L'INCS #1 - 4. TEXTO DE ORIENTAÇÃO




Os embaixadores - Hans Holbein



A realidade do inconsciente é sexual

Jésus Santiago

            Optou-se, como ponto de partida para a discussão do tema das próximas Jornadas da EBP-MG “O inconsciente e a diferença sexual” –, por uma concepção do inconsciente que aparece na lição X, do Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Vejamos quais são as razões para essa escolha! No interior da lição intitulada “A presença do analista”, surgem dois aforismas que atingem de cheio a nossa temática clínica. O primeiro aforisma afirma que “a transferência é a atualização da realidade do inconsciente”; o segundo, que “essa realidade consubstancial ao inconsciente é sexual”[i]. Antes de tudo, devo esclarecer que essa concepção do inconsciente, que inclui a sexualidade, não é única ao longo da trajetória do ensino de Lacan. Podem-se situar pelo menos três tempos de seu esforço de formalização do conceito de inconsciente :  o texto “Função e campo da palavra e da linguagem” , a concepção do inconsciente, do Seminário 11, e a definição do Seminário 20, que inverte todas as perspectivas construídas anteriormente.

Inconsciente e interpretação
            A primeira conceituação toma o inconsciente como uma estrutura homogênea à interpretação. Seu ponto de partida é o inconsciente-intérprete que, em última instância, se deduz da famosa tese do inconsciente estruturado como linguagem. No essencial, essa tese consiste em representar o inconsciente como uma aparelhagem interpretável.
            É notável que a primeira parte desse texto se dirija à fundamentação do inconsciente por meio de uma discussão a propósito do tratamento analítico. Nada equivalente ao que Freud estabeleceu com suas postulações iniciais do inconsciente, pois toma como ponto de partida as formações do inconsciente. Os exemplos das manifestações do inconsciente em Psicopatologia da vida cotidiana, nos chistes e em A interpretação dos sonhos são, em sua grande maioria, ocorrências fora do tratamento analítico. Há toda uma demonstração de Freud de que, apesar de estar fora do tratamento, esses fenômenos são interpretáveis. No texto de Lacan, portanto, a questão do inconsciente surge relacionada à crítica do uso do imaginário das fantasias na técnica da experiência na análise com crianças; das relações libidinais de objeto na base da ideia do progresso da análise e, finalmente, da importância excessiva da contratransferência como motor do tratamento[ii]. Interessa-lhe localizar, nesse momento do tratamento, dois níveis: uma interpretação da palavra analisante, do discurso do sujeito, e a palavra do analista, isto é, a interpretação.

            Em definitivo, toma-se a palavra do analisante como uma formação do inconsciente, por excelência. Define-se simultaneamente o inconsciente e a interpretação a partir da palavra, a partir da forma eminente, da forma suprema, excelente da palavra, aquela que se denomina de “palavra plena” […].
No fundo, a palavra excelente, a forma perfeita da palavra é uma palavra historizante. O que Lacan chama de história se diferencia de um simples desenvolvimento cronológico, para fazer prevalecer, em cada momento da existência, uma intenção antecipatória e retroativa. A palavra plena, é o ponto de partida, pois obedece a essa estrutura. (….)
            Sobre essa base definem-se, correlativamente, o inconsciente e a interpretação. Os dois termos aparecem sob a égide da história, até o ponto de dizer que o inconsciente é a história ou, mais exatamente, que é capítulo censurado, ocupado por um branco ou uma mentira.
            Nessa linha, Lacan define o sintoma analítico como um significante cujo significado não pode efetuar-se e permanece retido no recalcado, isto é, no espaço do inconsciente.. Correlativamente, a interpretação encontra, por sua vez, o seu lugar, visto que visa reduzir essa opacidade[…].
            De outro modo, quando o impulso desse vetor foi retido, tem-se a presença de um significante que não encontrou seu significado histórico correspondente, e a interpretação está ali para permitir essa retroação significativa efetuar-se no presente. Segundo Lacan, a interptretação “é uma pontuação oportuna que dá sentido ao discurso”[iii]. (…) Tal construção se baseia nesse esquema da palavra, que corresponde tanto ao inconsciente como à interpretação. Quando esse esquema não pode efetuar-se, tem-se um fato do inconsciente que é, essencialmente, o sintoma, e a intepretação intervém para restabelecer a completude desse funcionamento. É provável que se tenha aqui o valor da tese do inconsciente estruturado como linguagem.
            O inconsciente freudiano se define pelo fato de ser interpretável. Nesses termos, a interpretação concerne à natureza mesma do inconsciente. Freud começou por demonstrar que o sonho era interpretável. Que condição permite constituir o conjunto de fenômenos – sonhos, ato falho, lapsus, chiste – que se remetem ao inconsciente? A condição essencial para incluí-los como formações do inconsciente é que se possa apreender  um “querer dizer”. Por certo, um querer dizer especial, na medida em que está inibido por certo não poder dizer, por uma impotência para dizer ou um impossível de dizer ou uma proibição de dizer. Esse querer dizer especial, que permite qualificar um determinado fenômeno de inconsciente, está articulado com um indizível. […]
Utiliza-se aqui a expressão meio dizer que Lacan forjou, bem mais tarde, em “O avesso da psicanálise”. Portanto, se o inconsciente freudiano interpreta, apenas o faz se disfarçando, cifrando sua intenção de significação – o que convoca, por sua vez, uma operação contrária de deciframento. (…) O analista, precisamente, porque é Outro, deve estar à altura de dizer o indizível do analisante.

O inconsciente e a sexualidade
            Chega-se agora ao segundo tempo da formalização de Lacan sobre o inconsciente, cuja fonte é tanto o Seminário 11 como o escrito que lhe é contemporâneo, a saber: “Posição do inconsciente”. Logo no início do texto, encontra-se um conjunto resumido de definições do inconsciente[iv] em que dificilmente se pode apreender sua equivalência conceitual com a interpretação. Nesse segundo tempo, toma-se em consideração a sexualidade e, por consequência, estabelece-se uma articulação essencial entre o inconsciente e o objeto da pulsão.
            Curiosamente, esse dado novo aparece em função de todo um remanejamento e revisão da teoria da interpretação exposta antes. Ou seja, Lacan, no Seminário 11, faz uma retrospectiva bem-resumida de sua formulação inicial, em que situa, de um lado, o recalcado e, de outro, o seu correspondente, a saber, a interpretação[v]. É notável, aliás, que ele substitua o termo inconsciente pelo termo recalcado. […]
            Então, do lado do recalcado, está o sintoma, que se edifica sobre o recalcado, e, do lado da interpretação, o desejo, conforme o binário clássico da “Instância da Letra”. Em suma, o desejo apresenta-se retido no sintoma, que a interpretação, por sua vez, libera A interpretação aparece como a liberação do sentido aprisionado no sinthoma. Do mesmo modo, do lado do recalcado, tem-se o significante, conforme a definição precedente que toma o sintoma como um significante, cujo significado foi recalcado. Do lado da interpretação, está o significado[…].
            O Seminário 11 apresenta, portanto, essa espécie de resumo retrospectivo da teoria da interpretação, com o acréscimo de um fator de conexão entre o recalcado e a interpretação. Há algo entre os dois que é, nada menos, nada mais, que a sexualidade.

RECALCADO                     <>                           INTERPRETAÇÃO
SINTOMA                                                                           DESEJO
STE                                                                                       SDO
METÁFORA                                                                        METONÍMIA
SINCRONIA                                                                        DIACRONIA
                        SEXUALIDADE

[….]o que acrescenta Lacan nessa visada retrospectiva da conexão recalcado/interpretação é um intervalo preenchido pela sexualidade. Pode-se dizer que ele acrescenta a sexualidade como um elemento que embaralha as cartas de sua concepção anterior do inconsciente. […] Ele se exprime assim: “Pelo fato da incidência da sexualidade, a interpretação analítica não é apenas uma mântica”. Ou seja, uma pura e simples arte de decifração dos significantes.
            É a partir daí que Lacan coloca as questões essenciais para o tema das nossas próximas Jornadas: – O que é a sexualidade? Como ela se faz presente no inconsciente? Como ela está aí representada? […].

*Texto na integra próxima Curinga , a ser lançada em junho 2017
             
http://jornadaebpmg.blogspot.com.br/2017/04/lincs-1-5o-que-se-escreve.html




[i] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 139.
[ii] LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 243-244.
[iii] LACAN. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, p. 253.
[iv] LACAN, J. Posição do inconsciente. In: ___. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 844.
[v] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 167.


Jornada EBP-MG