Precisamos falar sobre racismo nas empresas

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9 min readDec 7, 2020

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Por Carla Luã Eloi

“Você não pode ser o que você não pode ver” fala assertiva de Shonda Rhimes. Novembro é o mês da Consciência Negra, campanha aderida também por muitas empresas.

Todo ano é entrar Novembro para começar a chuva de ‘por que não tem consciência branca?’. Bem, se você sempre viu pessoas iguais a você nas telas, nos filmes, nos palcos, nos espaços políticos, no corpo docente das universidades, nos brinquedos que você brincou, em cargos de liderança em empresas que você trabalhou ou de serviços e produtos que você consome, se você nunca reparou quando está num bar, num consultório médico, em um curso ou outro espaço e não tem sequer uma pessoa negra, isso apenas comprova por que não há dia da consciência branca: porque pessoas brancas não têm consciência de seus próprios privilégios.

Para alguém como Shonda Rhimes, uma das maiores produtoras de séries de TV e plataformas de streaming da atualidade, dizer algo desse tipo, imagina só o que a falta de representatividade faz e fez com as aspirações profissionais de uma geração inteira de jovens pessoas negras em todo o mundo.

O que me faz pensar se de fato as empresas têm uma política e uma preocupação real com a pauta de raça e etnia ou a Consciência Negra é apenas uma data no calendário para cumprir a meta da comunicação.

O racismo é o crime perfeito. Ele nem sempre se manifesta na forma de brutalidade policial ou palavras descaradamente racistas, o racismo é um olhar, um cochicho, é preterimento no concurso de beleza na sala de aula, é o medo estampado na cara da madame quando uma pessoa negra se aproxima.

É ter seguranças te seguindo em lojas, nunca atender ao perfil de uma vaga de emprego, mas nenhuma empresa nunca explicar exatamente o que isso significa ou ouvir no seu emprego consolidado que você precisa dar um ar mais profissional, cortando ou alisando seus cabelos.

Ninguém precisa dizer para uma criança negra que ela não pode ocupar determinados espaços, nossa alfabetização visual antecede a fala. Aprendemos a andar ao vermos como as pessoas se locomovem, aprendemos que não pertencemos a determinados espaços quando não vemos pessoas como nós nesses lugares.

Shonda Rhimes é um exemplo perfeito para ilustrar o nível do impacto que o racismo tem na vida profissional dos indivíduos. Ela é um dos maiores cases de sucesso da profissão de produção audiovisual.

Mas não trago suas falas inspiradoras para fazer papo motivacional e muito menos te iludir na falácia da meritocracia. Eu a cito por dois simples motivos:

O primeiro e mais óbvio

Se Shonda Rhimes, a maior autora de séries da atualidade, está lidando com racismo na profissão dela, imagina só qualquer outra pessoa negra nesse mundo.

Pode escolher outro exemplo, de qualquer área profissional: no esporte, no jornalismo, na T.I., na política, na saúde. Tente pensar em uma pessoa negra em cargos de destaque, não precisa ser famosa ou celebridade.

Encontre uma pessoa negra em cargo alto e encontre relatos de racismo logo ao lado. É preciso entender que, na hora do vamos ver, matam a criança, o músico, a vereadora, o aposentado… O racismo não vê o cargo, ele vê a cor.

O segundo — e mais irritante

As pessoas que evocam a tal ‘consciência humana’ uma vez ao ano — só no dia 20/11 — cujo discurso menospreza todo o histórico de lutas e violências vividas sistematicamente por pessoas negras, vão tentar usar Shonda Rhimes como token, pegar seu lugar de exceção e tentar torná-lo regra. De forma super sutil fazem isso apresentando-a como “uma mulher negra produtora de séries”.

A própria Shonda Rhimes já questionou isso em entrevistas: por que não me apresentar apenas como uma produtora de séries? Por que ficar usando-a como token em vez de estranhar o fato dela ser a única naquele espaço?

“Ignorar o problema, é aumentar o problema” — Wallace Cruz

Tokenismo: a exceção modelo

O Token Minority — ou Tokenismo — é muito praticado em ambientes corporativos de todas as áreas profissionais.

É basicamente usar um único representante de um grupo social, a exceção, como mascote da diversidade na empresa.

Em filmes e séries, por exemplo, token é aquela única pessoa negra ou LGBTI+ do elenco — geralmente a amizade cômica da pessoa branca cis e hétero que é protagonista — sem arco narrativo próprio, praticamente figurante.

“Não podem haver prêmios por papéis que não existem” — Viola Davis

Para mim soa estranho que falar de pessoas negras seja falar em diversidade, já que somos mais da metade da população nacional. Ainda assim, quando olhamos para salas como o Congresso Nacional, as câmaras municipais, nos sucessos de bilheteria no cinema, nas propagandas na TV, nas fotos de formatura de universidade, nos cargos de liderança na maioria esmagadora das empresas, pessoas negras são minorias ou tokens — isso quando existem.

Será que as empresas que fazem a campanha da Consciência Negra proporcionam ambientes inclusivos para pessoas negras, sejam colaboradoras ou clientes?

Pessoas negras sabem os lugares seguros para frequentar ou, como dizem, sentem a ‘vibe’, a energia de determinado espaço, o que o faz acolhedor ou extremamente desconfortável.

Ser a única pessoa negra em um ambiente faz esse lugar entrar no Top 3 piores espaços para estar. Soa mais estranho ainda que pessoas brancas não repararem quando estão numa sala de reunião, na plateia de uma peça de teatro, numa sala de aula, até mesmo num bar no final do expediente, que não tem sequer uma única pessoa negra ou tem apenas uma.

É estranho um Brasil de herança escravocrata que nega o racismo com voracidade, mas acredita no racismo reverso. Ou seja, acredita que existe um inverso de uma coisa que nem acredita que existe. Para mim, é estranho não estranhar essa situação.

“Se tem territorialidade, tem apartheid” — Elisa Lucinda

Representatividade importa, mas é preciso ir além

Representatividade numa ficção é o primeiro passo para normalização de presenças negras em papéis que não o de pessoas bandidas, escravizadas ou empregadas domésticas.

É também estranho falar em normalização de presenças de um grupo que representa mais de 50% da população. Esse apagamento histórico e invisibilização de existências negras é o resultado do sucesso da política do negacionismo, é o resultado do ‘não existe racismo, somos todos iguais’.

Negar que uma opressão existe é negar as próprias pessoas que vivem essa opressão e, portanto, negar suas demandas e seus direitos. Se a pessoa colaboradora na empresa reclamar de olhares e julgamentos ou de sua frustração de estar capacitada academicamente, mas nunca conseguir progredir na sua carreira, mesmo sabendo que não é por falta de esforço, vão dizer que é paranoia.

O racismo é o crime perfeito: várias vítimas, nenhum culpado.

Representatividade é a abertura de portas, é aquilo que se pode ver. Portanto, é aquilo que é possível ser. É um mundo de possibilidades que surge ao vermos pessoas negras em lugares que nunca imaginamos que pudéssemos ir.

Mas representatividade não se limita às telas e palcos, ela tem ainda mais impacto na sociedade quando concretiza essas possibilidades no mundo real. Na Medicina, no Direito, nas Ciências Exatas, nas Ciências Políticas, no Jornalismo, na Tecnologia, em qualquer cadeira profissional negada historicamente.

Se Shonda Rhimes (e outras pessoas autoras e produtoras de universos fictícios) escrever que pessoas negras podem estar, elas serão inspiradas a acreditar que é possível. Mas é preciso que exista a oportunidade no mercado, que não as desclassifiquem logo na entrevista por vieses inconscientes racistas.

“O que diferencia mulheres negras de qualquer outra pessoa são as oportunidades” — Viola Davis.

Muitas empresas têm realizado processos seletivos inteiramente dedicados à contratação de pessoas negras. Começaram a reparar que a porcentagem do IBGE no quesito raça/etnia não bate com a cor das pessoas colaboradoras no organograma da empresa.

É preciso mudanças fundamentalmente drásticas nas formas que as empresas entendem o seu papel e o seu lugar na luta antirracista.

O racismo é estrutural, por isso são necessárias mudanças estruturais na sociedade. As empresas são parte essencial dessas transformações.

Qualquer possibilidade de estar em lugar majoritariamente ocupado por pessoas brancas não parece um espaço inclusivo e muito menos confortável para uma pessoa negra querer estar.

Pode ser que seja um ótimo lugar para trabalhar ou consumir produtos e serviços, mas há um problema que antecede qualquer outra análise na vida da pessoa negra — talvez seja consciente, talvez não.

A pessoa negra está sempre preparada, sem nem se dar conta, para enfrentar o racismo o tempo todo. Na maioria das vezes, ela não está disposta, o que a faz evitar estar em um espaço potencialmente racista.

É o mecanismo de defesa que já vem de berço. Você, pessoa branca, pode não reparar quando não tem gente negra nos espaços, mas pessoas negras sempre reparam e nem sempre é com os olhos. Às vezes é com um aperto estranho no coração, uma voz no fundo da sua mente que diz: “você não pertence a esse lugar”.

Sensação constante de não pertencer, de nunca ser uma pessoa profissional boa o bastante para realizar atividades que a pessoa está capacitada para fazer.

A Síndrome de Impostora é resultado direto do racismo diário, que vai impactar diretamente na atuação da pessoa negra no mercado de trabalho, mais fortemente quando ela é a única pessoa negra naquela equipe.

Principalmente porque uma das facetas mais interessantes do racismo é tirar a individualidade das pessoas negras. Um homem branco, hétero e cis é responsabilizado por seus erros como indivíduo. A pessoa negra escuta ‘tinha que ser negra’.

O erro não é computado a ela, mas atribuído a toda sua classe social. Se ter que assumir as responsabilidades pelos seus erros profissionais já é intenso, imagine só ter que assumir as responsabilidades dos seus erros e saber que, por causa disso, todo o seu grupo social será estereotipado e ter acessos negados a esse lugar que você está — tudo porque você cometeu um erro. O erro é seu, mas todo seu grupo paga.

Cultura organizacional no combate ao racismo

A cultura organizacional da empresa é em grande parte responsável por construir uma sensação de pertencimento ou não nos seus espaços, tanto para pessoas colaboradoras, quanto para clientes.

A sensação de pertencimento é construída a partir de muita representatividade, não de tokens. De desconstrução de vieses inconscientes em todos os níveis e hierarquias da empresa, de criação de políticas e ações afirmativas, de implantação de medidas combativas ao racismo.

“Repara quem morre e quem deixa morrer, repara quem incomoda e quem é incomodado, repara como não dá pra tomar consciência sem ficar maluco, revoltado” — Renata Abreu

Toda vez que acontece uma situação de racismo em alguma empresa, seja com clientes, seja com pessoas colaboradoras, certo como o Sol nascer amanhã, somos “acalmados” por notinha de repúdio e com o argumento de que foi um caso isolado.

Esse tipo de fala tenta minimizar o próprio racismo ao retirar sua carga estrutural. Como se os 77% de jovens pessoas negras mortas pela polícia (dados da Anistia Internacional) fossem casos isolados.

Ou o fato de que a cada 23 minutos uma pessoa negra é assassinada no Brasil (dados do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) é uma pura e simplesmente estranha coincidência.

Ou toda vez que uma pessoa negra é ‘confundida’ com uma pessoa bandida em toda e qualquer loja/empresa em qualquer hora e lugar no Brasil fosse um fato totalmente pontual e não uma manifestação escrachada da estrutura racista em que nossa sociedade foi construída e que, portanto, também forjou as bases do nosso mercado de trabalho.

Até onde vamos chegar com nota de repúdio? Até onde chegamos? Não dá para uma empresa que se diz preocupada com diversidade reparar o racismo só quando ele é descaradamente violento ou fatal.

Não dá para o mercado de trabalho reparar o racismo só quando ele traz má publicidade para empresa no jornal. Não dá para reparar o racismo com nota de repúdio, é preciso reparar a dívida histórica, reparar as estruturas racistas que moldaram o mundo corporativo, repensar e reformular toda a cultura.

Representatividade é normalizar existências negras em espaços historicamente negados. É ocupar e inspirar outras pessoas para que também ocupem.

É um dos passos mais importantes para uma sociedade cada vez mais antirracista. Empresas que de fato tenham compromisso com o dia da Consciência Negra vão focar mais em mudanças organizacionais, em representatividade, em ações administrativas de prevenção e correção contra o racismo e menos em nota de repúdio.

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