Entre postes e árvores, Megic Eric

“Vida Comum (Realismo Fantástico)”, primeiro álbum solo do músico carioca, injeta groove na MPB e descortina pequenas magias do cotidiano

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Fotos: Elisa Maciel

O processo de produção do primeiro disco solo de Eric Guimarães Camargo, o Megic Eric, atravessou o período pandêmico. “Eu tava muito mexido com a pandemia, com a noção de realidade se desbotando. Comecei a jogar as músicas na parede, brincar com elas”, conta. Com canções desenvolvidas desde 2019, Vida Comum (Realismo Fantástico) representou o momento em que o músico carioca, que anteriormente havia sido parte do grupo Baltazar, tomou as rédeas de suas composições – uma prazerosa liberdade que, entretanto, também o colocou em certas encruzilhadas. “Tive muita liberdade – meio grandes poderes, grandes responsabilidades. Mas, ao mesmo tempo, me paralisei frente às diversas possibilidades. Quis outra cabeça para pensar junto e refrescar o ouvido. Já tinha um ano e meio de gravação quando resolvi chamar o Guilherme Lirio”. Os dois já se conheciam, haviam feito shows junsto algumas vezes e trocavam referências musicais via redes sociais. “Chamei o Guilherme em 2021, ficamos duas horas conversando”, lembra Eric.

Lirio, prendado músico que costuma dividir palcos e estúdio com nomes que vão de Gilberto Gil a Ana Frango Elétrico, assina a produção do disco ao lado de Eric. “Ele é uma pessoa aberta, de troca, uma pessoa muito querida. Tem coisas que gravei em 2020 que ficaram intactas. Mas, se não tivesse ele, talvez eu não conseguisse botar para fora. Ele ajudou não só com harmonia, arranjo ou tocando – ele ajudou botando fé no projeto. Uma coprodução fraternal”. Além de Guilherme Lirio, o álbum conta com um time de primeira de instrumentistas, especialmente, da cena carioca: Pedro Fonte, Karina Neves, Jonas Hocherman, Marcelo Costa, Dora Morelenbaum, Luluca, Pedro Mib, Miguel Góes, Felipe Larrosa Moura, Marcos Schaimberg, Cadu Fausto, Milton Guedes, Bruno Dilulo, Lucas Videla, Ana Luiza Nigri, Giordano Bruno, Bruno Niquet. Com 10 faixas, o repertório traz linguagens que traduzem a multiplicidade de caminhos propostos por Eric, nos quais um dedilhado tipicamente bossanovista abre espaço para sintetizadores, drum machines e sopros variados.

“Eu falava o termo baixo-astral-tropical de sacanagem há muitos anos. Porque essa tag define bem. Se fosse falar só um gênero, falaria MPB, porque é o que tá mais na base. Mas o baixo-astral-tropical mostra um pouco de humor. Tem influências de rock alternativo, mas dar nome é muito difícil. Às vezes, na piada, acaba saindo um retrato bom”

Vida Comum (Realismo Fantástico) é azeitado, conceitualmente sólido e, a partir de sementinhas de violões típicos da MPB, floresce em colorações cheias de groove – o que borra suas definições por entre pop, rock alternativo e soul. Nas letras, a melancolia se mistura à redenção e a atmosfera une tons taciturnos e esperançosos. Um estilo que Eric, como piada, chama de MPB Baixo-Astral-Tropical. “Tocando violão na praia, mas meio triste. Mas tô na praia, pelo menos [risos]. Eu falava o termo baixo-astral-tropical de sacanagem há muitos anos. Porque é isso, essa tag define bem. Se eu fosse falar só um gênero, falaria MPB, porque é o que tá mais na base. Mas o baixo-astral-tropical mostra um pouco de humor. Tem influências de rock alternativo, mas dar nome é muito difícil. Às vezes, na piada, acaba saindo um retrato bom”, define Eric. Embora calcado na MPB ou na tal “Nova MPB”, o trabalho de Eric acolhe referências diversas que o músico acumulou durante sua caminhada, das mais fundamentais, tais quais Beatles – que ele escolhe para ouvir durante uma viagem de carro, por exemplo –, Nick Drake e Gilberto Gil aos xodós um poucos mais recentes de suas playlists, como Shuggie Otis, JPEGMAFIA, Remi Wolf e Saya Gray. Mas, para ele, MPB é um termo amplo e sortido, embora recentemente tenha sido espremido. “Porque, tipo, João Gomes é MPB pra caralho. Música que é popular e que é brasileira. Foi um termo que ficou quase limitado, mas é tão amplo. Mas, quando fala ‘Nova MPB’, meio que já rastreia para essa MPB que bebe mais diretamente das origens joãogilbertonianas da nossa história”, elabora.

Todo o astral de Vida Comum (Realismo Fantástico) é permeado por uma espécie de coexistência que abriga esses encontros não apenas musicais, mas de cantos de pneus e de pássaros, o campo e o urbano – e postes e árvores. “O Rio tem essa mistura de ambientes urbanos sinistros e paisagem de montanha e árvore, e a imagem de árvores com postes é muito forte na minha cabeça, acho um traço forte daqui. E fala dessa mistura de referências que eu tenho. Sou fã de rap, de jazz alternativo, de produções elaboradas e mirabolantes, sendo que aquilo que é mais fundamental, quando eu pego o violão ou o piano, são origens mais MPB, folk, tranquilas”.

Ao comentar o que tem garimpado em suas pesquisas recentes, Eric diz: “Esse é meu assunto preferido da vida. Tô sempre nesse exercício de buscar sons de diversas formas – playlists, YouTube, Bandcamp, revistas –, abrindo aba atrás de aba”. Um dos exemplos dessa expansão que vai além da MPB está no segundo single do trabalho, “Teu Calor”, um R&B com toques de Lo-Fi.

Lugares onde a alma caminhou

Entre as grandes canções do repertório, “Vida Comum”, não por acaso, sintetiza muito do álbum, lírica e musicalmente. Um violão de notas intrincadas abre os trabalhos até ser invadido por um belíssimo naipe de sopros, baseado em trombone e flauta – com arranjo feito por Karina Neves. A letra surgiu durante o período da pandemia, após uma longa conversa entre Eric – “com quilos de máscara e álcool em gel” – e sua avó e fala de vida e morte, da magia escondida no cotidiano e de conexões familiares que atravessam gerações.

“Já chorei alguns litros com essa música. Meu avô estava objetivamente no final da vida. Não pela pandemia, a gente conseguiu desviar disso, mas ele tinha ficado internado alguns meses. Ele teve um período de novo em casa, foi internado de novo e acabou falecendo, num processo natural. E eu passei o dia inteiro com a minha avó, mãe da minha mãe, esposa dele. Ela contou a vida dela para mim – coisas que eu já sabia e coisas que eu não sabia. E eu voltei para casa. Num momento muito sensível, peguei o violão e meio que vomitei tudo aquilo de uma vez”, relembra.

Cena maravilhosa, cheia de encantos mil

Só de esmiuçar a ficha técnica do primeiro disco de Megic Eric, notamos como o projeto faz parte de uma cena – não exatamente nova, mas tampouco antiga – do Rio de Janeiro.  Uma movimentação de artistas que esticam as possibilidades da MPB, enraizada em ouvidos e alma, e injetam um balanço e um ritmo que bebem de fontes que transpõem as montanhas cariocas. De Ana Frango Elétrico a Vovô Bebê, de Antonio Neves ao próprio Guilherme Lirio, entre muitos outros nomes. Eric sente que, de fato, há algo de interessante acontecendo pelo Rio. “Parece que em Belo Horizonte e São Paulo têm mais espaços, mas os que têm aqui toda semana tem coisa rolando”. É uma cena que tem unido gerações e que proporciona colaborações, participações e identidades musicais construídas em conjunto. “Tá rolando um movimento muito vivo. Tô com 30 anos e tenho trocado muito com uma galera de 24, 25 que está tomando alguns espaços. Tá rolando essa coisa de cena. De compor juntos, se movimentar juntos, fazer shows. Um senso de comunidade”.

“A música popular do mundo atualmente é bem baseada no impacto dos beats – reggaeton, funk, rap. Hoje, o pop normalmente é coisa de impacto rítmico. Acho que faz parte da gente, que vive no mundo de hoje, mas que bebeu da MPB como fonte materna, tentar reinventar”

Além de dividir palcos e estúdios com os músicos pela cidade, Eric se sente inspirado por esses artistas e suas produções. “Me sinto muito motivado por ver essa cena que acontece em volta. Quando um álbum de uma galera amiga sai, fico muito nutrido. Minha cabeça já explodiu com Chico Buarque há muitos anos. Eu tô pirando mais em quem tá fazendo hoje. Tô muito contente de ver essa cena rolando. Cada um à sua maneira, criando sua própria identidade e ajudando o outro a formar a dele”.

O reaquecimento dessa cena underground-meio-jovem-carioca contribui também para que as referências mais enraizadas da MPB encontrem novos trajetos, desembocando nessa conexão entre a estética um banquinho & um violão e o efeito de beats, experimentações e abordagens que abarquem o pop –  fusões que, segundo Eric, ocorrem “tanto propositalmente quanto sem querer”.  “O Gilberto Gil, por exemplo, tá quase no gene de todos nós – e que bom que está. Isso está no fundamento, mas são bilhões de referências passando pela nossa cabeça. Hoje, o pop normalmente é coisa de impacto rítmico e dos beats – reggaeton, funk, rap. Acho que faz parte da gente, que vive no mundo de hoje, mas que bebeu da MPB como fonte materna, tentar reinventar, misturar”.

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ARTISTA: Megic Eric