estar à
altura de dizer o indizível do analisante.
O inconsciente e a sexualidade
Chega-se agora ao segundo tempo da
formalização de Lacan sobre o inconsciente, cuja fonte é tanto o Seminário 11 como o escrito que lhe é
contemporâneo, a saber: “Posição do inconsciente”. Logo no início do texto,
encontra-se um conjunto resumido de definições do inconsciente[iv]
em que dificilmente se pode apreender sua equivalência conceitual com a
interpretação. Nesse segundo tempo, toma-se em consideração a sexualidade e,
por consequência, estabelece-se uma articulação essencial entre o inconsciente
e o objeto da pulsão.
Curiosamente, esse dado novo aparece
em função de todo um remanejamento e revisão da teoria da interpretação exposta
antes. Ou seja, Lacan, no Seminário 11,
faz uma retrospectiva bem-resumida de sua formulação inicial, em que situa, de
um lado, o recalcado e, de outro, o
seu correspondente, a saber, a interpretação[v].
É notável, aliás, que ele substitua o termo inconsciente
pelo termo recalcado. […]
Então, do lado do recalcado, está o
sintoma, que se edifica sobre o recalcado,
e, do lado da interpretação, o
desejo, conforme o binário clássico da “Instância da Letra”. Em suma, o desejo
apresenta-se retido no sintoma, que a interpretação, por sua vez, libera A interpretação
aparece como a liberação do sentido aprisionado no sinthoma. Do mesmo modo, do
lado do recalcado, tem-se o significante, conforme a definição precedente que
toma o sintoma como um significante, cujo significado foi recalcado. Do lado da
interpretação, está o significado[…].
O Seminário 11 apresenta, portanto, essa espécie de resumo
retrospectivo da teoria da interpretação, com o acréscimo de um fator de
conexão entre o recalcado e a interpretação. Há algo entre os dois que é, nada
menos, nada mais, que a sexualidade.
RECALCADO <> INTERPRETAÇÃO
SINTOMA DESEJO
STE SDO
METÁFORA METONÍMIA
SINCRONIA DIACRONIA
SEXUALIDADE
[….]o que acrescenta Lacan nessa visada retrospectiva da conexão
recalcado/interpretação é um intervalo preenchido pela sexualidade. Pode-se
dizer que ele acrescenta a sexualidade como um elemento que embaralha as cartas
de sua concepção anterior do inconsciente. […] Ele se exprime assim: “Pelo fato
da incidência da sexualidade, a interpretação analítica não é apenas uma
mântica”. Ou seja, uma pura e simples arte de decifração dos significantes.
É a partir daí que Lacan coloca as
questões essenciais para o tema das nossas próximas Jornadas: – O que é a sexualidade? Como ela se faz
presente no inconsciente? Como ela está aí representada? […].
*Texto na integra
próxima Curinga , a ser lançada em junho 2017
[i] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 139.
[ii] LACAN, J. Função e
campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 243-244.
[iii] LACAN. Função e campo
da fala e da linguagem em psicanálise, p. 253.
[iv] LACAN, J. Posição do
inconsciente. In: ___. O Seminário,
livro 11: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 844.
[v] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, p. 167.