Quando a sabotagem vem de dentro: por que a pena de multa é um dificultador da ressocialização?
Ilustração: Guia "Estou Livre, e agora?" para egressos do sistema prisional

Quando a sabotagem vem de dentro: por que a pena de multa é um dificultador da ressocialização?

Quando falamos sobre sistema prisional e ressocialização, países localizados ao Norte da Europa são os primeiros a serem citados como grandes exemplos de “escape” da lógica punitivista: complexos bem equipados, estruturas arejadas e planejadas, quartos individuais, acesso à cultura, grades inexistentes e… poucos prisioneiros.

Ainda que o tratamento concedido à população carcerária seja motivo de polêmica entre os conservadores, a queda na criminalidade desses países fala por si só: o número de detentos na Holanda, por exemplo, despencou em 27 pontos percentuais entre 2011 e 2015 - 43 quando considerados os últimos dez anos. A reincidência dos egressos holandeses também está entre as mais baixas do continente: 10% (dados do relatório World Prison Brief). A Suécia é outro grande exemplo quando o assunto é cárcere: apenas 4,5 mil suecos ocupavam o sistema prisional do país em 2014.

É impossível ignorar que países como a Suécia e a Holanda possuem realidades completamente opostas às do Brasil - afinal, nenhum deles atravessou processos de colonização exploratórios e violentos, ou possui uma história étnico-racial tão complexa, ou uma democracia tão jovem e frágil, ou mesmo uma extensão territorial continental como é o nosso caso.

Entretanto, ainda que pese a crítica acerca dos contrastes históricos, geográficos e socioeconômicos, meu contra-argumento para o estudo desses respectivos dados e a possibilidade de utilizá-los como inspiração é que estas sociedades vivenciaram (de maneira direta ou indireta) contextos catastróficos capazes de tê-las tornado mais punitivas e odiosas - a exemplo da Segunda Guerra Mundial, responsável por uma destruição de valor humano, econômico, social e cultural que poderia ter se alastrado até os dias de hoje. 

Estas sociedades - outrora massacradas pelas atrocidades que chocam o mundo até os dias atuais - nos ensinam que a obviedade do caminho a ser tomado na reciprocidade nem sempre (ou quase nunca) deve ser a opção exercida. A propagação de justificativas que normalizam o ódio e perpetuam a punição sem oxigenação de idéias e renovação de práticas não produzem a paz necessária para que a justa medida da Justiça, aquela que segue produzindo paz, seja implantada. 

"A propagação de justificativas que normalizam o ódio e perpetuam a punição sem oxigenação de idéias e renovação de práticas não produzem a paz necessária para que a justa medida da Justiça, aquela que segue produzindo paz, seja implantada"

Assim sendo, abstendo-nos da crítica imediata e regenerando nossa mente e intelecto edificador, convido-os para seguir nesta leitura. De pronto, há de se notar que o Brasil segue na contramão das tendências europeias: após alcançar o terceiro lugar em números absolutos da população carcerária, mais de 800 mil brasileiros estão cumprindo pena em regimes fechado ou semiaberto - e quase metade deles (42%) ainda não foram julgados (Banco de Monitoramento das Prisões, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ).

Penitenciária Feminina em São Luís (MA). Foto: Lucas Barreto - Instituto Humanitas360

Esses números, por si, já deveriam ter peso suficiente para nossas autoridades se comprometerem com as políticas públicas de desencarceramento e ressocialização - o que não parece ser o caso. Enquanto os países que estão acima do Brasil no ranking - a China (1,6 milhão) e os EUA (2,1 milhões) - começam a direcionar seu olhar para a redução de suas populações carcerárias, o Brasil mantém um crescimento anual de 8,3% nos povos “por trás das grades”.

A raiz desse problema, especialmente no Brasil, é complexa e multifatorial, contemplando desde fatores regionais até questões étnico-raciais intrínsecas ao aparato político-burocrático de nosso país. Especialistas argumentam, contudo, que tais fatores fazem parte de um plano maior, encabeçado pelo Estado, que coloca o encarceramento como solução de problemáticas socioeconômicas anteriores à própria existência da República.

Ao adotar o encarceramento e políticas punitivistas adjacentes para “remediar” as mazelas sociais que assolam o país, o Estado admite que grupos marginalizados permaneçam desta forma, despindo-lhes de todas as garantias concedidas pela Constituição - principalmente o direito fundamental à cidadania ativa.

E, como se o aprisionamento em massa de nossas minorias sociais não fosse grave o suficiente, os egressos do sistema também sofrem uma retaliação estatal velada: os impedimentos para sua ressocialização plena. Um dos maiores exemplos dessa “sabotagem” é a pena de dias-multa**, vulgarmente conhecida como “pena de multa”. 

Ela consiste em uma espécie de sanção penal de caráter patrimonial e foi instaurada para obrigar o egresso a pagar um valor em dinheiro aos Fundos Penitenciários Nacional ou Estadual - responsáveis por custear os Sistemas Prisionais de suas respectivas esferas. No ano passado, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) alterou o entendimento sobre a lei que regulamenta a pena de dias-multa - endossando um retrocesso ainda maior sobre a ressocialização de pessoas saídas do sistema

Grosso modo, no entendimento atual a extinção da punição imposta pelo Judiciário só é possível após a quitação integral da multa – fazendo com que os egressos devedores convivam com a condenação, sem acesso a documentos e à cidadania básica. A nova regra vale para todos os processos.

Essa alteração é mais um exemplo da seletividade penal a serviço da manutenção de poder. O sistema, além de escolher quem e como punir, define também as condições de liberdade do egresso, mesmo após o término do confinamento. Além de minar por completo a possibilidade de reinserção do indivíduo na sociedade, o entendimento do STJ aumenta a chance de reincidência – tomando do egresso a possibilidade de trabalhar com carteira assinada, o próprio Estado obriga o indivíduo a voltar para os braços do crime. 

"(...) tomando do egresso a possibilidade de trabalhar com carteira assinada, o próprio Estado obriga o indivíduo a voltar para os braços do crime"

A decisão representa mais um dos inúmeros retrocessos pelos quais o judiciário brasileiro tem passado nos últimos anos. Além de distanciar cada vez mais a população carcerária e egressos do sistema de uma ressocialização plena, eficaz e longeva, a pena de dias-multa também é um mecanismo de manutenção do encarceramento em massa, o maior dos atributos de controle populacional de um Estado elitista, supremacista e sem qualquer consciência cívico-social.

É tempo de avançarmos no debate do encarceramento em massa, abrindo mão das raízes retrógradas sobre as quais nosso aparato político-burocrático foi fundado. É preciso nadarmos contra a corrente que trancafia a população mais vulnerável em vez de conceder a ela condições para participar ativamente da sociedade e contribuir para a construção de um Brasil coletivo.

*Patrícia Villela Marino é advogada e ativista cívico-social. Co-fundou e lidera o Instituto Humanitas 360, trabalho pelo qual foi reconhecida com o Prêmio Humanitário 2020, concedido pelo The Trust for the Americas, afiliada da Organização dos Estados Americanos (OEA). Pertence ao Conselho Consultivo do Centro Ruth Cardoso e integrou o conselho fundador dos Global Shapers do Fórum Econômico Mundial. Liderou a criação da Plataforma Latino Americana de Políticas de Drogas (PLPD).

**Baixe agora o Guia “Estou Livre, e agora?” para egressos e egressas do sistema prisional.

Paulo Roberto D'Agustini

Journalist, communications and public relations manager with expertise in corporate communications, relations with press and crisis management in areas such as agribusiness, economy, infrastructure, innovation and tech

3y

Excelente texto! Parabéns pelo artigo! Importante este olhar sobre o tema.

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Thainã Neves

Reputation designer, connections and partnerships for businesses and brands | Culture and engagement | Communication and Public Relations | IM- Influencer marketing |Team management and project structuring

3y

Excelente texto! reforça mais um motivo de olharmos pra essa causa!

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